Depois de um ano de 2023 “em que foram batidos todos os recordes em taxa de ocupação, com mais de 90 mil espetadores” a passarem pelas duas salas do Teatro da Trindade, Diogo Infante assumiu, em conferência de imprensa, que chegou a altura de “correr alguns riscos”. Se, por um lado, a temporada 2024/2025, agora apresentada, mantém a tendência de apresentar poucos espetáculos (são “apenas” sete) para permitir carreiras longas, por outro, verifica-se uma clara aposta na dramaturgia portuguesa em detrimento de um leque mais alargado de propostas baseadas em clássicos ou obras de autores estrangeiros consagrados, como tem sido apanágio em anos anteriores.

Assim, a maioria dos espetáculos parte de textos escritos em português, sendo que três deles são inéditos, e um outro, escrito em português do Brasil, chega a Lisboa depois de ter feito sucesso no Rio de Janeiro e São Paulo: Marylin – Por trás do espelho, de Anna Sant’Ana (que o protagoniza) e Daniel Dias da Silva, encenado pela portuguesa Ana Isabel Augusto (14 de novembro a 22 de dezembro, na Sala Estúdio).

A atriz brasileira Anna Sant’Ana recria as últimas horas de Marylin Monroe.

Voltando aos inéditos, a primeira proposta sobe ao palco já a 19 de setembro, e trata-se do texto vencedor da sexta edição do Prémio Miguel Rovisco – Novos Textos Teatrais (que o Teatro da Trindade atribui anualmente). Escrito por Miguel Falcão e encenado por Ana Nave, Sombras é, segundo a encenadora, “um olhar oportuno sobre a ditadura e a forma como ela marca as vidas de pessoas comuns”, no caso, as mulheres “que permaneceram na sombra” da luta política de tantos homens que, com elas, “acreditaram na liberdade antes do 25 de Abril”. A peça é interpretada por Carla Maciel e Mafalda Marafusta.

Já em 2025, em fevereiro, estreia Um país que é a noite, uma encenação de Martim Pedroso a partir de texto de Tatiana Salem Levy e Flávia Lins, que compõem um diálogo ficcional entre dois escritores e poetas oposicionistas da ditadura salazarista, Sophia de Mello Breyner Andresen e Jorge de Sena, horas antes deste último fugir para o Brasil. Maria João Falcão, Rui Melo, João Sá Nogueira e o próprio Martim Pedroso interpretam.

Em maio, Diogo Infante dirige Sérgio Praia num espetáculo que promete gerar controvérsia e debate. Trata-se de Eutanasiador, peça de estreia de Paula Guimarães, que a considera “uma provocação e o reflexo do [seu próprio] dilema sobre o direito à vida e o direito à morte”.

Elencos de luxo passam pela Sala Carmen Dolores

Duas estreias e uma ansiada reposição, todas servidas por elencos de luxo repletos de muitos dos nomes sonantes do teatro português, prometem marcar a próxima temporada teatral.

Escrito pelo reputadíssimo dramaturgo britânico David Hare (autor de peças já encenadas em Portugal com grande sucesso, como Luz de Inverno, pelo Teatro Aberto, ou O Beijo de Judas, pelo Teatro Experimental de Cascais), Telhados de Vidro, no original Skylight, junta Diogo Infante e Benedita Pereira, nos papéis de um empresário cinquentão bem-sucedido e de uma professora mais jovem que, após uma inesperada visita, retomam uma conturbada relação amorosa. O espetáculo, encenado por Marco Medeiros, conta ainda com a participação do ator Tomás Taborda.

Custódia Gallego em “A Médica”, de Robert Icke

Depois do sucesso de Noite de Reis, Ricardo Neves-Neves e o seu Teatro do Elétrico estão de regresso ao Trindade com uma proposta radicalmente diferente. Da autoria de outro britânico, Robert Icke, A Médica confirmou o talento deste ainda jovem dramaturgo e encenador que o The Guardian chegou a considerar “a grande esperança do teatro inglês”, sobretudo devido às suas inovadoras encenações dos grandes clássicos da dramaturgia ocidental. Nesta peça, Icke propõe uma releitura da peça de Arthur Schnitzler Professor Bernhardi, e aborda com fina incisão temas como identidade, raça, sexualidade, saúde mental, religião e privilégio de classe. Custódia Gallego lidera um elenco de estrelas onde pontuam Adriano Luz, Sandra Faleiro, Pedro Laginha, Inês Castel-Branco, Maria João Paschoal, Rita Cabaço, José Leite, Eduarda Arriaga, Vera Cruz, Igor Regalla e Luciana Balby. Estreia a 12 de dezembro.

Por fim, Shakespeare, com o regresso do Sonho de Uma Noite de Verão encenado por Diogo Infante. Depois de quatro meses em cena e de mais de 40 mil espetadores terem visto esta comédia musical, onde as palavras d’O Bardo se encontram com alguns dos maiores sucessos da música popular portuguesa, Hérmia, Lisandro, Puck e companhia estão de volta a partir de março do próximo ano. No elenco renovado, destacam-se Ana Cloe, Gabriela Barros e Raquel Tillo (três das Mães, ainda em cena no Teatro Villaret).

