teatro
Um brinde às memórias efabuladas
"Última Memória", de Sara Carinhas, no Teatro São Luiz
A atriz Sara Carinhas construiu um espetáculo-celebração em torno da relação com a memória, a dela e a de outros, inclusive a do próprio público, chamado a ter palavra logo no início. Mas, Última Memória é, acima de tudo, um exercício efabulatório para superar o medo de esquecer.
Embora haja a perceção de que o declínio é ainda um estado longínquo, Sara Carinhas teme que o esquecimento substitua a memória. Mas, Última Memória não pretende ser somente um exercício da atriz para lidar com a sua “cabeça distraída”, nem sequer com “a lembrança de uma avó com Alzheimer”. O espetáculo pretende, isso sim, ser uma celebração dos momentos em que a memória se torna “coisa de efabulações”, ou seja, “uma construção” que, no caso pessoal, encontra no “amor pelos livros ou nas fotografias” a matéria capaz de superar o medo de esquecer.
“Preocupa-me o modo como inscrevemos as memórias e a lógica que lhes damos”, explica, precisando o porquê deste espetáculo procurar ser muito mais do que um exercício de reconstrução das memórias pessoais, e interpelar diretamente o público a projetar e recriar as suas.
Nesse sentido, antes de entrar na sala, cada espectador é desafiado a escrever num papelinho a mais remota memória que lhe ocorre. E, não será surpreendente perceber como, minutos depois, essa partilha é assimilada pelo dispositivo narrativo que Carinhas criou em cena, com o apoio de “um conjunto de mulheres maravilhosas” – entre elas, na consultoria artística, Nádia Yracema e Sara Barros Leitão; nas filmagens e no apoio à dramaturgia, Joana Botelho; no som, Madalena Palmeirim; ou, na luz, Catarina Côdea.
Estamos, portanto, para lá de um monólogo em que o espectador é sujeito passivo na récita de uma atriz que efabula as suas memórias, inclusive as da artista que encarnou em palco mulheres que só existiam no papel, e lhes deu “voz, gesto e movimento”, e que, sem muitas vezes se aperceber, as foi tomando como parte de si. Por isso, coabitando com fragmentos da memória de Carinhas, lá vão surgindo ecos de Virginia Woolf (a “eterna autora-fantasma” da atriz), mas também fragmentos e recordações de um conjunto de autoras cujo pensamento se inscreveu no seu.
Numa construção sucessiva de memórias (dela, nossas, de outrem e até do próprio espaço, neste caso, o Teatro São Luiz) encadeadas num espécie de ritual celebratório, a atriz encena “uma festa” onde é anfitriã, enquanto cada um dos espectadores participa até ao “momento do brinde que é também uma confissão, um gesto de amor, um pedido de socorro”, conforme se lê na folha de sala do espetáculo.
Com estreia marcada para 22 de março no Teatro São Luiz, Última Memória está em cena até início de abril, de quarta a domingo.