Os livros de março

Nove livros para o advento da Primavera

Os livros de março

Com o advento da primavera os leitores podem abandonar o espaço interior das suas casas, dos cafés ou das bibliotecas, e aventurarem-se nos jardins da cidade ou nas convidativas esplanadas ribeirinhas. Para eles selecionámos nove livros recém-editados de diferentes géneros: poesia, romance, estudo, ensaio e teatro. Para ler à sombra das árvores ou junto ao Tejo.

António Maria Lisboa

Uma Poesia Extrema

Cometa que iluminou de forma intensa, mas breve, a poesia portuguesa do século XX, António Maria Lisboa (1928-1953) morreu prematuramente aos vinte e cinco anos, vítima de tuberculose. No final dos anos 40, tornou-se num dos mais ativos protagonistas do Surrealismo Portuguesa, exercendo uma influência determinante na formação do Grupo Dissidente, ao lado de Mário Cesariny com quem partilhou uma intensa amizade. Todavia, como sublinha Joana Matos Frias na introdução da presente edição, a sua obra “evolui toda no sentido da afirmação de um percurso convictamente individual, avesso a conceções grupais ou coletivas de criação e de poesia”. O poeta escreve numa carta a Cesariny, datada de 1950: “A leitura, a escrita, a prática e realização do Amor, a conquista da Liberdade – são formas de ação individual!” Individualidade e singularidade de uma obra caracterizada por “um vocabulário próprio de atos-palavras” onde cabem “certas irreconhecíveis palavras conhecidas, várias palavras conhecidas, uma vasta zoologia fantástica de seres imaginários (…), uma mitologia de raízes nem sempre óbvias ou reconstituíveis, uma constelação surrealista divergente (…) e uma tão rica quanto distante rede de referências culturais ancestrais e não ocidentais”. Esta antologia reúne o essencial da obra do poeta que escreveu “– o peixe morreu ao sair da água / e assim já não é peixe //Assim como eu que vivo uma VIDA EXTREMA.” LAE Penguin Clássicos

Han Kang

Despedidas Impossíveis

Um rosto de mulher centrado e focado; ao fundo, fora do foco, uma montanha coberta de neve e uns ramos de arvore secos e enegrecidos. A fotografia da escritora Han Kang, Prémio Nobel de Literatura 2024, patente no verso da contracapa de Despedidas Impossíveis parece ter sido tirada propositadamente para este livro marcado pela omnipresença da neve, símbolo de morte (a neve que “congela sobre o rosto dos mortos”), e a imagem recorrente de troncos negros e retorcidos, metáfora do sofrimento humano. A melhor amiga de Kyungha sofre um grave acidente.  Internada num hospital em Seul, suplica-lhe que vá a sua casa, na Ilha de Jeju, salvar o periquito que está há três dias sem água nem comida. A caminho, Kyungha é detida por uma tempestade de neve. Chegará a tempo? Esta obra não se destina aos leitores que se satisfazem com uma resposta prosaica a esta questão. Trata-se de uma narrativa complexa e profunda, de grande beleza, que dilui os contornos entre vida e morte, sonho e realidade, presença e ausência, longe e perto, passado e presente. No centro, o trauma de um assassínio em massa, ocorrido nessa ilha, no tempo da ditadura militar. Juntas, as amigas, assombradas pelo pesadelo deste massacre, irão resgatar a memória das vítimas através da escrita e do cinema. Tudo isto narrado como se a protagonista “tivesse aberto a porta para um sonho dentro de um sonho, e entrado”. LAE Dom Quixote

