Veneza, a cidade cenográfica

Uma viagem à 'Sereníssima' setecentista em "Veneza em Festa. De Canaletto a Guardi"

Veneza, a cidade cenográfica

Numa colaboração com o Museo Thyssen-Bornemisza de Madrid, o Museu Calouste Gulbenkian apresenta Veneza em Festa. De Canaletto a Guardi, uma exposição que proporciona, através de obras dos grandes mestres da pintura veneziana do século XVIII, um passeio encantador por aquele que é, ainda hoje, um dos mais maravilhosos conjuntos arquitetónicos do mundo.

Sob a égide de dois dos mais notáveis pintores venezianos do século XVIII, Canaletto (1697-1768) e Francesco Guardi (1712-1793), o Museu Calouste Gulbenkian volta a colaborar com o Museo Thyssen-Bornemisza, mais de uma década depois da exposição dedicada ao pintor francês Henri Fantin-Latour. Em Veneza em Festa. De Canaletto a Guardi estão reunidas mais de meia centena de obras das duas instituições, destacando-se a pintura e a gravura, mas também os livros (Veneza foi o maior produtor de livros de luxo do mundo), os têxteis, uma escultura de Antonio Corradini (1688 – 1752) e um notável modelo do Bucentauro, a aparatosa embarcação cerimonial do doge que surge representada em inúmeras pinturas da época, como se pode testemunhar, muito em particular, num soberbo Canaletto aqui presente.

Tendo como principal foco as muito celebradas vedute, ou seja, as vistas panorâmicas daquele que, nas palavras da curadora Luísa Sampaio, é porventura “o mais maravilhoso conjunto arquitetónico do mundo”, a exposição dá particular enfoque às representações das feste, nomeadamente as celebrações relacionadas com a Ascensão, muito ligadas à união da cidade ao mar, e aos sempre muito curiosos capricci, “arquiteturas fantasistas imaginadas pelos artistas”.

Ao longo do percurso expositivo, é inolvidável redescobrir a capacidade singular da pintura de Guardi em fixar a atmosfera da Sereníssima (uma certa intimidade, ou até “um traço de melancolia”, como observa António Filipe Pimentel, diretor do Museu Gulbenkian), através de um conjunto precioso de obras adquiridas por Calouste Gulbenkian (19 no total, que fazem do museu lisboeta o possuidor da maior coleção de pinturas do artista). Destacam-se especialmente três delas, recentemente restauradas e reconhecidas como das prediletas do colecionador: A festa da Ascensão na Praça de São Marcos, Regata no Grande Canal e As Comportas de Dolo.

Em contraste com o olhar de Guardi, o último dos vedutiste, um mestre anterior havia afirmado a pintura de vistas na Veneza do século XVIII. Através do rigor geométrico e da forma, a pintura de Giovanni Antonio Canal, dito Canaletto, ali está para revelar Veneza em todo o seu esplendor. Do museu madrileno, detentor de um dos mais relevantes conjuntos de obras de artistas venezianos do século XVIII, chegam os imponentes A Praça de São Marcos em Veneza, O Grande Canal Visto de San Vio O Bucentauro, ou quadros de menor dimensão, mas igualmente relevantes, como A Escola de São Marcos e Capricho com Colunata no Interior de um Palácio. Característica comum a todas estas pinturas, o olhar quase teatral que o artista lega às “cenas”, ou não tivesse Canaletto feito a sua formação com o pai, o cenógrafo Bernardo Canal.

Para além dos Canaletto, da coleção do Museo Thyssen-Bornemisza chegam ainda pinturas de outros mestres daquele período, como Michele Marieschi, Bellotto (a paisagem imaginada em Capricho com Rio e Ponte), Piazzetta (com dois retratos venezianos), Pietro Longhi (uma prodigiosa cena do quotidiano palaciano em As Cócegas) e um Tiepolo (A Morte de Sofonisba) de “pincelada rápida”, onde o artista cita deliberadamente As Bodas de Canaã de Veronese, como observa Luísa Sampaio. Afirmando a afinidade que Calouste Gulbenkian nutria pelas representações pictóricas de Veneza e o seu “gosto transversal” sobre o tema, a exposição inclui, a fechar, três pinturas do século XIX e início do século XX. De salientar ainda um conjunto de doze gravuras de Antonio Visentini segundo Canaletto, pertencente às coleções dos Musei Civici di Venezia, que ajudam a entender a popularidade (e o interesse comercial) que os vedute tiveram ao longo do século XVIII junto dos visitantes que os entendiam como postais ilustrados da outrora chamada “rainha do Adriático”.

Uma Veneza quase imersiva

Embora não seja, longe disso, uma exposição imersiva – até porque, como atenta Luísa Sampaio, nada como ter presentes “as obras de arte reais” – Veneza em Festa oferece ao visitante o verdadeiro “ambiente veneziano” através da reprodução dos sons da cidade, captados in loco, nomeadamente o dos sinos das torres e das igrejas da cidade e da água nos canais.

Como complemento, a exposição estreia no Museu Calouste Gulbenkian um novo recurso de mediação digital assistido por inteligência artificial. Através do chatbot Venez.I.A., os visitantes podem aceder através de smartphone a todo um conjunto de informações detalhadas a propósito das obras em exposição e curiosidades sobre a história de uma cidade milenar.

Ao longo dos próximos meses, destaca-se uma programação paralela que inclui visitas guiadas, oficinas e workshops, bem como dois concertos de música de câmara. O primeiro acontece já a 2 de novembro, com o Ensemble Alorna a interpretar peças dos venezianos Vivaldi, Albinioni, Galuppi e Plati.

Patente até 13 de janeiro, este maravilhoso “passeio pela pequena Veneza” agora instalada na Gulbenkian seguirá, ainda nos primeiros meses do próximo ano, para o Museo Thyssen-Bornemisza em Madrid.