entrevista
Miguel Ramalho
A propósito de "Portrait Series: I Miguel"
A fechar um ano brilhante, Miguel Ramalho viajou até Kinsangani, na República Democrática do Congo, para trabalhar com o consagrado coreógrafo Faustin Linyekula. Uma experiência para a vida que um dos mais talentosos bailarinos portugueses partilhou connosco, a poucos dias de apresentar, no palco do Teatro Camões, Portrait Series: I Miguel, o solo que testemunha essa vivência plena em terras africanas.
Em entrevista à edição em papel da Agenda Cultural de Lisboa, Faustin Lineykula falou de um “feliz encontro” com Miguel Ramalho, que conduziu a “uma cumplicidade, algo de íntimo e de pessoal”. Este solo é um retrato de ti mesmo, e simultaneamente a tradução desse encontro?
O Faustin defende que todo o seu trabalho é um encontro, uma “conversa” baseada naquilo que cada um dos interlocutores tem para dizer um ao outro. O solo chama-se I Miguel porque ele acredita ser o resultado dessa nossa “conversa”, logo mais ninguém o pode dançar senão eu. Daí ser tão privada, tão pessoal… este solo é uma viagem. É o meu encontro com o Faustin em África, num território muito agressivo e violento para a minha realidade.
De que modo é que sentiste essa violência?
Essa violência não se traduz fisicamente. Refiro-me ao barulho, ao cheiro, às pessoas… tudo muito movimentado e ruidoso, entendes? Quando voltei a Portugal, depois de três semanas no Congo, senti que, aqui, tudo é mesmo muito sossegado.
Falas de um solo que é “uma viagem”. A tua viagem a África…
Uma viagem que é traduzida no meu movimento, que conta a história dessa jornada.
E o que conta o teu corpo?
Conta a “conversa” entre ambos: eu danço e o Faustin sussurra ao meu ouvido, lembrando-me que os pés suportam os nossos joelhos, que os joelhos suportam as nossas ancas, que as ancas suportam o nosso peito, que o peito suporta a nossa cabeça, que a cabeça suporta as nossas ideias. Logo, o princípio ideal de cada movimento é que é da terra que vêm as nossas ideias.
A terra africana neste caso…
O solo é sobre donde vim e de como fui viver África com toda a intensidade e violência de um dia-a-dia em que falta água potável, onde há pessoas que passam fome… A sensação que tinha é que nós aqui temos tanto e tanto nos queixamos. Lá, há tão pouco e quase não há queixume.
Apesar desse cenário que encontraste, experienciaste também a alegria?
A vida no Congo baseia-se sobretudo na sobrevivência. Mas há uma riqueza cultural imensa, transmitida numa felicidade de viver que, para nós, até pode parecer estranha.
Fala-me um pouco dessa visão de viver a África profunda do ponto de vista de um europeu.
Há um choque brutal quando percebes que aquilo que sabes por ouvir dizer pode, de facto, ser vivido. Nunca esquecemos as nossas raízes, aquilo que somos, mas ali, para que o trabalho resultasse, despojei-me, como se guardasse a minha realidade numa caixinha. Ao longo dessas semanas, tentei viver como eles vivem, tentei comer como eles comem, tentei caminhar descalço na rua como eles caminham…
E como é que as pessoas de Kinsangani te olhavam?
Eu era praticamente o único branco na cidade, e se eu acredito que não há diferenças entre seres humanos, para eles percebe-se que essa diferença da cor da pele tem um peso histórico. Quando me olhavam, percebia que viam também o passado, tudo aquilo que a raça branca fez à raça negra. Claro que fiz muitos amigos, e sei que, como eu guardo saudades de tanta dessa gente que conheci, também eles sentem a minha falta. Aquelas três semanas pareceram três meses, cada dia parecia uma semana porque tudo era intenso, se bem que cada segundo é também calma e paz, mesmo sabendo que há guerra a uns meros 200 quilómetros.
Apesar das amizades que fizeste, pensas que o facto de seres branco, e europeu, continha ainda assim um olhar de desconfiança?
Esse peso histórico era ultrapassado, apesar de pairar nos primeiros olhares. A dada altura, tornei-me popular, sentia-me o Cristiano Ronaldo lá do sítio [risos]. As pessoas vinham mesmo tirar fotografias comigo para publicar no facebook – porque tirar uma foto com um branco é algo mesmo muito raro naquelas paragens.
Qual foi o grande ensinamento desta experiência?
Aprendi muito sobre aquilo que o mundo tem para me dar e, ao mesmo tempo, entendi que ser cidadão significa perceber aquilo que cada um de nós pode dar ao mundo para que ele seja melhor. E nós só o conseguimos se aceitarmos o que o mundo tem para nos dar. África é, precisamente, isso.