Xavier Durringer

A Love Supreme

Nem sempre acontece, mas é de louvar que a tradução para português (de Joana Frazão) da peça do dramaturgo francês Xavier Durringer (n. 1963) chegue às livrarias ao mesmo tempo que, na Karnart, em Belém, o espetáculo esteja em cena, numa produção dos Artistas Unidos, com encenação de Andreia Bento e Nuno Gonçalo Rodrigues. Roubando o título ao famoso álbum de John Coltrane, A Love Supreme é o intenso e emocionante monólogo de uma dançarina de strip tease num peep show de Pigalle, em Paris. Depois de 32 anos de trabalho, Bianca é surpreendida ao ser despedida pelos novos donos do estabelecimento que há décadas ostenta nome de obra-prima do jazz. Na solidão do camarim pela última vez, a dançarina revisita a sua vida no lado mais secreto da noite parisiense, onde o sexo, as drogas, o álcool e o dinheiro imperam, e reflete sobre o modo como, face ao envelhecimento do corpo, a mulher deixa de ser olhada enquanto “objeto de desejo” e se torna descartável e invisível, num meio onde a regra é ditada pelo “culto da juventude”. Escrita por Durringer em 2018, especificamente para a atriz e cantora Nadia Fabrizio, o texto combina com especial apuro o retrato de uma mulher com as transformações sociais, culturais e urbanas em Paris, de finais do século passado aos dias de hoje. FB Artistas Unidos/SNOB

Margarida Ferra

Saber Perder

Delicado é talvez um dos melhores adjetivos para descrever o novo livro de Margarida Ferra, Saber Perder, o primeiro de prosa, mais de uma década depois de ter publicado Sorte de Principiante, de poesia. A autora escreve sobre objetos, pessoas, histórias que se passaram consigo e outras que ouviu e colecionou, põe no papel episódios do seu quotidiano e das suas memórias, para nos falar sobre escrita – o prazer de escrever, a dificuldade de escrever, a tentação e a fuga à escrita. Como os fios de malha de que nos fala logo nas primeiras linhas do livro, Margarida Ferra vai entrelaçando uma narrativa composta de pequenos textos (por vezes, só parágrafos) que se sucedem numa cronologia e num sentido próprios. Ao longo das páginas, vamo-nos deparando com um tecido de memórias feito de histórias, lugares, gestos e pensamentos que reconhecemos como familiares – sendo seus, podiam ser nossos também, sobretudo aqueles a que no dia-a-dia não damos importância, mas que aqui nos devolvem uma sensação de intimidade caseira. Uma leitura de conforto, mesmo quando nem tudo é confortável. GL Companhia das Letras

Antonio Scurati

Fascismo e Populismo: Mussolini Hoje

Depois de nos presentear com a colossal biografia romanceada de Benito Mussolini, em quatro volumes e mais de 2 mil e 600 páginas, Antonio Scurati faz o exercício radicalmente inverso que é traduzir para um livrinho de assinaláveis clareza e concisão, a mesma figura enquanto portador de sinais para a política do presente: Mussolini como “criador da prática, da comunicação e da liderança política a que hoje chamamos populismo soberanista.” Fascismo e Populismo: Mussolini Hoje tem por base uma conferência apresentada por Scurati poucos dias após a vitória nas eleições gerais italianas do partido Irmãos de Itália, encabeçado por Georgia Meloni. O autor define a estratégia do populismo soberanista como a substituição da política da esperança, simbolizada pelo Sol do Futuro do socialismo, pela política do medo, que se aproveita dos períodos de crise económica e social para reduzir a vida aos humores mais negros. O evangelho populista convida a que passemos “de um sentimento passivo, introvertido, depressivo, como o medo, a um sentimento ativo, expansivo e eufórico como o ódio.” A compreensão destes mecanismos em nós é fundamental para entender e desmontar os populismos soberanistas atuais. RG ASA

Jenny Erpenbeck

Kairos

Kairos, como a autora explica no prólogo, é o nome do “deus do instante auspicioso”, e somos levados a pensar que esses instantes são despoletados pelo encontro, por mero acaso, de Katharina e de Hans num autocarro em Berlim Leste, no ano de 1986, quando a cidade integrava a República Democrática Alemã. Ele tem mais 34 anos que a rapariga e é casado. O amor de ambos será vivido por isso na clandestinidade. É também natural que esqueçamos o prólogo ao avançarmos na leitura, uma vez que a intensidade de cada encontro e de cada separação, com a descrição minuciosa em particular dos estados de alma da mulher, levam a que vivamos o romance sempre no tempo presente; um tempo que engloba as condicionantes sociais de um país marcado pela escassez de recursos e pelo cerceamento da liberdade individual. As condições externas contribuem igualmente para a erosão da relação, bem como a diferença de rumos que tomam as vidas de cada um. Existe um efeito de suspense neste livro de Jenny Erpenbeck que passa dos amantes para o leitor, que também vê nos pequenos indícios o anunciar de algo que ameaça em definitivo a estabilidade do relato amoroso. RG Relógio D’Água

