Sob a égide de dois dos mais notáveis pintores venezianos do século XVIII, Canaletto (1697-1768) e Francesco Guardi (1712-1793), o Museu Calouste Gulbenkian volta a colaborar com o Museo Thyssen-Bornemisza, mais de uma década depois da exposição dedicada ao pintor francês Henri Fantin-Latour. Em Veneza em Festa. De Canaletto a Guardi estão reunidas mais de meia centena de obras das duas instituições, destacando-se a pintura e a gravura, mas também os livros (Veneza foi o maior produtor de livros de luxo do mundo), os têxteis, uma escultura de Antonio Corradini (1688 – 1752) e um notável modelo do Bucentauro, a aparatosa embarcação cerimonial do doge que surge representada em inúmeras pinturas da época, como se pode testemunhar, muito em particular, num soberbo Canaletto aqui presente.

Tendo como principal foco as muito celebradas vedute, ou seja, as vistas panorâmicas daquele que, nas palavras da curadora Luísa Sampaio, é porventura “o mais maravilhoso conjunto arquitetónico do mundo”, a exposição dá particular enfoque às representações das feste, nomeadamente as celebrações relacionadas com a Ascensão, muito ligadas à união da cidade ao mar, e aos sempre muito curiosos capricci, “arquiteturas fantasistas imaginadas pelos artistas”.

Ao longo do percurso expositivo, é inolvidável redescobrir a capacidade singular da pintura de Guardi em fixar a atmosfera da Sereníssima (uma certa intimidade, ou até “um traço de melancolia”, como observa António Filipe Pimentel, diretor do Museu Gulbenkian), através de um conjunto precioso de obras adquiridas por Calouste Gulbenkian (19 no total, que fazem do museu lisboeta o possuidor da maior coleção de pinturas do artista). Destacam-se especialmente três delas, recentemente restauradas e reconhecidas como das prediletas do colecionador: A festa da Ascensão na Praça de São Marcos, Regata no Grande Canal e As Comportas de Dolo.

Em contraste com o olhar de Guardi, o último dos vedutiste, um mestre anterior havia afirmado a pintura de vistas na Veneza do século XVIII. Através do rigor geométrico e da forma, a pintura de Giovanni Antonio Canal, dito Canaletto, ali está para revelar Veneza em todo o seu esplendor. Do museu madrileno, detentor de um dos mais relevantes conjuntos de obras de artistas venezianos do século XVIII, chegam os imponentes A Praça de São Marcos em Veneza, O Grande Canal Visto de San Vio O Bucentauro, ou quadros de menor dimensão, mas igualmente relevantes, como A Escola de São Marcos e Capricho com Colunata no Interior de um Palácio. Característica comum a todas estas pinturas, o olhar quase teatral que o artista lega às “cenas”, ou não tivesse Canaletto feito a sua formação com o pai, o cenógrafo Bernardo Canal.

Para além dos Canaletto, da coleção do Museo Thyssen-Bornemisza chegam ainda pinturas de outros mestres daquele período, como Michele Marieschi, Bellotto (a paisagem imaginada em Capricho com Rio e Ponte), Piazzetta (com dois retratos venezianos), Pietro Longhi (uma prodigiosa cena do quotidiano palaciano em As Cócegas) e um Tiepolo (A Morte de Sofonisba) de “pincelada rápida”, onde o artista cita deliberadamente As Bodas de Canaã de Veronese, como observa Luísa Sampaio. Afirmando a afinidade que Calouste Gulbenkian nutria pelas representações pictóricas de Veneza e o seu “gosto transversal” sobre o tema, a exposição inclui, a fechar, três pinturas do século XIX e início do século XX. De salientar ainda um conjunto de doze gravuras de Antonio Visentini segundo Canaletto, pertencente às coleções dos Musei Civici di Venezia, que ajudam a entender a popularidade (e o interesse comercial) que os vedute tiveram ao longo do século XVIII junto dos visitantes que os entendiam como postais ilustrados da outrora chamada “rainha do Adriático”.

Uma Veneza quase imersiva

Embora não seja, longe disso, uma exposição imersiva – até porque, como atenta Luísa Sampaio, nada como ter presentes “as obras de arte reais” – Veneza em Festa oferece ao visitante o verdadeiro “ambiente veneziano” através da reprodução dos sons da cidade, captados in loco, nomeadamente o dos sinos das torres e das igrejas da cidade e da água nos canais.

Como complemento, a exposição estreia no Museu Calouste Gulbenkian um novo recurso de mediação digital assistido por inteligência artificial. Através do chatbot Venez.I.A., os visitantes podem aceder através de smartphone a todo um conjunto de informações detalhadas a propósito das obras em exposição e curiosidades sobre a história de uma cidade milenar.

Ao longo dos próximos meses, destaca-se uma programação paralela que inclui visitas guiadas, oficinas e workshops, bem como dois concertos de música de câmara. O primeiro acontece já a 2 de novembro, com o Ensemble Alorna a interpretar peças dos venezianos Vivaldi, Albinioni, Galuppi e Plati.

Patente até 13 de janeiro, este maravilhoso “passeio pela pequena Veneza” agora instalada na Gulbenkian seguirá, ainda nos primeiros meses do próximo ano, para o Museo Thyssen-Bornemisza em Madrid.

“Danças e histórias entre a vida e a morte, a morte e a vida”, anunciam os atuais diretores artísticos do Alkantara Festival, Carla Nobre Sousa e David Cabecinha, no texto de abertura do programa deste ano. O histórico festival de artes performativas de Lisboa, fundado há mais de 30 anos por Mónica Lapa enquanto Danças na Cidade, e desde 2005 com a atual denominação, percorre uma dezena de palcos, dos institucionais CCB, Culturgest, Gulbenkian e São Luiz aos alternativos Casa Independente e Espaço Alkantara, passando pela Biblioteca Palácio Galveias, Casa da América Latina, Teatro do Bairro Alto e um antigo escritório em Marvila, agora nomeado Winter Garden.

Chegam da América do Sul, da Europa, de África ou do Médio Oriente, e são mais de uma dezena de manifestações artísticas onde “as vidas carregam o peso da violência, do luto, da injustiça”, mas também “a possibilidade de versões mais otimistas do futuro”. Enquanto programadores, Carla e David acreditam que, “quando as propostas dialogam entre si no conjunto do festival, apesar de tantas histórias de cansaço e desilusão, há uma possibilidade para a esperança”.

Assinadas por artistas originários da Amazónia colombiana, como Waira Nina, do inóspito e maravilhoso noroeste argentino, como Tiziano Cruz, ou de África, como Mamela Nyamza e os seus 10 intérpretes de diferentes origens étnicas, o festival compreende mais de uma dezena de espetáculos de excelência, dois programas com curadorias convidadas, conversas, filmes e “outros encontros”, onde se destaca um concerto dedicado à música de Gal Costa por Àkila a.k.a Puta da Silva, a 30 de novembro, na Casa Independente, no Intendente.

Alguns destaques

O festival começa quinze dias antes, na Culturgest, com A Noiva e o Boa Noite Cinderela, da artista brasileira radicada em Amesterdão Carolina Bianchi. Quando, em 2023, o espetáculo estreou, no Festival de Avignon, enquanto “capítulo primeiro” da Trilogia Cadela Força (que terá sequência em 2025 e conclusão no ano seguinte), o debate sobre violência de género e abuso sexual de mulheres ganhou forte protagonismo em eventos paralelos ao certame. Em causa, um objeto artístico perturbador, desconcertante e inovador que, partindo da história de Pippa Bacca – violada e assassinada durante a Bride on Tour, uma performance em que a artista e feminista italiana viajava, vestida de noiva, entre Milão e Jerusalém – começa por percorrer a história da arte, no formato de uma palestra onde se abordam representações e histórias verídicas de mulheres brutalmente violadas e assassinadas.

Se, na primeira parte do espetáculo, se instala o desconforto pela crueza das narrativas, na segunda, Bianchi desafia diretamente o público a descer ao inferno da violência sexual e do feminicídio, tomando uma mistura de “boa noite Cinderela”, também conhecida como “droga da violação”, e deixando o seu corpo vulnerável à mercê de oito performers.