Para além do teatro, a programação até final deste ano inclui ainda três concertos do Ciclo Mundos, da responsabilidade do programador Carlos Seixas. Pela Sala Carmen Dolores vão passar Mário Lúcio e Chico César (a 24 de setembro), a andina Luzmila Carpio (a 22 de outubro) e a saxofonista norte-americana Lakecia Benjamin (a 5 de novembro).

Como escolheste o teu nome artístico?

Tive dificuldade em encontrar um nome. Não sabia o que havia de ser, porque não gosto do nome Catarina Falcão, ou Cat Falcão. Queria que fosse só um nome, como Cher [risos], e lembrei-me de Monday. Na altura estava com a Mané, que tem feito os meus grafismos, e ela achou que era um nome feminino, que tinha qualquer coisa que faz sentido com a minha música. Por outro lado, gosto de segundas-feiras, acho que tem uma conotação meio romântica. Mas é mau para motores de busca. Foi muito mal pensado do meu lado [risos].

Sempre quiseste ser cantora?

Acho que a música surgiu de forma muito natural. Éramos três em casa da minha mãe. Temos mais irmãs, mas a primeira colheita – como nós gostamos de chamar – era a Margarida, eu e a Marta. A nossa mãe sempre ouviu muita música em casa e gostava muito de cantar também. Nós imitávamos e começávamos a cantar as três. Andámos no Coro de Santo Amaro de Oeiras quando éramos pequenas, que era ao lado de nossa casa. Cheguei a ir cantar no Natal dos Hospitais à noite. Cantar em casa, harmonizar, foi sempre natural, era a nossa realidade. Um bocadinho mais tarde, por volta dos 12 anos, a Margarida e eu começámos a compor. Na altura escrevemos uma música para a nossa igreja. Íamos à missa (a minha mãe obrigava-nos a ir todos os domingos), e então escrevemos uma música para cantarmos lá. A nossa primeira atuação foi na igreja. Entretanto comecei a ter aulas de guitarra de uma forma muito informal e fui aprendendo com os meus amigos e com aquilo que andava a ouvir.

A certa altura, tu e a tua irmã Margarida criaram as Golden Slumbers…

Foi a Margarida que me forçou [risos]. Na altura, ela foi ver um concerto de Bon Iver e a banda que fez a primeira parte foi o trio The Staves, três irmãs que fazem música folk. Ela achou incrível e quis tentar fazer qualquer coisa do mesmo género. Então, falou comigo, se calhar porque ouvíamos música mais parecida na altura e também estávamos a descobrir artistas mais ligadas à folk. No início era um bocado essa a linguagem que nos unia e começámos a compor. Mas foi a Margarida a força motriz para começar.

Nunca tinhas pensado nisso?

Acho que sim, mas se calhar tinha mais medo do que ela. Mas ainda bem que ela insistiu.

E de onde veio essa tendência para ouvir folk?

Ouvíamos muito Simon & Garfunkel ou Billy Joel, por exemplo. Quando éramos pequenas, era muita pop: Britney Spears, Spice Girls, Christina Aguilera… Mais tarde começámos a ouvir um cancioneiro mais folk, especialmente Simon & Garfunkel porque a minha mãe gostava muito. Pelos 15 anos, namorei com um rapaz que me deu a conhecer imensa música. Foi ele que mostrou Feist, Cat Power, Yeah Yeah Yeahs, Joni Mitchell, Laura Marling, que é uma das minhas grandes referências. Depois comecei a mostrar também à Margarida. Foi também nessa altura que apareceram os Mumford & Sons e nós gostávamos imenso, apesar de serem um bocadinho mais comerciais. Houve ali uma altura em que o indie-folk também estava mais na berra.

Cantas habitualmente em inglês, mas em 2020 fizeste uma perninha em Cedo, do disco Canções do Pós-guerra (2020), do Samuel Úria. Como surgiu o convite?

Em 2017, O Samuel pediu a mim e à Margarida que interpretássemos o tema dele no Festival da Canção [Para Perto]. Ficámos amigos e, um dia, ele mandou-me mensagem a dizer “tenho um tema que gostava que cantasses comigo, queres?” E eu: “claro!”. Foi assim, muito simples [risos].

Não foi estranho para ti cantar em português?

Não. Acho mais estranho compor em português do que cantar em português. É mais natural compor em inglês, sempre foi, mas gosto de cantar em português também.

“Escrevi o disco numa altura em que me sentia completamente submersa, como se tivesse sido engolida por uma onda”

O teu novo disco tem um título muito peculiar, Underwater, feels like eternity. Qual é a ideia?

Escrevi o disco numa altura em que me sentia exatamente assim, como o título sugere, que é a ideia de estar completamente submersa, como se tivesse sido engolida por uma onda. Sentia-me assoberbada e não estava a conseguir sair. Ao mesmo tempo, tinha uma sensação de paz. Estou aqui debaixo de água, tenho noção que me estou a afundar, mas não quero saber. Por acaso o título veio um bocado depois, porque escrevi uma música que começa com essa frase e isso fez muito sentido para a narrativa toda.

