Os livros de janeiro

Oito livros para o novo ano

Os livros de janeiro

Viet Thanh Nguyen, autor vietnamita-americano que concebe a escrita como “ato de justiça”, portadora de “beleza e luz e também fúria e raiva”, escreve em Um Homem de Duas Caras: “A casa está cheia de livros, uma condição prévia de felicidade. E de justiça.” No primeiro mês do ano novo, celebramos a leitura destacando oito belíssimas edições recentes de diferentes géneros: romance, romance histórico, conto, poesia, estudo, ensaio e desenho humorístico. Para encher a casa de livros!

Viet Thanh Nguyen

Um Homem de Duas Caras

Viet Thanh Nguyen entrou nos Estados Unidos da América aos quatro anos levado pelos pais, refugiados da guerra do Vietname. O escritor, vencedor do Prémio Pulitzer com O Simpatizante (2016), narra no brilhante Um Homem De Duas Caras a sua experiência e a da sua família enquanto refugiados na “maior democracia do mundo”. “Partido ao meio”, condenado a “uma existência intersticial” de línguas, culturas, modos de pensar e convicções políticas, examina, sem concessões e com um humor caustico, o racismo latente nos Estados Unidos, nas suas instituições e cultura. Ironia e aguçado sentido crítico que reserva igualmente para se autoanalisar (um dos capítulos do livro intitula-se Retrato do Escritor Enquanto Jovem Imbecil). Nguyen não professa qualquer vestígio de gratidão relativamente ao país de acolhimento, pois considera a sua condição de refugiado como consequência direta da política imperialista americana e da agressão armada ao seu país de origem. Ao invés, procura que a sua escrita, seja um ato de justiça “contra a força desumanizadora de Hollywood e os seus crimes de representação do povo vietnamita”, determinada a humanizá-los e a dar-lhes voz. Mais ainda: que contribua para “erradicar as condições que permitem que alguns não tenham voz”.Elsinore

Alexandre Vidal Porto

Sodomita

Em 1669, Luiz Delgado, violeiro português natural de Évora, é encarcerado como ladrão na cadeia pública de Lisboa. Aí se envolve em práticas sexuais com um “jovem franzino muito juvenil e solícito”. Descoberto, é levado à sala do Santo Ofício e condenado a dez anos de degredo “nas selvagens terras do Brasil”, acusado de praticar “o mais torpe, sujo e desonesto pecado: a sodomia”. Em território baiano avança no caminho da prosperidade como negociante de tabaco e assume um casamento cordial de fachada. Marido e mulher têm ambos algo a esconder: Luiz, a sua orientação sexual; Florência, o facto de se dedicar à escrita produzindo crónicas num diário (“aquelas letras no papel eram ela, tudo ela, papel, carne e tinta”). “Compartilhavam temor e desconfiança (…) perante um Deus que não os admitia no comando de nada. (…) Por instinto, protegiam-se desse Deus, que diminuía as mulheres e tinha ódio aos fanchonos.” Tendo por base uma investigação histórica e personagens reais, este belo romance, o primeiro do autor editado em Portugal, produz uma profunda reflexão sobre os costumes da pretensa civilização face às sociedades ditas primitivas, a temível opressão da Igreja, o preconceito, a liberdade e o direito ao prazer do corpo e o de todo o ser humano se assumir como é. Tinta-da-China

Eugénio Lisboa

Manuel Prático de Gatos

O poeta e ensaísta Eugénio Lisboa deixou-nos no passado mês de abril. Neste livro, o autor dá conta das suas intenções no texto de abertura – demonstrar publicamente a veneração pelo felino que se fez doméstico – onde refere que “a majestade divina do gato exige (…) o formato mais nobre da poesia – o SONETO.” E assim fez, partilhando a poesia aqui reunida, em louvor dos felinos, com amigos de várias partes do mundo, que lhe retribuíam com fotos dos seus bichanos que fazem nesta edição companhia às imagens de Ísis e Artemisa, as últimas gatas a entrarem na vida de Eugénio Lisboa e da sua mulher. Para cada soneto, a respetiva imagem do(s) gato(s), num equilíbrio que se mantém até final, onde se encontram o posfácio de Onésimo Teotónio Almeida e um texto de Otília Pires Martins que fornece o enquadramento sobre a origem das fotografias. Manual Prático de Gatos Para Uso Diário e Intenso é um livro edificado entre amigos e, mais importante ainda, todos pertencentes a uma máfia de “gatófilos”, para a qual uma vez entrados é impossível sair. RG Guerra & Paz

David Grossman

O Coração Pensante

O Coração Pensante é o título do discurso de agradecimento que o romancista israelita David Grossman proferiu na cerimónia de entrega do Prémio Erasmo, em 2022. O poder transformador da arte é o seu tema: “A literatura, e escrita, ensinaram-me o prazer de fazer uma coisa subtil e exata num mundo grosseiro e turvo”. É também o pretexto para o escritor, “uma pessoa que passou a vida inteira em e entre guerras”, que perdeu o filho Uri no confronto entre Israel e o Hezbollah, em 2006, e que há mais de 40 anos luta contra a ocupação pelo seu país da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, reunir 12 ensaios que refletem sobre a questão israelo-palestiniana. Neles analisa o fanatismo da política de Netanyahu que está a causar a destruição do sistema legal, da polícia e da educação, e a pôr em risco a independência do poder judicial e a separação entre a religião e o Estado na “democracia mais frágil do Médio Oriente”. E continua a defender o processo de paz entre as duas nações, apesar de estarem a “tornar-se cada vez mais religiosas, fanáticas e nacionalistas”. Não uma “paz dos ricos”, mas um acordo que aborde “a nação palestina, a sua tragédia e as suas feridas; a ferida de serem refugiados, e a ferida da ocupação”. Na esperança de construir uma vida estável e segura. Uma vida que seja “uma casa” para Israel e “os seus vizinhos”. Dom Quixote