“A Noiva e o Boa Noite Cinderela”, de Carolina Bianchi e coletivo Cara de Cavalo ©Christophe Raynaud de Lage

 

Se Carolina Bianchi e a sua companhia Cara de Cavalo prometem marcar esta edição do Alkantara Festival, é com o martirizado Médio Oriente em pano de fundo que chegam dois pequenos tesouros a descobrir: O corpo está aqui, fora de campo, de Alia Hamdan (Espaço Alkantara, 19 e 20), e Querida Laila, de Basel Zaraa (Biblioteca Palácio Galveias, de 22 a 30).

À hora em que escrevemos estas linhas as bombas continuam a cair sobre o Líbano. Quando Alia Hamdan apresentar esta performance em Lisboa, não o sabemos, mas tememos que as bombas continuem a cair na sua cidade natal, Beirute, e noutras do seu país. O corpo está aqui, fora de campo não é sobre os ataques israelitas à capital libanesa, mas será impossível não pensar neles quando, à nossa frente, estiver uma mulher de pé, próxima do seu duplo, enquanto uma voz narra a estranha experiência de um tempo em coma. O estado profundo de inconsciência em que mergulhou começou a 4 de agosto de 2020, quando uma fortíssima explosão na zona portuária “afetou a cidade como um todo, num único instante”. Segundo a autora, “esta performance é uma tentativa de retratar uma temporalidade congelada, gerada por aquele acontecimento”, refletindo sobre a ausência de responsáveis e de consequências políticas decorrentes desse acontecimento que varreu largas zonas da cidade, matou mais de duas centenas de pessoas e feriu milhares.

Quanto a Basel Zaraa, nasceu e foi criado num campo de refugiados palestinianos na Síria. Os seus avós foram expulsos da Palestina em 1948 e, desde então, a família de Zaraa nunca recebeu cidadania de qualquer outro país. Em 2010, este músico e artista de rua conseguiu chegar ao Reino Unido onde se fixou e foi pai de uma menina, a Laila. Certo dia, a filha perguntou-lhe onde cresceu e porque é que não podiam ir lá. Basel decidiu então construir uma maqueta da sua casa de infância em Yarmouk, perto de Damasco, naquele que chegou a ser o maior campo de refugiados palestinianos, hoje praticamente destruído. Querida Laila desafia-nos a pensar como “a guerra e o exílio definem espaços públicos e domésticos”, colocando cada um de nós no lugar da filha de Basel, sentados em frente à maqueta da casa, com os auscultadores de um velho walkman, descobrindo “objetos, fotos, sons e cheiros da história” de resistência e migração forçada da família da pequena Laila.

“Hatched Ensemble”, de Mamela Nyamza ©Mark Wessels

 

Outro dos destaques desta edição é Nigamon/Tunai (dias 16 e 17, no Teatro do Bairro Alto), espetáculo nascido da colaboração artística entre comunidades indígenas do Canadá e da Colômbia. As palavras que dão título a este “manifesto poético” significam, ambas, “canção” em anishinaabemowin e inga, respetivamente. A primeira, uma língua indígena do Canadá, de onde é natural a encenadora, escritora e atriz Émilie Monnet. A segunda, a língua de um povo homónimo que habita a Amazónia colombiana, terra natal de Waira Ninga, artista interdisciplinar que coassina, com a amiga canadense uma “peça performativa” onde os territórios de ambas – o norte e o sul – se entrelaçam num “valioso intercâmbio alimentado pelos conhecimentos vivos, as cosmogonias e as lutas que as unem”. Entre essas lutas, o facto de, no território do povo Inga, as empresas petrolíferas e mineradoras estarem a destruir ecossistemas inteiros para saquear recursos. Nomeadamente, o cobre, minério fundamental para a cultura Anishinaabe no Canadá, onde essas mesmas empresas depredadoras prosperam.

Incontornável, mais a mais quando o tema da imigração continua a marcar a agenda mediática, a mais recente criação de Keli Freitas Volta para a tua terra (21 a 23, no São Luiz Teatro Municipal). Nesta peça biográfica, a artista brasileira partilha o processo de autodescoberta desencadeado quando partiu em busca do rasto da sua bisavó Virgínia, portuguesa, natural de Torres Vedras. Estando há sete anos em Portugal, Keli assume a sua condição de imigrante para questionar o que é isso de ser cidadã de um país, como se exercem direitos de cidadania, como se define se uma terra é deste ou daquele. Ladeada em palco por Ana Gigi, amiga que conheceu já em Portugal e que também tem na sua genealogia uma história de migração, o espetáculo oferece uma reflexão sobre essa condição, desafiando conceitos estabelecidos de pertença e de identidade.

Dois programas convidados

Cartas do Fogo, pela plataforma Terra Batida, e Transmissão, pela BRABA.plataforma, são duas curadorias convidadas pelo Alkantara Festival para esta edição de 2024.

Na Casa da América Latina, a 29 e 30 de novembro, a Terra Batida, dirigida por Ritó Natálio, propõe “um diálogo com o pensamento indígena contemporâneo”, através de uma sessão onde pontuam Cartas do Fogo, leitura-performance de Ellen Pirá Wassu, poeta indígena do povo Wassu Cocal, e Ritó Natálio, escritor e performer, e a performance da artista indígena travesti amazónica Uýra Sodoma, O interesse da Amazónia não é na porra da árvore.

“O interesse da Amazónia não é na porra da árvore”, de Uýra Sodoma

 

A BRABA.plataforma, dirigida por Gaya de Medeiros, apresenta a sua terceira mostra, intitulada Transmissão, com três criações que “olham para as memórias através de perspetivas bem distintas, mas [que] desenham no presente narrativas que deslocam a nossa perceção sobre a identidade e a história dessas pessoas que vemos em cena”: Breves Notas sobre a Digestão, de dai ida, Ovos Crus, de Artemis Chrysostomidou, e o já referido concerto de Àkila a.k.a Puta Da Silva, Da Maior Importância.

Até 1 de dezembro, há ainda para ver Wayqeycuna, de Tiziano Cruz, “um olhar cru sobre o mercado de arte e o privilégio de classe” (CCB, 16 e 17); Hatched Ensemble, de Mamela Nyamza, uma desconstrução da dança clássica, que conjuga o ballet, as danças africanas e a contemporânea (Teatro São Luiz, 16 e 17); o jantar-performance com utopias no menu de Sonya Lindfors e Maryan Abdulkarim, Deveríamos estar a sonhar (CAM Gulbenkian, 23 e 24); o aclamado A Vida Secreta dos Velhos, de Mohamed El Khatib, onde um elenco com mais de 80 anos assume como é viver o desejo sexual na velhice (Culturgest, 23 e 24); 52 Blue, performance de Francisco Thiago Cavalcanti inspirada no comportamento das baleias (TBA, 23 a 26); e Mike, uma performance duracional sobre um dia de trabalho num escritório pela consagrada performer Dana Michel (29, 30 de novembro e 1 de dezembro, em Marvila). Menção ainda para a exibição dos filmes Side Trip, do coletivo japonês Chim↑Pom from Smappa!Group, filmado em Marvila há um ano (CAM Gulbenkian, 27 e 30), e Blackface, o documentário, de Heverton Harieno sobre o espetáculo homónimo de Marco Mendonça (Espaço Alkantara, 1 de dezembro). Fora de portas, na Casa da Dança, em Almada, a bailarina e coreógrafa Vânia Doutel Vaz abre portas ao processo de criação de Violetas, espetáculo a ser apresentado na edição de 2025 do festival (30 de novembro).

Em suma, fazendo jus ao significado do seu nome, o Alkantara anda há mais de três décadas a “construir pontes entre artistas e públicos, entre geografias, culturas e expressões artísticas”, e este ano não será diferente. Sobretudo porque, olhando ao estado do mundo, elas nunca terão sido tão indispensáveis e urgentes.

“Como se atrevem?”. A pergunta gritada no palco, logo no início do espetáculo, lança o mote. “Roubaram os meus sonhos com as vossas palavras vazias. Aqui e agora é onde traçamos a linha.” Urgência Climática, a nova peça da companhia Hotel Europa, junta em cena cinco jovens ativistas pelo clima, com as suas histórias, as suas motivações e reivindicações. “Estamos perplexos com o que está a acontecer no mundo e interessava-nos o ponto de vista das pessoas que deixam a vida quotidiana para se colocarem em situações de risco”, explica André Amálio, que partilha a criação com Tereza Havlíčková.

