teatro
A comédia do eterno sedutor
‘Don Juan’, de Molière, no Teatro do Bairro
Assinalando os 400 anos do nascimento do mais célebre comediógrafo francês, Jean Baptiste Poquelin, ou Molière, António Pires encena Don Juan, peça sucessora de Tartufo que, à semelhança desta, abalou a moral católica seiscentista. O espetáculo estreia a 2 de fevereiro, no Teatro do Bairro, e conta com interpretações, entre outros, de Jaime Baeta, João Barbosa, Carolina Campanela e Luís Lima Barreto que, com Fátima Ferreira, assina a tradução.
Personagem de origem espanhola semilendária, celebrizada universalmente enquanto aventureiro libertino e sedutor, Don Juan terá sido tratada pela primeira vez por Tirso de Molina na peça El Burlador de Sevilla y convidado de piedra. Não muitos anos depois, em 1665, na sequência do escândalo de Tartufo, Molière parece andar de novo à procura de problemas e estreia a sua visão de Don Juan. O grande comediógrafo francês dá-lhe “um tratamento muito mais humano” ao aligeirar a dimensão trágica do personagem e “o carácter religioso e edificante das primeiras versões, sob o espírito do Concílio de Trento”, acabando a afrontar a moral católica vigente. A peça acaba por proporcionar ao autor novos dissabores, nomeadamente, ser censurado e ver banida em vida a versão original do texto.
Nesta sua visão da comédia de Molière, António Pires quis, precisamente, “contrariar a ideia romantizada que se criou de Don Juan” e sublinhar um traço que lhe pareceu fundamental, sobretudo, nos dias de hoje, e que passa pelo modo como, com ironia, o texto aponta ferozmente o dedo à hipocrisia, ou seja, esse traço de caráter que tanto incomodou, à época, as autoridades religiosas francesas. “Na peça, para continuar a viver como quer, Don Juan torna-se hipócrita e, tal como todos os outros, esconde-se atrás da religião”, lembra o encenador. Ao acusar a Igreja de ser uma espécie de escudo para a hipocrisia humana, Molière “está a falar de tempos onde, tal como os de hoje, parece haver mais fingimento do que verdade.”
Curiosamente, quando a companhia do Teatro do Bairro começou a trabalhar o texto, aquilo que motivou especialmente António Pires foi a possibilidade de “pôr os atores Jaime Baeta, que interpreta o Don Juan, e João Barbosa, no papel do criado Esganarelo, a jogar. Gosto tanto deles e reconheço-lhes uma energia única que seria notável vê-los nestes papéis”, declara ao lembrar como a peça é uma irresistível comédia, capaz de “expor os mais comuns defeitos humanos através do riso.”
Mas, se os protagonistas têm uma “energia única”, o que dizer dos restantes atores da companhia do Teatro do Bairro? António Pires sente que Don Juan mostra toda a importância de um trabalho de companhia no teatro. “A cada espetáculo, sinto que estes atores estão em casa, e isso fá-los crescer, permitindo-lhes a liberdade de entregarem todo o seu quê de artistas, não somente de atores”. Essa capacidade de serem artistas e intérpretes torna esta comédia, naturalmente, “ainda mais viva e muito teatral.”
O pulsar da teatralidade e das “coisas não iguais à realidade” sobressaem no magnífico cenário de Alexandre Oliveira e nas pinturas e desenhos de Jacqueline de Montaigne, evocação dos 400 anos de Molière, do teatro barroco francês e da “caixinha mágica à italiana”. Todo “este dispositivo cénico privilegia o jogo do teatro, com a perspetiva, a ribalta, as caras pintadas, os vestidos. Foi a maneira de homenagearmos o autor e um modo de fazer teatro” que, a par da diversão e do prazer do fingido, continua a interpelar a nossa condição de seres humanos.
Don Juan está em cena no Teatro do Bairro até 27 de fevereiro, com récitas de quarta a sexta às 21h30 e aos fins-de-semana às 18 horas.