entrevista
João Mário Grilo
"A vida de Vieira da Silva e Arpad Szenes é marcada pela poética de uma figura que constroem em conjunto"
A 2 de junho estreia Vieirarpad, um filme de João Mário Grilo que tem como ponto de partida a correspondência entre Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szènes, entre 1932 e 1961. A narrativa explora a visualidade íntima, onde a memória do século XX, século de exílios, se articula com a obra plástica dos artistas. Filmado em Lisboa, Paris, Lyon, Dijón, Yèvre-le-Châtel e Rio de Janeiro, inclui comentários de Vieira da Silva e Arpad, assim como várias entrevistas relevantes que oferecem um retrato da fascinante vida em comum do casal.
Como surgiu a ideia de usar a correspondência trocada entre o casal para realizar o filme?
A correspondência é um princípio de filme. Nesse sentido, há um convite do António Gomes de Pinho [presidente da Fundação Arpad Szenes – Vieira da Silva] para que eu pensasse na possibilidade de um documentário. E eu gosto desses materiais. Houve uma outra razão, muito específica: um filme era a única maneira de casar tudo. Ou seja, de ter a obra, as fotografias, a experiência de vida e, sobretudo, a pintura e o desenho em paralelo. Já tinha sido feita uma exposição, que era muito focada nas cartas, mas há sempre uma certa distância entre a carta e a obra, e no filme isso não se passa. A dificuldade maior foi mesmo conceber o fluxo. Descobrir o cinema da Vieira e do Arpad, porque eles trabalharam esse fluxo, eles sabiam qual a relação entre as cartas e as obras.
A correspondência, à semelhança do espólio dos artistas, é muito rica e em grande quantidade. Como fez a seleção desse material através do qual conta uma longa história?
Filmei em mudo, isto é, filmei as cartas não por aquilo que elas diziam mas pela sua visualidade. Há uma correspondência visual entre tudo no filme, entre a paisagem, os lugares, as cartas, a pintura. A pintura é a referência essencial. Li as cartas através da pintura e não o contrário. Comecei por filmar a pintura, filmei tudo seguido num sistema automático para não perder o foco. Era muito importante saber como filmar. Filmar a pintura ao baixo é uma coisa, fazê-lo ao alto é outra. O cinema é horizontal, isso determinou muito o tempo, que é uma coisa essencial no filme. Num museu a pessoa pode desligar-se do quadro que está a ver quando quiser, num filme não, as pessoas têm que ver os quadros com o tempo que lhes dou. É importante esse ritmo que o filme tem, que é o ritmo dele, é uma espécie de respiração própria. O trabalho mais desafiante foi respeitar essa respiração, que já estava lá.
O casal documentou a sua vida ao longo de várias décadas. Sente que a intenção de ambos era deixarem um legado que pudesse ser posteriormente divulgado?
A Vieira e o Arpad cuidaram muito bem da sua posterioridade. Acho que o filme foi comandado por eles. Na verdade, procurei fazer o filme que eu achei que eles gostariam que fosse feito. Cada peça era um convite que me empurrava a filmar isto ou aquilo. Portanto, não fiz nada, apenas tentei abrir-me a esse diálogo. Há neles esse lado da dádiva, inclusive um lado performativo. Quando filmei as cartas, a pintura, senti que estava a filmar essa performance. Tentei ser fiel à mensagem que estava nessa voz/documento. A minha questão centrava-se sempre em como merecer a presença deles e em fazer um filme que não os traísse.
Que influência teve, na realização de Vieirarpad, o documentário Ma Femme Chamada Bicho (1976), de José Álvaro Morais?
O filme do José Álvaro, pelo qual tenho uma grande estima, era o lugar onde os tinha vivos. Depois há uma questão no documentário Vieirarpad: como é que se torna uma memória permanente? Quando “eles” me entregaram uma arca com fotografias, cartas, pinturas, estão a dizer-me faz alguma coisa com isto. Tentei pegar em tudo o que havia e o Ma Femme Chamada Bicho era incontornável. Sempre achei que era possível encontrar um ponto de encontro, um momento em que não se percebe bem a diferença entre este filme e o outro. Uma espécie de não tempo. Esse momento surge numa conversa em casa do casal, onde eu repito a sequência do filme do José Álvaro com o mesmo diálogo. Há ali uma confusão de filmes e de tempos que é o nó onde o Vieirarpad foi concebido e acabado. A minha ideia nunca foi fazer um filme definitivo sobre a Vieira e o Arpad. Mas acho que há na vida deles a construção de uma figura, uma entidade, que não é nem um nem outro e essa entidade é o nome do filme: Vieirarpad. É algo que não tem uma forma, mas que embraia uma poética. A vida deles é marcada pela poética dessa figura que constroem em conjunto. Isto para dizer que, a coisa mais importante não é a arte, mas sim a vida, as pessoas.
