teatro
Um manifesto coletivo contra o patriarcado
‘Another Rose’, de Sofia Santos Silva, no TNDM II
Entre o teatro documental e o musical, mas sempre assente na urgência do real, Another Rose, de Sofia Santos Silva, estabelece um pertinente diálogo entre o grupo ativista feminino indiano Gulabi Gang e três intérpretes em cena, a propósito da violência da sociedade patriarcal sobre as mulheres. O projeto, que há um ano valeu à criadora e atriz portuense a Bolsa Amélia Rey Colaço, está em cena, no Teatro Nacional D. Maria II, até 10 de julho.
Quando um colega lhe falou do grupo ativista Gulabi Gang, Sofia Santos Silva ficou fascinada pelo caso de ativismo feminista e procurou aprofundar o conhecimento sobre um conjunto de mulheres que, em vários territórios do norte da Índia “onde o acesso à educação é escasso e a discriminação de género assustadora”, se tornaram uma “alternativa às autoridades locais e tribunais” na defesa das mulheres.
“Na Índia, qualquer tipo de crime cometido por um homem sobre uma mulher, até os sexuais, acabam geralmente imputados à vítima que, supostamente, não terá cumprido o papel que lhe reserva a sociedade patriarcal”, observa a criadora e atriz. Como resposta a esta violência sistémica e banalizada e contra a discriminação generalizada, a ativista Sampat Pal fundou, na região de Uttar Pradesh, o Gulabi Gang, conseguindo reunir “mulheres que têm como missão investigar as incidências desses casos de crimes, onde quase sempre o agressor é ilibado e a vítima culpabilizada.”
Mas, como nota, há outra característica fascinante no ativismo do Gulabi Gang: “não havendo acesso a ferramentas de comunicação em massa, Sampat Pal começou por criar cânticos originais que as mulheres aprendem e, de boca em boca, vão transmitindo a outras que, assim, se vão juntando à causa.”
Inspirada por estes elementos, Sofia Santos Silva esteve tentada em conceber um espetáculo ainda mais musical, “mas, o que havia para dizer poderia tornar-se demasiado abstrato”, e Another Rose tinha que ter a urgência do discurso que interpela e afronta.
Contudo, a música (com direção de Martim Sousa Tavares, com quem Santos Silva já trabalhara em Carta, de Mónica Calle) tem presença marcante e o objeto artístico é, simultaneamente, poético e político, com a realidade da autora, e das mulheres que vivem em Portugal, a estabelecer “um diálogo” com as mulheres que daqueles locais remotos da Índia soltam o seu “cântico para serem escutadas.”
A realidade que desconhecemos
Recorrendo a entrevistas feitas especificamente para o espetáculo, o “grito de resistência” das Gulabi Gang encontra o seu espaço próprio em Another Rose, a par da “ficção” que Santos Silva construiu. Nela, três amigas reúnem-se numa cabana e escalpelizam a sua realidade enquanto mulheres. Deduz-se que uma delas é vítima de violência doméstica, e isso torna-se motor do drama. As três atrizes em cena (a própria autora, Catarina Carvalho Gomes e Cire Ndiaye) representam, segundo Santos Silva, “a necessidade de estarmos umas com as outras para combater o patriarcado e a opressão de género.”
“Foi este recurso ao mecanismo da ficção que permitiu encontrar o meu lugar de fala, ou seja, o lugar onde colocasse a minha realidade”. Inspirada pelas investigações que as Gulabi Gang empreendem em prol da defesa das mulheres, “decidi fazer o mesmo a respeito de procedimentos judiciais, decisões de tribunal e a própria lei portuguesa no que diz respeito a posicionamentos perante crimes de violência doméstica e sexual. Embora sejam realidades muito diferentes, acabei por ficar surpreendida e chocada perante o muito que desconhecia e se passa aqui.”
Projeto vencedor da quarta edição da Bolsa Amélia Rey Colaço, iniciativa anual promovida conjuntamente por A Oficina (Guimarães), O Espaço do Tempo (Montemor-o-Novo), Teatro Nacional D. Maria II (Lisboa) e Teatro Viriato (Viseu), Sofia Santos Silva consegue definir hoje Another Rose como “um manifesto coletivo de mulheres que clamam pela resistência e pela mudança, contra a violência de género.” Mesmo que esse coletivo de mulheres esteja separado por outra língua, por outros hábitos ou por milhares e milhares de quilómetros de distância, em comum, todas elas estão a lutar pela mudança, contra uma sociedade onde a preponderância da autoridade e mundivisão masculina persistem e causam danos, demasiadas vezes irreparáveis.