O que os leva a agir e a enfrentar as consequências nem sempre agradáveis foi o que quiseram saber. Para isso, seguindo o caminho do teatro documental que desenvolvem na Hotel Europa, fizeram trabalho de campo durante um ano e meio. Conduziram entrevistas com especialistas em várias cidades do país, ilhas incluídas, e também em Itália e na Chéquia; falaram com pessoas noutros lugares do mundo e conheceram as suas lutas; descobriram ativistas “em escolas, na indústria da moda, em movimentos sociais, organizações políticas”.

Tudo isso está em Urgência Climática, que se vai construindo através das histórias das cinco pessoas em palco. Andreia Galvão foi a primeira a entrar no projeto, ainda antes das audições para artistas-ativistas ou interessados pelo assunto, que trouxeram as atrizes Yolanda Santos e Matilde Graça, o bailarino João Oliveira e o músico Vicente Silvestre. Com eles chegaram também as causas das organizações Greve Climática Estudantil, Climáximo, Red Rebels, Extinction Rebellion, Unidos em Defesa de Covas do Barroso, ANIMAL, Planet Save e FALA, a que se têm entregue nos últimos anos.

“Já não temos paciência”

Na primeira pessoa, contam-nos as suas histórias, mostram-nos as suas estratégias, revelam como fazem os treinos para as ações que levam a cabo, defendem as suas causas. Yolanda fala da culpa que sentem – “porque achamos que nunca fazemos o suficiente” –, Andreia narra, de forma quase inocente, a vez em que foi presa e a obrigaram a despir totalmente e a agachar-se só porque pediu para ir à casa de banho, Matilde descreve como um condutor enfurecido arrastou a sua irmã gémea pelos cabelos para a tirar do meio da estrada durante um dos protestos de desobediência civil.

“É importante haver sítios onde podemos falar sem mediação. O palco é um espaço para mostramos e depois o público pode formar a sua opinião. Muitas vezes, somos pintados como terroristas, quando estamos só a lutar pelas causas em que acreditamos e que deviam ser de todos”, diz Andreia. Yolanda reforça a ideia: “Acredito que ver histórias reais humaniza os ativistas, traz-nos humanidade e credibilidade. Porque podia ser qualquer pessoa sentada na plateia a estar aqui. Além disso, quem vem ao teatro chega mais disponível para nos ouvir do que quando está em casa a ver televisão ou no carro parado no meio do trânsito.” Dar palco a estas vozes era fundamental, acredita André Amálio. “Os problemas do clima não são culpa dos ativistas, os maus da fita não são eles e, muitas vezes, olha-se mais para os constrangimentos que causam do que para o problema que estão a combater. Devíamos estar todos a lutar pelo mesmo: a sobrevivência do planeta em que vivemos”.

Com cartazes feitos de cartão, o público é desafiado a juntar-se à causa. “Pelo clima, justiça e emprego”, “O planeta tem urgência, já não temos paciência” ou “Lutar pela nossa casa” são algumas das palavras de ordem passadas para os espectadores. “Espero que as pessoas percebam que o clima e a sua defesa também estão nas nossas mãos. O poder é nosso e somos nós que temos de o conquistar. A mudança só acontece se tomarmos parte nela”, defende André Amálio.

“O que é que precisamos de fazer mais?”, perguntam. Se todas as ações de desobediência civil não têm funcionado, talvez uma peça de teatro contribua para melhorar o mundo.

“Não é estranho? Só conseguimos ver o exterior, mas quase tudo acontece no interior.” A frase aparece escrita por cima da cabeça de um rapaz, como se fosse um pensamento. Vestido de amarelo e de cor de rosa, panamá na cabeça, meias e chinelos, ele olha para nós e sorri muito. Tem um sorriso estranho, talvez um pouco tétrico, e a sua imagem está sempre a piscar. É um dos vários personagens de O Centro do Mundo, o novo espetáculo de Ana Borralho e João Galante, que se passa praticamente todo dentro de uns óculos de realidade virtual e que se estreia no Teatro do Bairro Alto esta terça-feira, 22, e ali fica até ao dia 25 de outubro.

Depois de entrarem numa instalação de luz e som, de se sentarem numa cadeira giratória e de porem os óculos, os 28 espectadores hão de ver aproximar-se um conjunto de figuras que podiam ter saído do TikTok e dos vídeos que pululam, por estes dias, na Internet. Olham-nos de longe mas sobretudo de perto, falam connosco e rodeiam-nos de tal forma que nos sentimos transportados para uma realidade paralela de pessoas tão perdidas quanto irreais.

Ana Borralho e João Galante continuam a levar para o palco o seu olhar sobre as novas tecnologias, aquilo que consideram ser, como diz o título, O Centro do Mundo. Depois dos espetáculos Romance Familiar ou a realidade aumentada (2019) e Chatroom (2023), primeiras incursões neste universo, inventam agora um espetáculo cujo processo de criação implicou um mergulho profundo na Internet e nos vídeos que aí existem, assim como todo um rol de siglas, conceitos e tendências.

Enquanto Marco Mendonça interpreta o tal rapaz de sorriso misterioso, Maria Antunes faz de NPC, um non-playable character ou personagem não-jogável, figura de movimentos robóticos que existe nos jogos eletrónicos e que, em muitos vídeos, é imitada por humanos. “Fiquei muito, com muito medo de que algo muito mau estivesse prestes a acontecer, e por isso tive de pôr vídeos calmantes de aquários”, revela em voz off.

“O que encontrámos e o que criámos aqui pode ser uma espécie de limbo, onde aqueles seres são alguma coisa entre o fantasma e o zombie, que têm uma existência no mundo através das redes sociais, são seres fabricados, não reais”, aponta Ana Borralho. João Galante acrescenta: “Isto parece um apocalipse de zombies, um conto fantástico muito real. É a nossa versão da Alice no País das Maravilhas”, ri-se.

Por ali, fala-se quase sempre em sussurro, como os melhores criadores de vídeos ASMR (Resposta Sensorial Autónoma do Meridiano), aqueles onde se produzem sons que são suposto relaxar quem os ouve, através de vozes suaves, movimentos lentos com as mãos, barulhos feitos com a boca ou batendo delicadamente em objetos. Ana Freitas, Gustavo Sumpta, Inês Cóias e Joana Bernardo são os atores que dão corpo aos restantes personagens de O Centro do Mundo e que vão vagueando à nossa volta: uma mulher sexy que tem uma mão a tremer, “demasiado especial e inteligente”; um homem perdido, coberto de tatuagens, qual anjo negro; uma rapariga que acredita que vai ser tudo e deita lágrimas que impressionam; uma menina que luta para entender quem é e que nos olha fixamente com os seus grandes olhos azuis, como se tivesse chorado sangue.

“As pessoas partilham a sua vida pessoal nas redes e no TikTok fazem-nos através de vídeos e isso pode ser muito tocante. Por outro lado, é tudo produzido para esses vídeos, ninguém sabe o que é real e o que é ficção. E até que ponto somos avatares de nós próprios?”, interroga-se João Galante.

Ainda vamos a tempo?

Para criar este universo, a dupla inspirou-se também nas fotografias cruas que o norte-americano Bruce Gilden tem captado pelas ruas de Nova Iorque e outras cidades. “Queríamos uma estética um pouco pop trash, como se fosse uma pintura hiper-realista. É como se isto fosse um aumentar da realidade”, descreve Ana Borralho, falando da opção pelas cores fortes nos figurinos, dos lábios muito pintados de vermelho, dos olhos rodeados de tons intensos. Ingredientes que sublinham ainda mais este “mundo fantástico, mas aterrador e cheio de desespero”.

Afinal, o que diz tudo isto sobre nós? “É o sítio onde estamos”, constata João Galante, “por muito que isto nos possa divertir, há um lado de um coletivo bastante perdido e desesperado. Toda esta tecnologia pode-nos ajudar a centrar, mas é também onde nos perdemos e nos tornamos zombies. Coletivamente, vamos alimentando esta máquina do capitalismo, pensando que estamos a viver. Somos reais, mas passamos tanto tempo nisto que nos perdemos e já não nos encontramos.”

O mundo real está em risco de se perder no virtual?, voltam a questionar os artistas com este espetáculo. Haverá ainda uma linha definida a separar a realidade virtual e a experiência humana? “Está tudo bem, está tudo bem, podes sempre ligar-me, eu posso consertar isso”, garante esta NPC de tailleur azul e cabelo rosa, numa letra que já quase não se consegue ler. Depois, ainda vamos a tempo de tirar os óculos e de olhar para os outros espectadores sentados na sala.

