teatro
Setas de Cupido e vilões à solta nas Ruínas
'Muito barulho por nada', de William Shakespeare, no Convento do Carmo
É já uma tradição do verão lisboeta António Pires e a companhia do Teatro do Bairro tomarem de assalto as magníficas Ruínas do Convento do Carmo com grandes textos da dramaturgia mundial. Este ano, para delícia de lisboetas e de outros veraneantes, é Shakespeare quem está de regresso, com a divertida, mas melancólica, comédia de enganos Muito barulho por nada, na tradução de Sophia de Mello Breyner Andresen.
Depois de uma batalha vencida, D. Pedro, príncipe de Aragão, e os seus fiéis companheiros, os fidalgos Cláudio e Benedito, chegam à casa de Leonato, em Messina. Decidido a casar Cláudio, D. Pedro acorda com Leonato o matrimónio do amigo com a filha deste, a bela e virginal Hero. Contudo, surge o vil D. João, meio-irmão de Pedro, que, com a ajuda de um lacaio, urde um plano para pôr em causa a honradez e castidade de Hero e frustrar os intentos do irmão.
Entretanto, D. Pedro e Cláudio estão decididos a mostrar ao outro companheiro, o cético Benedito, as virtudes do amor e do desejo. Com a ajuda de Hero e de Margarida, sua dama de companhia, todos assumem o papel de Cupido, tentando que Benedito e a rebelde sobrinha de Leonato, Beatriz, se apaixonem. Mas, tal intento é bem mais árduo do que poderia parecer.
Assim se pode resumir em poucas palavras a génese da ação de Muito barulho por nada, a comédia de Shakespeare que António Pires e a companhia do Teatro do Bairro levam, a partir de 27 de julho, ao belíssimo cenário das Ruínas do Convento do Carmo, e que recupera “a bonita tradução que Sophia [de Mello Breyner Andresen] fez para o Teatro da Cornucópia em 1990.”
“Embora não tenha presente na memória muito do espetáculo, lembro sempre a beleza dessa tradução, com todo o preciosismo das palavras e a riqueza do vocabulário que a tornam muito bonita”, explica o encenador António Pires para justificar a opção. “Se Shakespeare já de si é tão bonito, nesta tradução ainda mais, mas como desejo sempre que o público saia do espetáculo percebendo tudo o que aqui se passou, suavizei alguns trechos, sobretudo no verso, para que o lado mais poético não disperse a atenção.”
E Muito barulho por nada, comédia em que as sensações desempenham um papel crucial, bem a exige para que, como alguns dos seus personagens, o mais incauto espectador não se deixe levar pelos enganos.
Talvez um deles, como lembra Pires sublinhando a complexidade do texto e das suas personagens, seja considerar a peça uma comédia sobre o amor. “Muito barulho por nada é, sobretudo, uma comédia sobre o casamento enquanto convenção social”. Basta ver como passivamente Hero aceita ser desposada por Cláudio, num acordo tácito entre D. Pedro e o pai da jovem, com a cena a conter um diálogo “profundamente misógino, bem capaz de alguns enfurecimentos nos dias que correm.”
Porém, Shakespeare depressa vai desmontar essa dose massiva de misoginia através de Beatriz, a personagem que, como observa o encenador, o Bardo pôs a anunciar “eu sou o bobo”, logo “a poder dizer, sendo mulher, tudo aquilo que só a um bobo é permitido”. Esta estratégia bem engenhosa “permite que possam ser colocadas em causa as convenções patriarcais vigentes na sociedade isabelina, através de um discurso quase revolucionário, libertário e até feminista.”
Por outro lado, Beatriz e Benedito, o par da peça sobre o qual as setas dos aprendizes de Cupido são lançadas e parecem constantemente falhar, acabam por representar a hipótese do casamento por verdeiro amor. Apesar de constantemente o negarem, de mentirem um ao outro, e da mentira fazerem arma de sedução, são eles que no final mostram como o amor pode ser revelador de todas as verdades.
Com interpretações de André Marques, Carolina Campanela, Carolina Serrão, Eduardo Frazão, Graciano Dias, Gonçalo Norton, Hugo Mestre Amaro, João Barbosa, João Sá Nogueira, João Veloso, Mariana Branco e Mário Sousa, Muito barulho por nada está em cena até 20 de agosto, de segunda a sábado, às 21h30.