São dele temas incontornáveis da música popular portuguesa como Inquietação, Qual é a tua, ó meu, Eu vim de longe, eu vou pra longe ou Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, para referir apenas alguns. Considerado um dos grandes nomes da música portuguesa, o músico, cantautor e produtor musical José Mário Branco trabalhou com nomes como Sérgio Godinho, Camané, Fausto, Janita Salomé, Amélia Muge ou Carlos do Carmo.

Entre 2000 e 2019, ano da sua morte, José Mário Branco foi diretor artístico do grupo coral a capella Canto Nono, constituído por Dalila Teixeira, Joana Castro, Diana Gonçalves, Daniela Leite Castro, Lucas Lopes, Jorge Barata, Rui Rodrigues e Fernando Pinheiro. Agora, o octeto traz para o palco do Maria Matos o espetáculo A força (o poder) da palavra – Um canto a José Mário Branco.

José Mário Branco dirigiu o Canto Nono durante cerca de 20 anos

Segundo um dos seus membros, Fernando Pinheiro, esta “é a consequência lógica de uma cumplicidade construída ao longo de 20 anos”. O seu desaparecimento inesperado deixou o país culturalmente mais pobre, mas também mais triste. O grupo “ressentiu-se imenso. A vivência artística que tínhamos com ele era muito forte, mas a vivência pessoal era fortíssima”, esclarece.

Depois da morte do mestre, veio a pandemia, e durante esse período tão atípico, o grupo “bateu fundo. Estávamos todos um bocadinho perdidos, não sabíamos o que fazer até surgiu a ideia de aproveitar esta história pessoal e musical que tivemos com o Zé Mário Branco.”

Surgiu, assim, a intensão de pôr de pé este concerto, que é também uma homenagem à palavra, “uma constante na obra do Zé Mário. A sua força e o seu poder sobressaíam sempre.”

Depois de lançada a ideia, foi preciso escolher o repertório, o que revelou ser uma tarefa árdua. “O Zé Mário criou muitas obras para teatro e cinema, para outros cantores enquanto arranjador. Queríamos que o espetáculo tocasse em todos estes lados, mas quando nos apercebemos tínhamos cerca de 40 músicas”. De fora tiveram de ficar muitas canções especiais, mas ainda assim o alinhamento conta com 17 temas.

As pessoas falam de homenagens e tributos, mas o Zé Mário era muito avesso a essas coisas” ©Miguel Nogueira

Para este concerto, o Canto Nono conta com várias colaborações de músicos especiais para José Mário Branco: “ele prezava muito a relação pessoal, por isso desafiámos algumas pessoas que eram importantes para ele a fazerem novos arranjos.”

“Falámos com a Amélia Muge e o Zé Martins (ex-Trovante); o Tomás Pimentel (um homem dos sopros); o pianista Filipe Raposo (que, como dizia o Zé Mário, era um dos grandes talentosos instrumentistas da nova geração), e o Zé Manuel David, dos Gaiteiros de Lisboa”. Os novos arranjos revelaram ser “surpresas muito interessantes. A Amélia Muge e o Zé Martins fizeram um arranjo juntos para a canção Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, que ficou extraordinário”, confidencia.

Para o grupo, a ideia deste espetáculo era fazer uma “reconstrução da obra executada”. Foi partindo desse princípio que o Canto Nono quis lembrar o seu mentor: “as pessoas falam de homenagens e tributos, mas eu raramente uso essas expressões, até porque o Zé Mário era muito avesso a essas coisas”.

Antes da atuação em Lisboa, o Canto Nono atuou no Coliseu do Porto, a 28 de abril, num espetáculo que foi gravado. “A ideia é ter um disco ao vivo. São quase dois anos a trabalhar neste espetáculo pelo que seria uma pena não haver um registo para a posteridade”. Depois do Maria Matos, o Canto Nono ruma ainda mais a sul, para apresentar o projeto em Loulé, a 13 maio.

“Uma família normal como todas, com as suas coisas”, diz Memé (Ana Castro), respondendo à sucessão de questões que o médico (Américo Silva) coloca sobre quem é quem na família Coleman, ou Zenelli, ou Fortuna. É que, como repara o clínico, nem todos partilham o mesmo apelido e a confusão tende a instalar-se.

Esta hilariante cena sucede já na segunda parte da peça de Claudio Tolcachir, quando todos sabemos que Memé é a mãe de Marito (Vicente Wallenstein), Verónica (Raquel Montenegro) e dos gémeos Damián (Nuno Gonçalo Rodrigues) e Gabi (Nídia Roque). À exceção de Verónica que, há muitos, muitos anos, terá deixado de viver com a mãe, e que agora, casada e com dois filhos, parece estar confortavelmente instalada na vida – ao ponto de até ter um motorista (Hélder Braz) e tratar o médico pelo nome próprio –, todos os outros vivem na mesma casa, num bairro popular de Buenos Aires, sob a proteção tutelar da Avó (Antónia Terrinha).

E é a casa que abre ao olhar do espectador a mais completa disfuncionalidade destas personagens “vivendo sobre a pressão da necessidade”, como enfatiza Pedro Carraca, que encena pela primeira vez em português A omissão da família Coleman (os Artistas Unidos haviam feito, em 2017, uma leitura  para a Antena 2), a peça mais famosa de Tolcachir, autor argentino muito apreciado pela companhia fundada por Jorge Silva Melo, que chegou a encenar Emília, capítulo posterior da informalmente chamada Trilogia da Família (de que faz parte O Vento num Violino, peça também já levada a cena pelos Artistas Unidos).

Mas, é pertinente voltar à origem deste texto habitado por uma família estraçalhada, a que Tolcachir e a sua trupe começaram a dar vida há cerca de 20 anos, durante a enésima crise política, financeira e social que assolou a Argentina – no caso, aquela que ficou conhecida por El Cacerolazo.

No final de 2001, ao mesmo tempo que as ruas se agitavam e a Argentina vivia um dos seus períodos mais tumultuosos, Tolcachir debutava como dramaturgo, absorvendo meticulosamente a improvisação dos atores, ou melhor, do grupo de amigos que reunia no seu apartamento, em Buenos Aires. Ao longo de cerca de um ano, viriam a criar, como uma espécie de modo de sobrevivência, a peça que, anos depois, se tornaria um dos maiores fenómenos do teatro argentino. Antes da digressão internacional, que passou por Lisboa, A omissão da família Coleman terá feito mais de duas mil representações, entre o apartamento do dramaturgo e encenador onde tudo começou e os palcos mais convencionais.