No início, há apenas silêncio. Os intérpretes vão entrando e olhando para os espectadores na plateia. De volta, recebem os olhares do público. É dessa relação que se faz Ruído, o espetáculo de Sofia Dias e Vítor Roriz, que está na Culturgest entre esta quinta-feira, 10, e sábado, 12 de outubro. Não será por acaso que não há som nestes primeiros minutos – mesmo que o título nos remeta exatamente para o oposto. “Gosto da ideia de provocar esse choque inicial, acredito que dá mais espaço a quem está a ver para aceitar, para estar no presente”, nota Vítor. “Sim, a partir desse presente, entramos na ficção e damos lugar a um imaginário em conjunto. Este espetáculo acaba por ser também uma ode ao lugar do Teatro, onde cabem muitas ficções e onde cabem muitos gestos e movimentos, onde há mistério, e onde não sabemos o que vamos encontrar, mas onde vamos à mesma porque precisamos de ir e de estar, porque precisamos de nos desdobrar”, acrescenta Sofia.

As primeiras palavras são ditas em inglês: “What do you see?” A tradução chega numas legendas escritas em pequenos papéis e colocadas à mão, uma a uma, num retroprojetor. “O que vês?”, “Um corpo?”… Os bailarinos vão descrevendo os seus gestos e dando várias possibilidades de leitura. “Quantas palavras cabem num gesto?”, interroga-se Sofia, lembrando que um movimento não tem de ter um significado apenas e que o público menos habituado à dança se sente constrangido com a obrigação de explicar o que vê. “Como quebramos isso, como convidar e dar as boas-vindas à multiplicidade da perceção de um movimento?”, continua. Em cena, os bailarinos despojam-se de virtuosismos, de movimentos complicados e de camadas e assumem a presença dos seus corpos e das suas fragilidades frente a um público. “É bom estar num lugar e não saber”, há-de ouvir-se mais à frente durante o espetáculo. Antes disso, já a atenção se virou para a plateia, já a “massa abstrata e difusa” se revelou em caras, sonhos, expressões, gestos, vontades, e se convocaram os espectadores a – metaforicamente – subir ao palco. “É uma sensação de pertença, de que também eles podiam estar aqui em cena, um convite à imaginação, a pensarmos como vivemos o presente e como o vamos preencher. Isso acontece em todos os nossos espetáculos, mas aqui é um assunto”, afirma Vítor. “Aqueles corpos convocam a humanidade, é um apelo à empatia”, resume Sofia.

O extra poder da dança

O que há de ruidoso neste espetáculo, então? O título, explicam, surgiu já a meio do processo de criação, que foi acompanhado por cientistas do Center for the Unknown da Fundação Champalimaud, onde a dupla está em residência artística desde 2023 e até ao final deste ano. “O espetáculo não partiu desses encontros, mas fomos tendo muitas conversas, eles assistiram a ensaios e muitas das ideias que acabámos por desenvolver vieram dessas partilhas”, conta Vítor. “Ao vermos as reações deles voltámos a lembrar-nos de que a dança é uma coisa extraordinária, na qual podemos pôr tanta coisa num movimento só, e que os bailarinos têm tantas competências a que já nem prestamos atenção: a forma como ocupam o espaço, a sincronização, a escuta do outro, a improvisação… É quase um extra poder, há algo de muito especial na dança mesmo e, no palco, estamos num lado mais poético e mais livre do que na investigação científica”, diz Sofia.

O diálogo com a neurociência fez com que percebessem que o ruído é essencial à existência e à aprendizagem. “Precisamos do ruído para acedermos ao sinal. Anular o ruído é anular a nossa capacidade de compreensão”, sublinha Sofia. Tudo depende, então, do lugar para onde viramos a nossa atenção, porque há muito de periférico que é, afinal, essencial. O chiar das cadeiras da plateia, o barulho da porta a abrir e fechar, os sapatos na alcatifa do chão da sala, a presença do outro ali mesmo ao nosso lado – não haverá, enfim, tanta beleza no ruído?

Lisboa voltar a ser abalada por um grande terramoto é algo plausível. Há apenas uma questão: quando? De que forma esta ‘inevitabilidade’ se transformou num filme?

Sou de Lisboa e desde miúda que ouço esta história. A nossa maior referência em Lisboa, em termos deste tipo de eventos, é o grande Terramoto [de 1755]. Foi sempre uma coisa que me inquietou a todos os níveis, não só para o cinema, mas também para o planeamento de uma cidade. Isto fez com que, desde há muitos anos, quisesse realizar um filme baseado nesta premissa: “E se acontecer outra vez?”. Não é tanto fazer um filme catástrofe, porque isso não me interessa, nem é o tipo de cinema que me importa explorar, mas fazer uma coisa baseada na possibilidade de voltar a acontecer. E a verdade é que, falando com uma série de cientistas, a certeza é de que vai acontecer outra vez, só não sabemos quando. Esse é o tagline da campanha do filme: “se voltar a acontecer”. Decidi então explorar esta ideia neste filme.

Mas, houve uma informação real que a impulsionou…

O que aconteceu foi que, na altura em que voltei a pegar na ideia, surgiu a notícia de que um grupo de cientistas ia efetivamente trabalhar com o Governo na instalação de novos cabos submarinos com uma série de sensores que permitem o estudo do fundo do mar em tempo real. Resolvi trabalhar com esse grupo de cientistas para desenvolver a ideia.

Este não é um filme catástrofe, mas sim, um filme presságio?

(Risos) Sim, pode ser. Talvez não no nosso tempo de vida, não sabemos.

Porquê o título O Melhor dos Mundos?

O Melhor dos Mundos vem de uma frase da Teodiceia de Leibniz, aliás, é a citação com que o filme começa, em que o filósofo diz que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Isto acaba por ter uma ligação, ainda mais interessante, ao Voltaire que pega nessa ideia e a desconstrói no conto filosófico Cândido, criando a personagem de Cândido, o otimista, que, por mais tragédias que aconteçam, acredita que vivemos no melhor dos mundos, porque na realidade é o único que existe. Ou seja, para nós, terráqueos, não existe outra possibilidade senão a de viver neste mundo. E, nesse sentido, este é sempre o melhor dos mundos. O livro foi escrito no rescaldo do Terramoto de 1755. Depois disso, tudo foi posto em causa. Era a época do iluminismo, e Voltaire acabou por satirizar a teoria de Leibniz na sua famosa narrativa.

Atualmente ainda não conseguimos prever sismos e estes acontecem, independentemente, das nossas ações. No entanto, temos muita informação sobre o impacto humano nas alterações climáticas, mas continuamos a viver de forma muita egoísta. O filme também procura refletir sobre esta ambivalência?

Nós como espécie não estamos preparados para fazer uma grande mudança, seria preciso uma mudança radical. Ninguém está preparado, são coisas que demoram séculos. Assim como demorámos séculos, ou milénios, para chegar onde chegámos, também vamos demorar milénios a voltar a outra coisa. O filme não trata só deste caso concreto do terramoto, mas também serve para refletir sobre outro tipo de questões, nomeadamente, como é que as pessoas lidam com situações extremas. Por outro lado, também são abordadas questões mais profundas da humanidade que refletem a divisão entre os que querem realmente fazer alguma coisa e os outros, os que estão sempre a protelar.

A questão do aleatório, do acaso, é algo presente neste filme, mas também já o era na sua primeira longa-metragem, Linhas Tortas. Esta é uma questão sobre a qual gosta de refletir?

Sim, é uma das grandes questões que me interessam e que gosto de explorar. O acaso, a dúvida, o não estar nas nossas mãos o que pode acontecer. Isto acontece quer a uma escala maior como é o caso de um terramoto, mas também a um nível mais pessoal, nos encontros e desencontros do dia-a-dia.

Parece haver um paralelismo entre a história do terramoto, o processo de investigação científica, as incertezas, as dúvidas e a relação amorosa dos protagonistas. Concorda?

Sim, o processo de estudo científico do terramoto acaba por espelhar esse lado amoroso. Reflete a relação de encontro e desencontro dos protagonistas.

A dúvida sobre como melhor agir, o que é ético fazer e a possibilidade das previsões não se cumprirem, levam a uma discussão no seio do grupo de trabalho dos cientistas. Vivemos em constante alarmismo, numa sociedade que não permite falhas. Quis também abordar esta questão?

