Dois mundos encarcerados numa cela

"O Beijo da Mulher Aranha" na Sala Estúdio do Teatro da Trindade

Dois mundos encarcerados numa cela

Mais de 25 anos depois de Diogo Infante ter protagonizado O Beijo da Mulher Aranha, o atual diretor artístico do Teatro da Trindade desafiou o encenador Hélder Gamboa a revisitar a conhecida peça do autor argentino Manuel Puig. Este intemporal texto sobre amizade, amor e diferença, passado na prisão de um qualquer regime ditatorial, é agora interpretado pelos atores João Jesus e Diogo Mesquita.

Quando, no início dos anos 80 do século passado, o escritor Manuel Puig se instala no Rio de Janeiro, e começa a trabalhar com o também argentino Hector Babenco na adaptação para o cinema de O Beijo da Mulher Aranha, está longe de imaginar o fenómeno mundial em que se virá a tornar. A peça, que começou por ser um romance e que o autor concluiu já no exílio, era um retumbante sucesso nos teatros da América Latina,  e o filme seria um dos mais famosos da época, valendo a Babenco a nomeação para o Oscar de Melhor Realizador e consagrando o recentemente falecido William Hurt com o Oscar de Melhor Ator.

Ao longo dos anos, O Beijo da Mulher Aranha subiu a palcos de teatro de todo o mundo, deu  origem a uma ópera e até a um musical da Broadway. Em Portugal, para além de uma encenação de Almeno Gonçalves já neste século, em meados da década de 1990, no Teatro Nacional D. Maria II, Diogo Infante e Nuno Melo protagonizaram o homossexual Molina e o ativista político Valentín, num espetáculo encenado por Natália Luiza.

“O Diogo [Infante] nunca esqueceu a peça, que considera uma das suas favoritas”, conta Hélder Gamboa, encenador e co-diretor artístico (com a atriz Ângela Pinto) do coletivo Tenda que cumpre, este ano, 18 anos de atividade, desafiado pelo agora diretor artístico do Teatro da Trindade a dirigir O Beijo da Mulher Aranha.

“Curiosamente nunca vi o filme, nem nenhuma das anteriores produções para teatro que se fizeram por cá, mas apaixonei-me pelo texto”, revela o encenador no final do ensaio para a imprensa, ainda com a voz ligeiramente embargada pela comoção que teima em sentir sempre que o espetáculo (“quase, quase pronto!”) termina. “Esta peça ensina-nos que qualquer um de nós pode ser diferente como indivíduo, trilhar caminhos também diferentes, mas que isso não nos deve impedir jamais de aceitar o outro.”

 

O Beijo da Mulher Aranha passa-se na cela de uma prisão durante a vigência de um regime opressor e ditatorial. Nela encontram-se Molina, um homossexual acusado de atentado ao pudor, e Valentín, um preso político de esquerda. Embora nada pareça suscetível de os ligar, de modo a suavizar a passagem do tempo em circunstâncias tão duras, Valentín vai escutando a minuciosa descrição que, dia após dia, Molina vai fazendo do filme de Jacques Tourneur A Pantera. A estratégia de escapismo do companheiro vai conquistando Valentín e entre os dois nasce uma forte amizade e cumplicidade. Contudo, Molina guarda um segredo que se pode revelar fatal para Valentín e a sua luta.

Como nota o encenador, estas personagens são “dois homens de mundos diferentes fechados numa cela. Molina, apesar de estar preso, encontra a felicidade de não ter que esconder a sua alegria por poder ser uma mulher e ter um homem para tratar como sempre quis. Já Valentín, o revolucionário que buscar mudar o mundo, acaba por encontrar ali uma paz que nunca encontrou lá fora, nem sequer nos braços de um amor que rejeitou por não partilhar os seus ideais políticos.”

E o que nos ensina Molina e Valentín? “Que em circunstâncias normais, dois seres humanos que não olhariam sequer um para o outro, podem ser obrigados a conversar e a entenderem-se, mostrando que o diálogo e a compreensão são a melhor solução para o mundo melhor que muitos de nós ainda desejamos.”

Para interpretar os protagonistas, Hélder Gamboa escolheu os atores João Jesus (Molina) e Diogo Mesquita (Valentín). “Nunca tinha trabalhado com eles e estou rendido à entrega e ao talento”, frisa Hélder Gamboa. “Quando li o texto percebi que tínhamos tudo a ganhar em conseguir dois atores que tivessem já uma boa cumplicidade. O João e o Diogo conhecem-se bem, são muito amigos, e isso tornou o processo de composição das personagens mais fácil”, sublinha o encenador.

Para além da dupla, o espetáculo conta ainda com as participações de André Ramos e, em vídeo, de José Raposo. O Beijo da Mulher Aranha está em cena de 13 de abril a 5 de junho, de quarta a domingo, às 19 horas.