Jonas

"É meu desejo que o fado volte a ter um vocabulário coreográfico"

Jonas

O fadista, bailarino e coreógrafo Jonas sobe ao palco do Centro Cultural de Belém em várias datas. A 8 de julho, há concerto de apresentação do novo disco São Jorge, onde se estreia como cantautor. Nos dias 17 e 18, é vez de se juntar a Lander para dar a conhecer Bate Fado, um espetáculo que recupera as antigas danças do fado, ou fado batido.

[atualização: o espetáculo 'Bate Fado' foi reagendado para 2 e 3 de setembro de 2021]

A música e a religião fizeram parte da tua infância. Isso influenciou a tua identidade artística?

Tanto o meu lado materno como paterno eram muito ligados à religião. Uns evangélicos-protestantes e outros católicos. O meu acesso à arte foi através da religião, que me deu uma formação mais consolidada de teatro, música e canto coral. Embora fosse obrigado a ir à igreja, acabava por gostar de todas as atividades artísticas e daquele universo ficcional (ou não, dependendo da fé de cada um), que começou a fazer parte da minha formação. A minha família tem um lado pagão e um lado religioso e foi por aí que o meu trajeto artístico se começou a desenvolver.

A tua vida artística começou muito cedo. Aos 9 anos participaste na peça O Flautista de La Fontaine. A partir desse momento percebeste que querias viver da arte?

Sempre soube que queria viver da arte. A decisão de seguir esse caminho sempre foi uma coisa muito natural. Tenho vários amigos que se sentem perdidos porque não sabem o que fazer da vida e eu não faço ideia o que isso é. Sempre soube o que queria fazer e sempre tive a sorte de, quer na escola, quer na igreja, ter papéis de grande responsabilidade e destaque.

Como surgiu a paixão pelo fado?

A minha mãe é da Mouraria, era fadista e bailarina. Curiosamente, não cresci com ela. Embora tenha tido muito mais contacto com o meu pai, sou muito mais parecido com a minha mãe. Os meus avós gostavam muito de fado e eu estava sempre a perguntar-lhes histórias. É um bocadinho cliché dizer que o fado nos escolhe, e acho que não escolhe só os fadistas, mas todos os personagens que orbitam esse universo. Acho que, no meu caso, foi isso que aconteceu, como acontece com a maioria das pessoas que dedicam a sua vida ao fado. É uma coisa que não se sabe bem como acontece, mas sem a qual não se consegue viver. Não consigo viver afastado do fado. Tenho momentos em que estou mais dedicado à criação de peças de dança, mas no fim do dia vou sempre ouvir os meus fados.

Para além de fadista, és coreógrafo, bailarino e performer. Como se gerem todas estas facetas?

Comecei no Chapitô, que dá uma abertura muito grande para todas as artes: teatro, dança, artes circenses, teatro de rua… Todas estas vertentes enriqueceram o meu caminho matriz, que é o fado. Sempre pensei que teria de optar entre a dança e o fado, até que surgiu o fado batido, que é o espetáculo que estou a desenvolver agora, que resgata as danças extintas do fado. É meu desejo que o fado volte a ser “batido” nas casas de fado, e que volte a ter um vocabulário coreográfico associado. É muito difícil gerir tudo, mas é isso que me enriquece enquanto identidade artística. A dança contemporânea e a performance olham para o futuro, enquanto o fado está completamente enraizado no passado. É uma grande responsabilidade poder expandir esta forma de expressão artística, que é muito mais velha que eu e que já existia muito antes de eu nascer.