“Um disco muito íntimo, construído à base de muitas lágrimas”, diz no press release. Sentiste alívio por partilhares as tuas emoções neste disco?

Muitas das canções foram depois regravadas em estúdio, mas algumas das demos literalmente acabavam comigo a fungar… [risos]. Isso aconteceu não só por aquilo que estava a viver e que tive de transmitir para as canções, mas também por todo o processo de produção, de encontrar-me no meio dessa solidão. Sempre trabalhei com pessoas que faziam a coprodução comigo, e neste disco foi a primeira vez que tomei a decisão de ser eu a encontrar-me. Senti que tinha de perceber quem sou e tinha de trabalhar com as pessoas por querer, não por sentir que me faltava alguma competência. Sempre tive a ideia de que um produtor era alguém cheio de capacidade, cheio de conhecimento e de experiência e não me considerava essa pessoa. Sempre foi um lugar meio assustador e inalcançável para mim. De repente, é uma descoberta a nível pessoal, a nível de trabalho.

E agora se alguém te convidasse para ser produtora de um disco, aceitarias?

Adorava, mas dependeria muito dos timings e do projeto.

O mais recente single, Habits, tem colaboração de Afonso Cabral. Como surgiu esta parceria?

Eu tinha escrito esta canção e sabia que queria fazer um dueto, queria criar esta narrativa que tivesse duas perspetivas. Adoro a voz do Afonso, já o conheço há algum tempo, já tínhamos inclusive cantado com os You Can’t Win Charlie Brown num concerto no CCB, e lembrei-me de o convidar, de mandar mensagem pelo Instagram a perguntar se queria cantar uma música comigo. Pedi-lhe para ele escrever o verso que ia cantar, gostava de ter a perspetiva dele. Fez tudo num dia e meio e acertou na mouche.

No dia 22 apresentas este disco na Sala Lisa. Como vai ser?

Vamos ser três em palco, vou tocar com dois irmãos, o João e o Miguel Avelar. Vamos apresentar o disco todo e algumas canções do EP e também do meu primeiro disco. Estou muito entusiasmada, acho que é a primeira vez que vou estar a apresentar canções onde me sinto inteiramente eu, onde não há nada que seja feito pela mão de outra pessoa. Faz imenso sentido neste momento, estou entusiasmada por poder mostrar isso ao vivo.

Já tens mais canções em gaveta para um próximo trabalho?

Há sempre canções que ficam de fora de um disco e penso sempre na vida que podem ganhar a seguir. Ainda não estou a pensar muito concretamente em nada, mas claro que tenho vontade de fazer mais coisas e de explorar outros lugares- Mas, se calhar, antes de Monday sai qualquer coisa de Golden Slumbers.

Estão a trabalhar em alguma coisa?

Sim, estamos a compor.

Consegues fazer bem essa divisão do que é a tua música enquanto Monday e enquanto metade das Golden Slumbers?

Estou a descobrir ainda [risos]. É um caminho que se vai fazendo. Acho que a partir do momento em que digo à Margarida que tenho uma música, ela quer gravar logo. Mesmo que depois eu fique a pensar que se calhar devia ter ficado para mim [risos]… Acho que qualquer pessoa que tenha um projeto seu, tem sempre outros mil projetos. É muito difícil canalizar tudo num só sítio, acho até pouco saudável. É bom ter vários espaços, lidar com várias pessoas e aprender de várias formas.

O que andas a ouvir?

Ando a ouvir o novo disco da Billie Eilish. A minha irmã Matilde, uma das mais novas, é muito obcecada, acho que ela sente as coisas com outra intensidade e está sempre a insistir comigo para eu ouvir determinada música… Também ando a ouvir Chappel Roan; o novo disco da Willow Smith, Empathogen, de jazz e fusão experimental. Também ando a ouvir Hohnen Ford, que tem um lado meio jazzístico, e que tem uma voz mesmo bonita.

Embora já tenha trabalhado com nomes tão distintos do teatro português como Tiago Rodrigues, Pedro Gil, Bruno Bravo ou o malogrado Jorge Silva Melo, ou ter assinado duas criações em nome próprio (Yolo, em 2022, e Massa Mãe, no ano seguinte), Sara Inês está longe de se sentir “popular”. Talvez por isso, desta vez, a atriz decidiu distribuir pipocas e entrar em palco com muito espalhafato, decibéis ao alto e um jogo de luzes a clamar pelas emoções mais epidérmicas da plateia. Nem sequer um (“pequeno”) camião TIR falta à chamada, nem a voz épica de “um anúncio semelhante a um trailer de um filme de Hollywood” deixará passar em claro a chegada de Sara Inês ao palco do Coliseu. Ou, em bom rigor neste caso concreto, ao do Teatro Meridional, que isto da popularidade tem muito que se lhe diga.

Nesta nova criação, Sara Inês tem alguns minutos para experimentar a sensação de ser “uma espécie-de-artista-popular”, antes de começar por desafiar as convenções e os estereótipos em que se enredam os artistas e o público, essa entidade tão abstrata que tanto pode ficar “ao rubro a ver o César Mourão”, como dar “o dedo mindinho para estar agora num espetáculo da Angélica Liddell.”

