entrevista
Milhanas
"Quando nos apaixonamos pelo fado já não há forma de ele se ir embora"
![Milhanas](https://www.agendalx.pt/content/uploads/2025/01/IMG_0125-2.jpg)
Depois de, no ano passado, ter esgotado o Teatro Maria Matos, Milhanas estreia-se no Grande Auditório do CCB a 13 de fevereiro. A jovem cantora traz consigo o disco de estreia, De sombra a sombra, que explora as suas sombras e lamentos. Atualmente, a artista encontra-se numa fase mais apaziguada e solar, tendo os olhos postos no futuro (e noutro álbum). O concerto comemora o final de um ciclo e a abertura a um novo capítulo, como se percebe pelo single Algo mais.
A tua relação com a música começou muito cedo. Tinhas seis anos quando começaste a aprender violino. Foi por vontade própria ou dos teus pais?
Surgiu por minha vontade, mas gostava que tivesse durado mais tempo. Comecei por frequentar música para bebés aos três anos, e lá experimentávamos um pouco de tudo. Iniciei a aprendizagem de violino por uns cinco anos, mas nunca cheguei a ser boa. Mas sempre foi tudo muito orgânico, os meus pais nunca fizeram pressão para eu fazer música, mas também nunca estiveram contra, e fui experimentando também muitas outras coisas. À medida que o tempo foi passando fui encurtando as possibilidades até perceber que era mesmo na música que queria continuar.
Cresceste rodeada de música: o teu pai trabalhava com o Fausto e com o José Mário Branco. De que forma é que isso influenciou o teu caminho?
Não sei exatamente de que forma, mas a verdade é que, obviamente, teve influência. Tenho a certeza de que, se tivesse crescido noutra casa, a música que faço seria diferente. Nunca nada me foi imposto, foi uma coisa muito natural, sempre ouvi muita música em casa. Do lado do meu pai, mais música portuguesa, e do lado da minha mãe, mais anglo-saxónica e jazz, portanto, houve uma fusão e um interesse que eu acabei por recolher de forma absolutamente inconsciente. Podia, se calhar, não me ter apaixonado por este ofício, mas aconteceu.
Há também um gosto muito grande quer pela poesia, quer pela literatura. Isso também influenciou a tua forma de compor?
Influenciou muito. Mas foi uma paixão já tardia, embora eu seja muito nova [risos]. Escrevia prosa de forma absolutamente descomprometida, até que, no ensino secundário, tive uma professora brilhante de literatura portuguesa, ela própria muito apaixonada por literatura, o que levou a que eu também ganhasse esse amor. É mesmo importante ter professores que gostam do que fazem pois isso tem um impacto enorme nos alunos. Apaixonei-me primeiramente pela obra de Fernando Pessoa e a partir daí comecei, de forma quase obsessiva, a explorar a literatura portuguesa. Isso mudou muito a minha forma de escrever canções. Tive de entender que, depois de ler tantas obras incríveis, nunca iria escrever nada brilhante – percebi o meu tamanho microscópico nessa área, mas sou muito apaixonada por poesia…
Consomes mais poesia do que prosa, é isso?
Muito mais, sim.
A certa altura, apaixonaste-te pelo fado. Como é que começaste a frequentar casas de fado?
Os meus pais não gostam muito de fado, na verdade, acho que também nunca tiveram essa cultura. Mas um dia fui a uma casa de fados e apaixonei-me. Comecei a ir mais vezes, cada vez com mais regularidade e percebi que aquilo que estava a atrair-me não era tanto a questão musical, mas sim o ambiente que lá se vive, a forma como fui recebida. E o fado apareceu numa altura em que eu precisava dele, precisava de me sentir compreendida no meio de pessoas que são, de facto, muito sensíveis. Foi uma fase muito especial e que me mudou, principalmente, como intérprete. É muito engraçado porque o De Sombra à Sombra nasceu antes desta fase, mas a partir do momento em que comecei a visitar casas de fado, o disco teve uma alteração de 180 graus. Realmente comecei a cantar de forma diferente. Vou parecer louca, mas já é a segunda paixão obsessiva que tenho [risos]. Talvez tenha sido ali uma coisa muito vincada e, atualmente, já não é tanto assim, mas é uma influência que vai existir para sempre, porque quando nos apaixonamos pelo fado já não há forma de ele se ir embora.
Consegues definir a música que fazes? Há quem diga que é uma mistura de fado e pop…
Não gosto nada de rótulos, até porque os artistas estão constantemente em transição. E, embora não concorde, entendo a associação do meu primeiro disco ao fado. Não foi propositado, mas houve essa influência, por isso entendo que a minha forma de cantar possa remeter para esse lugar. Aquilo que estou a fazer agora – e tudo o que vier no futuro que esteja mais ou menos associado ao fado – não é propositado. Amanhã posso fazer um disco de reggaeton e essa gaveta deixa de fazer sentido, mas é normal, faz parte.
“A arte tem de vir de um sítio de vulnerabilidade”
De Sombra à Sombra foi escrito a partir de um lugar um bocadinho sombrio. Como é que é interpretar músicas com as quais, se calhar, agora não te identificas tanto?
