Um futuro palpável

Ângela Rocha apresenta a sua primeira instalação na Culturgest

Um futuro palpável

Chama-se Metade dos Minutos e é uma instalação onde podemos entrar e mexer. No palco do Pequeno Auditório da Culturgest, a cenógrafa Ângela Rocha imagina um futuro que nos leva pelos caminhos luminosos de um labirinto sensorial. Para desvendar através do nosso corpo.

Uma nuvem negra lança raios sobre uma mesa de escritório e ali, quase na penumbra, tudo é preto: a secretária, o módulo de gavetas, o candeeiro aceso, a cadeira giratória. Alguns objetos aparentam respirar, num movimento suave de ondulação que os torna quase vivos. O cenário parece agreste e, ao mesmo tempo, fofo e confortável – mas, para se ver a instalação de Ângela Rocha, instalada no palco do Pequeno Auditório da Culturgest, não basta olhar, é preciso sentir, tatear, apalpar, mexer e remexer.

Metade dos Minutos, que abre ao público a 30 de novembro, ficando patente até 5 de janeiro, descreve-se como um labirinto sensorial. A instalação foi criada pela cenógrafa para a Representação Oficial Portuguesa, comissariada pela Direção Geral das Artes, na Quadrienal de Praga 2023, uma das maiores mostras internacionais de artes plásticas do espetáculo. Concebida no pós-covid, procura recordar-nos o valor do toque, contrariando a ideia de perigo a ele associada durante a pandemia e combatendo também a sua ausência causada por relações cada vez mais digitais.

“Quis valorizar o conceito de estarmos presentes, aqui e agora. Nesta peça, temos de estar presentes para a sentir, não chega ver fotografias ou vídeos. É uma ideia de reconexão com o corpo, de tomada de consciência do corpo no espaço. Costumo evocar a imagem do jogo da mímica para dizer que qualquer dia todos os nossos gestos estão resumidos a um dedo a ligar e desligar, que isso será o código para tudo. E não pode ser. Quis enaltecer as mãos, a manualidade e o seu poder transformador”, afirma Ângela Rocha. Vem daí exatamente o nome com que batizou este trabalho, Metade dos Minutos, título do primeiro diário gráfico que fez na Escola António Arroio, usando recortes de jornais. “Foi a primeira vez que prestei mais atenção ao que faziam as minhas mãos e achei que fazia sentido voltar a essa ideia, reivindicando, pelo menos, metade dos minutos para estarmos presentes e ligados uns aos outros e à terra, e não ao wifi.”

“Visões raras de futuro” era o mote para as obras nessa 15.ª edição da Quadrienal de Praga e pedia-se, ainda, que se apresentassem ideias positivas. A cenógrafa de 36 anos, mais habituada a espetáculos de teatro, estreou-se na criação de uma instalação artística com a ideia de pôr de pé um labirinto que fosse imperativo de movimento e colocasse o visitante no centro da ação. “O espectador aqui tem de ser o protagonista”, sublinha. “Hoje, o público está num lugar de conforto e de distância e, nesta peça, queria que estivesse mais implicado, que se aproximasse e que se conduzisse a si próprio através de estímulos, mas decidindo por si. O lugar é potenciador e explorativo, para cada pessoa o ir descobrindo, conduzindo-se a si própria e escolhendo o caminho e a interação que quer fazer”.

Trabalhar para o deslumbre

Entremos, então, neste labirinto coberto de pelúcia cor de rosa. Lá dentro, esperam-nos caminhos apertados, como se estivéssemos numa espécie de lavagem automática forrada de fogo de artifício luminoso e chão espelhado. Imersos num ambiente sonoro criado por Miguel Raposa Lima, há caminhos que nos levam a portas, há um que nos leva a um beco sem saída onde nos espera um coração (quase) capaz de explodir. A ideia é tocarmos sem medos, encostarmo-nos por onde passamos, interagirmos com o que vamos encontrando, experimentarmos as diferentes texturas e ir descobrindo que nem sempre o que parece se confirma ser. “Gostaria de trabalhar para aqueles segundos de deslumbre, em que ainda não nos pomos a pensar sobre o que são as coisas nem a catalogar. Para mim, esses momentos são bolsas de oxigénio e acredito que estamos mesmo a precisar disso”, diz Ângela Rocha, que, numa lógica colaborativa, convidou os artistas plásticos Diogo Costa e Telma Pais de Faria para pensarem, cada um, numa das saídas do labirinto, concebendo obras para ali.

A instalação, que na Quadrienal de Praga ganhou o prémio do público, o PQ Kids, e já esteve em Évora, na Fundação Eugénio de Almeida, está agora no ambiente de trabalho da cenógrafa: um palco. No entanto, concebê-la foi um desafio, confessa. “Mas gosto de desafios e gostei deste formato em que o público tem acesso ao que faço sem a intermediação dos atores. É uma relação direta com o objeto. Sempre me atraiu a verdade dos materiais, que têm todos a sua força específica. O que me fascina é conseguir escolher o material certo para cada coisa”, acrescenta Ângela, que começou como assistente de cenografia e figurinos nos Artistas Unidos e trabalhou, como cenógrafa e figurinista, para encenadores como Cláudia Gaiolas, Guilherme Gomes, Gonçalo Waddington, João Pedro Mamede, Maria João Luís, Raquel Castro, Ricardo Neves-Neves, Tiago Guedes e Tiago Rodrigues, entre muitos outros. Em 2025, voltará a fazer uma instalação, encomenda de um teatro fora de Lisboa, mas não revela ainda mais pormenores.

Na Culturgest, Metade dos Minutos começa ainda antes de descermos ao Pequeno Auditório. À entrada, encontramos um objeto que nos lembra a bola de cristal de uma cartomante, mas que é uma daquelas máquinas de onde podemos tirar uma surpresa a troco de uma moeda de 50 cêntimos. Inspirada pelo tema da Quadrienal de Praga e querendo tornar a Representação de Portugal num gesto coletivo, a artista plástica convidou quem quisesse a deixar a sua “visão rara de futuro” numa biblioteca perto de si, de norte a sul do país.

Os contributos foram recolhidos e fazem parte desta segunda instalação dentro da instalação. Mirabolante, assim se chama, leva “a voz dessas pessoas” a quem queira tentar a sorte e comprar uma bola de plástico com recheio. Do seu interior, saem as mensagens deixadas para o futuro, que podem assumir várias feitios: confetis em forma de estrela, uma música que se ouve através de um qrcode (como The Future’s So Bright, dos Timbuk 3), um desenho, uma chave-surpresa de uma fechadura que não sabemos o que abrirá, sementes que alguém pode ou não plantar (partilhando a responsabilidade de um futuro comum), flores como o amor-perfeito, uma frase escrita num papel (“É preciso que todos deem as mãos o mais rapidamente possível para solucionar os problemas graves.”).

“O futuro quer-se plural e não de voz única”, acredita Ângela Rocha, “e o primeiro passo para construir algo é imaginá-lo”.