Porque as vontades e as ansiedade do público podem ir do mais “acessível” ao mais erudito, Popular é um exercício de reflexão sobre qual é “o lugar do artista e o lugar do público” nesta coisa tão intrincada do duelo entre alta cultura e baixa cultura. Dito de outro modo, Popular é um espetáculo onde uma atriz trajada de cor-de-rosa aponta ao cânone do mundo da cultura, promovendo paralelamente a auto-reflexão e a análise sobre o que é ser espectador de um objeto artístico, ou como se diz no léxico do capitalismo, de um “produto” cultural.

Por um lado, a atriz Sara Inês procura perceber como é que, enquanto artista, se pode “ser popular e agradar ao grande público” e, ao mesmo tempo, não prescindir da “verdade artística”, restando a dúvida sobre como catalogar o ator ou o músico em questão. A dado momento do espetáculo, ouve-se constatar que “a Cláudia Pascoal [que aqui assina os momentos musicais do espetáculo] dá concertos nas Festas de Chaves e também vai ao MEO Kalorama. O Bruno Nogueira apresenta o seu stand up no Altice Arena, mas também o apresenta no Dona Maria. O Marante dá concertos em camiões nas aldeias mas também toca nos Maus Hábitos [sala de “vanguarda” na cidade do Porto]”. Terão estes artistas traído a sua “verdade artística”, pergunta-se.

Por outro lado, a mesma Sara Inês, que também é espectadora, enceta um olhar sobre si mesma e sobre a plateia que tem à frente. Entre conjeturas sobre “o espectador que habita em nós”, desfilam perguntas como que tipo de espectadora é, afinal, a artista que tanto gosta de um passinho de dança num arraial popular como se comove numa ida à ópera? Ou, virando-se para o público, a que “grupo ou grupinho das artes” pertencerá o lado direito da plateia? Será que a maioria dos espectadores deste Popular se inscreve no “público especializado” segundo os critérios da Direção-Geral das Artes?

Talvez Sara Inês não consiga ter respostas concretas sobre tudo isto, nem sequer importa dá-las ao público. O que interessa verdadeiramente, em Popular, é a atriz e o público serem convidados a enfrentar e debaterem em conjunto os seus papéis perante os objetos artísticos ou os locais onde estes ocorrem, como se isso definisse cada um de nós, sejamos artistas ou apenas espectadores. Objetivamente, a atriz está em palco para nos confrontar com os dilemas da “validação” do gosto ou com “a síndrome de impostor” que, num número de ventriloquismo com um alter-ego chamado Gigantona, a atriz expõe sem deixar pedra sobre pedra.

Construído de um modo divertido e arguto, Popular dialoga diretamente com cada um de nós, sejamos frequentadores habituais de teatros ou museus, ou meros espectadores acidentais de um espetáculo. No fundo, lembra Sara Inês Gigante, “o público é uma metáfora de todos nós em sociedade” e o artista, mesmo desejando granjear popularidade, talvez só procure mesmo “o amor do público.”

Estreado nos Festivais Gil Vicente, em Guimarães, no início do mês, Popular chega ao Teatro Meridional a 20 de junho, permanecendo em cena, de quarta a domingo, até dia 30. O espetáculo tem cenário de Fernando Ribeiro, desenho de luz de Manuel Abrantes, apoio à criação e dramaturgia de Malu Vilas Boas, sonoplastia de FOQUE e colaboração musical de Cláudia Pascoal.

[as fotografias de ensaio são de Filipe Ferreira]

Sempre quiseste ser músico?

Sim, percebi isso ainda em criança. Também achei que ia ser astronauta, veterinário… mas foi relativamente cedo que percebi que gostava muito de cantar. Na altura não via como muito viável a hipótese de ser artista, mas já gostava de cantar.

Os teus pais apoiavam-te ou insistiam que tirar um curso superior era importante?

Apoiavam-me, mas, da mesma forma que eu achava pouco viável vir a viver da música, eles ainda acreditavam menos nisso [risos]. Comecei a tirar o curso [de Antropologia] e acabei por não o terminar. Mas fui para a faculdade com o objetivo de ter um plano de vida.

O nome artístico vem de onde?

Richie é uma abreviatura de Ricardo. Campbell vem da influência de artistas jamaicanos que cresci a ouvir e de que gostava muito. Tentei absorver algum do talento através do nome. [risos]

E esse fascínio pela cultura jamaicana, de onde é que vem?

Vem da minha mãe, da minha infância em casa a crescer a ouvir os clássicos: Bob Marley, Dennis Brown, Jacob Miller, Garnett Silk, os grandes artistas jamaicanos da geração dela. Depois, a certa altura, já eu era mais velho, o reggae teve muita força em Lisboa, especificamente ali na linha de Cascais e também na margem sul. Essas duas coisas juntaram-se, o que contribuiu para poder dizer que 90% das músicas que ouvi enquanto crescia eram de artistas jamaicanos.