Comigo, nunca faremos este texto”,

vaticinou Jorge Silva Melo

Tolcachir e a sua companhia Timbre 4 passaram pelo Centro Cultural de Belém, em 2009, com A omissão da família Coleman. Na sala, estava um espectador especialmente atento que haveria de clamar “obra-prima!” Era Jorge Silva Melo que, siderado com o que vira, logo considerou ser impossível fazer a peça tão bem quanto os artistas argentinos que tanto o entusiasmaram. Pedro Carraca, que haveria de estar na leitura que os Artistas Unidos fizeram da peça anos depois, contrariava o mestre, tentando fazer ver que só uma ínfima parte do público poderia estabelecer comparação. Afinal, fora apenas uma récita no CCB “e eu, como tanta gente, não a viu.”

Contudo, “o Jorge era irredutível, considerava o texto impossível de encenar àquele nível”, lembra Carraca. Mas, nos Artistas Unidos, “muitos de nós ambicionávamos poder fazê-lo” e, “agora, chegou a altura certa para arriscarmos este texto que é brutal, exigente para os atores porque é construído a um ritmo infernal” como se estivesse permanentemente colado ao quotidiano.

Era o próprio Tolcachir, há uns anos, ao jornal Folha de São Paulo, que garantia pretender, com esta peça, afetar o espectador de maneira a que ele se esqueça que o que está a ver é, tão só, um espetáculo de teatro.

Como na vida real,

aqui “há muito poucas certezas”

O segredo do sucesso de A omissão da família Coleman não estará tanto na sua pertinência política, nem sequer na eventualidade de encerrar um estudo sociológico sobre a desagregação da família. O verdadeiro motor da peça são as ambiguidades e incertezas em torno das suas personagens, tão vividas e tão próximas que parecem ser reconhecíveis a qualquer espectador em qualquer parte do mundo, mesmo tendo nascido no fervor das convulsões sociopolíticas argentinas.

“Quando iniciámos os ensaios, os atores pareciam estar bastante certos sobre quem são elas, mas com o desenrolar dos trabalhos fomos percebendo que Tolcachir apenas parece contar muito sobre as personagens. No fundo, ele diz-nos quase nada sobre elas”, lembra Carraca.

A inteligência do texto está no modo como parece oferecer tantas certezas e, subitamente, tudo ser baralhado pelas próprias personagens que mentem, manipulam e enganam. Porém, segundo Carraca, “não é por maldade que o fazem, mas por necessidade de sobrevivência. E, aqui, toda e qualquer ação de cada uma delas parece passar por se libertarem daquela casa.”

Embora longe de ter o tempo que Tolcachir teve com os seus atores para fazer crescer as personagens da peça, Carraca reúne neste espetáculo um elenco à altura da vertigem e da fluência do texto original, construindo um espetáculo permanentemente vivo e desafiante. Fica a certeza, cremos nós, de que perante o olhar dos Artistas Unidos sobre A omissão da família Coleman, o autor não sentiria defraudada a sua pretensão de, a espaços, até podermos estar a testemunhar a vida real. Mas, tudo isto é teatro. E do bom.

Os coreógrafos e bailarinos Francisco Camacho, Vera Mantero, Olga Roriz, Cláudia Sampaio e Clara Andermatt partilham traços das suas estruturas de criação e produção.

Vera Mantero

O Rumo do Fumo

O “Rumo” é uma estrutura fundada na viragem de 1999 para o ano seguinte com o intuito de produzir os trabalhos de Vera Mantero e de outros coreógrafos. Miguel Pereira é o outro nome que se mantém desde o início. Estão unidos ao Fórum Dança desde os tempos em que partilharam um espaço na LX Factory, de onde se mudaram ambos para a zona da Penha de França.

Sempre tiveram apoios bienais da Direção-Geral das Artes, mas candidataram-se agora ao quadrienal, de modo a espaçar o esforço a que obrigam os requisitos dos concursos, cada vez mais exigentes.

No que resta do ano, podemos acompanhar o trabalho desta estrutura em Almada (O Susto é um Mundo vai estar, a 10 de maio, no Teatro Municipal Joaquim Benite), em Torres Vedras e no Porto (Miquelina e Miguel irá ao Cine-Teatro, dia 13 de maio, e à Associação Nun’Álvares de Campanhã, a 20), mas também em Bruxelas, em outubro, onde Vera Mantero dará um workshop e apresentará uma criação de 2011, O que podemos dizer do Pierre.

Cláudia Sampaio

Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo

Vasco Wellenkamp e Graça Barroso fundaram a Companhia Portuguesa de Bailado Contemporâneo (CPBC) em 1997. Nesse ano, Cláudia Sampaio tornou-se bailarina da companhia onde exerce, hoje, a função de diretora artística.

A CPBC celebra 25 anos de existência e considera-se, sobretudo, uma companhia de repertório, apesar de no seu historial sobressaírem em número e em apuro estético as criações de Wellenkamp.

Começaram em condições dir-se-iam que muito boas, com o apoio tripartido entre Ministério da Cultura, Câmara de Lisboa e Câmara de Cascais. Em 2011 correram riscos de extinção. Encomendas e intercâmbios com países estrangeiros permitiram que a CPBC retomasse, esporadicamente, a atividade artística. O espaço da Rua do Açúcar onde exercem os trabalhos de produção e ensaios foi doado pela autarquia de Lisboa, quando cessou o apoio financeiro à companhia.

A 1 de abril, apresentaram no Teatro Camões o programa CPBC 25 anos, com coreografias de Vasco Wellenkamp, da dupla Iratxe Ansa e Igor Bacovich, de Ricardo Campos Freire e de Maria Mira.

Olga Roriz

Companhia Olga Roriz

A Companhia Olga Roriz nasceu em 1995. Durante anos desenvolveram o seu trabalho entre os Estúdios Victor Córdon e os estúdios do Centro Cultural de Belém. Desde 2013, a Câmara Municipal de Lisboa possibilitou-lhes a ocupação do Palácio Pancas Palha (em Santa Apolónia).

A companhia não se dedica apenas à criação das suas próprias peças, mas também à formação (através do FOR Dance Theatre), e disponibiliza ainda os seus espaços para a realização de residências artísticas anuais ou periódicas de teatro, dança, música e artes plásticas. O projeto social Corpoemcadeia, em parceria com o Estabelecimento Prisional do Linhó, é outras das atividades que vêm desenvolvendo.

A próxima criação tem estreia marcada para o próximo dia 29 de abril, no CineTeatro Louletano (no mês seguinte estará em Lisboa, no São Luiz), e apresenta uma nova leitura da peça de Peter Handke, A hora em que não sabíamos nada uns dos outros, que originalmente tinha 450 elementos no elenco.

Os espetáculos Pas d´agitation (2022) e Autópsia (2019) prosseguirão nas respetivas digressões.

