Afonso Rodrigues

"A língua portuguesa leva-me a uma escolha mais detalhada das palavras"

Afonso Rodrigues

Frontman de projetos como Sean Riley & the Slowriders e Keep Razors Sharp, Afonso Rodrigues estreia-se agora a solo e em português com Areia Branca. O novo disco mantém a identidade e sonoridade folk e blues a que nos habituou, e é dado a conhecer ao vivo a 7 e 8 de março, no Teatro Taborda. O início deste novo capítulo na carreira do músico foi o mote para esta conversa.

No teu percurso tens cantado sempre em inglês. Como é que surgiu a vontade de mudar o registo para português?

Surgiu há muito tempo. Na verdade, desde que comecei a escrever em inglês, também sempre quis escrever em português. Tinha intenção e vontade de o fazer, mas as tentativas feitas também eram muito superficiais e pouco dedicadas. E, como as coisas não começavam imediatamente a sair de forma fluida, como já acontecia com o inglês, voltava a pôr a ideia na gaveta e não pensava muito nisso. E ia fazendo aquilo que ia surgindo: mais um disco de Sean Riley & The Slow Riders, ou ia começando a escrever para os Keep Razors Sharp… No final de 2019, estava de volta da guitarra e tive uma ideia para uma canção em português. Escrevi essa canção e, pela primeira vez, fiquei satisfeito com uma coisa que tinha escrito em português. Pensei: “se consegui fazer isto, espero que não seja uma tentativa que dê apenas uma canção. Se consegui fazer uma, se eu continuar a trabalhar nisto, provavelmente vai acontecer alguma coisa”. De repente entramos em 2020 e vem a pandemia… Os fins de semana eram passados em casa, as noites eram passadas em casa, não havia saídas, nem distrações, nem concertos, e então passei a ter mais tempo disponível e também passei por um período de uma certa reflexão que acho que a maioria de nós fez durante a pandemia: o que valorizávamos ou não na vida, qual o percurso que estávamos a tomar até então, se era esse que queríamos, se não era, e acho que essas duas coisas juntas fizeram com que realmente conseguisse começar a escrever de forma mais fluida em português.

Por que motivo é tão difícil compor em português? O que é que tem a língua que torna esse processo mais difícil?

Se sempre escreveste em português, se calhar não vais encontrar dificuldade, mas para quem vem do inglês, acho que talvez seja mais difícil porque tudo muda, mas também porque está habituado a escrever numa língua onde tudo soa bem: a métrica é fácil, a melodia é fácil, a exposição das ideias também é fácil, é tudo mais fácil. Há dias falava com um radialista numa entrevista, e ele dizia “I love you” não é o mesmo que “eu gosto de ti”. Para escreveres “eu amo-te” numa canção é preciso enquadrar muito bem… a língua portuguesa leva-me a uma ponderação muito maior, a uma escolha mais detalhada das palavras, das sílabas, etc. É preciso ter algum cuidado com aquilo que se diz para não cair num certo ridículo, para não ser um bocadinho plástico. Até porque, em português, a mensagem passa logo, enquanto que em inglês, se calhar, muitas pessoas nem prestam atenção à letra. Há uma transparência muito maior. Tenho a certeza de que há coisas que eu disse em canções em inglês que nunca ninguém percebeu a sério ou ninguém prestou sequer atenção.

Achas que esta maior facilidade de compor em português é uma evolução natural do processo de escrita ou surge de alguma maturidade?

Certamente que surge de alguma maturidade, mas também acho que a principal razão pela qual isso acontece é haver vontade e dedicação. Normalmente o trabalho é a única coisa que dá frutos, porque ninguém nasce extremamente talentoso e cada vez que agarra numa caneta ou num telemóvel escreve uma letra inacreditável. Há uns quantos predestinados a quem isso aconteceu [risos], mas a grande maioria das pessoas tem de trabalhar e acho que, na verdade, se eu for honesto comigo, só quando quis mesmo e quando comecei a fazê-lo é que as coisas saíram. Até aí era uma coisa em que pensava, mas depois não acontecia nada. Adorava escrever em português, mas na verdade não fazia nada para isso. Tinha uma frase linda que escrevia no telemóvel, mas depois não fazia nada com ela. É preciso trabalhar…

E agora que já experimentaste esse processo onde é que te sentes mais confortável?