Os vários locais onde viveram e o exílio influenciaram a obra dos artistas. A geografia determinou o imaginário que reproduziram na pintura. Que importância teve a geografia no filme?
Foi uma aprendizagem para mim. No Brasil, sobretudo, não viveram num sítio qualquer, foram escolhendo e acabaram por ficar longe do Rio de Janeiro, em Santa Teresa, um local que permite ao mesmo tempo uma proximidade e uma certa distância do Rio. A Vieira da Silva odiava o Rio, o Brasil, ao contrário do Arpad. Eu queria que o filme fosse autêntico na forma como transmitia isso. Nas filmagens do Brasil não há nenhum exotismo, porque eles não tiveram uma relação exótica com o Brasil, há, pelo contrário, uma relação sofrida. Isso foi uma aprendizagem do que é a paisagem de um exilado. O filme é também sobre o exílio. Eles sempre foram exilados, exilaram-se de todos os locais, e até a sua morte é exilada. Aliás, o filme começa com a sepultura que está num lugar de exílio. O último ponto do exílio é a pintura. Isso vê-se quando a Vieira está no Brasil e pinta a guerra na Europa. A arte é a única pátria.
Há um paralelismo com os dias de hoje e apesar de toda a evolução tecnológica, que nos deveria ajudar a evoluir, parece que regredimos. O filme também nos ajuda a refletir sobre isso…
Sim, esta é uma questão que está na ordem do dia. O mundo vai ser cada vez mais um lugar de exilados. As pessoas são obrigadas a deslocar-se para sobreviver. Podemos dizer que o exílio será, talvez, a condição pós-moderna, onde as pessoas quando nascem já estão no exílio. Nos dias de hoje também a internet é um lugar do exílio. O lugar onde se vive já não nos pertence. Por exemplo, em Lisboa é cada vez mais difícil ver a Lisboa da Vieira e do Arpad. Atualmente há um aspeto fulcral, a tecnocracia, que faz com que as pessoas que não vivem nesse mundo se tenham que exilar dele para sobreviver. O contacto com a tecnocracia é terrível, começou com o yuppismo nos anos de 1980, mas hoje assume uma dimensão tal onde, para mim, a figura mais emblemática é a do turista. O turista é a pessoa comum. Antes dávamos pelos turistas, hoje eles são a maioria. Nesse sentido, como é que alguém pode sentir que a Baixa de Lisboa é sua? Isso acabou. O filme pode ajudar um pouco a perceber aquilo que chamaria uma fenomenologia do exílio, isto é, aquilo que o exílio é para além de ser uma coisa que as pessoas temem. O exílio é uma condição que pode ser uma escolha de vida. Há uma série de movimentos de deriva, na América e na Europa, onde cada vez mais pessoas decidem passar o tempo todo a viajar, a mudar de sítio.
Realizou, ao longo dos anos, vários filmes de ficção. Pensou neste caso em particular fazer um filme biográfico, sem ser em formato documental?
Não, porque aquilo que era ficção na vida deles já existe. Há inclusive uma fotonovela, em que a Vieira faz um personagem chamada Joana que é pintora. Para mim não faz sentido acrescentar uma ficção à vida, mas sim, acrescentar um documento aos outros que já existem. Quando o artista se deixa filmar, não há mais nada a filmar. A ficção é mais um gadget. O personagem não existe, o que existe é a pessoa. O personagem é uma coisa da indústria. A ficção para mim tem a ver com a construção de um personagem. Aqui não é preciso. Eles foram tão fotografados, houve tanta vontade da parte deles de dar imagens… Tudo está lá, a pessoa, a personagem, é só seguir. A única coisa que tive de fazer foi escolher e definir um tempo.