Clara Andermatt

Companhia Clara Andermatt

Funda a companhia com o seu nome em 1991 com o propósito de coreografar com maior assiduidade, e após ter desenvolvido um percurso de bailarina em Portugal e no estrangeiro. Em 1997 a estrutura é formalizada como associação cultural sem fins lucrativos. Desde a sua primeira peça oficial, En-Fim (1989), vencedora do 1.º Prémio do III Certamen Coreográfico de Madrid, tem feito uso de bailarinos não-profissionais, característica que se mantém até hoje.

Juntar corpos virgens a corpos hi-fi (os que se disciplinaram no bailado clássico e contemporâneo), pessoas com e sem deficiência (caso do projeto inclusivo LAB in Dança, em Santa Maria da Feira, de que é diretora artística), crianças e idosos, tudo serve a Clara Andermatt de matéria de relacionamento, de criação e de descoberta.

Há cerca de 15 anos que a Companhia Clara Andermatt tem o seu espaço de trabalho no Interpress, situado no Bairro Alto. São 30 anos de atividade intensa, sempre dirigida à criação. A recente notícia da não atribuição de subsídio da Direção-Geral das Artes teve por efeitos imediatos a interrupção dos trabalhos em curso.

Francisco Camacho

Eira

A Eira surgiu em 1993 para responder ao aumento da circulação nacional e internacional dos trabalhos do seu membro fundador e diretor artístico, o bailarino e coreógrafo Francisco Camacho. A ideia foi a sistematização do trabalho com o apoio de uma estrutura de produção. António Câmara Manuel, vindo do cinema e da televisão, completou a dupla de fundadores, ocupando-se da produção. Outro dos intuitos da Eira foi o de apoiar o trabalho de outros artistas: são disso exemplos Lúcia Sigalho, no teatro, ou Vera Mantero, entre outros que se viriam a autonomizar.

Com os cortes verificados no “período da troika”, a estrutura não teve capacidade de se ocupar do trabalho de mais pessoas, e reagiu criando o Festival Cumplicidades dedicado exclusivamente à dança contemporânea, cuja edição 2023 decorre de 8 a 21 de maio. A programação incidirá sobre criadores estrangeiros que vieram viver para Portugal nos últimos anos.

Cabe acrescentar que a morada física da Eira fica na Travessa de São Vicente, onde outrora esteve instalado o Teatro da Graça.

 

A Agenda Cultural de Lisboa agradece aos Estúdios Victor Córdon a cedência dos espaços para a realização das sessões de fotografia.

Todos os livros sugeridos, nas suas várias edições, podem ser requisitados gratuitamente nas 16 Bibliotecas Municipais de Lisboa.

José Cardoso Pires

Dinossauro Excelentíssimo

“O Dinossauro, atrás da secretária dourada, sua varanda, suas patas leoninas, parecia um sonâmbulo pousado num sonho desértico. (…) Nunca alguém lhe diria que há muito tinha perdido o traço humano e que já projetava para longe uma sombra de monstro de solidão, dorso ondulante, a errar por paisagens crepusculares de cinza e metal”. Dinossauro Excelentíssimo foi editado pela primeira vez em 1972, com ilustrações e capa de João Abel Manta, provocando acesa discussão na Assembleia Nacional. “Devo-lhe a eles uma parte do êxito deste livro”, escreveria mais tarde Cardoso Pires. Trata-se de uma sátira à figura de Oliveira Salazar, ao seu regime e instituições. Uma fábula, como lhe chamou o autor, “porque se passa no tempo em que os animais falavam e os homens sufocavam”. Dinossauro Excelentíssimo, não deve, obviamente, ser pensado como um texto sobre o 25 de Abril, mas como uma expressiva alegoria que tem a revolução como horizonte.

Manuel Alegre

País de Abril

A antologia País de Abril reúne 29 poemas de Manuel de Alegre, alguns escritos antes da revolução de 1974 que falavam já de abril e de cravos vermelhos. Poemas de Praça da Canção, editada em 1964, e d’ O Canto e as Armas, de 1967. Em O Canto e as Armas, por exemplo, quatro versos de Poemarma parecem anunciar, com a precocidade de sete anos, o primeiro comunicado da Revolução:Que o poema seja microfone e fale / uma noite destas de repente às três e tal / para que a lua estoire e o sono estale / e a gente acorde finalmente em Portugal”. Alguns destes poemas foram cantados por grandes intérpretes, incluindo a própria Amália Rodrigues que gravou Trova do Vento que Passa, com música de Alain Oulman, antes da Revolução de 1974. País de Abril inclui também poemas escritos  durante o período revolucionário, e publicados, anos depois, em 1981, na obra Atlântico.

José Saramago

Levantado do Chão

Publicado em 1980, Levantado do Chão é o primeiro grande romance de José Saramago. “Um livro que quis aproximar-se da vida, e essa seria a sua mais merecida explicação”, escreveu o autor. De facto, a obra acompanha o quotidiano de uma família rural alentejana, os Mau-Tempo, durante os primeiros 75 anos do século XX, num ambiente real de exploração, desemprego e fome, retratando a sua luta face às forças opressoras: os latifundiários, as forças da ordem e a Igreja. O livro termina nos dias subsequentes à Revolução de 25 de Abril de 1974. Após a constatação de que pouco mudou no Alentejo – “andam aí a rádio e a televisão a pregar democracias e outras igualdades, e eu quero trabalhar e não tenho onde, quem me explica que revolução é esta” -, num dia sob um “sol de justiça”, os trabalhadores unem-se e ocupam as terras: “Vão todos, os vivos e os mortos. E à frente, dando os saltos e as corridas da sua condição, vai o cão Constante, podia lá faltar, neste dia levantado e principal.”

João Tordo

Anatomia dos Mártires

“Julgo que a literatura é sobretudo lenda, novas interpretações do real. Para entender a história, por vezes, a melhor maneira é ficcioná-la”, diz-nos o escritor João Tordo. Este livro é a história de uma obsessão – a do autor e a do protagonista, um jornalista, ambos nascidos após o 25 de Abril de 1974 – pelo mito de Catarina Eufémia, a camponesa assassinada que se tornou um ícone revolucionário. O jovem jornalista investiga a vida de Catarina descobrindo, nesse processo, que a “existência é indissolúvel da memória dos mortos” e que “um mártir é alguém que tem a razão do seu lado e ainda assim fracassa”. A partir daí, escreve uma narrativa singular que não “seria mais um artigo, sequer um relato ou uma ficção ou um ensaio (…) mas a súmula de todas essas coisas (…) uma investigação do assassinato de uma camponesa em 1954 e como esse momento continuava a reverberar no presente (…) a desconstrução de uma mártir a partir da qual se entenderia todos os outros mártires (…) e eu compreenderia o passado, portanto, o presente e o futuro.”