Depois de fazer praticamente todas as canções do disco, fiz uma canção em inglês, para um projeto de um amigo, e o esqueleto da canção (melodia e letra principal) demorou uns 20 minutos a fazer enquanto ia de mota de uma ponta à outra da cidade. Parei a mota, gravei a ideia com o dictafone, e tinha a canção mais ou menos estruturada. Portanto, em termos de conforto, eu diria que seria mais fácil para mim escrever em inglês. Mas há uma questão engraçada que baralha tudo isto: por o português ser um desafio muito maior nesta altura, também é muito mais interessante e também me tem motivado mais. Dá mais luta, dá mais gosto.

Já nem sei é o cartão de visita deste disco. Por que é que escolheste esta canção para primeiro single?

Foi a última canção que escrevi para o disco e curiosamente foi a primeira a sair. A escolha de singles é sempre uma coisa um bocadinho difícil e eu gosto sempre de o fazer em equipa com o Filipe Costa (que fez o disco comigo), com toda a equipa da agência, do management, etc. Gosto sempre de ouvir a opinião de todos. Apesar de já ter feito discos, isto é como começar do zero, porque a outra história conta pouco para a música que estás a lançar neste momento. Acho que queríamos uma canção que fosse um bocadinho a montra daquilo que é o álbum, que conseguisse espelhar a sonoridade do disco e ao mesmo tempo uma canção que não fosse muito complexa do ponto de vista da letra e da melodia, para também, de alguma forma, ser fácil para as pessoas numa fase imediata. Era um bocadinho a conjugação disto: encontrar uma canção que realmente pudesse ter alguma amplitude e ao mesmo tempo que também conseguisse dar uma ideia bastante correta daquilo que é o álbum.

“Era um objetivo pessoal muito grande fazer este disco em português”

Por que motivo chamaste Areia Branca ao disco?

Toda a pré-produção e gravação do disco foi feita com o Filipe, que fez os arranjos e os instrumentais quase todos. O Filipe é um dos meus melhores amigos, acompanha-me nos Sean Riley & the Slowriders desde o início. Quando começámos a trabalhar nestas canções, fazíamos alguns retiros para uma casa que ele tinha na praia da Areia Branca. Desde aí que o nome de código do projeto era Areia Branca, porque ser o sítio para onde íamos trabalhar. Depois a ideia foi crescendo em mim e acabámos por deixar de trabalhar nessa casa para ir para uma casa no Pedrogão, mais uma vez em frente ao mar e à areia. Depois havia também esta ideia de a areia branca ser uma imagem que me traz alguma tranquilidade, paz e serenidade. Adoro o mar e adoro, quando estou a trabalhar em música, poder estar isolado do mundo para me concentrar naquilo que estou a fazer. E tem acontecido ir para sítios assim, casas que são perto do mar, normalmente nunca em alturas de verão, mas quando as praias estão desertas.

É estranho para ti ouvires a tua voz a cantar em português?

Agora já não sinto isso, mas também já estou neste processo há algum tempo. Estive em sessões de estúdio durante todo o ano de 2024 a gravar o álbum, tive sessões de pré-produção, houve esses retiros durante quase todo o ano de 2023 e eu comecei, como dizia, de uma forma mais séria a escrever canções em português em 2020. Ou seja, já tive tempo para me adaptar. Neste momento, já não penso sobre isso, mas lembro-me, no início, de sentir alguma estranheza e inclusive, como me causava estranheza a mim, de pensar que, quando pusesse as canções cá fora, também seria estranho para as pessoas que conheciam a minha música em inglês.

