Em Jon Fosse, o que importa é a viagem

"Vento Forte" pelos Artistas Unidos no Teatro Variedades

Em Jon Fosse, o que importa é a viagem

Depois de um hiato de cerca de dez anos, sobretudo dedicados à prosa, Jon Fosse voltou ao teatro com Vento Forte. A peça, agora encenada e protagonizada por António Simão, acompanha o regresso de um homem a casa, depois de uma longa viagem. Aí, encontra a mulher a partilhar o lar com outro homem, como se ele nunca tivesse existido. Andreia Bento e Nuno Gonçalo Rodrigues completam o elenco.

Em Vento Forte há um homem (António Simão) que retorna a casa. Como ele diz, durante o solilóquio inicial, “estive fora um tempo, andei a viajar e agora regressei”. No entanto, a casa à qual está de volta, aquela onde vivera com a mulher que ama e a filha, já não é a mesma casa. Estranho num tempo e num espaço que lhe provoca desconforto, o homem encontra a mulher (Andreia Bento) a partilhar o lar e, consequentemente, a sua intimidade com um jovem (Nuno Gonçalo Rodrigues). Durante esta ausência houve mudanças, com aquele desconhecido a ocupar o lugar que outrora fora o dele. Entre o estranhamento e a indignação, o desconcerto e a revolta, ao homem talvez reste apenas a morte.

Depois de há pouco mais de um ano ter dirigido José Raposo no poderoso monólogo Foi Assim, António Simão volta ao teatro do autor distinguido com o Prémio Nobel da Literatura em 2023. Nesta peça para três atores onde parecem ressoar ecos homéricos do regresso de Ulisses a Ítaca, e que Jon Fosse subintitulou como “um poema cénico”, reencontram-se os temas primordiais do autor norueguês, os quais, como sublinha o encenador, têm à cabeça “o tempo como ilusão, o amor, o ciúme, a traição e um certo existencialismo à Camus e Sartre”.

Datado de 2021, Vento Forte (Sterk Vind, no original) marcou o regresso de Fosse à escrita dramatúrgica depois de uma década dedicada quase em exclusivo à prosa. “Amigo e cúmplice” de muitos anos dos Artistas Unidos – que, em 2000, ainda no espaço A Capital, o encenaram pela primeira vez em Portugal (a peça, também para três atores, Vai vir alguém, por Solveig Nordlund) – sempre confessou “ser muito mais intenso escrever teatro do que um romance”, lembra Simão. “Diz ele que há um sofrimento que é impossível distender no tempo, ao contrário do romance”, conta o ator e encenador.

Vento Forte revela-se sintomático de um autor que parece colocar toda essa “vertigem” do tempo na experiência do teatro, mais precisamente, do palco. Embora Fosse admita que só começou a escrever teatro porque lhe disseram que a sua escrita era suscetível de ser “teatral”, aqui encontra-se na perfeição aquela “espécie de música… poucas palavras, repetições, variações, silêncios”, que está sempre presente tanto nos seus romances como nas suas peças. Mas o Fosse “dramático” é hoje, como sublinha Simão, “um autor cada vez mais apurado” e, esta peça, com a sua cadência, o seu humor e o seu desconcerto, resulta desse estado gracioso de apuro.

Uma peça fora do tempo

Em Fosse há questões, muitas, porque “não é um teatro de respostas, mas sim um teatro de movimento, como água que corre num tempo que não existe”, enfatiza António Simão, antes de explicar o que mais o fascina neste teatro que desafia convenções narrativas e dimensões espácio-temporais. “Tudo parece conduzir-nos a um certo recolhimento, talvez devido às pausas, aos silêncios. Gosto particularmente disso em teatro. Daquele silêncio que é, muitas vezes, mais importante do que aquilo que se diz, sobretudo num mundo tão ruidoso como o de hoje.”

Ao não dar respostas, mas colocando muitas questões, como pode então o público decifrá-lo? António Simão considera que o teatro de Fosse é tal e qual aquele provérbio chinês que diz: “o importante não é chegar, é a viagem”. Por isso, não se pode ir ao Teatro Variedades, onde os Artistas Unidos estreiam esta nova incursão no teatro do autor, e pensar que, no final, se pode ter tudo decifrado e devidamente alinhavado na cabeça. O teatro de Fosse não funciona assim. “Há que contemplar e pensar, ou nem sequer pensar. Isso nem sequer é importante. Importa, isso sim, mudar de frequência, esquecer o telemóvel, quebrar a rotina, parar o tempo e contemplar. E viajar”, aconselha. Quem o conseguir, agradecerá certamente ter estado fora de tempo, pelo menos durante a hora em que decorre o espetáculo.

Com estreia agendada para 27 de novembro, esta nova produção marca o regresso ao centro de Lisboa dos Artistas Unidos, meses depois de terem sido forçados a abandonar o Teatro da Politécnica. Em cena, até 22 de dezembro, no recém-reaberto Teatro Variedades, ao Parque Mayer.