entrevista
Diogo Costa Amarante
"Faço filmes para tocar as pessoas"
Estamos no Ar, a primeira longa-metragem de Diogo Costa Amarante, chega às salas de cinema a 7 de novembro. O filme narra o dia-a-dia de três personagens Fátima, Vítor e Júlia, ligadas por laços familiares, que procuram satisfazer desejos ocultos e, em última instância, encontrar a felicidade. Sandra Faleiro, Carloto Cotta e Valerie Bradell são os protagonistas desta narrativa de encontros e desencontros. Conversámos com o realizador sobre o filme e as motivações que o levaram a contar esta história.
O filme narra a vida de três elementos da mesma família que, apesar de estarem em diferentes fases da vida, querem libertar-se do que os atormenta. Qual foi o ponto de partida para esta história?
Independentemente da geração, há sempre algum tipo de descontentamento, é algo transversal a todos nós. O filme como princípio parte um pouco dessa ideia. Mas, o início da história, o enredo propriamente dito, começa quando fui para o Porto escrever o filme. Regressei dos Estados Unidos, onde vivia, e comecei a procurar casa. Contactei um senhorio que me disse que não podia mostrar a casa, mas que o atual inquilino, que estava de saída, o poderia fazer. Toquei à campainha e veio à janela um senhor fardado, um GNR, disse-me que ia gostar muito da casa porque tinha uma vista desafogada sobre o Porto. Entretanto, a vizinha do lado, vem à varanda, interrompe a conversa e, muito simpática, apresenta-se. Acabei por ficar com a casa e uns tempos depois, a tal vizinha vem falar comigo e diz-me que está triste por aquele sujeito se ir embora, mas oferece-se para ajudar caso eu precise de alguma coisa. Então, de repente, achei que havia qualquer coisa de bonito nisto, que de repente estava a ocupar o lugar de outra pessoa, um personagem que não era eu, mas que ao mesmo tempo tinha uma determinada função. Há aqui um equilíbrio, neste jogo de troca de papéis e dentro das nossas fantasias betais. A partir daí comecei a construir a ficção, não há qualquer tipo de relação com o real, nem relativo a ninguém. Comecei a imaginar uma mãe que vive com o filho, que usa a farda do vizinho com quem a mãe fantasia. O princípio era que o enredo criasse um desencontro, mas através da montagem há uma proximidade. Há aqui quase uma estranheza, porque a montagem aproxima e o enredo separa.
Os personagens estão todos ligados a algum tipo de transgressão ou a um desejo oculto. Esta é uma temática que tem interesse em explorar?
Para mim a ideia é mais esta: a transgressão está ligada a um certo imaginário. Tento sempre mostrar nos meus filmes que grande parte dessas limitações e dessas questões são imaginárias. Não sinto que seja transgressivo, o que sinto é que provocamos muitas vezes na nossa cabeça narrativas de transgressão. Por exemplo, acredito que o filme tem qualquer coisa de queer, mas queer é uma coisa muito mais ampla do que aquilo a que se resume o seu significado e que é uma coisa estereotipada, uma espécie de identidade. Tenho uma posição contrária, acho que é importante a quebra das identidades, acho que nos resumem, ficamos presos nelas, são uma farda: eu sou mãe, eu sou mulher, eu sou marido, eu sou gay, eu sou hétero, eu sou bi. Percebo que isto foi necessário para reivindicar direitos, mas o meu instinto é sempre partir essas coisas todas, é essa a minha perceção do mundo. Vamos sendo, não temos de ser sempre a mesma coisa.
Falou da questão queer. De facto, no filme, a sexualidade está sempre ligada a esses desejos ocultos.
Quando digo queer é num sentido de desconstrução do paradigma, porque acho mesmo que tudo o que é paradigma limita e de repente deixa até de fora a possibilidade de se fazer uma viagem de encontros e desencontros. Quanto à história específica da sexualidade, todos as personagens, embora em realidades completamente diferentes, vivem igualmente momentos de confusão e dúvida. O Vítor no fundo está apaixonado por um sujeito, que provavelmente viu no TikTok ou outra plataforma do género, e tem uma relação absolutamente ilusória com um corpo perfeito. A mãe, a Fátima, tem uma ligação com o prédio da frente, em que as janelas podiam ser profiles e, portanto, de repente também há aqui uma interação com o desconhecido, que serve para suprir qualquer coisa. Ao mesmo tempo, temos a avó, a Júlia, que vive num lar e está com uma pessoa que é uma grande amiga, mas que diz ter recebido o espírito do marido. Então, entra numa confusão porque tem dúvidas se é o corpo da amiga ou se é o marido que está ali.
A história espelha também a sociedade onde vivemos: as frustrações, a mentira, os desencontros, o folclore televiso. Esta visão de desesperança é de alguma forma influenciada pelas suas vivências?
Qualquer objeto artístico, seja cinema, música ou o que for, acho que reflete sempre a sensibilidade do autor. Na altura a minha avó estava num lar e aquela coisa de os utentes estarem todos numa sala, em frente a um megatelevisor, o discurso muito infantil, é uma dinâmica que tem algo de muito redutor. Tive necessidade de trazer isso para o filme.
Os ambientes e décors revelam o estado de espírito das personagens. Foi intencional?
Totalmente, sem querer ser pretensioso, tem tudo a ver com uma visão de cinema. Quando se acredita que o espaço narra tanto quanto aquilo que é dito, tudo acaba por contar alguma coisa. Sem dúvida que o princípio foi esse, que os mundos de cada um refletissem de alguma forma algo que é interior. No filme o exterior, ou seja, o espaço aparece como um espelho do interior.
Há uma estética que lembra o realizador Pedro Almodóvar. É uma inspiração para si?
Sem dúvida, é alguém que inclusive me marcou muito no passado, quando eu era muito jovem. Para mim é quase impossível não fazer cinema dentro de uma determinada família. Há um diálogo com vários realizadores. Vamos aprendendo com quem nos inspira e a partir daí entramos em diálogo. E, sem dúvida, o Pedro Almodóvar é um deles.
O filme tem um elenco com atores bastante conhecidos. Foram as suas primeiras escolhas?
Desde o início, mesmo quando estava a preparar o guião, sabia que os atores iam passar muito tempo sozinhos e isso para um ator, imagino que seja, das coisas mais difíceis. Então o meu princípio foi quem é que eu sinto que são as pessoas, daquilo que vi, que aguentam muito bem no silêncio. Quem são atores que estão mesmo muito bem sozinhos? A Sandra Faleiro para mim era uma evidência. E confirmou-se. Quando está sozinha ou quieta, a pensar, há qualquer coisa de magnético. O Carloto Cotta oferece um lado muito físico e concreto. E a Valerie Bradell é alguém que trabalha há muito tempo com a Sandra, têm uma relação mãe-filha por natureza. Quando conheci a Valerie e vi a dinâmica que existe entre elas, pensei logo, é a pessoa certa.
Em 2017 ganhou, em Berlim, o Urso de Ouro para Melhor Curta-Metragem, com o filme Cidade Pequena. Qual a importância deste prémio e dos prémios de uma forma geral?
Objetivamente falando, acho que os prémios podem ajudar a que se consiga continuar a fazer filmes. É mais fácil conseguir apoio, porque há ali um voto de confiança. À margem disso tudo, do ponto de vista pessoal, toca-nos, é impossível não nos tocar. Perceber que existem três pessoas ou quatro, num júri, que ficaram particularmente tocados com o filme. É para isso que faço filmes, para tocar as pessoas.