O regresso à casa de bonecas

"Nora Helmer" é o novo espetáculo de cinema e teatro do Teatro Aberto

O regresso à casa de bonecas

Trazendo-a de 1879 para os anos 50 do século passado, João Lourenço e Vera San Payo de Lemos revisitam o percurso da personagem principal de Casa de Bonecas, de Henrik Ibsen. A um filme que condensa a obra mais celebrada do dramaturgo norueguês, o espetáculo acrescenta o teatro, através da sequela de Lucas Hnath, escrita em 2017. Na tela e no palco, Cleia Almeida é Nora Helmer.

Num dia de Natal, tudo muda na perceção daquela que aparentava ser a vida feliz de uma mulher casada com o homem amado e mãe de três filhos. Nora Helmer olha em redor e encarna a mais profunda deceção. Afinal, aos olhos do marido, Torvald Helmer, ela não é mais do que um mero acessório na “casa de bonecas” em que vive.

Assim como um brinquedo, perante o desvendar de um episódio em que o seu altruísmo e dedicação puseram em risco a conceção tradicional de família, Nora toma consciência de que sempre foi manipulada, primeiro pelo pai e depois pelo marido. Sem autonomia sobre as suas escolhas e decisões, sobre os seus gostos e até sobre o seu papel exemplar de esposa e mãe, sempre moldados de acordo com as expectativas da sociedade patriarcal, Nora apercebe-se da vacuidade da sua vida.

Decide, então, deixar Torvald e os filhos e partir em busca da sua própria identidade e liberdade. Concretamente, Nora abandona a “casa de bonecas”, paradigma do lar ideal que foi, durante anos, a prisão emocional e psicológica de uma mulher.

Aqui, termina Casa de Bonecas, a obra-prima de Henrik Ibsen, estreada pelo autor norueguês no distante ano de 1879, peça profundamente controversa à época, com os setores mais conservadores a exigirem um final em que Nora voltasse para o marido e para os filhos. Além da importância que teve na história do teatro realista europeu, Casa de Bonecas está constantemente presente no debate sobre os direitos das mulheres, sobre as dinâmicas de poder nos relacionamentos e a luta pela liberdade individual.

São estas razões que voltam a trazer Ibsen, e mais precisamente o universo da peça, ao Teatro Aberto. “Estava atual há mais de 140 anos, estava atual nos anos 50 do século XX, época em que situamos este espetáculo, e está, infelizmente, atual hoje, quando vemos a perpetuação das desigualdades entre homens e mulheres e até um ataque a direitos adquiridos”, atenta o encenador João Lourenço.

Perante a urgência de voltar a este clássico, ou melhor, ao universo deste marco da história do teatro, Lourenço e a dramaturgista Vera San Payo de Lemos procuraram uma sequela, tendo encontrado na peça de 2017 Casa de Bonecas 2.ª parte, do norte-americano Lucas Hnath, não só uma visão contemporânea de Nora Helmer (embora a peça se continue a passar no final do século XIX), como “o dispositivo perfeito para reforçar o debate e questões como a desigualdade de papéis no casamento e no seio da família tradicional” quando, 15 anos depois de ter partido, Nora regressa a casa para pedir o divórcio.

Reinventando Nora

Não sendo inédito no Teatro Aberto, esta é a primeira vez que João Lourenço assume claramente que “este é um projeto de cinema e teatro”, já que ambas as artes se encontram num justo equilíbrio. E tudo começa, precisamente, com um filme que condensa a peça de Ibsen “no essencial”.

Conta Vera San Payo de Lemos que “há muito tempo que [havia] a vontade de fazer a Casa de Bonecas, tendo colecionado inúmeras traduções e versões, inclusive várias sequelas. Existia, portanto, muito material e pensámos que poderíamos transformar a peça do Ibsen num guião cinematográfico, e partir para um projeto que combinasse o filme e o teatro”. Quando descobriram esta continuação do Lucas Hnath, João e Vera decidiram avançar com um espetáculo que, levando o nome da protagonista, condensasse no filme a peça de Ibsen e, em palco, a de Hnath, “embora completamente reescrita”.

“Interessou-nos tirar a ação do final do século XIX e passá-la para o meio do século XX. Não era só a estética da época, mas também por ser nos anos 50 [do século passado] que começam a germinar grandes movimentos de contestação e [a emergir] a revolução sexual. Decidimos assim situar a ação do filme nessa década e, depois, o regresso de Norma, no final da de 60”, explica a dramaturgista.

Depois do filme, acontece a experiência de “mergulhar para dentro dele, ou para dentro da boca de cena”, como diz João Lourenço, e reencontrar Nora, uma mulher totalmente emancipada, feminista libertária e autora de livros “que têm ajudado a libertar muitas mulheres”, preparada, uma vez mais, para enfrentar Torvald. Mas, este regresso reserva ainda a Nora outros recontros, nomeadamente com Ana Maria, governanta da casa e amiga de infância, agora, companheira do ainda marido, e com a filha relutante, Ema.

Para além de Cleia Almeida no papel da protagonista e de Renato Godinho no de Torvald, Nora Helmer conta com interpretações em palco de Patrícia André e Carolina Picoito Pinto e do músico Ernesto Rodrigues. No filme, dirigido por João Lourenço e Nuno Neves, atuam também Filipe Vargas, Benedita Pereira, Miguel Damião e Rita Correia. O espetáculo está em cena até 20 de abril.

[Atualização a 17 de abril: a carreira do espetáculo foi prolongada até 11 de maio]