Entre a política e a pornografia

A Festa do Cinema Italiano abre com "biopic" sobre Enrico Berlinguer

Entre a política e a pornografia

A Festa do Cinema Italiano chegou aos 18 anos. Entre a vida do fundador do eurocomunismo e a da diva da pornografia Ilona Staller, mais conhecida como Cicciolina, destacam-se, além das últimas novidades do cinema transalpino, a homenagem a Marcello Mastroianni no centenário do seu nascimento, a retrospetiva ao "desconhecido" Antonio Pietrangeli e o "foco" no cinema suíço de expressão italiana.

A Festa do Cinema Italiano atingiu a maioridade e, confirma-se, esta 18.ª edição é, muito provavelmente, a mais política de sempre. O mote surge logo na sessão de abertura, a 9 de abril no Cinema São Jorge, com a antestreia em Portugal de A Grande Ambição (Berlinguer – La grande ambizione). A vida de Enrico Berlinguer, fundador do eurocomunismo e histórico secretário-geral do Partido Comunista Italiano entre 1972 e 1984, ano da sua morte, revisita-se na mais recente obra do realizador Andrea Segre.

Para o diretor artístico da Festa, Stefano Savio, “o belíssimo filme de Segre é uma homenagem a uma figura ímpar da política italiana, homem que procurou encontrar compromissos e consensos entre diferentes forças políticas em plena Guerra Fria”. Protagonizado por Elio Germano, centra-se no período da década de 1970, compreendido entre a viagem a Sofia, em que Berlinguer sofre um atentado ainda hoje envolto em mistério, e o discurso na Festa dellUnità em Genova, em 1978, proferido na sequência do assassinato do líder da democracia-cristã Aldo Moro, e que, de certo modo, significou o fracasso da estratégia política do líder daquele que era, à época, o maior partido comunista da Europa ocidental.

“A Grande Ambição” de Andrea Segre

Da década de 70 para os anos de 1980, o encerramento da edição lisboeta do festival – não esquecer que a Festa corre o país de lés a lés, e este ano passa por mais de duas dezenas de cidades do continente -, a 17 de abril também no Cinema São Jorge, faz-se, segundo Savio, com “um Boggie Nights à italiana” (referência ao filme de 1997 de Paul Thomas Anderson).

Estreado no último Festival de Roma, Diva Futura – Cicciolina e a Revolução do Desejo, da realizadora italo-americana Giulia Louise Steigerwalt, acompanha o quotidiano da agência de modelos de Gianni Schicchi, responsável pela fama de duas estrelas porno que, anos mais tarde, agitariam a política italiana: Ilona Staller, conhecida mundialmente como Cicciolina, fundadora do Partido do Amor e ex-mulher do artista norte-americano Jeff Koons; e Moana Pozzi, que no início da década de 1990 concorreu à presidência da câmara de Roma.

Pereira sono io!

Para assinalar o centenário de il divo Marcello Mastroianni (1924-1996), a Festa do Cinema Italiano preparou toda uma programação especial que inclui, além da exibição de filmes, duas exposições de fotografia sobre o percurso daquele que foi um dos atores mais famosos do cinema europeu.

Marcello Mastroianni  ©Paul Ronald. Fondo Rizzo. Archivio Fotografico Cineteca Nazionale CSC

A primeira, patente no Cinema São Jorge durante a Festa, intitula-se Marcello come here… Cent’anni e oltre cento volte Mastroianni [Marcello anda cá… cem anos e mais de cem vezes Mastroianni] e reúne mais de uma centena de imagens, todas em grande formato, do arquivo fotográfico da Cineteca Nazionale. A segunda chega como complemento à exibição do documentário de Anna Maria Tatò, Mi recordo, sì io mi recordo, “verdadeiro testamento artístico e espiritual” do ator, rodado em Portugal durante as filmagens da sua última longa: Viagem ao Princípio do Mundo, de Manoel de Oliveira. Através de um conjunto de fotografias de diversos arquivos nacionais e internacionais, revisita-se o percurso do ator em Portugal, país onde, além do filme de Oliveira, protagonizou, pouco tempo antes, Afirma Pereira, do realizador Roberto Faenza.