Lídia Jorge

Os Memoráveis

Os Memoráveis, é uma lucida e corajosa revisitação dos mitos da Revolução de Abril. Ana Maria Machado, uma repórter portuguesa em Washington é convidada, em 2004, a fazer um documentário sobre a Revolução. A repórter forma uma equipa e toma como ponto de partida uma fotografia de um jantar em agosto de 1975, que reúne vários intervenientes no golpe de estado, entrevistando-os trinta anos depois. A utopia “de encontro à banalidade dos dias” levou ao desencanto pela construção da “república da pena”, e por um “povo que foi à sua vida, [que] não tinha fome nem sede de justiça”. Um dos protagonistas apresenta a sua síntese irónica da revolução: “Progressão, denegação, concurso de televisão”. Porém, este romance pretende ser uma homenagem ao 25 de Abril e projetar o seu exemplo como motivo de esperança no futuro. Por isso, à serie de entrevistas que constituem a reportagem – “a realidade” – segue-se o argumento do documentário – “a celebração do mito”.

Desde 1992, ano em que fundou a produtora David & Golias, Fernando Vendrell é realizador e produtor. Porém, o seu percurso no cinema iniciou-se em 1981, tendo feito trabalhos como fotógrafo de cena, diretor de produção e assistente de realização.

Para além do trabalho no cinema, assinou várias séries para televisão, das quais se destaca 3 Mulheres, que parte das biografias da poetisa Natália Correia, da editora Snu Abecassis e da jornalista Vera Lagoa. As suas obras oferecem uma perspetiva intimista das personagens que retrata, sejam elas fictícias ou reais.

Sombras Brancas é o segundo filme do cineasta tendo por base uma obra literária. O primeiro foi Aparição (2018), adaptado do romance homónimo de Vergílio Ferreira. No entanto, Vendrell confessa que em 2012, ainda antes de Aparição, esta segunda adaptação cinematográfica já tinha começado a tomar forma.

“Através de uma conversa entre amigos onde se discutia a possibilidade de adaptação de obras literárias para cinema, ou escritores que tivessem uma escrita cinematográfica, alguém referiu o Cardoso Pires. De uma forma automática, e conhecendo eu a sua obra, afirmei que seria interessante adaptar o De profundis, Valsa Lenta. Foi uma reação instintiva, que se prendia com uma situação vivida pelo escritor, uma situação que era maior do que a própria vida, maior do que uma obra literária. Era uma experiência radical em termos humanos, e foi isso que me impulsionou”, conta.

Aos 71 anos, José Cardoso Pires sofre um acidente vascular cerebral, perdendo a capacidade de se relacionar com o mundo. Apesar de ser escritor, não reconhece as palavras e não consegue articulá-las com nexo. Lugares, situações e personagens fundem-se, misturando vida real, ficção e memória. No hemisfério direito do seu cérebro surgem personagens surreais e fantásticas que lhe enviam sinais para que se volte a encontrar. Através do hemisfério esquerdo, no “lobo da realidade”, esperançados que ele se reconheça novamente, familiares, médicos, pessoal hospitalar e doentes, procuram trazê-lo para a realidade. Incapaz de comunicar, Cardoso Pires contempla, apático, a consternação de familiares e amigos.

Para o realizador, “um escritor sofrer um AVC que lhe afeta a parte do cérebro que controla a escrita e a linguagem, colocando-o frente ao desconhecido, é uma situação completamente anormal. Posteriormente, depois de regressar à realidade e perante a sua capacidade de superação, Cardoso Pires é desafiado pelo cirurgião João Lobo Antunes, a reportar as suas memórias. O livro que daí resultou é uma obra única do ponto de vista literário e humano, mas também um livro que está classificado com interesse científico.”

Para a realização do filme, Vendrell com o coargumentista Rui Cardoso Martins pesquisaram a obra de Cardoso Pires e elencaram-na para a escrita do argumento cinematográfico. O contributo da família do escritor foi essencial, trazendo novas questões e contextos para o projeto.

“Quando falei com a família e pedi para fazer o filme deram-me carta aberta. Eu e o Rui precisávamos de saber mais sobre o processo hospitalar, então as filhas do Cardoso Pires, Rita e Ana Cardoso Pires, que já conhecia, disseram-nos para falarmos com a mãe, a Maria Edite Pereira, até porque foi ela que esteve sempre ao lado do escritor no hospital, acompanhando todo o processo. Quando nos reunimos com a Edite, ela contou-nos como conheceu o José, revelando episódios do início da relação, nomeadamente um passeio de barco no Campo Grande onde ele ficou isolado no meio do lago”. Esta imagem transmitida pela companheira do escritor surgiu ao realizador como uma “quase metáfora, uma situação visual do que lhe aconteceria no futuro, ou seja, o rapaz sozinho no meio de um lago.”

“Percebemos que, a par do que acontece na cabeça do escritor tínhamos também que abordar a carreira dele e a história de amor entre o casal”, conclui.

Para o realizador o filme é “uma biografia invulgar do escritor, referenciando muito o universo da escrita, até o universo visual, as amizades, as dificuldades que teve, nomeadamente com a censura”. Acima de tudo, procura ser “um pórtico” que leve o espectador à “cabeça do escritor, onde memória, ficção e imaginário se misturam.”

E o ideal será experienciá-lo no grande ecrã, na sala de cinema, que o realizador considera “um espaço criativo solitário, onde o espectador contemporiza a sua memória com impressões e vivências inexplicáveis. Também o meu cinema plasma sensações e emoções por mim vividas e remete dúvidas e questões que procuram resposta.”

Sombras Brancas conta, nos papéis de Cardoso Pires e Maria Edite Pereira, com os atores Rui Morisson e Natália Luiza, sendo que, enquanto jovens, o casal é interpretado por Ana Lopes e Rafael Gomes. Do elenco fazem ainda parte, entre outros, Soraia Chaves, Maria João Bastos, Luís Mascarenhas, Gonçalo Waddington, Rogério Samora e Margarida Moreira.

Depois de O Pai, em 2016, e de A Verdade e A Mentira, ambos em 2018, esta é a quarta vez que João Lourenço e o Teatro Aberto levam a cena um texto de Florian Zeller, autor francês que, em poucos anos, se tornou um fenómeno planetário, reconhecido do grande público, precisamente, pela adaptação ao cinema das suas peças O Pai e, recentemente, deste O Filho. “Temos um particular orgulho em termos revelado Zeller em Portugal, e até de o ter tido aqui em 2016 a ver a nossa adaptação de O Pai“, lembra o encenador.

