teatro
Sintoma crítico de doenças modernas
Ricardo Neves-Neves dirige "A Médica" de Robert Icke
A reinvenção contemporânea da peça de Arthur Schnitzler, Professor Bernhardi, pelo dramaturgo e encenador britânico Robert Icke chega ao palco do Teatro da Trindade num espetáculo de Ricardo Neves-Neves. À frente de um elenco recheado de estrelas, Custódia Gallego interpreta uma médica de origem judaica que, ao negar a visita de um padre a uma jovem adolescente moribunda, desencadeia um conjunto de reações suscetíveis de pôr em causa muito do que se pensa crer acerca de religião, ciência, raça, género e classe social.
Em 1912, Arthur Schnitzler escreveu Professor Bernhardi, um retrato impressionante e devastador do antissemitismo vigente na sociedade austríaca da época. A peça narra a história de um destacado médico judeu que nega a extrema-unção prestada por um padre católico a uma jovem paciente moribunda, após um aborto malsucedido. Professor Bernhardi acabou impedida de estrear em Viena (por isso, a estreia aconteceu em Berlim nesse mesmo ano), sendo que nenhuma explicação plausível foi dada pelos censores, embora a proibição se tenha mantido até à queda dos Habsburgos, em 1918. Pelas temáticas abordadas, é suscetível presumir o que não agradou à censura, e o certo é que a peça de Schnitzler acabou, muito pelas vicissitudes do curso da História, por se tornar um clássico da literatura dramática europeia do século XX.
Embora frequentemente representado, um interesse renovado pelo texto surgiu em 2019, quando o dramaturgo e encenador britânico Robert Icke, especialista em novas abordagens de grandes textos da literatura (os Artistas Unidos têm, atualmente em digressão pelo país, a sua visão, a meias com Duncan Macmillan, de 1984, de George Orwell), estreou em Londres, com enorme sucesso de público e de crítica, A Médica, um reboot da peça de Schnitzler. Com originalidade e agudeza, Icke impregnou o drama de alguns dos temas mais suscetíveis de gerar debate na atualidade, nomeadamente os conflitos raciais e as questões de género e de classe, e ainda apostou em introduzir um jogo dissonante entre o género e a etnia de alguns dos atores e das personagens que representam. Um exemplo dessa dissonância: o padre católico impedido pela médica de origem judaica (papel aqui interpretado por Custódia Gallego) de prestar a extrema-unção à jovem de 14 anos é negro. Ora, na versão portuguesa, respeitando as indicações de Icke, esse personagem é encarnado pelo ator Pedro Laginha.
O encenador Ricardo Neves-Neves vê o “desencontro” como um desafio do próprio teatro enquanto arte. Afinal, “quando o ator ou a atriz está em placo é aquilo que diz ser, não aquilo que efetivamente é”. Aqui, Icke usa a dissonância do género ou da raça como “uma espécie de laboratório para perceber o que é que o público realmente vê. Enquanto vemos um ator a representar uma personagem, será que estamos a ver o ator ou a ver a personagem”, questiona.
De certo modo, neste jogo teatral, parece estabelecer-se entre A Médica e o anterior espetáculo que Neves-Neves e o seu Teatro do Eléctrico apresentaram no Teatro da Trindade, uma relação não discernível à partida. “Em Noite de Reis recorria à regra do teatro isabelino e todas as personagens, femininas ou masculinas, eram representadas por homens. Aqui, tenho um elenco definido na sua diversidade, contudo a distribuição dos papéis não obedece à regra lógica” do género ou da raça, explicita o encenador.
Vale a pena, assim, recuperar a ideia de que “a representação tem como ponto de partida a ilusão, palavra essa muito ligada ao teatro”. Isso já acontecia em Noite de Reis, com o género, mas A Médica (e esse jogo da dissonância começa, desde logo, ao colocar o protagonista no feminino quando, na peça original, o Professor Bernhardi era um homem) leva o desafio para outro nível. Este texto não se resume a mexer com o espectador pelos temas que aborda, mas também por lhe puxar o tapete ao desafiá-lo a pensar de que modo é que se deixa “iludir” quando, por exemplo, uma atriz negra como Vera Cruz interpreta uma personagem “que diz ser negra porque teve uma avó negra, mas aparenta, segundo nos dizem as outras personagens, ser uma pessoa totalmente branca.”
Doenças modernas
O incidente inicial em A Médica, aquele em que a doutora Piedade Lobbo impede o padre de entrar no quarto da jovem adolescente moribunda, acaba por despoletar uma reação que ultrapassa os corredores do hospital quando a discussão entre os protagonistas surge difundida na internet, tornando-se viral. Inúmeras questões começam por ser levantadas, como o facto de Piedade Lobbo ter negado a visita do padre devido à sua origem judaica, ato agravado não só pelo conflito entre fés professadas como por racismo.
Acossada, primeiro, pelos seus pares que duvidam das suas explicações clínicas, segundo, pelas redes sociais que aclamam por uma condenação sumária pelas mais diversas (e simplistas) razões, Piedade acaba por se ver no epicentro de um furacão mediático que alimenta petições online, debates televisivos e até decisões políticas. Com a carreira profissional ferida de morte, a abordagem tóxica em torno do incidente resvala para a dimensão identitária e pessoal da vida de uma mulher branca, judia, privilegiada e profissionalmente bem-sucedida.
À visão crítica do antissemitismo da peça de Schnitzler, Icke prolonga o olhar na direção das nefastas doenças modernas que, na sua essência, as redes sociais, “em que se fala muito de coisas que se desconhecem”, propagam. Observa Neves-Neves que, a dado momento da peça, assistimos a um programa de televisão onde Piedade decide falar, pela primeira vez publicamente, do caso. Nele, antes de passar a palavra à médica, o apresentador resume o contexto ao dizer “vocês já terão de certeza a vossa opinião formada”. Portanto, após tanta “gente a gritar na internet, diga o que disser, aquela mulher já está julgada, condenada a ser trucidada pela opinião pública. E mesmo que, daí a uns dias, já o caso esteja esquecido, tudo aquilo fica como uma constante na vida de quem o sofreu”.
Para além de Custódia Gallego, Vera Cruz e Pedro Laginha, A Médica conta com um elenco de luxo constituído por Adriano Luz, Eduarda Arriaga, Igor Regalla, Inês Castel-Branco, José Leite, Luciana Balby, Maria José Paschoal, Rita Cabaço e Sandra Faleiro. A cenografia é de Fernando Ribeiro, o desenho de luz de Cristina Piedade e os figurinos de Rafaela Mapril. O espetáculo está em cena até 16 de fevereiro, com récitas de quarta a sábado às 21 horas, e aos domingos às 16h30.