Bruno Bravo

"Vejo 'Pinocchio' como representação do ser humano naquilo que é o desejo mais íntimo de se cumprir"

Bruno Bravo

Esculpido a partir do tronco de uma árvore pelo carpinteiro Geppetto, Pinocchio ganhou vida e sonhou transformar-se num menino de verdade. A jornada do boneco de madeira, criado no final do século XIX por Carlo Collodi, sobe ao palco do Teatro Municipal Maria Matos, a partir de 27 de fevereiro, numa criação de Bruno Bravo e dos seus Primeiros Sintomas.

Tem sido recorrente no teu percurso a adaptação ao teatro de obras não dramáticas. Pinocchio sucede a O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde (2014). O que te motiva a fazer estas adaptações?

São sempre projetos muito aliciantes, que me dão um particular gozo. A linguagem do teatro é complexa e vasta e, enquanto encenador, o meu trabalho tem estado sempre muito ligado à palavra, ao texto como base e fundamento do espetáculo. Há romances, como o do Wilde ou o Frankenstein (que adaptámos em 2002), de que gosto muito, e isso motiva-me a explorá-los dentro da linguagem teatral. Aquilo que verdadeiramente procuro nas adaptações é a relação e o diálogo com a obra, recusando dizer, pura e simplesmente, “isto é o livro”.

Esse trabalho de exploração, que conduz à adaptação ao palco, pode ser entendido como a escrita de uma peça baseada num romance?

No romance e no teatro há sempre elementos que se tocam, mas entendo que a adaptação nunca deve ser escrever uma peça de teatro a partir do romance. Esse trabalho de exploração jamais tem em vista desvirtuar o romance. Importa sim “apanhar” a sua linguagem e perceber como é que ela pode funcionar em cena, considerando sempre a interpretação dos atores e todos os outros elementos que compõem um espetáculo de teatro.

Há uma liberdade acrescida nesse processo?

Digamos que um texto dramático, uma peça já escrita, pode ser entendido como uma partitura – dali partimos, e resta-nos procurar aquilo que podemos dar de novo e de único. Talvez por isso, não me custa reconhecer alguma liberdade nestes projetos que partem de textos literários. No Dorian Gray, por exemplo, foi nos ensaios que descobrimos como transformar os diálogos, como torna-los dramáticos, como perceber os movimentos e dar-lhes mais ou menos lirismo, mais ou menos dramatismo. Nesse sentido, reconheço uma liberdade quase total.

Pinocchio é, e ao mesmo tempo não é, uma obra que se pode balizar na literatura para a infância. O que te seduziu ao ponto de a querer trazer para o teatro?

Pinocchio foi sempre um personagem muito presente no meu imaginário e acompanha-me a recordação da minha mãe a ler-mo quando era criança. Talvez por isso, foi sempre um personagem muito vivo no meu imaginário. Já em adulto, li a obra de Collodi e percebi ser um livro diferente da maior parte dos livros dedicados à infância. Penso que pelo tema, pela odisseia daquele boneco de madeira que quer ser um menino de verdade, tão carregada de densidade e de negrume, algo que a minha memória de infância não deixava perceber…

Quando decidiste avançar com o projeto?

Soube que tinha de o fazer, e há dois anos que trabalhamos nele. Primeiro, pensámos fazer um espetáculo para crianças, porém, fui relacionando-me cada vez mais com a obra e percebi que o que lá está é muito mais do que aquilo que se lê. Isto porque, entendi o Pinocchio como uma representação do ser humano naquilo que é o desejo mais intimo de se cumprir, ou seja, a ambição (que, por sinal, perpassa todos os clássicos) de responder ao que sou, ao que anseio ser e àquilo que não posso ser…

Constatá-lo definiu o sentido da adaptação na procura de fazer um espetáculo para um público adulto?

Inequivocamente, pela linguagem, o livro foi escrito para crianças e nós não queremos desvirtuar isso. Se por um lado não estamos a trabalhar para a infância, estamos a trabalhar no território da infância. Logo, queremos que Pinocchio seja entendido como uma representação de todos nós, mas com as particularidades da infância – por exemplo, as mentiras que fazem o nariz crescer entendo-as como mentiras belas, sem a perversidade das dos adultos. Depois, há um contorno trágico naquela odisseia terrível por que ele passa para se fazer humano, com os códigos de sociedade, uns melhores, outros piores, a imporem-se… é um mundo lá dentro.

Mas se a odisseia, tal como o mundo, é trágica, aqui o final é feliz…

Esse é um dos mistérios do livro. Não estou tão certo, confesso, se o Pinocchio ao transformar-se em rapaz representa um final feliz.

A obra é povoada por inúmeras personagens mas, nesta versão, há apenas dois atores [António Mortágua e Carolina Salles]. Ao mesmo tempo, o espetáculo vai ser apresentado num espaço relativamente pequeno, uma vez que o público sentar-se-á numa bancada fixa no palco do Maria Matos. Procura-se um lado intimista para viver esta odisseia?

Conforme fui trabalhando o texto percebi que o queria fazer com dois atores, e chegámos mesmo a pensar apresentar o espetáculo no nosso espaço, a Ribeira. Na verdade, quero esse caráter intimista do espaço pequeno, dos dois atores, de partir da relação entre o Pinocchio e o Geppetto… Mas vai haver surpresas, como um coro muito particular, não humano… Em suma, um trabalho com elementos ligados à tragédia.

Pensas que este Pinocchio vai ajudar o público a reencontrar o imaginário de infância?

Os italianos trabalharam sempre muito as várias camadas do Pinocchio, e até no teatro o fizeram. Aqui, a imagem do personagem está muito fixada no filme de Walt Disney. Mas é o meu fascínio pelo território da infância que me traz aqui. A ver vamos como o público entenderá isso neste nosso espetáculo.