teatro
Uma reinvenção dos corpos femininos
"Este Corpo Já Não Me Serve" no Clube Estefânia
Num cruzamento entre as linguagens da dança e do teatro, Este Corpo Já Não Me Serve é o novo espetáculo de Marta Lapa, a partir de um texto original de Ana Sampaio e Maia, escrito ao longo do processo de criação. Em cena, quatro mulheres exploram a reinvenção dos seus próprios corpos.
Ao espectador, o único elemento entregue à partida é um título, “que se quer impactante”, e, depois, “um texto poético, cheio de paisagens e imagens”. A jusante, pretende Marta Lapa, “cada pessoa deverá fazer a viagem, incorporando e reconhecendo cenários numa leitura” guiada pelos corpos de quatro mulheres. O movimento coreográfico que protagonizam situa-se num espaço amplo e vazio, ocupado, num primeiro instante, de um modo quase harmónico, logo “mais confortável para o espectador”. Com o evoluir da “viagem”, dá-se uma espécie de “libertação” rumo ao “agradável abismo” em que os corpos de cada uma delas se reinventam e libertam.
A origem da peça remonta ao início deste século, quando uma pessoa que muito amou lhe legou a frase “este corpo já não me serve”. “Veio de um lugar trágico, mas também sublime, e colou-se-me desde então, sabendo que um dia conseguiria libertá-la do meu contexto biográfico e afirmá-la num objeto artístico”, esclarece Marta Lapa, salientando a vontade de prosseguir com esta peça a pesquisa em torno da “reinterpretação do movimento pelo corpo do outro”. Aliás, esta “investigação” coloca as suas criações, de novo, muito mais próximas da área da dança, de onde é oriunda, do que do teatro.
Através de audições, Marta Lapa chegou às atrizes Gracinda Nave, Catarina Rabaça, Júlia Valente e Teresa Moreira, selecionadas entre um último grupo de 12 que a encenadora afirma, “se tivesse orçamento”, gostar de ter integrado no projeto. Sobre as escolhidas, acrescenta: “é a primeira vez que estou a trabalhar com elas e tem sido absolutamente extraordinário a sintonia e a cumplicidade que estabelecemos entre todas”.
Na fase inicial do trabalho, “pretendi que estes quatro corpos e almas se apropriassem de códigos que eram meus, mas que depois viriam a tornar-se delas. A seguir, entre muita improvisação, muita troca de ideias, muita liberdade, dá-se a apropriação de um vocabulário coletivo, e daí surge esta dramaturgia construída”. Paralelamente, a atriz e autora Ana Sampaio e Maia já havia sido desafiada a escrever um conjunto de textos que acabariam, no melhor dos sentidos, por se revelar “profundamente poéticos”.
“O ponto de partida dado pela Marta foi a frase que dá título à peça”, lembra Ana que começou a escrever ainda antes de saber quais as atrizes que iriam interpretar o espetáculo. “A minha grande dúvida era perceber se aquelas palavras poderiam vir a servir aqueles corpos”. O certo é que o trabalho desenvolvido pela autora se revelou fundamental. “Todos os textos que ia escrevendo foram úteis para trabalharmos, mesmo aqueles que eram meras descrições de situações comuns”. Sendo, como sublinha a encenadora, “uma peça profundamente física, mais coreográfica do que verbal”, muitos deles acabaram por não ter espaço para integrar “vocalmente” a peça, embora tenham tido um papel “essencial” na referida “dramaturgia construída”.
Assumindo Este Corpo Já Não Me Serve como “um objeto artístico difícil, mas muito desafiador”, Marta Lapa sente tratar-se de um espetáculo capaz de “comunicar com o público, permitindo-lhe gozar de liberdade para incontáveis leituras”. Ao mesmo tempo, é “uma peça que se adequa perfeitamente ao contexto atual da companhia”, a Escola de Mulheres, que lidera com Ruy Malheiro desde o desaparecimento de Fernanda Lapa. “Consegui ter condições para trabalhar não com uma ou duas atrizes como vem sendo hábito, mas com quatro [mais Ana Sampaio e Maia, que também está em cena], e ainda continuar a afirmar a Escola de Mulheres como uma companhia assumidamente feminista.”
No Clube Estefânia a partir de dia 6, Este Corpo Já Não Me Serve permanece em cena até 24 de novembro, de quarta a sábado às 21, e aos domingos às 18 horas.