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O fascínio do crime
'O Teatro da Amante Inglesa' no Teatro da Politécnica
Nos finais dos anos de 1940, Marguerite Duras deixou-se fascinar por um crime macabro e inexplicável que abalou uma zona rural em França. Essa história nunca mais a abandonou, e foi, ao longo dos anos, sendo escrita e reescrita pela autora de O Amante e Hiroshima, Meu Amor. No palco da Politécnica, Jorge Silva Melo encena aquela que será, muito provavelmente, a versão definitiva de O Teatro da Amante Inglesa.
Em 1949, em Savigny-sur-Orge, na região de Essone, a Senhora Rabilloux, mãe de duas raparigas, investiu um martelo contra o crânio do marido enquanto ele lia o jornal. Metodicamente, esquartejou o corpo e, noite após noite, foi-se livrando dos pedaços, lançando-os a partir de um viaduto para os comboios de mercadorias que passavam. O crime acabou por ser rapidamente deslindado, até porque, Amélie Rabillou confessou-o prontamente quando a polícia a procurou.
Chegada às páginas do Le Monde, a notícia fascinou a escritora Marguerite Duras, sobretudo quando percebeu, através das crónicas de Jean-Marc Théolleyre, que a assassina “nunca parou de fazer perguntas para tentar perceber aquele crime” que ela própria cometera.
A razão do fascínio materializou-se na obra de Duras. Primeiro, através da peça Os Viadutos de Seine-et-Oise, depois no romance A Amante Inglesa; e, depois ainda, numa adaptação ao teatro desse romance, que daria lugar a O Teatro da Amante Inglesa, texto que a autora não abandonou, reescrevendo-o continuamente. Porém, como exemplar ficcionista, a Senhora Rabilloux torna-se Claire Lanne, dona de casa, casada com Pierre, um homem que pouco mais do que a despreza. A vítima do crime também se altera. Não é o marido, como na vida real, mas uma prima deste, que com eles partilha a casa.
Assim, em cena, e em momentos diferentes, encontramos Pierre (João Meireles) e a misteriosa Claire (Isabel Muñoz Cardoso). Ambos são entrevistados por um personagem anónimo (Pedro Carraca) que, vindo da plateia, tenta deslindar o mistério que envolveu Duras e se prepara para enlear o público. Tal como a autora, e como sublinha o encenador Jorge Silva Melo, é “a banalidade do mal que nos vai fascinar, jamais as respostas que nunca teremos.”
Exercício singular sobre o crime e a loucura e sobre as tortuosas e inexplicáveis razões do comportamento humano, O Teatro da Amante Inglesa é, como escreveu um dia Cameron Woodhead, “teatro brilhante, puro e simples.”