“É uma grande responsabilidade poder expandir esta forma de expressão artística, que é muito mais velha que eu e que já existia muito antes de eu nascer”

O fado batido é um conceito que poucos conhecem…

É talvez o tema mais desconhecido e obscuro do fado, que carece de uma investigação a sério. O flamenco, o samba ou o tango têm uma dança associada. O fado também tinha, chamava-se fado batido. Era uma dança muito erótica e lasciva, baseada num sapateado energético e em palmas. Fala-se muito da influência do fandango e do lundum (dança afro-brasileira). Os primeiros documentos sobre a origem do fado remetem para o Rio de Janeiro, quando a Corte foge para o Brasil. O fado nasce nesta altura enquanto dança, e de repente desaparece. É isto que dizem os principais livros de história do fado, embora não expliquem o porquê do seu desaparecimento súbito. Esta peça que levo ao CCB assenta nessa investigação. Não seria honesto dizer que vou recriar a dança porque isso não é possível. Será uma reinterpretação com alguma liberdade (com base em imagens e textos) e um novo vocabulário para que se possa bater o fado, daí o nome Bate Fado e não fado batido.

De onde veio esse desejo de recriar o fado batido?

Um dia escrevi uma música a que chamei Fado Batido. Depois, já fora de horas, fui a uma casa de fados onde estava a Matilde Cid a cantar o Fado das Horas. Nesse momento tive uma visão de um homem vestido de campino a dançar em círculo, enquanto sapateava. Foi a partir daí que o projeto nasceu. Tem sido um caminho incrível. Ainda só fizemos três apresentações, mas as reações são sempre de espanto. No mínimo, estamos a dar a conhecer ao mundo que o fado já teve uma dança que se extinguiu e que ninguém sabe porquê. Não se sabe porque houve este apagão da memória coletiva, e não foi assim há tanto tempo. Até 1910 ainda se encontram documentos do fado dançado. Se o fado tem 200 anos, metade da vida dele foi dançada.

O teu disco de estreia chama-se São Jorge. O nome está relacionado com a freguesia onde nasceste (São Jorge de Arroios)?

São Jorge sempre foi um santo que me intrigou muito, mas há aqui vários fatores: nasci em São Jorge de Arroios, o Chapitô é ao lado do Castelo de São Jorge, São Jorge é um santo muito importante na formação de Portugal enquanto santo protetor de D. Afonso Henriques… fascina-me esta ideia do santo guerreiro que é, em si, um antagonismo. Uma vez fiz uma cerimónia em que estava a cantar a música de São Jorge e uma parte da letra diz “e o golpe do destino, esse eu sinto, mas não caio”. Isto intrigou-me muito nesse momento, e foi aí que dei nome ao álbum. Acho que foi um bocadinho esquecido e substituído pelo Santo António, e isso intriga-me. Como é que se passa de um santo montado num dragão para um santo estático com o menino ao colo? Esta ideia do guerreiro rendido a lutar é uma imagem muito próxima dos fadistas. O fado é um ritual e fala de muitos assuntos que muita gente não gosta, como a morte ou o machismo. Põe o dedo na ferida, o que para mim é uma espécie de catarse.

A produção musical ficou a cargo de Jorge Fernando. Como surgiu esta parceria?

Esse é outro grande motivo pelo qual o álbum se chama São Jorge. Conheci o Jorge na primeira casa de fados onde cantei, a Casa de Linhares. Foi a primeira pessoa que me ouviu a cantar fado em público. Desde aí fomo-nos sempre cruzando, sempre houve uma ligação e uma identificação. Se não fosse o Jorge, a sonoridade deste disco seria completamente diferente. Acho que ninguém me consegue ler tão bem. Eu levava-lhe uma melodia e uma letra e o que ele me propunha às vezes nada tinha nada a ver com a ideia que eu tinha, mas surpreendia-me sempre pela positiva. Acho que ele é um génio a trabalhar. Para mim, é a personagem viva mais transversal do fado. Começou como guitarrista da Amália e tornou-se num dos maiores compositores de fado. É um privilégio ele ter participado nos meus primeiros passos como cantautor e fadista. Ter ao meu lado um São Jorge destes foi uma experiência muito forte.

Quem são as tuas maiores referências no universo do fado?

Amália Rodrigues. Lá vou eu para o cliché [risos]… Mas também o Carlos do Carmo ou a Fernanda Maria. Em relação a nomes mais atuais, adoro a Sara Correia ou o Ricardo Ribeiro.