Mas, o que é que tanto interessa a João Lourenço na obra de Zeller, nomeadamente em O Filho, que ainda há um par de meses esteve nos cinemas, num filme dirigido pelo próprio, a partir de uma adaptação coassinada com o reputado Christopher Hampton? “O Teatro Aberto tem a matriz de procurar autores contemporâneos cujas obras sejam capazes de colocar problemas que afetam a nossa sociedade. Isto é determinante para desafiarmos as pessoas a refletir sobre eles e a debatê-los. Nesta peça, tal como em O Pai, que era especificamente sobre um homem com a doença de Alzheimer, o tema é a saúde mental e o impacto na vida de uma família.”

O problema da depressão na adolescência, que aqui está em enfoque, “pareceu-nos ser cada vez mais premente, sobretudo porque é uma das marcas que a pandemia deixou”, conclui Lourenço, lembrando que para compreender melhor o panorama atual da doença, o encenador e a dramaturgista Vera San Payo de Lemos consultaram a médica Nazaré Santos, do serviço de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de Santa Maria. “Levamos-lhe a peça para a discutir e, posteriormente, ela veio mesmo assistir a um ensaio, tendo ficado muito bem impressionada”. Este aval clínico leva o encenador a estar convicto que trazer ao palco este espetáculo é não só uma urgência, como é prestar “serviço público. Ou não fosse essa uma das funções do teatro.”

A peça acompanha o drama de Nicolau (Rui Pedro Silva), um adolescente que, após a separação dos pais, entra numa espiral depressiva. Primeiro, o jovem começa por faltar às aulas e por sofrer cada vez mais frequentes alterações de humor. Incapaz de lidar sozinha com o assunto, a mãe, Ana (Cleia Almeida), pede a Pedro (Paulo Pires), o pai, que esteja mais presente e que seja mais interventivo na vida do filho.

É então que Ana e Pedro acordam em permitir a Nicolau ir viver com o pai, com a madrasta (Sara Matos) e o meio-irmão recém-nascido. Embora todos procurem dedicar-lhe a maior das atenções e transmitir-lhe amor, o estado do jovem degrada-se ao ponto do pai descobrir que em causa pode estar não só a segurança de Nicolau como a de toda a família.

A situação depressiva do rapaz e, consequentemente, dos pais que se veem incapazes de lidar com o filho, da madrasta compreensiva e cooperante, mas que acaba por temer pelo seu bebé, permite aos atores um exigente trabalho de composição, muitas vezes “no limite das suas próprias emoções”. Como faz questão de frisar João Lourenço, “estes são temas que, tal como mexem com o público, mexem com os atores. Mas, estou muito feliz com a excelência e a entrega deste elenco. Só assim podemos tocar as pessoas e levá-las a refletir sobre alguma coisa que viram ou até mesmo que têm em casa.”

Com o filme provavelmente muito presente na cabeça de parte do público, o espetáculo do Teatro Aberto procura colocar a ênfase da peça não tanto no divórcio, mas sim na incomunicabilidade que terá levado ao aprofundamento da depressão do jovem adolescente. “O divórcio dos pais pode ter despoletado a situação de Nicolau, contudo aquilo que nos interessou foi refletir sobre algo muito sintomático dos nossos tempos que é a incapacidade dos pais em ouvir e a dos filhos em querer contar.”

Em cena na Sala Azul do Teatro Aberto até ao próximo mês de junho, a peça O Filho inclui uma programação complementar de debates acerca de temas relacionados com saúde mental. O primeiro, já anunciado, vai abordar a depressão e o suicídio, e acontece a 29 de abril, reunindo a escritora Dulce Maria Cardoso, a psiquiatra Nazaré Santos e o comentador Nuno Rogeiro, sob moderação do jornalista Tiago Palma.

Jorge Barradas (1894-1971) é um dos artistas mais ecléticos da primeira geração de artistas modernos, surgida com as exposições do grupo dos Humoristas na década de 1910. Orgulhosamente autodidata, o grupo utilizava a arma do humor e da caricatura para subverter os convencionalismos das academias e das escolas de Belas-Artes. Para além de se afirmar como um caricaturista inovador, Barradas foi o mais importante artista gráfico dos anos 20, cronista das mudanças sociais e da febre de viver do pós-guerra.

Um século depois do auge da produção gráfica de Jorge Barradas, o Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado (MNAC) apresenta Jorge Barradas no Jardim da Europa, a maior exposição jamais realizada sobre este multifacetado artista. Cobrindo o período de seis décadas de carreira, a mostra reúne cerca de 70 obras de Barradas, provenientes de coleções institucionais, sobretudo da Fundação Calouste Gulbenkian e do Museu Nacional do Azulejo, e particulares.

Com o título emprestado de uma série de trabalhos apresentada na sua primeira exposição individual, em 1920, esta mostra evoca o modo lúdico, irónico, mas sempre empático com que o artista olhou o Portugal do seu tempo e os desafios da sua profissão.

Jorge Barradas no Jardim da Europa encontra-se organizada em quatro secções, expondo trabalhos de diferentes formatos e técnicas. De desenhos a tinta-da-china a ilustrações e aguarela, da pintura a guache ou a óleo às peças de cerâmica decorativa, passando pelos painéis de azulejos, a mostra dá a conhecer a diversidade e sofisticação técnica deste importante modernista português do século XX.

Além de caricaturista e artista gráfico, “Jorge Barradas foi também o renovador da cerâmica artística, já na década de 40, tornando-se um prolífico ceramista de grande aceitação no mercado e requisitado para inúmeras encomendas de cerâmica decorativa, em edifícios públicos e privados, por todo o país”, diz Carlos Silveira.

Paisagem Tropical, Jorge Barradas

Na pintura, o artista realizou projetos como uma viagem à ilha de São Tomé, em 1930, e, já na década de 1960, reinterpretou movimentos de vanguarda como o surrealismo e a abstração gestual. “A sua obra testemunha a renovação das práticas artísticas em Portugal na primeira metade do século XX”, acrescenta o curador.

Jorge Barradas no Jardim da Europa realiza-se no âmbito do protocolo existente entre o MNAC, o Instituto de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/NOVA e a Fundação Millennium BCP.

No teu percurso académico passaste pelo Hot Clube e pela Escola Superior de Música de Lisboa. Nunca pensaste seguir outro caminho que não a música?

Quando era pequena tive uma fase em que havia todo um leque de possibilidades. Considerei seguir dança porque fiz ballet durante muitos anos, considerei o teatro…Também quis ser jornalista, mas a partir do momento em que comecei a estudar no Hot Clube as outras opções deixaram de fazer sentido. Estudar música exige muita disciplina, e isso nunca me aborreceu.

O teu som cruza a música portuguesa e brasileira com um lado mais pop e também mais alternativo. Como chegaste aí?