José Eduardo Agualusa

Mestre dos Batuques

Mestre dos Batuques é o mais recente romance de José Eduardo Agualusa, que regressa ao Bailundo, terra que o “viu nascer e crescer”. Uma obra que nos transporta até aos finais do século XX, a uma altura em que, numa savana angolana, soldados europeus surgem mortos de forma misteriosa: “Encontraram vinte e cinco cadáveres. A maioria não apresentava nenhum corte de lâmina, buraco de bala, hematomas ou contusões.” O tempo dos reinos independentes estava a chegar ao fim e era preciso investigar estes estranhos acontecimentos. Foi assim que, em 1902, o tenente Jan Pinto se viu a caminho da ombala real do Bailundo, na companhia de um soldado que queria ser fotógrafo, onde veio a encontrar o melhor amigo de infância, Henjengo. É durante esta viagem que conhece Lucrécia Van-Dunem, sua futura mulher. A história é narrada por Leila Pinto, neta de Jan e Lucrécia, que retrata os dias de guerra em Angola e nos dá a conhecer a história da sociedade secreta de guerreiros batucadores e do poder que se esconde por detrás de cada tambor. Neste “falso romance histórico”, ao mesmo tempo que expõe crimes e contradições da colonização portuguesa em Angola, Agualusa deixa no ar a questão: “pode o amor triunfar sobre a guerra e o caos?” SS Quetzal

Os Imbecis

e Outros Textos Clássicos de Escritoras Russas

Os nomes de Puskin, Tolstoi, Dostoievski, Turguenev, Gogol ou Tchekov são familiares a qualquer leitor português que se preze. Mas quantos leram e conhecem Maria Shkapskaia, Nadejda Teffi, Zinaida Guippius, Sofia Kovalevskaia ou Marina Tsvetaeva? 30 textos de géneros diversos – maioritariamente contos, mas também poemas e uma novela – de 13 autoras vêm provar que nem só de vozes masculinas se fez a grande literatura russa. Representando diferentes escolas e movimentos, esta antologia da literatura russa no feminino confirma uma vocação literária que permaneceu escondida na sombra dos grandes nomes masculinos. Na introdução à presente edição, declara Larissa Shotropa: “Nem sempre compreendidas no seu tempo, escreveram sobre o destino das mulheres russas e discorreram sobre a dificuldade de ser escritora num mundo de homens. Mas não se preocupavam apenas com questões desse tipo: na maior parte dos casos os temas abordados na literatura feminina pouco diferiam dos assuntos tratados nessa época por escritores de outos países”. De facto, o que aqui se restitui é um novo olhar, através de uma lente feminina, sobre as grandes transformações sociais, políticas e culturais do mundo, desde o século XIX até aos inícios do século XX. E-Primatur

Judith Butler

Quem Tem Medo do Género?

“Em várias zonas do mundo, imagina-se que o género é ameaça às crianças, à segurança nacional ou ao casamento heterossexual e a família normativa, mas também conspiração das elites para imporem os seus valores culturais às ‘pessoas reais’, num plano concebido para os centros urbanos do Norte global colonizarem o Sul global. O género é retratado como conjunto de ideias que se opõe à ciência, à religião ou a ambas, ou como ameaça à civilização, negação da Natureza, ataque à masculinidade, ou eliminação das diferenças entre os sexos”. Judith Butler, uma das principais figuras teóricas contemporâneas do feminismo e da teoria queer, examina a forma como o género se tornou um “fantasma” para regimes autoritários, grupos fascistas, feministas transexcludentes ou o Vaticano que o declarou “ameaça à civilização e ao próprio homem”. A autora procura produzir uma visão contrária convincente, que afirme os direitos e as liberdades da vida corporal que urge proteger e defender. “Pois, no fim, derrotar o fantasma é afirmar como amamos, como vivemos no nosso corpo, afirmar o direito de existirmos no mundo sem receio de violência ou discriminação, de circularmos, de respirarmos de vivermos”. Orfeu Negro

João Fazenda

Arena

São quase 250 páginas de desenhos, que reúnem os cartoons do ilustrador João Fazenda, entre 2004 e 2024, feitos durante 17 anos para a revista Visão e, nos últimos três, para o jornal Expresso. Semana após semana, as ilustrações foram acompanhando as crónicas de Ricardo Araújo Pereira – ou, como diz o humorista, estes são os desenhos que os seus textos acompanharam. Vendo o conjunto, tem-se um retrato desenhado deste país à beira-mar plantado e alguns vislumbres do mundo à sua volta. Está ali tudo: dos temas mais ou menos triviais, como a loucura dos saldos ou as fantasias do Salão Erótico, aos temas sociais e políticos, como as cunhas e os subornos, a crise na habitação e na educação, e tantos outros. Os seus protagonistas também não faltam: José Sócrates e Cavaco Silva, Passos Coelho e Angela Merkel, Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, Trump e Macron, e até Madonna, Camões e Taylor Swift… Tudo convive nesta arena desenhada por Fazenda, com um traço “dissimuladamente simples, falsamente infantil”, como descreve Araújo Pereira. GL Tinta da China