Sim, no filme há a questão concreta do terramoto, da possibilidade de este acontecer, mas na verdade estamos a falar de todas as questões que se levantam com a informação científica que temos. Como aconteceu, por exemplo, na pandemia. Se calhar o alerta que foi dado a partir da China foi tardio. Quando estava a acontecer, pode ter havido uma reunião parecida com a que acontece no filme, onde se questionou: avisamos ou não avisamos? Se calhar avisaram tarde demais. E quando avisaram, a pandemia já estava fora de controle.  Mas isto pode acontecer noutras situações. Quando as pessoas têm uma informação tão grande nas mãos, o que é que fazem? Mesmo em situações de intimidade, no seio familiar ou entre amigos, pode surgir essa dúvida. Tais questões éticas surgem quando se está perante uma situação muito grave e isso pode acontecer quer na intimidade, quer a nível global.

Como foi feito o casting? Já tinha em mente os atores que interpretariam os cientistas Marta e Miguel?

Tanto trabalho com convites diretos a atores, como opto por um processo tradicional de casting. Neste filme quando comecei a desenvolver a ideia, pensei na materialização do argumento e da história e comecei logo a idealizar os atores, sobretudo o par protagonista. Quem será esta Marta, quem será este Miguel? Pensei na Sara Barros Leitão e essa ideia foi-se consolidando, porque conhecia o trabalho dela e por saber que, como pessoa, tinha também uma série de características que se colavam bem à personagem. Para mim, ela era a Marta. Tive a sorte de a convidar e dela aceitar e por isso não precisei de pensar num plano B. O Miguel Nunes já conhecia, já tinha trabalhado com ele. A parte complicada é conciliar agendas, mas correu bem. Já as personagens secundárias passaram por um processo de casting e, no fim, conseguimos ter um bom grupo de atores.

Existe um gap de cinco anos entre os dois trabalhos que fez para cinema. Pretende continuar a fazer cinema?

Fiz muito publicidade. E fiz a série televisa Madre Paula que foi pensada com uma premissa mais ligada ao cinema. Neste momento tenho vários projetos em desenvolvimento, em diversos formatos, ainda não financiados, em processos de candidatura. Para se conseguir fazer um filme há um longo caminho, é um procedimento difícil, mas inevitável. Mas sim, o cinema faz parte do trabalho futuro. Foi com a ficção que comecei, a primeira curta é de 1997. Sempre tive um pé no cinema, um pé na publicidade e considero todos os formatos igualmente interessantes.

O que Leonardo tem para partilhar só poderia ser feito num lugar seguro, como um jardim (aqui, o de inverno do São Luiz, hoje Sala Bernardo Sassetti), onde se instala uma tenda feita de toalhas de mesa e lençóis bordados, saídos ora das mãos mágicas de artesãs dedicadas, ora do anonimato em série das fábricas de têxteis. Comenta o autor e ator que “são um trabalho magnífico da Tati[ane] Oliveira e da Margarida Silva, a representar uma manta de retalhos de coisas novas e antigas, como uma história de vida. Há enxovais, Feira da Ladra, mas também há Ikea,” esclarece Garibaldi.

Por falar em história de vida, é isso que Leonardo se propõe contar a partir da sua chegada ao dia de hoje, o seguinte a ter completado 30 anos e ter deixado de ser jovem. Sendo agora um adulto, “já não basta fugir para debaixo das saias da mãe”, portanto, eis chegado o momento de enfrentar a ideia de que a partir daqui estamos por nossa conta.

Mas é preciso perceber como se chegou aqui, sabendo que a vida é, muitas vezes, repleta de sonhos desfeitos, carregada de dores de crescimento e, no caso, de músicas, porque Leonardo sempre quis ser cantor e, para ele, ainda hoje, a uma música corresponde uma memória.

Boas ou dolorosas, as memórias trazem canções que contam a história do agora adulto Leonardo desde o dia em que se sentiu verdadeiramente triste pela primeira vez: completava cinco anos de idade e ninguém apareceu para festejar.

O Billie Elliot da música

Nascido há 30 anos no interior de Portugal, Leonardo anunciou em criança que queria ser cantor, porque sonhava, um dia, ouvir as suas músicas a passar nas telenovelas. O sonho de ser cantor pop trouxe-lhe agruras, não só perante a incompreensão dos amigos na escola, como da família, sobretudo o pai que, olhando para o filho, apenas via deceção.

Tal como a história do adolescente inglês que, enfrentando preconceitos e contrariando a vontade da família e a expectativa da comunidade, trocou o pugilismo pelo ballet num famoso filme de Stephen Daldry, Leonardo sentiu-se “o Billie Elliot português, mas da música”, e veio estudar para Lisboa. A aventura começou, mas continuava a tristeza.

“Podemos dizer que Last Call é uma autoficção, com muita coisa minha, mas onde a maior parte são memórias completamente ficcionadas”, esclarece Leonardo Garibaldi, logo após um intenso ensaio. “É um espetáculo que andei a pensar durante dois anos, quando senti que ia chegar aos 30 e atingir a idade adulta. Como artista, quis descobrir uma identidade que fosse como que um paralelo à vida.”

Tendo como público-alvo os alunos do terceiro ciclo do ensino básico e ensinos secundário e superior, Last Call aborda muita da vivência juvenil, com especial ênfase para os dilemas da aceitação, o bullying escolar e a homofobia. Se o tom é muitas vezes grave e depressivo,  o espetáculo tenta deixar muito presente que “não adianta alimentar a vitimização”. Embora Leonardo esteja triste porque deixou de ser jovem, “há que levantar os olhos e perceber o que há de bom à nossa volta.”

Esta produção do grupo Os Possessos está em cena, para o público em geral, até 6 de outubro, sempre às 19 horas. Em 2025, o espetáculo passa por Cascais e pelo Centro Cultural Gil Vicente, no Sardoal, terra natal de Leonardo Garibaldi.

Jorge Mangorrinha e Abel Soares da Rosa

Canções de Liberdade

Com o subtítulo A Política Cantada em Portugal e no Mundo (1964-1974), o presente livro, à semelhança dos discos de vinil, divide-se num Lado A e num Lado B. Na primeira parte, Jorge Mangorrinha produz uma ampla análise da produção musical e fonográfica deste período, culminando com uma abordagem do seu legado nos dias de hoje. Na segunda parte, Abel Soares da Rosa apresenta uma criteriosa seleção de 50 canções e 50 discos ilustrativos da temática em diversas culturas e diferentes géneros musicais. A opção pelo termo canções de liberdade, ao invés de outros mais comuns, como canções revolucionárias, políticas, de autor, de texto, de resistência ou de protesto, por exemplo, parte da busca de uma expressão que melhor possa definir “uma canção que perpassa diferentes géneros musicais. Não pertence apenas a um movimento intelectual, nem a uma expressão exclusivamente política”. Produto de uma investigação vasta e inédita que não se confina às geografias habituais, mas que se atreve a desbravar novos territórios como os Países de Leste, a Escandinávia, o Médio e o Extremo Oriente, a União Indiana, a Oceânia ou o Continente Africano, este é um livro para “ouvir” repetidas vezes: do Lado A e do Lado B. Caminho

Héctor Abad Faciolince

Salvo o meu coração, tudo está bem

O padre Luis Córdoba (o “Gordo”), amável e culto, necessita de um transplante cardíaco para sobreviver. Hospedado em casa de uma italiana, mãe de dois filhos, servida por uma mulata colombiana, aguarda um dador compatível. Obrigado a prescindir dos prazeres da cozinha, sujeito a uma rigorosa dieta, mantém a paixão pela música clássica e pelo cinema como forma de ligação à vida. Durante a longa espera, rende-se aos encantos da vida familiar e apaixona-se pelas duas mulheres: a italiana provoca-lhe um profundo amor espiritual; a colombiana, um vigoroso amor carnal. Sonha então, quando receber o novo coração, em mudar de vida, renunciar ao celibato e casar com as duas que “somadas representam o amor completo”. Este parece um tema algo improvável para um romance ambientado nas últimas décadas do seculo XX, na violenta e problemática cidade de Medellín. O narrador justifica-o com a pretensão de “estabelecer um contraste que servisse de parábola da vida colombiana. (…) Tínhamo-nos acostumado a viver num matadouro de sicários, ladrões, mafiosos, guerrilheiros, paramilitares, políticos corruptos, soldados e policias sem entranhas nem escrúpulos. (…) O que era verdadeiramente estranho, era a bondade, e o Gordo era um caso insólito e exemplar disso, de um homem bom no meio do terror e da maldade.”  Alfaguara

