exposição
Rego e Varejão: afinidades transatlânticas
"Entre os vossos dentes" reúne 80 obras de Paula Rego e Adriana Varejão

Depois de uma pequena exposição conjunta no Rio de Janeiro, em 2017, as obras de Paula Rego e da artista brasileira Adriana Varejão voltam a dialogar num mesmo lugar. Até 22 de setembro, o Centro de Arte Moderna acolhe Entre os vossos dentes, "uma dramaturgia imersiva" com 80 obras de duas artistas de gerações diferentes, mas com notórias afinidades.
Embora pertençam a continentes e gerações diferentes, e as suas obras sejam radicalmente distintas na forma, parecem existir, entre a portuguesa Paula Rego (1935-2022) e a brasileira Adriana Varejão (n.1964), um conjunto de afinidades temáticas que justificam uma exposição como Entre os vossos dentes, patente desde 11 de abril no CAM da Fundação Calouste Gulbenkian.
O primeiro diálogo expositivo entre as artistas aconteceu ainda durante a vida de Paula Rego, em 2017, na Carpintaria, espaço dedicado ao experimentalismo e às vanguardas artísticas no Rio de Janeiro, naquela que foi (surpreendentemente) a única mostra da artista portuguesa naquela cidade. Como reconhece a própria Adriana Varejão, durante a visita para a imprensa à atual exposição, “o meu trabalho tem uma relação muito próxima com o da Paula”. Acrescenta a artista que, “com frequência, vamos aos temas da História ou ao universo ficcional para revolver as camadas mais aparentes e desenterrar aquilo que há de mais oculto nas narrativas usadas pela sociedade patriarcal.”
Com subtileza, o título da exposição pode ser entendido como uma súmula do discurso artístico de ambas. Para sublinhar o feminismo que as une e a exploração das temáticas sociais, nomeadamente a violência de género ou “a subjugação das terras e dos corpos que está na base da colonização” (atente-se, na obra de Paula Rego, para o quadro raramente exposto A primeira missa no Brasil, onde a artista evoca a pintura oitocentista de Victor Meirelles “que retrata o povo Tupi a assistir a uma missa católica”), recorreu-se a um verso de Poemas aos homens do nosso tempo, escrito nos anos 70 do século passado pela poeta e romancista brasileira Hilda Hilst. Nele, pressente-se “a natureza crua deste encontro entre duas artistas proeminentes do nosso tempo”, conforme sublinha a curadora Helena de Freitas, que acrescenta ainda um ponto de afinidade bastante forte e artisticamente relevante: “as duas cresceram em ditaduras alicerçadas em sociedades marcadas pela rigidez patriarcal e pelo catolicismo.”
Entre os vossos dentes remete, assim, para o modo como a arte de Rego e Varejão abordam a representação dos corpos “literais e metafóricos”, refletindo “como o patriarcado, o colonialismo e todas as formas de opressão se alimentam mutuamente, mastigando as pessoas e as suas histórias.”
O espaço doméstico no museu
Reunidas cerca de 80 obras, incluindo uma inédita de Adriana Varejão, os curadores Helena de Freitas, Victor Gorgulho e a própria artista brasileira, propõem em Entre os vossos dentes aquilo que definem como “uma dramaturgia imersiva”. As obras estão dispostas em 13 salas temáticas, cenografadas por Daniela Thomas, “em que cada espaço, imbuído de uma atmosfera doméstica, revela novas dimensões da profundidade psicológica e do poder imaginativo das artistas.”
A relação entre as obras neste dispositivo “dramatúrgico” permite sublinhar o poderoso diálogo entre o privado (o mundo doméstico) e o público em que as obras de Rego e Varejão se situam. Atente-se, por exemplo, à sala intitulada “Rituais de limpeza”, onde um conjunto de gravuras e litografias a preto e branco sobre o tema do aborto, criadas pela artista portuguesa na ressaca do referendo de 1998 que travou a legalização da interrupção voluntária da gravidez em Portugal, coabitam com as gravuras e pinturas da série “Sauna” de Varejão. Nelas, a artista brasileira confronta-nos com espaços aparentemente desabitados e assépticos, mas “impregnados de impurezas”, como fluídos corporais e detritos humanos, nomeadamente sangue e pelos. O diálogo entre as obras das duas artistas neste espaço é bem demonstrativo do sucesso da opção curatorial que rege a exposição.
Se Paula Rego dispensa apresentações, para os menos familiarizados, Adriana Varejão é uma das mais importantes artistas brasileiras da atualidade, estando a sua obra presente em acervos das maiores instituições do mundo, como a Tate Modern, em Londres, ou o Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque. Em Lisboa, a artista carioca realizou duas grandes exposições individuais: a primeira, em 1998, no Pavilhão Branco do então denominado Museu da Cidade; a segunda, no Centro Cultural de Belém, em 2005. Em Portugal, obras suas fazem parte dos acervos da Coleção Berardo – MAC/CCB e da Fundação Serralves, no Porto.
Entre os vossos dentes está patente na Nave do CAM até final do verão, visitável diariamente, exceto às terças-feiras.