entrevista
Domenico Lancellotti
"A arte é o outro lado da moeda do fascismo, é o extremo-oposto"
Em setembro, o Teatro Maria Matos recebe o concerto de apresentação de Raio, novo disco a solo de Domenico Lancellotti. O multi-instrumentista, cantor, compositor e artista plástico brasileiro mudou-se recentemente para Lisboa. Na entrevista que o músico deu à Agenda Cultural de Lisboa, houve ainda tempo para falar de política e do papel importante da arte como forma de combate ao extremismo.
O facto de ser filho de um músico influenciou o seu percurso?
Influenciou muito. A minha casa era uma casa de música. Mais do que cantor e instrumentista, o meu pai era compositor. Era uma profissão muito daquela época, hoje em dia já não se encontra muito. Não era artista de se apresentar ou tocar ao vivo, ele compunha as músicas e mandava-as para os cantores daquela altura. Era muito interessante, ele frequentava muitos saraus, rodas de samba… Nos estúdios de gravação havia umas salas que os compositores frequentavam para se encontrarem com os cantores e para lhes mostrarem as músicas. Eu ia muitas vezes com o meu pai porque gostava de assistir às gravações no estúdio. Para mim era um acontecimento incrível. A experiência no estúdio é muito sensorial, como se entrássemos dentro do som. Naquela época (final dos anos 70 e início dos anos 80), era incrível poder assistir aos músicos a gravarem presencialmente. O samba, que era o meio onde o meu pai estava mais inserido, é um meio muito alegre, as pessoas são muito divertidas. Tive contacto com vários instrumentos, fui aprendendo sem me aperceber.
Quando percebeu que esse seria também o seu futuro?
Sempre soube. Também gostava de desenhar e pintar e houve uma altura em que me dediquei mais à pintura do que à música. A determinada altura entrei numa escola não convencional, mais experimental, no Rio de Janeiro. Foi ali que, com 12/13 anos, conheci algumas pessoas que são meus amigos até hoje e que são músicos, como o Moreno Veloso. Havia muitos filhos de músicos nesta escola, e estas pessoas também me puxavam para a música.
A sua vida gira à volta da música e das artes visuais. Estes dois universos alguma vez entram em choque ou, por outro lado, são um complemento um do outro?
Acho que está tudo interligado. Temos a capacidade de ser cada vez mais renascentistas, no sentido de podermos ampliar o nosso conhecimento. Acho que todo o tipo de manifestação artística vem do mesmo lugar, o que muda é a forma. A música tem uma forma, a arte visual tem outra. A música, no Brasil, é sempre um encontro, são gerações que se encontram, é algo muito atrativo, muito forte. Já o processo das artes visuais é mais solitário, embora haja coletivos de artistas plásticos. Participo em alguns (aqui em Portugal, com Tomás Cunha Ferreira e no Brasil com outros parceiros). Gosto de ambos, complementam-se, só que a música tem uma demanda de tournées em que se acaba por perder aquela rotina de trabalho das artes visuais. Fica-se muito tempo sem fazer e depois demora até conseguir retomar essa rotina.
Também compõe bandas sonoras para teatro, dança e instalações. De todos os processos criativos, qual lhe dá mais prazer?
Só consigo ter alguma paz existencial se houver alguma ideia a fermentar, alguma coisa a acontecer, porque obriga-me a pensar e é isso que alimenta a vida. Mesmo quando não tenho nenhum projeto, como aconteceu durante o confinamento, tive que inventar. Comecei a compor música nova, conectei-me com outros compositores. É um processo que é contínuo e que nunca termina, não tira férias.
Já trabalhou com diversos artistas como Adriana Calcanhoto, Moreno Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, entre muitos outros… Houve alguém que tenha marcado particularmente o seu percurso?
Tive muita sorte de encontrar e de trabalhar com pessoas que admiro muito, como Gilberto Gil. No caso do Caetano Veloso, por exemplo, antes de ser artista era pai do meu amigo (Moreno Veloso), sempre tive uma grande convivência com ele, ensinou-me muito. Adriana Calcanhoto também foi muito importante, fizemos muitas tournées juntos. Também trabalhei com Domingos de Oliveira (dramaturgo e poeta). São artistas dos anos 60, que criaram a contracultura, a quem devemos muito hoje, todas as nossas vitórias sociais partiram dessa liberdade e da visão do mundo que eles trouxeram. Ter a oportunidade de trabalhar com estas pessoas foi determinante. Eles são muito livres, são generosos. Se nos convidam para trabalhar com eles é para colaborar, não é para nos dizer o que temos de fazer e isso é muito generoso.