Paul Valéry

O Governo da Máquina

Paul Valéry (1871-1945), um dos grandes intelectuais do século XX, amigo de Mallarmé e de Gide, foi ensaísta, filosofo e poeta – o último grande poeta simbolista. Um desgosto amoroso levou-o a abandonar a poesia e a dedicar-se ao estudo da matemática, da filosofia, da linguagem e da música, investigando aprofundadamente as ligações entre ciência e literatura. Incentivado por Gide, regressa à poesia e publica a partir de 1917 a sua melhor obra poética: La Jeune Parque (1917), Le Cimetière Marin e Album de Vers Anciens (1920) e Charmes (1922). “Das inteligências vivas, umas gastam-se a servir a máquina, outra a construí-la, outras ainda a planear ou prepara uma mais potente; uma última categoria de espíritos gasta-se a tentar escapar ao domínio da máquina”, escreveu Valéry em 1925.  A pedido da publicação La Revue de France, Paul Valéry escreveu um artigo no qual expunha as suas reflexões sobre uma eventual crise da inteligência face à progressiva mecanização da sociedade. O ensaio O Governo da Máquina resulta dessa reflexão visionária que, um século depois, quando a revolução digital é já imparável e a inteligência artificial suscita um profundo debate ético e legal, mantém intacta a sua espantosa oportunidade. Orfeu Negro

Tove Ditlevsen

Os Rostos

Tove Ditlevsen, uma das vozes mais originais e importantes da literatura dinamarquesa, nasceu em Copenhaga e cresceu no bairro operário de Vesterbro. As experiências de infância, os quatro casamentos seguidos de divórcio, a tensão entre a vocação de escritora e os papéis de filha, esposa e mãe, a luta contra o abuso de álcool e drogas, os problemas de saúde mental e os vários internamentos em hospitais psiquiátricos, são temas recorrentes nos seus livros, que vão do romance ao conto, passando pela poesia e pelo género autobiográfico. Tove Ditlevsen acabaria por se suicidar em 1976, aos 58 anos. Em Os Rostos (1968), Lise, escritora de livros infantis, casada e mãe de três filhos, vê-se progressivamente dominada por terríveis assombrações em forma de vozes e de visões que lhe desestabilizam a vida quotidiana. Os rostos que a rodeiam, até aí familiares, surgem-lhe “sempre a alterar-se, como se ela os visse refletidos em águas agitadas”, “num número infinito de variações”, “como máscaras de carnaval feitas de um cartão que se rasgava e humedecia”.  O romance reproduz admiravelmente as mudanças de perceção de Lise e, à medida que esta se sujeita aos tratamentos hospitalares e à medicação, desenvolve uma perturbante interrogação sobre o potencial efeito libertador da loucura. Dom Quixote

Victor Correia

Sexualidade e Erotismo na Bíblia Sagrada

“Há mandamentos sexuais na Bíblia, mas na prática quase todos esses mandamentos são quebrados. Heróis bíblicos como Abrão, Moisés, David, Sansão, entre muitos outros, violam os mandamentos dos livros do Êxodo, do Deuteronómio e do Levítico sobre sexualidade”, escreve Victor Correia, doutorado e Filosofia Política e Jurídica pela Universidade Sorbonne, em Paris. O autor acrescenta: “(…) a bíblia tem muitas e diferentes versões de ética sexual, contraditórias entre si”, salientando ainda: “(…) é um livro que foi escrito por seres humanos, com as suas fraquezas, os seus desejos, as suas visões e as suas formas de ver o mundo, condicionadas pelo seu tempo e pelo seu país (…)”. De facto, a Bíblia não é, como muitas vezes se pensa, um livro assexuado. Só no Livro do Genesis, por exemplo, existem cerca de trinta e cinco histórias com temas sexuais. Este livro oferece-nos uma ampla seleção de histórias sexuais vividas por patriarcas, profetas, reis de Israel, sacerdotes e outras grandes personagens da Bíblia, que envolvem poligamia, incesto, prostituição, adultério e homossexualidade. Uma pormenorizada investigação sobre a Bíblia que convida o leitor a descobrir um conjunto de histórias sobre sexo e erotismo quase desconhecidas, depois de séculos a serem camufladas pela Igreja. Guerra & Paz

Stephen King

Carrie

Há 50 anos, Stephen King começou a escrever um texto para uma revista masculina. Insatisfeito, atirou as páginas para o caixote do lixo. Mas, a sua mulher repescou-as, leu-as e convenceu-o a continuar: Carrie ganhou forma de livro e lançou a carreira do autor, vendendo milhões de exemplares e inspirando quatro filmes. A obra narra a história de isolamento de uma jovem subjugada por uma mãe dominadora e fanática religiosa, atormentada pelos colegas da secundária e humilhada na noite do baile de finalistas. Progressivamente, vai-se apercebendo de que possui singulares poderes telecinéticos, aos quais aprende a recorrer para se vingar dos que a maltratam. O relato, vibrante e original é narrado a várias vozes, incluindo a da protagonista, uma vizinha e uma colega de escola, e inclui artigos de jornal, entradas de dicionário e até um artigo científico. Esta edição especial do 50.º aniversário da publicação de Carrie conta com um prefácio de Margaret Atwood. A grande escritora canadense salienta que, mais do que o terror sobrenatural típico de King, na base deste livro “está sempre o verdadeiro terror: a pobreza, a negligência, a fome e o abuso demasiado reais que existem hoje na América.” Bertrand

Ed Conway

Mundo Material

Basta acompanhar a maioria da comunicação social mainstream para compreender que os temas que mais ocupam as consciências e os tempos de antena atuais centram-se principalmente nos conflitos sociais e políticos, na crise climática e na ideia de sustentabilidade e numa certa crença que a tecnologia avançada nos irá ajudar a ultrapassar muitos dos nossos problemas. Em Mundo Material, Ed Conway, editor de economia da Sky News, colunista do The Times e autor de vários livros, vem relembrar-nos, com um grande senso comum, que ‘’apesar de ouvirmos dizer que vivemos num mundo de desmaterialização crescente, que atribui cada vez mais valor a artigos intangíveis como apps, redes e serviços online, o mundo físico continua a ser o nosso sustentáculo.’’ E também como somos dependentes de materiais ‘‘triviais, enfadonhos e amiúde baratos’’ que o nosso planeta proporciona e que tomamos como garantidos. Esta desconstrução pragmática do mundo moderno, através duma análise profunda da relação da humanidade com um conjunto de materiais fundamentais, valeu a Mundo Material e ao seu autor a consagração de Livro do Ano e Livro de Ciência do Ano para órgãos de informação como o Times, Financial Times e The Economist. [Tomás Colares Pereira] Temas & Debates

Tiago Rebelo

O passado vem já a seguir

Maria Ana tem uma galeria de arte na Rua da Boavista. [onde a Agenda Cultural também tem a sua sede.] Casou muito cedo, com um homem 16 anos mais velho, hoje ministro da Administração Interna. Aos 32 anos, e a viver um casamento que era um tormento de prepotência e agressividade, Maria Ana entra pela primeira vez no bar em frente à sua galeria. Aí trava amizade com o dono do bar, Quinto, um italiano bastante discreto e pouco dado a aventuras, que se deixa cativar pela marchand d’art. Esta aparente acalmia sofre um revés quando Maria Ana começa a ser ameaçada por Vadim Sidorov, um oligarca russo com investimentos em Portugal e ligações a Putin, a quem foi atribuído um Visto Gold, num esquema pouco lícito que envolvia o seu marido, o irascível Pedro Macário. Mas não é só o ministro que tem algo do seu passado que precisa esconder a todo o custo, também Quinto, um homem de rigorosas rotinas e hábitos frugais, deixou para trás uma vida de violência e morte ligada à máfia calabresa, e é quando aparece numa foto num jornal ao lado de Maria Ana que tudo se precipita. Um thriller tenso que se passa a um ritmo alucinante, percorrendo locais emblemáticos da nossa cidade, como a Avenida da República, Campo de Ourique ou a Avenida António Augusto de Aguiar. [Sara Simões] ASA

Os diretores e programadores de cinco festivais de cinema, que se realizam no mês de outubro em Lisboa, revelam as principais novidades, convidados e, claro, os filmes que todos vão querer ver.