O facto de a minha base ser o jazz acaba por ter bastante influência. É um estilo que absorve influências de outras culturas e acaba por ser muito eclético. Um tipo de sonoridade que sempre me atraiu e com a qual me identifico muito, seja nas batidas ou na forma de construir as canções. A música brasileira que fui ouvindo enquanto crescia chegava-me através do que os meus pais escutavam em casa.

Vês-te a cantar outros estilos musicais?

Gosto de cantar outros géneros, mas este é onde me sinto mais em casa, especialmente quando canto em português. Grande parte da diferença entre o português de Portugal e do Brasil tem a ver com a melodia que associamos à palavra e com a forma como acentuamos as sílabas tónicas. É só trazer essa leveza sem alterar as palavras. Faço-o naturalmente, não com esforço. Por exemplo, sou péssima a cantar fado, talvez por não ter essa melodia intrínseca em mim. Acho que tem tudo a ver com o que vamos ouvindo.

Entre Primaveras e o mais recente Prazer Prazer passou apenas um ano…

O primeiro disco saiu durante a pandemia, mas já estava feito há mais tempo. Gravei-o no início de 2020 no Brasil, mas estava a trabalhar nele desde 2019. Saiu durante a pandemia por isso foi um disco que não viveu muito, não teve muita estrada. A construção de Prazer Prazer acabou por acontecer mais rapidamente porque as ideias já lá estavam há mais tempo. Entretanto surgiu a oportunidade de trabalhar com o Marcelo [Camelo], convite que ele aceitou com muito entusiasmo. Agora não faço ideia de quando lançarei o próximo. Tenho uma pasta cheia de ideias para discos futuros, mas ainda não me sinto capaz de as pôr em prática.

Tens algumas canções mais melancólicas, outras mais alegres. Sobre o que gostas de escrever?

Muita da minha inspiração vem de coisas que vou sentindo e que vou observando também nos outros. Para este disco específico, muita da inspiração veio da saída da pandemia, da sensação de voltar a sentir, de valorizar esses sentimentos e de fruir os pequenos prazeres da vida. O disco tem muito essa marca do prazer primário, de sermos felizes com o que nos faz bem e de valorizarmos isso. O refrão de Prazer Prazer é basicamente sobre isso. O nome do disco vem daí e é também uma forma de fazer uma ponte musical com o Brasil em jeito de comunicação e de cumprimento. Quando conhecemos alguém dizemos “prazer” e a outra pessoa diz o mesmo. É essa ideia de comunicação aliada à desconstrução da culpa. Acho que a palavra ‘prazer’ tem uma carga negativa associada que está muito ligada à culpa. Quis desconstruir isso de alguma forma. Por exemplo, Passeio Pequeno é uma espécie de mantra, algo que repetimos a nós próprios para nos acalmar. Quando estou triste ou mais em baixo tenho o hábito de ir ver o mar. Há uma praia específica a que gosto de ir, que faz parte da minha infância. Essa ideia de ir ver o mar para nos sentirmos mais pequenos é algo que tenho muito marcado e precisei de expor essa ideia. Tranças é uma canção sobre mulheres. Não é necessariamente autobiográfica porque quando a escrevi estava a pensar sobre as mulheres da minha vida. Digo “soltar a trança” no sentido de libertar as amarras que nos são impostas. A minha forma de escrever é, talvez, mais poética, no sentido em que gosto de usar imagens e analogias, não é tão direta.

“O facto das canções não serem nossas dá-nos uma certa liberdade na interpretação(…) Por vezes as nossas palavras são mais difíceis de aceitar do que as dos outros.”

Também tens escrito para outros artistas. É mais difícil escrever para os outros?

São exercícios muito diferentes. Adoro escrever para outras pessoas. Fiz uma canção para a Cristina Branco em que escrevi a letra e a música, mas já tive encomendas em que só me foi pedida a letra. Recentemente trabalhei no disco da Margarida Campelo e foi uma forma de trabalho diferente, porque eu, ela e a Ana Cláudia encontrávamo-nos semanalmente para jantar e íamos escrevendo letras umas para as outras. Ou seja, as letras são fruto de um brainstorming que surgiu num jantar de amigas. Escrever para os outros tem várias formas. Quando escrevo para mim – apesar de isso ter a ver com a minha disponibilidade emocional – é mais difícil concentrar-me, porque não estou comprometida com promessas ou prazos. Neste momento em que estou a lançar o disco não tenho espaço emocional para me sentar e para escrever.

Como surgiu a colaboração com Marcelo Camelo?

Sou grande fã do Marcelo, adoro o trabalho dele tanto a solo como em Los Hermanos. Conheci-o pessoalmente através da Mallu [Magalhães]. Quando comecei a ter ideias para o novo disco, percebi que continuava a haver esta ligação muito forte à música brasileira e sabia que necessitava de trabalhar com alguém tendo em conta esta imagem que tinha para o álbum. Fartei-me de pensar em possíveis produtores e o único que me fazia sentido era o Marcelo, mas sempre achei que não seria uma hipótese viável, até porque ele tem estado afastado da área da música. A Mallu passou-me o contacto e andei a adiar porque não me estava a apetecer lidar com a rejeição, estava muito pessimista. Quando liguei, ele fez uma grande festa e ficou muito entusiasmado.

Para além da Ana Cláudia, da Mallu e da Margarida Campelo, Momo e Wado também colaboram no disco. Como surgiram estes nomes?

O Marcelo lembrou-se de uma música que tinha escrito em parceria com o Momo e com o Wado, Dente d’Ouro, que achou que ficaria bem na minha voz. É uma música feita por três homens e pensada para ser interpretada por um homem, mas que ele achou que tinha tudo a ver comigo. Adoro a música e sinto-me muito poderosa quando a canto. A letra é forte, bonita e delicada. É uma combinação incrível entre o universo masculino e feminino. Dente d’Ouro, Valente e Valsa d’Água são as únicas canções em que sou meramente intérprete. É engraçado porque, apesar de não terem sido escritas por mim, são aquelas onde me sinto mais livre a cantar. Às vezes, o facto das canções não serem nossas dá-nos uma certa liberdade na interpretação, talvez por não lhes associarmos nenhuma memória. Por vezes as nossas palavras são mais difíceis de aceitar do que as dos outros.

A 20 de abril apresentas este disco no B.Leza. O que estás a preparar?