E que feedback é que tens tido?

Muito bom, na verdade. Se calhar as pessoas têm coisas más a dizer e não me dizem [risos]. Das pessoas com quem tenho falado, toda a gente tem dado um ótimo feedback. E mesmo aqueles que estavam um bocadinho mais resistentes acabam por dizer que, apesar da mudança de língua, sentem que a essência está lá. Sentem que há qualquer coisa autoral ali e que permanece independentemente da língua.

Pretendes continuar a gravar em português ou foi um projeto único?

Não tenho nenhum plano, não acabei nenhuma das outras bandas que tinha, não tenho nenhuma ideia de ir com nenhuma das outras bandas para o estúdio, portanto neste momento não tenho nenhum projeto. Era um objetivo pessoal fazer este disco em português, era uma coisa que ambicionava muito, uma prova de fogo que eu queria ver se era ou não era capaz de concretizar. Portanto, tê-lo feito foi uma grande vitória. E se eu nunca mais voltar a fazer nenhum, este está feito. É um bocado como aquela frase que fala em plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro… Mas, ainda há coisas que gostava de experimentar, com outro tipo de arranjos e ter eventualmente participações de outros artistas.

Como é que consegues gerir a tua carreira a solo ao mesmo tempo que tens as tuas duas bandas – Sean Riley & the Slowriders e Keep Razors Sharp?

Parando [risos]. Houve uma altura em que quase cheguei a lançar discos em espaços curtos de tempo – menos de um ano – com projetos diferentes e depois andar na estrada. Cheguei a ter concertos com Sean Riley a solo, Sean Riley & The Slowriders e Keep Razors Sharp e tudo obrigava a ensaios e a idas a estúdio e a gravações…  Este ano quero só estar focado neste disco e nos concertos deste disco, e eventualmente ter tempo para coisas extra que ainda vou fazer com algumas canções que ficaram de fora, etc. Para já, não quero voltar à correria de sobreposição de projetos. Não digo que não possa, se calhar para o ano, começar a trabalhar num disco de Slow Riders, mas este ano estou focado neste projeto.

A 7 e 8 de março apresentas o disco ao vivo no Teatro Taborda. Estás muito ansioso?

Um bocadinho. Não tanto por mostrá-lo ao vivo, mas por ser capaz de o mostrar bem. Acho que é isso que dá ansiedade, é querer fazer as coisas bem. Na semana passada estive num showcase no B.Leza, no aniversário dos 18 anos da minha agência [Produtores Associados], e tive a oportunidade de tocar cinco músicas. Foi muito bom, porque foi uma espécie de ensaio geral e de aquecimento para os concertos e deu-me bons indicadores. Correu bem, portanto estou um bocadinho menos nervoso do que se não tivesse tido esta sessão de treino. Mas há sempre nervos e há sempre ansiedade e em Lisboa também vou baralhar um bocado as coisas, porque o objetivo é apresentar sempre os concertos em trio: eu, o Filipe Costa e o Zé Cruz, que é o outro multi-instrumentista que toca trompete, piano e guitarra neste projeto. No entanto, nos dois concertos de Lisboa, o Zé Cruz não entra, mas vamos ter alguns convidados. Na primeira noite temos o Ray na guitarra, o Cláudio no trompete e o André Tavares [co-produtor do disco e engenheiro de som] no violoncelo. Na segunda noite vamos ter também o André no violoncelo e o Cláudio no trompete, e na guitarra, o Tó Trips. Portanto, vamos ter dois grandes amigos, pessoas que estão na minha vida há imenso tempo a tocar nos concertos. Então estes dois concertos no Taborda vão ser diferentes porque já não vão ser com a estrutura que estamos habituados. Vai haver vários convidados, entradas e saídas do palco… Mas acho que é bom isto de termos de nos pôr em bicos de pés à procura de alguma coisa que seja excitante e novo para nos mantermos motivados. Se é sempre a mesma coisa torna-se aborrecido.