As pessoas associam-te muito ao reggae, mas a tua música inclui outras sonoridades…

As pessoas têm facilidade em associar-me ao reggae porque é o estilo de música jamaicano mais conhecido, mas o que eu faço é uma mistura de todos os géneros musicais jamaicanos. Na Jamaica existe uma diversidade de música quase igual ao que encontramos no resto do mundo. Há imensa diversidade numa ilha pequeníssima. O que eu faço é uma mistura de dancehall – que é outro género musical jamaicano muito conhecido – e também de R&B e outras influências que fui tendo à medida que crescia. A minha música é uma mistura dessas influências jamaicanas com que cresci e também do que acontecia à minha volta, vivendo em Lisboa.

Suponho que seja o género musical que ouves mais… quem são os artistas que mais ouves?

Artistas de dancehall, como o Vybz Kartel e outros que ninguém conhece [risos]. Por exemplo, de dois em dois meses passo pelo menos uma semana a ouvir Bob Marley.

É a tua maior referência do reggae?

Não é a minha maior referência, mas acho que é a de muita gente. Acho que há poucos artistas no mundo que têm uma discografia tão completa, intemporal e que se adapta a várias alturas. Sempre que começa a ficar bom tempo, ali por volta de abril, apetece-me ouvir Bob Marley.

Tens uma rotina de trabalho ou escreves quando te sentes inspirado? É importante ter um método?

Tenho uma rotina de trabalho, mas nem sempre me sinto muito criativo. Portanto, há dias em que, mesmo tendo essa rotina, não sai nada… A minha forma de ver as coisas é esta: tento manter a rotina trabalhando ao máximo para que, no momento em que chegar a inspiração, esteja no estúdio a trabalhar.

A rotina pode ser inimiga da criatividade?

Pode, mas não ter rotina e estar à espera que a criatividade apareça também pode ser um inimigo da produtividade. Portanto, é um balanço que é preciso encontrar… Também não posso estar sempre fechado no estúdio, porque a criatividade não sai de dentro de mim sem motivo, ela surge da minha interação com o mundo. Tenho de viver para ter alguma coisa para contar.

O último disco, Heartbreak and Other Stories (2023), tem muitas canções que falam sobre o amor. Escreves para ti ou para os outros?

É um tema muito recorrente e sinto que ao longo da minha carreira – porque vou ficando mais velho – os meus argumentos vão evoluindo, são mais maduros, mais complexos. Se calhar, a primeira música que escrevi era a questionar porque é que me tinham deixado. Atualmente, já abordo ângulos mais complexos das relações no geral. Mas é um tema sobre o qual consigo falar com muita facilidade. Eu próprio fico surpreendido com a quantidade de vezes que tenho alguma coisa de novo para dizer sobre isso e pela forma como todas as minhas experiências de vida se encaixam na minha música.

Escrever é uma catarse, é isso?

As pessoas costumam dizer isso, mas não vejo como catarse. Seja em músicas que falam de amor, ou músicas que abordam outros temas, acontece-me o seguinte: se passo por uma determinada experiência (seja ela positiva ou negativa) e se isso se traduzir numa música, já estou a ganhar. Mesmo quando são coisas menos boas ou mais difíceis, fico sempre contente quando consigo retirar uma música desse processo.

“A criatividade surge da minha interação com o mundo. Tenho de viver para ter alguma coisa para contar”

É importante criar uma narrativa para cada disco?

Tento não planear de antemão e sinto que descubro sempre essa coerência a meio do processo. Deixo o processo correr de forma natural e depois, quando chega a altura de começar a juntar as músicas do álbum, interpreto em que fase da vida é que estou, o que é que faz sentido e o que é que acabei por escrever.

Olhar para os discos mais antigos é o mesmo que folhear um álbum de fotografias? Consegues perceber exatamente quem eras naquela altura?

Consigo. Faço esse exercício várias vezes quando sinto que estou um bocadinho perdido criativamente. Às vezes vou ouvir o que já fiz porque ajuda-me, transporta-me para essa altura. É um bocado como ver um álbum de fotografias. Às vezes olho para uma fotografia e percebo que cenário era esse. É o mesmo com a música, ajuda-me a perceber o que escrevi.

Fazer esse exercício de olhar para trás também pode ser fonte de inspiração?

Às vezes sim. Acima de tudo, dá-me confiança quando estou a ser demasiado crítico com as músicas que estou a fazer no momento. Vou ouvir coisas antigas e penso que as pessoas gostaram, mas agora eu acho horrível [risos]. Quer dizer, não acho horrível, mas consigo ouvir e ter a consciência de que consigo fazer muito melhor. E se calhar estou a ser demasiado exigente quando naquela altura não era tanto e as coisas funcionavam. Portanto, é nesse sentido que, às vezes, é importante ouvir o que está para trás.

És perfecionista, portanto?

Demorei cinco anos a fazer este álbum. Tenho de sentir que está tudo perfeito antes de o lançar. O que não quer dizer que esteja, efetivamente. Porém, o que acontece é que já estou há tanto tempo sem produzir novas músicas que tenho de avançar, e acaba por nunca atingir a perfeição. É o mais perfeito que consegui naquele momento.

Em 2014 criaste a editora Bridgetown. É um papel muito diferente do de ser músico ou as duas coisas complementam-se?