É a primeira vez que vou tocar o Prazer Prazer ao vivo. Estou muito entusiasmada por ver estas canções a ganharem vida em palco. Vou tocar essencialmente este álbum, mas também uma ou outra canção que não fazem parte dele. Haverá algumas surpresas musicais, como alguns convidados que fizeram parte da construção do álbum. A minha maior preocupação é que as músicas sejam o mais fiéis possível ao disco e que a sala esteja cheia. Nunca toquei no B.Leza mas acho que tem uma energia incrível porque as pessoas estão de pé, dançam, é um espaço grande mas muito acolhedor. Sempre me imaginei a tocar lá, estou mesmo feliz por finalmente se ir concretizar.

Camilo Castelo Branco

Contos e Novelas – Vol. III

“Picado de génio e das bexigas”, lê-se como legenda da caricatura de Camilo Castelo Branco no Álbum das Glórias de Rafael Bordalo Pinheiro. O génio do grande escritor deu origem a uma obra torrencial com duas tendências essenciais: a novela satírica de costumes e a novela passional que culminam respetivamente na Queda de um Anjo e no Amor de Perdição. As bexigas que lhe desfeavam o rosto não impediram uma acidentada vida passional que foi a mais importante fonte da narrativa camiliana. A editora E-Primatur dedica quatro volumes, com organização, introdução e notas de Hugo Pinto Santos, à arte camiliana do conto. O tomo atual, terceiro na integral da ficção breve do autor, fixa-se entre as datas de 1872 e 1876, e concentra-se essencialmente em dois grandes conjuntos de narrativas: Quatro Horas Inocentes e Novelas do Minho. Na História da Literatura Portuguesa, Óscar Lopes e António José Saraiva consideram Camilo “o nosso grande percursor da melhor técnica contística” e destacam os seguintes títulos: Maria Moisés, História de uma Porta, O Cego de Landim ou A Morgada de Romariz. Os dois últimos integram o presente volume. E-Primatur

Paul Verlaine

Romanças sem Palavras

Em 1871, Paul Verlaine conhece Arthur Rimbaud e, entre ambos, inicia-se uma ligação vertiginosa feita de separações que oscila entre a ternura e a crueldade e a fidelidade e a traição. Em 1873, Verlaine atinge Rimbaud na mão esquerda com um tiro de revólver. O poeta é detido e condenado a dois anos de prisão. Do cárcere de Mons, Verlaine acompanha, como pode, o processo de publicação de Romanças sem Palavras. Após o escândalo, banido dos meios literários parisienses, viu o seu livro ignorado sem remorso. Exemplar de experimentação e inovação, a obra manifesta, segundo Manuel S. Fonseca, “uma requintada oficina poética que exibe uma concisão elíptica, bastando-se com a expressão mínima, como se tudo pudesse ser abreviado, a palavra, a sintaxe, talvez a vida”. Romanças sem Palavras integra, de pleno direito, a coleção Livros Negros que pretende acolher obras malditas ou proibidas e textos polémicos controversos ou escandalosos, de indesmentível qualidade literária. Os seus versos celebram “Antes tabernas / Que o doce lar” e cantam a marginalidade das “tascas luzentes”, das “choças imundas e negras”, dos “cheiros sinistros” e das “terras brutais”. A tradução é de João Moita. Guerra & Paz

Paulo Moreiras

A Vida Airada de Dom Perdigote

Tanganho Perdigão Fogaça, o ‘Dom Perdigote’, narra neste livro de memórias “um tanto do que vivi, um pouco do que senti e o muito que sofri”. O nosso herói pretende com a relação das suas façanhas “dar alegria e gosto ao povo, uma vez que a comédia é uma imitação da vida, espelho de costumes e imagem da verdade”. Nascido no ano da morte de Camões, nas andanças do destino, entre Portugal e Espanha, salva a vida a El Greco, luta em duelo com Quevedo, conhece Cervantes e livra um certo dramaturgo inglês, um tal de Guilliam Jaquespêra, de uma perigosa emboscada. Paulo Moreiras, celebrado por Miguel Real pelo seu “domínio admirável da língua portuguesa”, interessa-se pela novela picaresca desde que leu Vida e Obras de Dom Gibão, de João Palma Ferreira, em 1998. Em Dom Perdigote rescreve e reinterpreta frases de outros escritores, especialmente do Siglo de Oro espanhol (Cervantes, Lope de Veja, Quevedo, Fernando de Rojas, entre outros), produzindo um efeito singular entre a “biblioteca sentimental” e o jogo intertextual. Com as aventuras e desventuras deste herói pícaro, oferece ao leitor um brilhante exercício de estilo que é, simultaneamente, um divertimento erudito que o torna mais sabedor “sobre a fábrica do universo e a mecânica dos homens.” Casa das Letras

Rachel Carson

Primavera Silenciosa

No final da década de 1950, a bióloga marinha Rachel Carson (1907–1964) era considerada a escritora científica mais respeitada da América. O seu percurso começou no Colégio para Mulheres da Pennsylvania. Como bolseira, estudou no Laboratório Biológico Woods Hole e na Universidade Johns Hopkins, onde completou o mestrado em zoologia em 1932. Sem meios económicos para continuar os estudos, trabalhou como assistente de laboratório na Escola de Saúde Pública, onde adquiriu conhecimentos de genética experimental. Recebeu várias distinções e prémios, entre os quais o Prémio Nacional do Livro. A título póstumo, foi-lhe atribuída a Medalha Presidencial da Liberdade. Primavera Silenciosa (1962) é uma obra que demonstra os malefícios da utilização de pesticidas químicos. A investigação pioneira de Carson provou que o uso em grande escala de DDT e outros pesticidas agrícolas tinha um efeito devastador para a fauna e a flora, e a existência de uma relação direta entre vários tipos de cancro nos seres humanos e a exposição a estes químicos. Um livro fundamental que ajudou a repensar a relação entre ser humano e natureza, promoveu um debate sobre como atingir a justiça ambiental, e uma reflexão a propósito da indissociabilidade entre saúde pública e ambiente. Universidade de Lisboa

Gonçalo M. Tavares

Tempestade e Motor – 100 Haikus

Gonçalo M. Tavares publica dois novos livros: Breves Notas sobre o Oriente e Tempestade e Motor. Ambos têm o Oriente como inspiração: o primeiro foi em parte escrito no Japão (Tóquio e Quioto) e o segundo é dedicado a arte poética do haiku. O haiku é formalmente, um poema japonês de três versos composto de um total de dezassete silabas (5-7-5). Este terceto é, normalmente, um veículo poético transportador de duas imagens contrastantes entre si. Conciso e poderoso, evocativo e imagético, o haiku foca-se na natureza que serve de espelho ao mundo interior do poeta, estabelecendo um jogo de reflexos entre estados de alma e observações sensíveis. No Ocidente o haiku tem sido quase sempre entendido em função da sua espiritualidade ligada ao budismo zen. Roland Barthes considerou-o como o ramo literário da aventura espiritual do zen. Porém, o filósofo coreano Byung-Chul Han salienta que “o haiku é mais um jogo que diverte do que uma aventura espiritual ou linguística”. Esta última vertente é mais notória nestas aproximações de Gonçalo M. Tavares ao género (“uma vizinhança apenas, embora mantendo o nome”), tintadas de humor negro: “o relâmpago / aprendeu sons / com a guerra”. Relógio D’Água