O TRABALHO NOS STUDIOS KABAKO
Sobre o ambiente de trabalho de Faustin Lineykula, os Studios Kabako, diz o coreógrafo assemelhar-se a “um abrigo sem teto”. Como era o teu dia-a-dia?
Trabalhar neste Teatro [Camões], com esta Companhia [Nacional de Bailado], é fantástico mas, permite-me que o confesse, trabalhar ao ar livre é absolutamente maravilhoso. Nos Studios Kabako fazia-o com os pés na terra, improvisei com cães e ratos que passavam… Houve um dia em que, quando dei conta, tinha um crocodilo ao meu lado – ao que os meus companheiros no Studio responderam: “não há problema Miguel, é apenas um pequeno crocodilo!” Por sinal, o animal era bem maior do que eu [risos].
Isso passava-se nos Studios Kabako?
Sim. Os Studios são compostos por um espaço interior, onde há computadores e meios próximos aos que temos cá, e um espaço ao ar livre, selvagem, onde temos de assentar os pés na terra. É preciso não esquecer que foi na zona de Kinsangani que, consta, se avistou o primeiro humano nosso antepassado. E isso marca indelevelmente a nossa presença naquele sítio.
Esse trabalho no exterior era visível à comunidade local?
Bastante. As pessoas passavam, viam um branco a dançar e entravam. O trabalho que desenvolvíamos no exterior era público, como se fosse um espetáculo. As pessoas atravessavam um grande portão, sentavam-se e ali ficavam, a ver-nos…
E o trabalho com o Faustin. Como era?
Esta é a primeira vez que o Faustin coreografa especificamente para um branco europeu e é também a primeira vez que eu estive em África. Isso marca muito a nossa “conversa”. Todo o movimento que construímos passa pelas experiências que vivi. Por isso, este espetáculo, este solo, é o resultado dessa viagem, das pegadas deixadas em território africano.
Mas, aqui, vais pisar o palco de um teatro a milhares de quilómetros de distância…
Um palco forrado a serradura, onde cada movimento deixa uma marca, como se fosse em África. Porque, fazer este solo aqui é como voltar a Kinsangani. Sinto que não fui só lá para trabalhar, para visitar… sinto ter feito parte de tudo aquilo, e trago comigo isso mesmo.
A CUMPLICIDADE COM FAUSTIN
Como é que o bailarino da Companhia Nacional de Bailado foi descoberto por Faustin Linyekula?
Toda a experiência por mim vivida e o solo que vamos apresentar tem contornos bastante místicos pela intensidade como tudo se passou. Porém, tudo o resto é muito objetivo. O Faustin foi escolhido para ser o Artista na Cidade em 2016 e a Luísa Taveira [diretora da Companhia Nacional de Bailado] sentiu ser muito positivo pertencer à Companhia o primeiro momento criativo desta edição da bienal. Assim, foi proposto um bailarino para ir e trabalhar no Congo com o coreógrafo…
E foste tu o escolhido.
Exato. Conhecemo-nos aqui em Lisboa. Conversando, fomos descobrindo alguns paralelismos nas nossas vidas: ele cresceu em Lubunga e tinha de atravessar o rio para ir estudar; eu cresci no Barreiro e atravessava o Tejo para estudar e trabalhar. O Faustin quis saber mais sobre mim, atravessou comigo o rio e foi conhecer o Vale da Amoreira, bairro social onde nasci. Quando fui ao Congo, ele atravessou comigo o rio e deu-me a conhecer o bairro em Lubunga onde cresceu…
Apesar das geografias, as similitudes…
Muitas coisas em comum, de facto. E as nossas vivências contaminaram-nos reciprocamente, criando uma cumplicidade não só artística, mas também pessoal.
Apesar das vossas escolas serem diferentes, consegues entender essa cumplicidade artística com um coreógrafo que tem uma dimensão universal precisamente porque é eminentemente local?
A história dele, a história da sua casa, contaminou o europeu que sou. Esse foi o grande desafio desta experiência. Eu sou um bailarino feito, tal como ele, e foi preciso encontrarmo-nos no momento certo para descobrir a cumplicidade e aquilo que somos enquanto artistas.
Este é o momento alto da tua carreira?
É o culminar de um ano de 2015 absolutamente especial para mim. Enquanto artista tenho sempre dúvidas, e a minha dúvida mais premente é se vou ter um ano como o último. Profissionalmente, senti evoluir, afirmei-me, fui reconhecido e, no final, vivo esta experiência única de vida. 2016 começa, precisamente, a coroar esse ano magnífico com este I Miguel que, acima de tudo, é um trabalho que me honra enquanto homem e bailarino.