São papéis que se complementam, no sentido em que trabalhar com artistas que estão noutra fase de carreira também me traz benefícios. É importante ver alguém que está a começar e a ter as primeiras vitórias, testemunhá-lo de perto. Assistir a isso quase que me dá um choque de motivação. A minha função é aconselhar os artistas que estão na editora e tentar passar um bocadinho do conhecimento que tenho por estar cá há mais anos do que alguns deles.

Gostas de os ver ganhar asas e voar?

Adoro lembrar-me dos momentos em que tivemos as primeiras conversas, em que eu disse “sei que isto vai funcionar” e, algum tempo depois, de as coisas terem corrido bem, estarmos numa sala grande a festejar esse trabalho. Acho que é das coisas que mais gosto de fazer.

Como é a tua relação com as Festas de Lisboa?

Quando era mais pequeno e vivia em Caxias, todos os anos ia religiosamente ao arraial de lá. Atualmente, ir para as Festas é um bocadinho caótico [risos]. Multidões para mim não são o ideal, mas faço questão de ir todos os anos a algum sítio onde haja menos confusão.

A 30 de junho encerras as Festas  com um concerto no Terreiro do Paço. Que espetáculo estás a preparar?

Vou tocar este disco e vou ter convidados especiais relacionados com este trabalho. Também vou receber convidados relacionados com a Bridgetown e com os meus próximos projetos. Posso também adiantar que vai ser a primeira vez que vou tocar uma música que há-de sair, entretanto.

Já estás a pensar no futuro?

Já tenho ideias para um álbum novo. Estou numa fase em que já tenho música suficiente, mas que quero melhorar e trabalhar, e retirar as canções de que não gosto tanto. Ainda não estou na fase de pensar em lançar um disco, não sei daqui a quanto tempo é que ele vai sair, mas espero não voltar a demorar cinco anos [risos].

Encontrar um local tranquilo, onde seja possível ver uma exposição, assistir a um concerto ou a uma palestra, ou simplesmente ler um livro, pode não ser tarefa fácil em mês de Festas de Lisboa. Mas, eis algumas sugestões.

©José Vicente 

Goethe-Institut

O antigo Palácio Valmor, construído no século XVIII, foi, além de residência de família até ao início do século XX, a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e, a partir de 1964, Embaixada da antiga República Federal Alemã. Hoje é a casa do Goethe-Institut.

Situado no Campo Mártires da Pátria, o belíssimo palácio é palco de atividades culturais variadas: concertos, sessões de cinema e literárias, debates e workshops. O jardim, com plantas originárias da Ásia, África e América do Sul, misturadas com vegetação autóctone, constitui um verdadeiro oásis no centro da cidade, onde se pode usufruir de uma esplanada que serve especialidades alemãs.

Outro espaço a destacar é a biblioteca, sítio ideal para ler, estudar ou trabalhar e onde se encontra um pequeno jardim de leitura (separado do jardim principal).

O jardim acolhe, em junho, o Mediacon (28 e 29 junho), festival organizado por meios de comunicação alternativos e independentes portugueses que aborda questões ligadas ao panorama mediático. Da restante programação destacam-se ainda os Encontros com “Galileu” de Brecht (a 7 e14 junho).

©Jorge Maio

Palácio Fronteira

Localizado numa antiga Quinta de Recreio, o Palácio Fronteira é um dos mais belos monumentos lisboetas do século XVII. O edifício, hoje Monumento Nacional que funciona como museu, mantém a traça muito próxima do seu desenho original, preservando a maior coleção de azulejos da época conservada no local para a qual foi concebida.

Tendo a particularidade de continuar a ser habitado pelos descendentes de Dom João de Mascarenhas, o primeiro Marquês de Fronteira, o espaço é visitável, permitindo o passeio livre nos magníficos jardins (podem solicitar-se áudio e videoguias) e visitas guiadas ao interior. Realizam-se também passeios temáticos dedicados aos azulejos e às figuras literárias que habitaram o palácio.

O local, um espaço único para fugir do bulício do centro de Lisboa, apresenta ainda uma programação cultural regular que inclui concertos, exposições e visitas encenadas. Destacam-se em junho o concerto organizado e transmitido a partir do Palácio Fronteira pela Antena 2 (27 junho) e as visitas encenadas dirigidas a famílias.

©Ana Luísa Alvim/CML

Biblioteca de Alcântara | Palacete do Conde de Burnay

O Palacete do Conde de Burnay, construído em finais do século XIX, abriu desde cedo portas à comunidade passando a albergar, na década de 1930, a Escola Comercial Ferreira Borges. O edifício foi posteriormente reabilitado e transformado na Biblioteca de Alcântara.

A biblioteca mantém uma estreita relação com a freguesia onde está inserida e os seus habitantes, e mesmo antes de inaugurar já tinha um grupo de teatro comunitário. Está, no entanto, aberta a todos, oferecendo ao público que a visita salas de leitura e multiusos, galeria de exposições e um jardim que convida à descontração e serenidade.

Todos os meses o espaço é palco de diversos eventos culturais, acolhendo regularmente ciclos de cinema, conversas, exposições, teatro e um coro para adultos e outro infantojuvenil, e o projeto Histórias e Memórias de Alcântara.