Roland Topor

O Inquilino Quimérico

O romance O Inquilino Quimérico, clássico do humor negro, com contornos surreais, aborda os temas da alienação da vida nas grandes cidades, da falta de laços de empatia e humanidade entre os seus habitantes e do consequente processo de massificação que não reconhece o indivíduo. Trelkovsky, um jovem de 30 anos, honesto, bem-educado e discreto, que detesta complicações, é alvo de uma conspiração movida pelo ódio dos seus vizinhos. Acossado, e sem defesas, entra num processo inexorável de insanidade, despersonalização e metamorfose. Adaptado ao cinema e protagonizado por Roman Polanski, em 1976, com um elenco de luxo que incluía Isabelle Adjani, Melvyn Douglas, Jo Van Fleet, Shelley Winters e Lila Kedrova, O Inquilino constituiu o último filme da Trilogia do Apartamento após Repulsa e A Semente do Diabo. A versão cinematográfica, mais confinada ao apartamento do que a obra literária em que se inspira, ganha em ambiência claustrofóbica o que perde em dimensão alucinatória. É, justamente, devido à sua visão singular, cruel, grotesca e demencial, que esta história “de um homem que enlouquece devido à hostilidade do mundo que o rodeia” merece ser lida. Antígona

Javier Marías

O Homem Sentimental

O Homem Sentimental é uma obra que tem a complexidade de um romance e a extensão de uma novela (menos de 120 páginas). Quer o texto principal, como aquele que tudo indica que seja um posfácio, também da autoria de Javier Marías, indicam as datas da sua conclusão (respetivamente maio de 1986 e março do ano seguinte). Diz-nos Marías que “O Homem Sentimental é uma história de amor em que o amor não se vê nem vive, antes se anuncia e recorda.” Apesar do escritor cultivar uma certa ambiguidade relativamente aos factos narrados, somos levados a crer que a realidade do relato escrito do cantor de ópera León de Nápoles, deixa de corresponder ao que o mesmo vivenciara fora dos seus sonhos a partir do encontro num trajeto de comboio com a mulher por quem se apaixonará platonicamente, e que viajava na companhia do marido e de um segundo homem. Marías também refere no mesmo posfácio que “viajando de comboio de Milão para Veneza, tive à minha frente, durante três horas, uma mulher que correspondia exatamente à descrição física e moral” da personagem feminina, Natalia Manur. Não é difícil de suspeitar que o homem sentimental deste livro seja, em última análise, o próprio autor. [Ricardo Gross] Alfaguara

Os plásticos foram, e continuam a ser, importantes em áreas como a alimentação, a medicina, a indústria aeroespacial e a construção. Mas, afinal, de que falamos quando falamos de plástico? Nome genérico que damos a um universo de produtos sintéticos complexos, o plástico é um material revolucionário e profundamente controverso; imprescindível, é igualmente supérfluo, letal e muito perigoso. Esta exposição, uma coprodução do MAAT com o Vitra Design Museum e o V&A Dundee, analisa este material artificial com mais de um século e meio de história, bem como a espantosa – ainda que preocupante – narrativa da sua invenção e disseminação.

Com curadoria de Jochen Eisenbrand e Anna-Mea Hoffmann, do Vitra Design Museum (Alemanha); de Charlotte Hale e Laurie Bassam, do Victoria & Albert Museum Dundee, (Escócia), e de Anniina Koivu, do MAAT, e com consultadoria de Johanna Agerman Ross e Corinna Gardner, do Victoria & Albert de Londres, a mostra reúne 400 objetos que contam a história do plástico e a sua evolução, não só traça a trajetória exponencial da importância que este material assumiu na sociedade moderna e pós-industrializada, como equaciona o papel desempenhado pelo design ao longo deste percurso.

© Joana Linda

Dividida em três secções, a exposição abre com uma instalação videográfica sobre a relação geológica entre o plástico e natureza. Aqui, mostra-se todo o ciclo deste material presente em quase todos os aspetos da nossa vida, até se transformar em microplástico e invadir as partes mais recessas do ser humano.

A segunda secção percorre a história do plástico desde a sua origem natural até à experimentação com materiais sintéticos de meados do século XIX e início do século XX, prosseguindo depois com o crescimento da indústria petroquímica, o seu impacto na escala de produção do plástico e a crescente preocupação com o planeta a partir de finais do século XX.

Alternativa a materiais naturais

Antes do aparecimento do plástico, usava-se marfim, borracha, chifres, conchas de tartarugas ou goma-laca. A questão é que era necessário abater um milhão de árvores por cada 20 quilómetros de cabo. “O plástico foi inventado e criado como alternativa a materiais naturais”, começa por esclarecer Anninna Koivu. Para a curadora, parte da solução do problema do plástico passa pelo papel do design neste círculo vicioso. “O papel do designer é extremamente importante. O designer normalmente consegue ver o panorama mais alargado porque se encontra entre a indústria, a produção e o consumidor”, diz.

Conceber objetos que sejam restauráveis, modulares e que possam ser desmantelados para serem descartados ou apenas para reparar um elemento em vez de a peça inteira são algumas das preocupações que devem ser implementadas por quem cria peças utilitárias.

© Joana Linda

Sabia que, desde 1970 até hoje, a produção anual de plástico a nível mundial aumentou oito vezes, atingindo os 400 milhões de toneladas? Estes dados são passados na terceira e última secção da exposição, que faz um balanço dos atuais esforços para repensar o plástico, desenvolver alternativas, reduzir a sua produção e consumo e promover a sua reutilização.

Ali é mostrada, através de gráficos, a nossa dependência do plástico. Ainda assim, Anniina Koivu acredita não se poder demonizar a indústria. “Ela também tem pensado em alternativas. O consumidor pode ser mais exigente, o designer pode ter mais atenção”, acrescenta.

“Plástico de qualidade continua a ser fantástico. Se o usarmos no que realmente faz sentido e onde não há alternativas melhores, como nos cuidados de saúde, é fantástico. Mas temos de ter cuidado para não o usar apenas como o caminho mais fácil para tudo”, conclui Koivu.

Apesar de reconhecer que não há uma solução imediata e única para o problema, a curadora espera que esta exposição possa pôr o visitante a pensar sobre este material tão presente no nosso quotidiano e sobre o valor que lhe damos.

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