Perdidos dentro de uns óculos de realidade virtual

Ana Borralho e João Galante voltam a trazer para o palco um olhar artístico sobre as novas tecnologias

Perdidos dentro de uns óculos de realidade virtual

Uma instalação de luz e som e uma realidade paralela inspirada no universo dos vídeos do TikTok – o novo espetáculo de Ana Borralho e João Galante, O Centro do Mundo, estreia-se esta terça-feira, 22, no Teatro do Bairro Alto, no âmbito do Festival Temps d'Images.

“Não é estranho? Só conseguimos ver o exterior, mas quase tudo acontece no interior.” A frase aparece escrita por cima da cabeça de um rapaz, como se fosse um pensamento. Vestido de amarelo e de cor de rosa, panamá na cabeça, meias e chinelos, ele olha para nós e sorri muito. Tem um sorriso estranho, talvez um pouco tétrico, e a sua imagem está sempre a piscar. É um dos vários personagens de O Centro do Mundo, o novo espetáculo de Ana Borralho e João Galante, que se passa praticamente todo dentro de uns óculos de realidade virtual e que se estreia no Teatro do Bairro Alto esta terça-feira, 22, e ali fica até ao dia 25 de outubro.

Depois de entrarem numa instalação de luz e som, de se sentarem numa cadeira giratória e de porem os óculos, os 28 espectadores hão de ver aproximar-se um conjunto de figuras que podiam ter saído do TikTok e dos vídeos que pululam, por estes dias, na Internet. Olham-nos de longe mas sobretudo de perto, falam connosco e rodeiam-nos de tal forma que nos sentimos transportados para uma realidade paralela de pessoas tão perdidas quanto irreais.

Ana Borralho e João Galante continuam a levar para o palco o seu olhar sobre as novas tecnologias, aquilo que consideram ser, como diz o título, O Centro do Mundo. Depois dos espetáculos Romance Familiar ou a realidade aumentada (2019) e Chatroom (2023), primeiras incursões neste universo, inventam agora um espetáculo cujo processo de criação implicou um mergulho profundo na Internet e nos vídeos que aí existem, assim como todo um rol de siglas, conceitos e tendências.

Enquanto Marco Mendonça interpreta o tal rapaz de sorriso misterioso, Maria Antunes faz de NPC, um non-playable character ou personagem não-jogável, figura de movimentos robóticos que existe nos jogos eletrónicos e que, em muitos vídeos, é imitada por humanos. “Fiquei muito, com muito medo de que algo muito mau estivesse prestes a acontecer, e por isso tive de pôr vídeos calmantes de aquários”, revela em voz off.

“O que encontrámos e o que criámos aqui pode ser uma espécie de limbo, onde aqueles seres são alguma coisa entre o fantasma e o zombie, que têm uma existência no mundo através das redes sociais, são seres fabricados, não reais”, aponta Ana Borralho. João Galante acrescenta: “Isto parece um apocalipse de zombies, um conto fantástico muito real. É a nossa versão da Alice no País das Maravilhas”, ri-se.

Por ali, fala-se quase sempre em sussurro, como os melhores criadores de vídeos ASMR (Resposta Sensorial Autónoma do Meridiano), aqueles onde se produzem sons que são suposto relaxar quem os ouve, através de vozes suaves, movimentos lentos com as mãos, barulhos feitos com a boca ou batendo delicadamente em objetos. Ana Freitas, Gustavo Sumpta, Inês Cóias e Joana Bernardo são os atores que dão corpo aos restantes personagens de O Centro do Mundo e que vão vagueando à nossa volta: uma mulher sexy que tem uma mão a tremer, “demasiado especial e inteligente”; um homem perdido, coberto de tatuagens, qual anjo negro; uma rapariga que acredita que vai ser tudo e deita lágrimas que impressionam; uma menina que luta para entender quem é e que nos olha fixamente com os seus grandes olhos azuis, como se tivesse chorado sangue.

“As pessoas partilham a sua vida pessoal nas redes e no TikTok fazem-nos através de vídeos e isso pode ser muito tocante. Por outro lado, é tudo produzido para esses vídeos, ninguém sabe o que é real e o que é ficção. E até que ponto somos avatares de nós próprios?”, interroga-se João Galante.

Ainda vamos a tempo?

Para criar este universo, a dupla inspirou-se também nas fotografias cruas que o norte-americano Bruce Gilden tem captado pelas ruas de Nova Iorque e outras cidades. “Queríamos uma estética um pouco pop trash, como se fosse uma pintura hiper-realista. É como se isto fosse um aumentar da realidade”, descreve Ana Borralho, falando da opção pelas cores fortes nos figurinos, dos lábios muito pintados de vermelho, dos olhos rodeados de tons intensos. Ingredientes que sublinham ainda mais este “mundo fantástico, mas aterrador e cheio de desespero”.

Afinal, o que diz tudo isto sobre nós? “É o sítio onde estamos”, constata João Galante, “por muito que isto nos possa divertir, há um lado de um coletivo bastante perdido e desesperado. Toda esta tecnologia pode-nos ajudar a centrar, mas é também onde nos perdemos e nos tornamos zombies. Coletivamente, vamos alimentando esta máquina do capitalismo, pensando que estamos a viver. Somos reais, mas passamos tanto tempo nisto que nos perdemos e já não nos encontramos.”

O mundo real está em risco de se perder no virtual?, voltam a questionar os artistas com este espetáculo. Haverá ainda uma linha definida a separar a realidade virtual e a experiência humana? “Está tudo bem, está tudo bem, podes sempre ligar-me, eu posso consertar isso”, garante esta NPC de tailleur azul e cabelo rosa, numa letra que já quase não se consegue ler. Depois, ainda vamos a tempo de tirar os óculos e de olhar para os outros espectadores sentados na sala.