Atualmente, cantar as canções desse disco é um processo bonito. No início foi um bocadinho doloroso, no sentido em que sou muito intensa na minha forma de interpretar e de estar em palco. Aquilo que canto é o que estou a sentir no momento… Às tantas comecei a perceber que isso já não estava a acontecer, porque realmente eu já não estava naquele lugar tão escuro. Mas foi um exercício muito giro, era quase como se eu estivesse a fazer uma homenagem a uma artista que não era eu, e a criar uma ligação de empatia com uma terceira pessoa. Por isso, canto esse disco a partir de um sítio diferente, mais bonito, porque estou a cantar a tristeza de uma forma distante. Na altura em que estava naquele lugar sombrio, precisava de estar constantemente a exteriorizar isso. Mas há uma coisa engraçada: antes de ter começado a tocar ao vivo, a imagem que as pessoas tinham de mim – fosse por causa do disco ou de algumas entrevistas que dei – era de uma pessoa pesada, muito fria e distante… Quando comecei a tocar foi bonito perceber que as pessoas não sentiam nada disso, porque depois tenho o lado leve dos meus 23 anos e, portanto, estou sempre nesse balanço entre o lado escuro e o lado mais solar.
E não é difícil partilhares as tuas inquietações?
No início, com algumas canções específicas, tive medos. Agora, isso raramente me passa pela cabeça. Sinto que a arte tem de vir da vulnerabilidade. Se eu estiver preocupada com isso e a tentar esconder ou tornar menos óbvias as coisas que quero contar, a mensagem não vai chegar de forma tão clara ao público. Se escrever uma canção a partir de um sítio vulnerável e triste, acho que é importante que isso passe para as pessoas, não quero tentar mascarar as coisas. Já não é algo que me preocupe muito, acho que já não é um assunto. Aconteceu com algumas canções, principalmente com a Roubar um corpo, mas agora já não.
Neste álbum trabalhaste com o Agir. Como é que surgiu esta colaboração?
Foi um acaso. Não o conhecia pessoalmente, mas sabia quem ele era. Tinha escrito o Lamentos, que era o primeiro single, e pedi ajuda ao Rodrigo Correia, que foi quem me ajudou também no De Sombra a Sombra. Sem que soubesse, ele mostrou a canção ao Agir. Um dia, estava com as minhas amigas na rua à noite a fumar um cigarro e recebo uma chamada do Agir, a dizer que tinha ouvido a canção e a perguntar se queria passar no estúdio. Fui, demo-nos muito bem, começámos um namoro profissional e fomos trabalhando… Fomos unha com carne. Não foi sempre fácil, mas foi sempre muito verdadeiro.
E depois participaste no Festival da Canção [em 2022] com uma composição dele. Como é que foi interpretar uma música que não foi escrita por ti?
Amo cantar, com paixão. Às vezes sinto que, se calhar, estou a fazer as coisas erradas. Poderia estar a cantar canções de outros em vez de escrever as minhas. Amo cantar canções de outras pessoas quando me identifico verdadeiramente com elas. E a verdade é que eu me revia cem por cento nessa canção, que fala sobre a importância de estarmos atentos ao papel da mulher. Foi uma responsabilidade grande defender uma canção daquelas no festival. Uma situação que, à partida, me era desconfortável: a questão de estar a pedir votos, de pôr a música em competição, não tem muito a ver comigo, mas acabou por ser uma etapa muito especial para mim.
No ano passado atuaste num Teatro Maria Matos completamente esgotado, e agora vais estar no CCB. Como é que te sentes?
Só vou ter consciência de que isso está a acontecer quando acabar o concerto, porque parece tudo meio irreal… Desde ter o disco lançado, que não era uma coisa que estivesse realmente nos meus planos, a todas as coisas boas que foram acontecendo desde então, tudo me parece uma surpresa. Estar a tocar no CCB e na Casa de Música, dá-me uma sensação de síndrome de impostor: como assim? isto está mesmo a acontecer? Mas, falando sobre os concertos, acho que que vai ser o fecho de um ciclo, não um fecho completo, porque, na verdade, o disco saiu há dois anos e mal seria se nunca mais voltasse a cantá-lo. Mas, porque vou começar a preparar outro disco, o concerto no CCB vem encerrar este ciclo escuro do De Sombra a Sombra, embora comigo a cantar com mais distância. Aquilo que mais quero é que seja um concerto intimista e muito familiar, que as pessoas sintam que entraram em casa. Adorava encontrar um palco gigante onde as pessoas pudessem estar ali e que fosse quase em modo tertúlia. Não é a melhor sala para fazer isso, é muito grande [risos] e também por isso estou um bocadinho nervosa…
Agora que estás a trabalhar no próximo álbum, podemos esperar um trabalho mais solar?
Sim. Este lado mais solar tem mais a ver com a forma como estou a viver e a olhar para a minha vida, porque nem sequer sei se sou boa a escrever coisas levezinhas, será um desafio para este ano. O sítio mais leve não vem tanto da parte temática, mas sim da forma como estou a olhar para a vida. Estou realmente mais feliz e mais leve. Estou a preparar este disco com calma, não quero sentir pressão, acho que não faz sentido. Quero ter a certeza de que aquilo que estou a contar é aquilo que quero contar. E parece-me que o Algo mais já é uma boa iniciação para o que aí vem.