Em junho estão programadas, entre outras atividades, o Filme do Mês (sessão a 22 de junho), em parceria com a Zero em Comportamento, e Conversas sobre Inteligência Artificial (dia 15).

©Humberto Mouco/CML-ACL

Brotéria

Em pleno Bairro Alto, numa das zonas mais animadas de Lisboa, está localizada a Brotéria, uma casa com história, construída no século XVI. O palácio, antiga habitação dos Condes de Tomar, foi sede do Royal British Club e Hemeroteca Municipal de Lisboa. Desde 2020 alberga a Comunidade Brotéria, da Companhia de Jesus, um centro cultural jesuíta, que teve como ponto de partida a revista Brotéria, criada há 120 anos.

O espaço, que permite fugir à confusão exterior, inclui a biblioteca, particularmente valiosa no campo da Teologia, Filosofia, Literatura e História, que reúne várias salas de leitura, ideais para estudar ou trabalhar; o café, com um simpático e silencioso pátio, local de encontro que convida ao descanso; a livraria Snob, projeto editorial próprio e com experiência considerável no mercado do alfarrábio e do livro em segunda mão e uma galeria que acolhe exposições.

Do programa de junho destacam-se a última sessão do seminário Pensar a Educação, intitulada J.R.R. Tolkien: o objetivo da vida (dia 4), a conversa e a visita à biblioteca Marcas de posse e encadernações notáveis na Biblioteca da Brotéria (5 de junho) e a visita guiada ao palácio (dia 29).

Biblioteca Palácio Galveias

Instalada no edifício que foi, em tempos, a casa da família Távora encontra-se a Biblioteca Palácio Galveias. O palácio, adquirido pelo município em 1928, foi transformado em Arquivo, Biblioteca e Museu Municipal. Situada junto ao Campo Pequeno, numa das mais movimentadas artérias da cidade, a biblioteca, onde o Prémio Nobel da Literatura José Saramago, afirmou ter “aprendido realmente a ler”, é hoje o epicentro de uma atividade cultural regular.

Clubes de leitura, conversas, palestras, concertos, exposições e cinema são algumas das atividades desenvolvidas neste espaço inspirador e tranquilo. O amplo jardim é um refúgio que promove a leitura ao ar livre e momentos de tranquilidade. No quiosque que serve de cafetaria pode também fazer-se uma pausa para refeições ligeiras.

Da programação de junho são de salientar a conversa Escrita em Dia, com Layla Martínez, autora espanhola que lançou este ano, em Portugal, o seu primeiro romance (dia 17), o evento Guitarras do Grácio & Convidados, que divulga a vida e a obra do mestre construtor de guitarras Gilberto Grácio (dia 21) e a peça teatral para crianças O Gigante Egoísta, a partir de Oscar Wilde (dia 30).

Canção de Rolando

Rolando foi um cavaleiro franco, prefeito da Marca da Bretanha, que, na retaguarda do exército de Carlos Magno, foi morto por um destacamento de bascos nos Pirenéus, no ano de 778. Canção de Rolando, cantiga de gesta composta no século XI, constitui um dos mais antigos poemas épicos medievais das literaturas europeias. Estas canções tinham, muitas vezes, propósitos políticos e religiosos por parte dos patronos que encomendavam a sua composição, não constando o rigor histórico como uma das suas principais preocupações. A sua circulação ficava a cargo de trovadores e jograis que as cantavam nas cortes europeias e em festas populares. Neste contexto, Canção de Rolando, composta numa época em que a Europa procurava estabelecer uma identidade cristã face ao inimigo herege, consagra Rolando, sobrinho de Carlos Magno, como o paradigma do paladino e converte os bascos em sarracenos. O belíssimo poema, na primeira tradução integral em Portugal, narra a traição de Ganelão (cunhado do rei e padrasto do herói), a batalha de Roncesvales, a derrota e morte de Rolando, a vingança de Carlos Magno sobre os que “arrancaram a flor da doce França” e o castigo do traidor. E-Primatur

Sherwood Anderson
Morte na Floresta e outras histórias

Aos 36 anos de idade, Sherwood Anderson (1876-1941) sofreu um colapso nervoso provocado pela insatisfação profissional como gerente de uma empresa de entregas por correio, pelos problemas financeiros e pela crescente deterioração da relação conjugal. Este incidente fá-lo mudar de vida e dedicar-se exclusivamente à literatura. Apesar de ter escrito oito romances, a sua reputação assenta nas suas quatro coleções de contos que revelam, sem sentimentalismos, de forma realista e num estilo sem afetação literária que influenciou Hemingway e Faulkner, a América profunda através da vida nas pequenas cidades do interior e que constituem uma crítica impiedosa ao materialismo do seu país. O belíssimo conto Morte na Floresta, que dá título a esta recolha, narra os momentos finais na vida de uma velha que, no rigor do inverno, se desloca à povoação mais próxima para se abastecer. Com o pesado fardo às costas, atravessa a floresta a caminho de casa e aí morre de cansaço e frio. Os cães vadios rasgam-lhe as roupas e devoram-lhe o farnel. Para os dois rapazes que descobrem o corpo, e que nunca tinham visto uma mulher despida, ela não lhes parece idosa, pois a neve agarrada “à carne congelada” dá-lhe “uma aparência tão alva, tão bela, tão semelhante a mármore.” Cutelo