Raio é o seu terceiro disco em nome próprio. O que inspirou este trabalho?
Estou sempre a fazer músicas novas e a pensar na possibilidade de um disco. Acho que o disco tem um formato equivalente a um filme ou um quadro. Gosto de pensar na relação das músicas, no lado A, no lado B… Quando tenho um bom conjunto de músicas começo a gravar, mas de forma lenta porque também nunca tenho orçamento para fazer tudo de uma vez. O disco vai amadurecendo, vai crescendo, algumas coisas deito fora, outras refaço. Em relação a este disco, Raio, houve duas coisas que o impulsionaram: uma foi o convite de Lúcia Koch (artista plástica brasileira) para a Bienal de Kansas City. Ela queria fazer uma instalação de arte que tivesse música. Eu compus seis músicas, fizemos uma mixagem em 5.1 e enterrámos, como se fossem uns cogumelos de som. As pessoas que passassem por ali, se quisessem ouvir, tinham que circular. Não era a música inteira que passava pelas pessoas, mas sim as pessoas que tinham que procurar os arranjos andando mais para a direita ou mais para a esquerda, para ter uma ideia da totalidade da música. Fiz os temas e, entretanto, mudei-me para Lisboa e comecei a trabalhar nuns trechos de letras. Outro fator que influenciou este álbum foi o facto de, nos últimos anos, eu ter tido bastante convivência com alguns indígenas brasileiros, sobretudo o povo Huni Kuin. Foi uma verdadeira escola porque eles têm uma visão e uma perspetiva do mundo muito diferente. Estão sempre a partilhar ensinamentos, e às vezes fazem-no de uma forma não verbal, foi algo que me influenciou muito. A arte e a cultura deles são muito antigas, influenciaram muito este disco.
Mudou-se recentemente para Lisboa. De que forma é que esta nova experiência influencia o seu trabalho?
Influenciou muito. No processo artístico podemos ter as nossas raízes, que reverberam ao longo da nossa vida, mas o lugar onde vivemos é muito determinante. É o ar que se respira, a comida que se come, a língua que falamos… Cheguei cá, escrevi algumas músicas, gravei-as, comecei a trabalhar com pessoas de cá e também com brasileiros que moram aqui e tudo isso influencia o trabalho de um artista.
Isso quer dizer que podemos esperar, daqui a algum tempo, um disco inspirado em Lisboa?
Já tenho as músicas feitas [risos]…
No concerto de lançamento deste disco, que acontece em setembro, no Teatro Maria Matos, conta com a colaboração de vários outros músicos. O palco é para estar rodeado de amigos?
Com certeza. A música também é isso: estar ali, naquele momento, a dividir o palco. Com esta crise que se vive atualmente no Brasil, com este novo direcionamento fascista, muitos brasileiros estão a mudar-se para Portugal. Músicos como Ricardo Dias Gomes, João Erbetta, Cláudio Andrade (meu colega de escola)… há muitos músicos brasileiros que moram cá já há algum tempo.
Pegando nessa questão política de que falava, nos movimentos de extrema-direita que têm surgido um pouco por todo o mundo, acha que os artistas – músicos em particular – devem usar a sua voz como forma de combate?
Sem dúvida nenhuma. Quando as coisas estão bem não precisamos de pensar em política, mas quando as coisas correm mal, tudo o que fazemos transforma-se em política nas coisas mais fundamentais, como amar alguém, ter liberdade de fazer música ou querer proteger a floresta. Coisas que são tão óbvias, de repente passaram a ser atos políticos. A arte é o outro lado da moeda do fascismo, é o extremo-oposto. Toda a gente passa a ser um soldado, uns com mais destaque, outros com menos, mas todos a lutar para derrubar o sistema, para poder transformar essa maldade em adubo que possa florescer numa sociedade melhor. É como se tivéssemos uma panela na mão para as pessoas acordarem. Não podemos ficar adormecidos neste período tão determinante da História da Humanidade.
A música salva?
A música estabelece pontes entre essas culturas que conseguiram permanecer conectadas com a natureza e com a própria ancestralidade, seja a cultura negra ou a cultura indígena. A música é uma ponte entre a espiritualidade e o mundo real em que vivemos, é essa a função da arte.