É precisamente para assinalar os 30 anos do filme de Faenza, adaptação da novela homónima de Antonio Tabucchi, que a Festa abre uma secção intitulada Pereira sono io!, onde se reflete sobre a ligação que Mastroianni estabeleceu com Portugal na derradeira fase da sua profícua carreira. A propósito do título deste espaço de programação, conta Stefano Savio que a exclamação “Pereira sono io!” terá sido proferida pelo ator ao próprio Tabucchi quando acabou de ler o livro e soube da intenção de o adaptar ao cinema.

Esta e outras histórias podem ser escutadas com maior pormenor a 16 de abril, contadas por Roberto Faenza. O realizador estará em Lisboa para acompanhar a projeção do filme e a estreia mundial do documentário Sostiene Pereira 30, de Augusto Pelliccia, que assinala o 30.º aniversário da sua estreia.

“Marcello Mio”, de Christophe Honoré

Mas não é tudo. O centenário de Mastroianni traz à Festa, em antestreia nacional, o novo filme de Christophe Honoré, Marcello Mio, com Chiara Mastroianni a protagonizar “uma comédia surreal onde a própria vive como se fosse o seu pai”; e o regresso ao grande ecrã de dois filmes emblemáticos do ator: 8 1/2, de Federico Fellini, e Una giornata particolare, de Ettore Scola (em exibição entre 11 e 14 de abril no Cinema Fernando Lopes).

Ainda sobre a memória dos anos fulgurantes do cinema italiano, o escritor e argumentista Francesco Piccolo, autor do livro La Bella Confusione, vai estar na Festa, a 12 de abril, “para contar episódios que se passaram em 1963 entre os sets de O Leopardo [de Luchino Visconti] e 8 1/2 de Fellini, com Claudia Cardinale a ser disputada por dois realizadores que não simpatizavam nada um com o outro”.

O “desconhecido” Pietrangeli e o foco

no cinema do cantão Ticino

No âmbito da Festa, começa já no dia 1 de abril, na Cinemateca Portuguesa, a retrospetiva Antonio Pietrangelie, esse desconhecido com a exibição de Il sole negli occhi. Segundo o subdiretor da instituição, Nuno Sena, “trata-se de um dos grandes mestres do cinema italiano, cuja filmografia merece ombrear com a de outros autores de relevo na Itália das décadas de 1950 e 60, mas cuja morte prematura terá, de certo modo, secundarizado”.

“Cineasta das mulheres”, por ter sido “alguém que filmou a condição feminina como poucos, desconstruindo simultaneamente os mitos associados à masculinidade”, esta retrospetiva é constituída pelas 13 longas-metragens que Pietrangelie dirigiu entre 1953 e 1968, ano da sua morte. Obras como Adua e le compagne, com a francesa Simone Signoret, Anuncio de Casamento, filme que deu a Sandra Milo a interpretação da sua vida, e Io la conoscevo bene, com a inesquecível Stefania Sandrelli, confirmam Pietrangelie como “um dos autores que melhor fez a transição entre o neorrealismo e a commedia all’italiana“.

“Io la conoscevo bene” de Antonio Pietrangeli

Outro “desconhecido” com destaque nesta edição é o cinema suíço de língua italiana. Com a colaboração da Swiss Film, do Festival de Locarno e da Embaixada da Suiça, a Festa traz a Lisboa o aplaudido documentário sobre a imigração La prodigiosa trasformazione della classe operaia in stranieri, do realizador iraquiano Samir, e a desconcertante comédia Bon Schuur Ticino, de Peter Luisi, sobre uma revolta da população de Ticino contra a obrigatoriedade de falar francês. Na secção Il Corto, são exibidas um conjunto de curtas originárias deste cantão suíço.

Para além dos grandes sucessos do cinema italiano do ano passado, a Festa inclui ainda uma secção competitiva com primeiras e segundas obras, um ciclo que combina o arquivo e a videoarte em torno dos processos de descolonização português e italiano e um conjunto de filmes-ópera, onde se destaca a visão de La Traviata de Verdi por Mario Martone.