teatro
O humano entre papel, ratos e cerveja
António Simão regressa a 'Uma Solidão Demasiado Ruidosa"
23 anos depois, António Simão volta a vestir a pele do “velho” Hanta, um autodenominado “D. Quixote do infinito e da eternidade” que destrói papel numa prensa. Inadvertidamente, de tanto se sujar de letras, Hanta tornou-se um homem culto. Uma Solidão Demasiado Ruidosa reabre, quase cinco meses depois, o Teatro da Politécnica, a 27 de agosto. Até lá, esta “história de amor” improvável entre um solitário “carniceiro” e os livros, passa pelos festivais de Almada e Setúbal e pelas Caldas da Rainha.
São tempos estranhos, estes que rodeiam os palcos por alturas de pandemia. Estamos a pouco dias de António Simão se reencontrar, no Festival de Almada (10 a 12 de julho no Incrível Almadense), com Uma Solidão Demasiado Ruidosa, texto que dirigiu e interpretou pela primeira vez em 1997, no Centro Cultural de Belém. “É interessante para o trabalho de um ator andar tanto tempo com as mesmas palavras”, confidenciará.
Dias antes das autoridades decretarem o fecho dos teatros, em março, o “velho” Hanta, saído das folhas do romance homónimo do escritor checo Bohumil Hrabal, voltara para umas parcas representações no Teatro da Politécnica. Hoje, neste pequeno teatro, casa dos Artistas Unidos, Simão fará mais um ensaio. Na plateia, agora limitada a metade, apenas os jornalistas, de máscara e cumprindo todas as regras sanitárias. A partir de final de agosto, quando a sala reabrir, essas mesmas regras aplicar-se-ão ao público que, cadeira sim, cadeira não, ocupará a plateia, agora praticamente vazia.
Em cena, só, tal como o personagem ao fundo do cenário despido, encontra-se o ator vestido já com a pele do homem que, durante 35 anos, numa cave imunda de Praga, destruiu todo o tipo de papel, incluindo livros, num prensa mecânica. Mas, este “carniceiro” tornou-se “terno”, como considerou Evelyne Pieller, porque se apaixonou pelo que dizem os livros (“depenico uma frase aqui e ali e chupo-a, como um rebuçado”). E sem querer, entre o papel e os ratos, as suas memórias, à semelhança do álcool da cerveja que bebe em abundância, diluíram-se no que leu. À nossa frente, temos alguém que, de antemão, assume: “sem querer, sou culto.”
Perante a mesma “partitura” que o ator levou a palco há 23 anos, saído então da escola de teatro e dono de todo o fulgor da juventude que fazia do espetáculo “uma experiência mais performática”, a história de Hanta surge, inevitavelmente, “tocada de uma outra maneira”. “Cada palavra ganhou outras formas, outros contornos. A técnica também é outra, e aquilo que era sobretudo físico tornou-se mais conceptual, mais centrado no discurso e na narração,” explica.
Mas um solo como Uma Solidão Demasiado Ruidosa ganha também, necessariamente, uma dimensão diferente para o público. Aquele homem que conta a história do seu tempo – da frescura da juventude, passando pelo jugo nazi e pela cruel desilusão dos “amanhãs que cantam” prometidos pelo socialismo, e os pauta com as mais belas palavras que aprendeu nos livros que destrói – é o mesmo que, hoje, se debate com tempos talvez ainda mais sombrios, acelerados ainda mais por via de um inimigo invisivel. Como verifica António Simão, “aquilo de que sofreu Hanta, a personagem desta história, chega nestes nossos dias ao pico do seu horrendo desenvolvimento – a industrialização, a tecnologia, o consumo e a desumanização”.
Talvez, por tudo isso, seja tão urgente voltar àquele subterrâneo em Praga trazido à nossa geografia pelo teatro, e nele reencontrar a esperança na capacidade de, contra todas as adversidades, se ser humano. Mesmo que distantes uns dos outros, e talvez ainda mais sós, e de máscara no rosto.
Para além do Festival de Almada e de uma temporada no Teatro da Politécnica entre 27 de agosto e 19 de setembro, o espetáculo de António Simão é apresentado no Teatro da Rainha (Caldas da Rainha) de 16 a 18 de julho, no Festival Internacional de Teatro de Setúbal a 23 de agosto, no Teatro Municipal Joaquim Benite (Almada) de 25 a 27 de setembro, e no Auditório Municipal António da Silva (Cacém) a 3 de outubro.