José Silva Carvalho

Escola Nocturna – A Escola Republicana de Carnide

Editora independente, desde 2002, a Caleidoscópio tem-se especializado na publicação de livros e revistas, sobretudo nas áreas da Arquitetura, do Património, do Urbanismo, do Design, das Artes, da História. Escola Nocturna – A Escola Republicana de Carnide, de autoria do arquiteto José Silva Carvalho, é um dos seus mais recentes títulos. O enfoque principal deste livro é a história do singular imóvel onde no início do século XX se instalou a Escola Nocturna de Carnide. Contudo, o autor considerou que era natural e necessária a inclusão de referências várias a outros edifícios do sítio, de alguma forma correlacionados com aquele estabelecimento de ensino, alargando e enriquecendo também, deste modo, o livro. A Escola Nocturna teve uma intensa utilização, abarcando atividades complementares às da instrução, quer no plano cívico, quer no político, conferindo-lhe uma relevância particular no chamado núcleo histórico desde os primeiros anos de novecentos. Essa polivalência, embora de forma menos acentuada, continuou durante o Estado Novo. O amplo espaço da sala de aulas da Escola Nocturna, localizado no piso superior do edifício, teve, pois, um papel primordial ligado a uma longa e continuada vertente letiva, assim como à difusão do ideário republicano. LAE Caleidoscópio

Vanessa Barbara

Três Camadas de Noite

“Mas a realidade era uma torrente de lama que veio carregando o bolo de ameixa, o canguru, as tardes de sol e foi me soterrando, me cobrindo, até que me vi em uma caverna sem abertura, de onde eu não sairia pelos próximos anos e de onde provavelmente ainda não saí.” Três camadas de noite conta-nos a história duma recente mãe e dos desafios da maternidade. Com três livros premiados, esta escritora e tradutora de grego, que já antes do nascimento do filho tinha dificuldades em dormir e cumprir os supostos horários de trabalho normais, vê a sua saúde mental ser cada vez mais afetada, sobretudo pela privação do sono e pela necessidade de alimentar o bebé durante a noite. Num misto de ficção e autobiografia, este é o primeiro romance de Vanessa Barbara a ser publicado em Portugal. Mas esta é também a história de Sylvia Plath, Clarice Lispector, Henry James e Franz Kafka, escritores com um temperamento melancólico que em várias fases das suas vidas tiveram de lidar com a depressão. Apesar de ser um tema sensível, ao longo de cerca de 200 páginas, a autora aborda-o com humor, mantendo sempre a esperança de melhores dias. “… durante um só dia tudo fica claro e tudo fica escuro e de novo tudo claro. O que é preciso é não ir demais contra a onda. A gente faz como quando toma banho de mar: procura subir e descer com a onda.” SS Suma de Letras

Jacques Ranciére

As Viagens da Arte

Jacques Ranciére é filósofo e professor emérito da Universidade de Paris VIII. O autor que, há décadas, investiga as relações entre a estética e a política, é considerado um dos maiores pensadores da atualidade. Rancière tem contribuído em larga medida para o debate de ideias nas áreas da história, da política, da filosofia e da estética. As Viagens da Arte, obra publicada em 2023, reúne seis textos “escritos para responder a ocasiões diversas”. Contudo, a problemática comum e as linhas de força que circulam entre eles são facilmente percetíveis ao leitor. O próprio autor contribui para clarificar essas conexões: “Estes escritos exploram as premissas, os desenvolvimentos e alguns resultados deste movimento que leva a arte para fora e além de si mesma”. Isto é: quando a arte é levada “pela sua lógica interna, a sair de si mesma, não só a deixar os seus lugares próprios para explorar o mundo que a rodeia, mas também a pôr em questão a sua identidade e a sua perfeição própria para se tornar qualquer coisa diferente de si mesma”. Movimento impulsionado por aventuras, como a dos “artistas soviéticos numa revolução que veem não como causa a servir, mas como a própria realização do destino da arte, que é produzir  não apenas obras para contemplar, mas formas concretas da vida comum”. LAE Orfeu Negro