teatro
O homem que foi Hamlet
"A Máquina Hamlet" pelos Artistas Unidos
Será, porventura, um dos textos “mais estranhos da História do Teatro”, e também um dos mais crípticos, mas é, inegavelmente, um dos mais fascinantes da literatura dramática ocidental. A Máquina Hamlet, de Heiner Müller, sobe ao palco do Teatro da Politécnica numa encenação de Jorge Silva Melo. João Pedro Mamede lidera o elenco.
Mais de 40 anos depois de Heiner Müller a ter escrito, ainda não é fácil definir um objeto tão complexo como A Máquina Hamlet. Em pouco mais de um punhado de páginas, o dramaturgo alemão conjuga uma crítica à História da Europa, ao teatro e à própria situação política do país natal, ainda dividido em dois e com regimes políticos antagónicos. Um texto, como sublinha Jorge Silva Melo que agora o leva a cena, escrito “como que entre o Maio de 68, que aconteceu 10 anos antes de Müller ter concluído a primeira versão, e a queda do muro de Berlim, uma década depois.”
Hoje, a história de A Máquina Hamlet “é ouvida de outra maneira”. “As ruínas da Europa agora são outras e o texto ganhou novas qualidades”, frisa Silva Melo num convite à sua redescoberta.
Clássico do teatro moderno, a peça rompe com as regras daquilo que é a convenção teatral. Aliás, Silva Melo, elenca-o entre “os textos mais estranhos da História do Teatro”, lado a lado com Os Cenci de Antonin Artaud e As Quatro Meninas de Pablo Picasso. “É tão fragmentário, tão incompreensível, que me fascinou desde o dia em que o li pela primeira vez, em Paris, na casa de um amigo meu. Depois, vi várias produções da peça, entre elas, duas, bastante distintas, do Bob Wilson.”
Para lidar com a estranheza e tornar menos críptico o contacto com o texto, a encenação “procura que cada frase do texto tenha a capacidade de ecoar no espectador como uma onda quando estamos a olhar o mar”. Afinal, A Máquina Hamlet tem de ser digerida porque “é uma peça analítica, não romântica. A peça analítica de um cadáver, o do homem que foi Hamlet.”
O cenário são “as ruínas da história”, a agonia do “macho”, que declara, precisamente, “eu era Hamlet”, naquele que é um premonitório anúncio da sua impotência para mudar o rumo das coisas. “Esse papel de força perante a História, até ai masculinizado, caberá, segundo Müller, à mulher, mais especificamente a Electra” (“ela é a violência sem a melancolia de Hamlet”), sublinha Silva Melo, recordando o monólogo final em que Ofélia, a submissa noiva de Hamlet, assume o papel da heroína da mitologia grega e evoca liderar a revolta contra o estado do mundo. “A peça fala, portanto, da passagem do masculino para o feminino, a mulher como futuro do homem, algo que só descobri anos depois de a ter lido pela primeira vez.”
Para interpretar “o jovem Hamlet, esse herói romântico falido”, Silva Melo escolheu João Pedro Mamede, sublinhando que o ator “conjuga de modo exemplar a ferocidade e a fragilidade, a agressividade e a ternura. Há um romantismo no João Pedro que é muito próprio da imagem tradicional do Hamlet. Depois, ele é um ator da palavra, perfeito a dar o tempo do texto, sem precipitar, sem cavalgar. Foi imediatamente nele que pensei para o papel.”
O espetáculo conta ainda com interpretações de Américo Silva, André Loubet, Hugo Tourita, João Estima, José Vargas e Inês Pereira, no papel de Ofélia/Electra. A participação especial do contrabaixista João Madeira entrega “substrato ao indizível” desta sempre fascinante obra-prima da dramaturgia ocidental, em cena no Teatro da Politécnica, até 22 de fevereiro.