Ana Quintans

"Na ópera, para além da voz, o cantor tem de ter presença e saber encarnar as personagens"

Ana Quintans

Ana Quintans, a mais internacional cantora lírica portuguesa, regressa ao Teatro Nacional de São Carlos para interpretar o papel titular na Alceste de Christoph Willibald Gluck, em cena de 19 a 27 de janeiro. Num momento de repouso, durante os ensaios, a soprano falou-nos deste novo desafio.

 

A Ana é licenciada em escultura, mas dedica-se ao canto. Procurando um paralelismo, podemos dizer que cantar ópera é modelar uma personagem em palco através do canto e da representação?

Podemos sim. É também um trabalho de criação. Dentro da interpretação temos um espaço enorme de criatividade para explorar. Se houve algo que retive do passado da escultura e da minha passagem pelas Belas-Artes foi o de ter criado as ferramentas suficientes para alimentar a imaginação que é necessária em ópera e em concerto. Até mais em concerto, porque na ópera temos um contexto que nos ajuda, no concerto estamos sozinhos. Precisamos de imagens e de experiências que nos alimentem essa imaginação e as Belas-Artes deram-me esse vocabulário de imagens tão importante para contextualizar, para me por na pele do “outro”. No fundo, par entender o “outro” e também para melhor me entender.

Não existe ainda a tendência para valorizar um cantor de ópera pelas qualidades vocais, mais do que pelo talento dramático?

Na ópera, desde há bastantes anos, o papel do encenador na escolha do elenco é cada vez mais forte e exige-se cada vez mais ao cantor que, para além da voz, tenha uma presença e saiba encarnar as personagens. Existe um grande poder dos encenadores no sentido de terem alguém talhado para o papel e, por vezes, estão até prontos a fazer algumas concessões musicais em prol da sua ideia da personagem.

Especializou-se no repertório barroco. Porquê?

Esteticamente, é o repertório com que mais me identifico. Quando me iniciei a ouvir música clássica, ouvia Bach, Haendel. Mas também houve um elemento casual porque quando comecei a trabalhar foi com orquestras barrocas e fui-me entusiasmando com o repertório. E há tanta coisa por fazer que nunca foi feita e por descobrir na música barroca. E partir de um repertório quase virgem permite uma criação maior e menos sobrecarregada de referências. O barroco tem uma liberdade que não encontramos nos outros estilos e eu gosto desse trabalho de completar uma partitura que não está terminada, que dá espaço para escolher uma interpretação e até selecionar os instrumentos com que tocamos.

“O barroco tem uma liberdade que não encontramos nos outros estilos e eu gosto desse trabalho de completar uma partitura que não está terminada”

 

No prefácio de Alceste, Gluck propunha-se reformar a ópera tornando-a num verdadeiro drama musical. Que renovação foi esta?

Foi compor a música em função da poesia, do texto. Sem recurso ao artifício, propondo um corte com alguma estrutura previsível do Barroco e alguma permissividade e virtuosismo dos cantores. Gluck queria abolir os excessos em prol de uma linha depurada que fosse direta à emoção. Cantar Gluck exige uma depuração da linha vocal e um lirismo ausente do Barroco.

Fale-nos de Alceste, a personagem que vai interpretar. Como a definiria?

A Alceste é uma mulher que se sacrifica pelo marido. Baseada no peso das interpretações da Alceste nos anos 50 e 60, tinha a ideia de uma heroína determinada e forte que enaltece a sua coragem e toma as rédeas do destino nas suas mãos,. Porém, quendo comecei a ler o libreto apercebi-me que a personagem é mais do que essa estatuária, essa rigidez. Entendo-a como uma anti heroína. Alguém, que não é uma heroína por natureza, mas que faz aquilo que deve fazer e acha que está certo. Toma a opção de se sacrificar como ultima saída. É, afinal, e isso é muito nítido na partitura, uma personagem que está sempre a bascular entre o medo e a coragem. É isso que a humaniza e que a faz avançar. No fundo, é uma personagem com uma certa fragilidade, apesar de toda a sua força e determinação.

Que desafios apresenta este papel?

É um papel muito tenso. Trata-se de uma personagem emocionalmente muito forte e o desafio é saber encontrar o equilíbrio perfeito entre o trabalho de atriz e o trabalho vocal.

Canta a Despina e disse que gostaria de interpretar a Suzana de Mozart. São papéis ligeiros que exigem uma grande vivacidade. Correspondem a outra faceta do seu temperamento?

Sim. Apesar de me sentir muito próxima da Alceste, de possuir uma natureza que me permite abordar este tipo de drama, a verdade é que eu sempre desempenhei papéis ágeis, vivos, picantes, jovens. Esses são até os papeis que me aparecem mais. A Alceste não é um papel que tenha a oportunidade de fazer todos os dias.

Desta nova encenação de Graham Vick, que aspecto gostaria de realçar?

A forma como aborda a personagem. Fui convencida a fazer o papel porque ele viu em mim a capacidade de o fazer, o que não é evidente para a minha voz. A ideia que ele manifesta de uma Alceste que não é necessariamente forte, mas que possui um lado frágil e vulnerável é o que me parece mais interessante e que, justamente, coincide com a visão que eu tenho.

Como convenceria alguém que nunca assistiu a um espectáculo de ópera a vir ver Alceste?

Para assistir a um espectáculo de ópera é preciso vir com disponibilidade para aceitar este tipo de linguagem. E no caso da Alceste, de aceitar a experiência de conviver com uma personagem teatralmente muito forte. Depois é preciso curiosidade, porque o tema do sacrifício, nesta perspetiva, não é muito comum. Mas, a música de Gluck vai direita à emoção, o que torna esta ópera muito comovente. Afinal, é isso que esperamos quando vamos assistir a um espectáculo, de nos sentirmos tocados, emocionados. Essa é, só por si, uma razão valida para vir ver esta Alceste.