entrevista
João Botelho
"Sou um apaixonado pelos grandes e inigualáveis textos portugueses"
Estreia a 1 de outubro nos cinemas O Ano da Morte de Ricardo Reis, adaptação cinematográfica do romance homónimo de José Saramago, realizado por João Botelho. A narrativa decorre em Lisboa, em 1936, quando o médico Ricardo Reis regressa a Portugal depois de se “auto-exilar” no Brasil. De volta ao seu país, o heterónimo encontra-se com o seu falecido criador: Fernando Pessoa. Os dois são lúcidos observadores da agonia de um tempo, tão similar ao que vivemos. Em entrevista à Agenda Cultural de Lisboa, João Botelho fala deste novo trabalho e confirma que a humanidade pouco aprendeu com os erros do passado.
Quando teve pela primeira vez contacto com o livro O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, sentiu de imediato que esta história daria um filme?
Qualquer um dos romances de Saramago poderia ser matéria apetecível para um filme. Mas O Ano da Morte de Ricardo Reis era o guião perfeito para falar de muitas das inquietações que o ano de 2019 trazia aos habitantes desta terra. Não havia ainda a pandemia invisível que hoje nos atinge, mas estavam outras a crescer: populismo, esboços de fascismo, ditadores, etc. O outro, o diferente começa a ser o inimigo que se deve desprezar, e até destruir. 1936, que Saramago descreveu como ninguém, é o ano do anúncio das catástrofes. Mussolini e os seus camisas negras erguem o fascismo e incendeiam Adis Abeba; Hitler e os camisas castanhas começam a engolir os países vizinhos na caminhada para a morte e o caos; aqui ao lado, a carnificina da falange vestida de azul na terrível guerra civil de Espanha. E em Portugal a consolidação do Estado Novo, o verde como a cor da Legião e da Mocidade Portuguesa, esmagando a liberdade e o pensamento.
Apesar de tantos anos de diferença continuam a existir muitos pontos em comum com os dias de hoje…
Parece que os humanos não aprenderam nada com os erros do passado, surgem agora os Trumps, Bolsonaros, Le Pens, Orbans, Erdogans, Putins, Lipins e tantos e tantos, ávidos de poder e servidores da ganância dos ricos e poderosos, trazendo com eles de novo o Mal que leva à subserviência, à miséria, à escravidão. E outras inquietações: os algoritmos que controlam, o individualismo implacável, o Nós transformado em apenas Eu, o pensamento a desaparecer, o consumo como existência. E o abandono da leitura e do saber partilhado. A vertigem que leva ao esquecimento. “A minha pátria é a língua portuguesa” escreveu um dia Pessoa (Bernardo Soares) no Livro do Desassossego. O texto elogiava, como mestre, o Padre António Vieira. E Saramago também escreveu, unindo-se ao poeta, que a língua portuguesa nunca se tinha elevado tão alto como nos textos do célebre padre jesuíta. Assim se encontravam, Saramago e Pessoa, cada um com escritas e oralidades diversas. Às vezes os textos bem escritos ainda crescem quando lidos em voz alta: Música. Assim o Teatro e o Cinema. Uma última inquietação: o Cinema de que eu faço parte há várias décadas. A degradação, o triunfo do entretenimento, do consumo das imagens e dos sons, o triunfo do movimento sobre o tempo. O cinema repito, não é o que se passa nem quando se passa, é como se filma. Luzes e sombras, seres humanos aflitos. Mostrar, ver e ouvir, fazer perguntas, as respostas pertencem aos espectadores, livres de escolher.
Fernando Pessoa tem inspirado a sua obra. Neste filme, a Fernando Pessoa junta-se o escritor genial que é José Saramago. Que dificuldades ou desafios se encontram ao realizar uma obra que tem por base estes dois grandes nomes da literatura portuguesa?
É difícil, sim. “Mas se fosse fácil estavam cá outros”, assim me ensinou um fuzileiro naval, meu amigo. Respeitar os textos, escolher, ligar sem trair. Cinema não é literatura, mas pode usá-la como matéria, como usa o teatro, a música, a arquitectura, a pintura, etc., que são artes mais nobres. Como vampiros, roubamos para construir outra coisa, tentando que as intenções artísticas se sobreponham ao negócio, esse pecado original desta “falsa” sétima arte. Pessoa e Saramago são um “luxo” português.
Podemos dizer que este é também um filme sobre a morte e o esquecimento. E que pretende de alguma forma refletir sobre a necessidade que a criatura tem de se libertar do seu criador?
Uma das invenções geniais de Saramago, a ideia dos nove meses que um morto ainda pode vaguear aí (antes de ser esquecido) para compensar os nove meses que se perdem na barriga materna. Outras invenções são a competição entre o criador (cínico) e a criatura que dele se quer libertar, ou a paixão entre dois homens, tornados físicos, palpáveis. Física da metafísica. Uma relação perturbada por duas belas mulheres e, como num western em que ao pôr-do-sol eles se afastam, aqui num nascer de dia, eles também partem abraçados, para um outro mundo porque neste, de cores cinzentas, já não conseguem viver. Ficam-nos os textos como dádiva gloriosa.
Porquê filmar a preto e branco?
A felicidade pode ser a capacidade de nos adaptarmos às circunstâncias. Como filmar em 2019, nesta Lisboa colorida de semáforos e antenas e lojas, o ano de 1936? Escolher bem, enquadrar com cuidado, fazer chover onde estava o sol, utilizar o Hotel Astória em Coimbra, como justo Hotel Bragança, no centro de Lisboa, Fátima no Campo de Tiro de Alcochete, mas muita Lisboa, “meu lar” e lar do meu filme.
A escolha dos atores foi uma escolha intuitiva ou um processo racional?
Racional, racional. Se olharem para as últimas fotografias de Fernando Pessoa em 1935, com 47 anos vêm um homem velho, inchado, diferente do ícone mas quase igual a Luís Lima Barreto que, com a excelência da representação, transporta com ele a ironia do texto. Ricardo Reis “viveu” no Brasil 16 anos. Um amigo meu, que viveu um ano no Brasil, veio a falar brasileiro. E depois, acima de tudo, Chico Diaz é um actor de génio. Fez um Ricardo Reis perfeito. E a beleza da Victoria Guerra e da Catarina Wallenstein, as suas excelentes qualidades de atrizes, o modo como a luz nelas se reflecte e incendeia o ecrã, são escolhas justas para Marcenda e Lídia.
Que significado atribui à figuração de Pilar del Rio no filme?
Através dela, a presença de Saramago, no meu filme. É um agradecimento.
Uma parte considerável do seu trabalho baseia-se em grandes obras literárias. É caso para concluirmos que é um cineasta especializado em adaptações literárias?
Eu não sou um especialista. Eu sou um apaixonado pelos grandes e inigualáveis textos portugueses. E afirmando-os, luto contra o esquecimento.