Saoussen Khalifa e João Gonçalves (diretores) 

LAFF – Lisbon Arab Film Festival

1 a 5 outubro

Quando a franco-tunisina Saoussen Khalifa chegou a Portugal, há cinco anos, reparou que “havia muitas semelhanças e influências do mundo árabe em Portugal”, mas “havia pouca consciência destas ligações”. A necessidade de mostrar este cruzamento de culturas foi o ponto de partida para a realização do Lisbon Arab Film Festival.

Nesta primeira edição do evento procura-se promover o diálogo entre culturas e oferecer uma visão das sociedades árabes de hoje, contrariando ideias estereotipadas. Da programação, João Gonçalves, destaca o filme de abertura, Everybody Loves Touda, do franco-marroquino, Nabil Ayouch, que marcou presença no festival de Cannes e que foi escolhido como o candidato de Marrocos aos Óscares

Mas há mais: Bye bye Tiberias, de Lina Soualem, documentário focado na ocupação de Israel na Palestina, e o filme da sessão de encerramento, Inshallah a Boy, drama de Amjad Al Rasheed, filmado na Jordânia, são “imperdíveis”.

Kátia Adler (diretora)

Festa do Cinema Francês

3 outubro a 30 novembro

A Festa do Cinema Francês celebra 25 anos. Kátia Adler, diretora desta mostra anual, afirma que “a Festa tem cada vez mais público” e nesse sentido, este ano pela primeira vez, “há cinco filmes em competição, todos antestreias, com o objetivo de conseguir ainda uma maior participação do público.”

Do vasto programa destacam-se duas novas secções: Rir à grande e à francesa, que apresenta filmes de comédia, porque como diz a diretora da festa “estamos a precisar de rir e de ir ao cinema”; e Uma Língua, Múltiplos Olhares, que exibe obras que resultam de coproduções franco-belgas. Kátia Adler salienta ainda um filme que a marcou muito pela sua cinematografia: O Sucessor, de Xavier Legrand, um thriller que se revela surpreendente e que é “uma pérola”.

Em novembro, ainda no âmbito desta edição da Festa, a Cinemateca Portuguesa apresenta uma retrospetiva integral da obra do cineasta Chris Marker (1921-2012).

Mónica Serrano (Diretora de Marketing, Comunicação e Atelier Impresa) | Foto: José Fernandes, cortesia jornal Expresso

Tribeca Festival Lisboa

18 e 19 de outubro

“Queremos que o festival seja uma celebração do melhor da cultura pop e do cruzamento entre o talento nacional e internacional. Para isso, teremos grandes filmes internacionais trazidos para Lisboa pela equipa da Tribeca Enterprises, mas também produções nacionais, dando palco aos storytellers e aos criativos do nosso país”. É assim que Mónica Serrano descreve o propósito da primeira edição do Tribeca Festival Lisboa, marca que nasceu em Nova Iorque e que chega agora a Lisboa.

O programa inclui ainda séries, podcasts, atuações musicais e conversas ao vivo com estrelas internacionais e nacionais. Os norte-americanos Whoopi Goldberg, Robert De Niro e Griffin Dunne, a estrela internacional Daniela Ruah, e os portugueses Ricardo Araújo Pereira e César Mourão, são algumas das personalidades presentes no evento.

Dos filmes a exibir destacam-se obras premiadas como Anora (vencedor da Palma de Ouro em Cannes), Griffin in Summer, In the Summers e Bob Trevino Likes It, e filmes portugueses como Podia Ter Esperado Por agosto, Azul e O Afinador de Silêncios.

Paula Astorga (diretora), Luca D’Introno (coordenador de programação)

Doclisboa – Festival Internacional de Cinema

17 a 27 outubro

A 22.ª edição do Doclisboa, a primeira sob direção da produtora mexicana Paula Astorga, apresenta um programa que promove o diálogo entre presente, passado e futuro, permitindo uma série de reflexões sobre o cinema atual. Estar à frente do Doc “é uma grande emoção e foi uma surpresa gratificante dirigir um festival que está muito bem posicionado internacionalmente e que é muito aguardado pelos lisboetas”, salienta Astorga.

Da programação, o programador Luca D’Introno destaca duas retrospetivas: uma dedicada ao cineasta mexicano Paul Leduc (1942-2020), que abre com o filme Reed – Mexico Insurgente, uma joia única descoberta na Cinemateca Portuguesa; e, outra, com curadoria de Jean-Pierre Rehm “que reflete sobre o modernismo a pensar no futuro, olhando para o passado”.

De salientar ainda os filmes de abertura e encerramento: Sempre, o mais recente trabalho de Luciana Fina, e O Dia Que Te Conheci, do cineasta brasileiro André Novais Oliveira.

Silvia Di Marco (diretora)

Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival

31 outubro a 7 novembro

O cinema feito por mulheres oriundas de países do Mediterrâneo está de regresso naquela que é a 11.ª edição do Olhares do Mediterrâneo. O tema deste ano, Revolução e Quotidianos, procura, nas palavras de Silvia Di Marco, “vincar que a revolução não é um evento fechado no tempo, mas que continua e se renova. Por um lado, porque as transformações são necessárias, por outro, porque nenhum progresso é garantido”. Demonstrar que, como diria Natália Correia, “a cultura é que transforma as mentalidades” é outra ideia que o festival promove.

Neste sentido, destaca-se a estreia mundial de A Mulher que Morreu de Pé, de Rosa Coutinho Cabral, precisamente sobre Natália Correia, mulher que é figura incontornável na luta pela liberdade. Destaque também para o país convidado, a Palestina, que é homenageado com uma retrospetiva, na Cinemateca Portuguesa, dedicada a realizadoras da diáspora palestiniana. Nota final para o filme de abertura, que serve de mote à retrospetiva: The Teacher, da britânica-palestiniana, Farah Nabulsi.

50 anos de carreira é um número imponente…

É um número muito imponente e é interessantíssimo porque, quando era mais novo e via alguém comemorar 50 anos de qualquer coisa, achava completamente patético. Pensava sempre “coitado, estás com os pés para a cova, nem sei porque é que estás a comemorar. Vai lá dar uma voltinha ao jardim, jogar damas com os outros velhotes”. Foi sempre essa perceção que tive dos 50 anos de carreira e das pessoas de 70. Fui jovem numa altura em que 70 anos era geralmente o final de vida da maior parte das pessoas. O que nunca imaginei foi que, quando chegasse a esta realidade, ela fosse tão fresca e tão útil, como se de repente vivêssemos 200 anos e isto fosse só um primeiro ato de qualquer coisa que ainda se está a desenvolver.

Celebra a data com dois espetáculos no Campo Pequeno. Em que consistem?

A estrutura é muito simples, até porque não vou fazer nada de experimentalismo. Vou fazer o repertório que tenho feito ao longo destes anos todos e que foi evoluindo. O que faço é pegar nessas coisas, às quais junto as músicas habituais que me acompanharam pela carreira fora. O que vamos ter fora do comum é uma orquestra alargada, uma big band de 20 elementos, que é uma coisa imponente, e um layout audiovisual. É também muito ambicioso no sentido em que é diferente. Vai ser uma espécie de comício político, e não é por acaso que resolvemos investir tanto no espetáculo, que é tecnologicamente muito caro e a orquestra muito grande. É mais um ato de amor do que propriamente um negócio.

Os seus 50 anos de carreira cruzam-se também com os 50 anos do 25 de Abril. É uma feliz coincidência…

Eu nasci por causa do 25 de Abril, porque eu era para ter de sair do país. Na altura, havia a hipótese de optar pela nacionalidade alemã, e eu fi-lo porque o meu pai era alemão. A PIDE, como represália, retirava-nos a autorização de residência, por isso tinha de sair do país. Já estava inscrito numa escola de imagem e cinema de Munique, onde iria entrar precisamente nos finais de 1974. A minha primeira grande preocupação a seguir ao 25 de Abril foi cancelar a inscrição e o apartamento que ia alugar. Sou verdadeiramente um produto daquele momento.

A sua vida teria sido com certeza muito diferente se tivesse ido para Munique…

Muito diferente. Dava um belo exercício imaginar o que seria a minha vida. Ia ser boa, com certeza, porque eu adoro televisão e cinema e aquela é das melhores escolas, de onde saíram realizadores como Paul Verhoeven. Não tenho nenhuma dúvida que ia sair de lá um grande profissional da área, não como artista, mas como técnico.

Há algum momento da sua carreira de que se orgulhe mais?

Os momentos que me ficam são os da adrenalina completamente orgástica, aqueles em que a gente percebe que tem um sucesso na mão. Lembro-me que o primeiro orgasmo desse género que senti foi no Porto (onde vou atuar também com este espetáculo). Tinha começado a fazer o Sr. Feliz e Sr. Contente, com o Nicolau Breyner, em 1975. Percebíamos que estava a correr muito bem, que era um êxito, mas a nossa vida era, sobretudo, teatro e televisão, portanto, não tínhamos ainda tido um julgamento popular do acontecimento. Nesse ano, fomos contratados para uma apresentação no Palácio de Cristal. A concentração de pessoas e o histerismo foi de tal maneira, que tiveram de chamar a polícia de choque para nos tirar lá de dentro. O que senti não tem explicação, porque eu punha-me muito em causa. Sentia que tinha jeito, sabia o que queria fazer, mas não me sentia um grande talento. Quando, de repente, percebi que o sonho era possível, foi inacreditável. Depois voltei a sentir isso em 1977, com o êxito do Saca-Rolhas, que esteve no top nacional uma quantidade de semanas, lutando com monstros da altura, como o Marco Paulo ou o José Cid. Depois tive outro momento, absolutamente glorioso, quase indescritível, que foi o impacto avassalador tido pelo Tal Canal, em 1983. Uma coisa completamente unânime que me deixou de boca aberta. Sucederam-se outras alegrias, mas aí já sabia como era tê-las, portanto, já não foi tão espantoso.

Há alguma coisa de que se arrependa ou que teria feito de outra forma?

Para lhe explicar os arrependimentos, teria de juntar a esta entrevista uma adenda comprada à parte, do tamanho de uma lista telefónica [risos]. Todos os dias fazemos coisas de que nos arrependemos. Umas completamente insignificantes, outras que são completamente decisivas e que trouxeram dificuldades e chatices gigantescas e que podiam perfeitamente ser evitadas. A mesma coisa com as pessoas. Há pessoas que entram na nossa vida para complicar, inquinar, destruir. E o contrário também, só que as boas pessoas ficavam todas, não é? Limitava-me só a centrifugar as más pessoas [mais risos].

“Vou até onde acho que devo e quero, e, portanto, sou um privilegiado nesse aspeto”

Das personagens todas que criou, houve alguma que tenha pensado que não ia funcionar e que, depois, tivesse sido um êxito estrondoso?

Houve uma que achei que ia ser uma coisa muito localizada, até porque tratava só de um único assunto, que era o José Esteves. Comecei a fazer na rádio, a pedido de um jornalista do Porto chamado António Tavares Teles. Isto começou talvez em 1980 ou 81, e eu tinha o sotaque do Porto muito presente porque o meu agente artístico era de lá e eu passava tanto tempo naquela cidade que ganhei o sotaque. Portanto, o boneco era muito verdadeiro, mas estava longe de imaginar que fosse um sucesso que se manteve até hoje, sobretudo através daquela cantiga Vamos lá Cambada. Depois houve outras coisas que tive a certeza que seriam êxitos totais e que desapareceram nos primeiros tempos. Mas, dessas já nem me lembro.

Há muitas personagens suas que ficaram para a história e cujas expressões as pessoas ainda hoje utilizam. Isso surpreende-o?

É verdade, é muito raro acontecer. Há mundialmente alguns casos, como os Monty Python ou o Benny Hill, mas contam-se pelos dedos… Não é nada comum. Isso é verdadeiramente um fenómeno. E isso é uma das coisas que me espantam mais do que me orgulham, devo dizer. Acho verdadeiramente notável quando oiço um miúdo de seis anos a dizer “eu é mais bolos”. Recentemente fiz um repost com 34 anos, do Felisberto Lalande, que não diz os ‘l’s’, e tenho milhões de putos a dizer que faziam aquilo já na escola. Isso é verdadeiramente notável!

Há ou não há limites para o humor?

Há. Não são é universais pois cada situação tem o seu limite. Para fazer um espetáculo ao lado do Santuário de Fátima no dia 15 de agosto (Dia da Nossa Senhora da Assunção), talvez seja interessante burilar as coisas muito agressivas que às duas da manhã numa Queima das Fitas são essenciais. Portanto, com certeza que há limites para o humor. E se formos jantar a casa de alguém e a decoração tiver elementos ridículos, não é a altura própria para fazer humor.

A destruição do cenário do concurso Roda da Sorte (1994) seria impensável nos dias de hoje. Tem saudades dessa liberdade?

Era impensável, mas há uma coisa de que nunca se fala, mas que é importante frisar. As peças que destruí eram de armazéns de velharias, ou seja, não destruí nada novo. Não quis ofender as pessoas destruindo coisas que elas gostariam de ter em casa e não podiam. Foi também uma aprendizagem, porque um dia, no [concurso] 1, 2, 3, resolvi fazer uma guerra de ovos com o público. O grande choque das pessoas foi ser numa altura onde parte das famílias não tinha dinheiro para comprar ovos. Portanto, não é obrigatório ter essas sensibilidades, mas pode perfeitamente meter-se essa equação no meio e não faz mal a ninguém…

Mas tem saudades de poder fazer essas loucuras sem se preocupar com o que as pessoas vão pensar?

Sinto-me tão livre hoje também, sabe? Uma pessoa quando tem 30 anos tem um tipo de energia e de convicção que depois não tem aos 40, e depois não tem aos 50. E, neste momento, este artista de 70 anos sente-se tão confortável e ao mesmo tempo tão livre. Estou há sete anos a fazer um programa na RTP que não tem qualquer interferência. Faço que quero, não preciso de mandar os textos para apreciação… Há maior privilégio que este? Vou até onde acho que devo e quero, portanto, sou um privilegiado nesse aspeto.

Em janeiro deste ano, recebeu a Medalha de Honra da Câmara Municipal de Lisboa. Que importância atribui a esse tipo de distinção?

Esta, por várias razões, é muito mais importante que os outros prémios todos. Há uns anos estava num conhecido restaurante de Lisboa e o Luís Campos Ferreira veio ter comigo e disse “está ali uma pessoa, o eurodeputado Carlos Moedas, que adorava conhecer-te”. Tinha ali um fã confesso do meu trabalho que se tornaria Presidente da Câmara de Lisboa. Quando esse fã me atribuiu a Medalha de Honra da cidade, foi muito mais do que um Presidente de Câmara a fazer um ato de justiça oficializado no momento. Era uma pessoa que estava a ter genuíno prazer em criar aquela situação e, portanto, ganhou tudo muito mais valor, até porque o voto tinha sido deliciosamente unânime. Mandei fazer uma caixinha muito bonita e lá está na parede, juntamente com a Grã Cruz da Ordem do Infante, a propósito dos 40 anos do Tal Canal, e outra maravilhosa que é a Medalha de Mérito do Governo, também espoletada por um fã que era ministro da Cultura, o Pedro Adão e Silva. São três momentos que culminaram com outra coisa extraordinária, que foi uma homenagem pela vida e carreira da Sociedade Portuguesa de Autores, o que também é muito interessante, porque uma das coisas de que me orgulho é de ser autor do meu material. Há uma parte que é escrita em colaboração com as Produções Fictícias – que nasceram por causa de mim – mas 80% do trabalho é meu.

É o maior humorista português. O que é que o faz rir a si?

Tenho sempre uma terrível dificuldade em responder a essa pergunta. Ainda voltando ao passado, há, dos grandes humoristas americanos e ingleses, dos anos 1950, 60, 70, 80, uma arte e uma riqueza que ainda hoje me espantam. Nomes como Lucille Ball, que fazia a Lucy Show, como o Benny Hill, ou os Monty Python, que para mim continuam a ser os maiores. Dos portugueses, não há uma única vez que eu não veja o António Silva e o Vasco Santana no seu auge, ou a deliciosa Maria Matos, que eu não fique babado e espantado. Com os contemporâneos não me rio por razões muito estranhas: estou muito mais preocupado em analisar o trabalho deles. Muitas vezes há piadas extraordinárias e coisas muito bem feitas e a minha reação é pensar, “olha que bem construído que isto foi”. Parece que não tenho capacidade para usufruir desse momento, estou sempre com o olhar técnico. Exceção feita a certos momentos do Ricardo Araújo Pereira a gozar com a atualidade, que me dão a mesma vontade de rir que ele me dava quando foi meu autor. Íamos juntos para a rádio, ele lia-me os textos e já na altura eu chorava a rir com ele. Ele é uma criatura especial.

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