Arlindo Manuel Caldeira
O Apelo da Liberdade

“Saído de Lagos, em 1441, Antão Gonçalves, um jovem capitão da casa do Infante Dom Henrique, sentia-se satisfeito naquele dia, embora não pudesse ter noção da novidade histórica nem da gravidade do seu gesto”. Na sua expedição, ao longo da costa africana, capturou os dois primeiros prisioneiros, pelas viagens das caravelas, oriundos desse continente: um azenegue (berbere) e uma “moura preta”. Duas razões presidiam a tal captura recomendada pelo infante: uma de natureza cientifico-religiosa, com o objetivo de obter informações sobre os caminhos para atingir o reino do Preste João; outra, económica, visando a venda de escravos na Europa. Entre os séculos XV e XIX, quase 13 milhões de africanos foram obrigados a deixar a sua terra, naquela que foi uma das mais numerosas e violentas deslocações forçadas da história da Humanidade. Como reagiam os escravizados a esta situação imposta? Segundo a historiografia tradicional a atitude comum teria sido a passividade e o conformismo. A verdade é que um número significativo dos escravizados recusou-se a aceitar o estatuto que lhes determinavam e as obrigações a que eram sujeitos. Este livro, resultado de uma investigação inovadora, trata dos gestos de resistência individual ou coletiva, nas áreas de influência portuguesa, traduzidos na fuga, no suicídio, na rebelião aberta ou na revolta organizada. Casa das Letras

Nikolai Gógol
Tarass Bulba

Influenciada pelo seu ídolo, o poeta Alexandr Puskin, a escrita de Nikolai Gógol (1809-1852) inspirará, por sua vez, as obras de Tolstói, Dostoiévski, Nabokov ou Kafka. O autor é hoje conhecido pelo seu humor, pelas sátiras políticas e pelos escritos proto-surrealistas. O Nariz, por exemplo, narra as aventuras de um nariz que se separa do rosto a que pertence, na tentativa de viver uma vida independente. A novela Tarass Bulba é, no entanto, uma obra muito diferente que se insere no movimento de nacionalismo romântico na literatura, que se desenvolveu em torno de uma cultura étnica histórica. Ambientada numa “época cruel em que o homem levava uma vida só de proezas guerreiras, e temperava nelas a sua alma, esquecendo os sentimentos de humanidade”, e em que a guerra “parecia tratar-se mais de uma orgia, de um massacre do que de uma campanha militar”, narra a trágica relação do velho cossaco Tarass Bulba com os seus dois filhos Andrei e Ostap. Durante a revolta da Ucrânia contra o domínio polaco, Tarass mata o filho mais novo que, apaixonado por uma polaca, atraiçoa o seu povo e incentiva o mais velho, capturado pelo inimigo e torturado até a morte, a manter a coragem. Contudo, a obra termina em exaltação com a profecia do velho cossaco, antecipando a grandeza da fé ortodoxa, da “terra russa” e do seu czar. Relógio D’Água

Italo Calvino
Seis Propostas para o Próximo Milénio

Italo Calvino foi oficialmente convidado pela Universidade de Harvard a realizar as Charles Eliot Norton Poetry Lectures no decorrer do ano letivo de 1985/86. Trata-se de um ciclo de seis conferências que têm por tema geral toda a forma de comunicação poética – literária, musical, figurativa – com escolha inteiramente livre do assunto. Definido o tema a tratar – alguns valores literários a conservar no próximo milénio – Calvino consagrou grande parte do seu tempo à preparação das conferências. Falecido a 18 de Setembro de 1985, deixou escritas cinco das seis lições programadas: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade. Faltava a sexta, Consistência, que contava escrever em Harvard. No seu lugar, reproduz-se o texto inédito Comecar e Acabar, elaboração provisória da conferência inicial, posteriormente excluída, mas com grande parte do material destinado a confluir na sexta lição. Nestes ensaios admiráveis reafirma a sua confiança no futuro da literatura, porque sabe “que há coisas que só a literatura com os seus meios específicos pode dar-nos.” Dom Quixote

Carlos Gil
Um Fotógrafo na Revolução

Na madrugada do dia 25 de abril de 1974, Carlos Gil saiu para a rua “apenas com uma máquina fotográfica e um rolo de película, este mesmo assim já meio impressionado” porque na sua vida profissional, então “já com sete anos de tarimba”, nunca acontecera nada de importante, algo “a merecer mais do que 36 negativos a preto e branco”, escreve o jornalista Adelino Gomes no prefácio deste magnífico álbum fotográfico. Será em pé, no alto de um Unimog transformado em tribuna ambulante, que Gil irá dar testemunho, em dezenas e dezenas de fotografias, do golpe de Estado e da explosão popular que desencadeou. Carlos Gil – Um Fotógrafo na Revolução reúne 200 fotografias selecionadas por Adelino Gomes com Daniel, filho de Carlos. Nesta reedição, com design renovado, revista e aumentada, vários inéditos se juntam agora à narrativa inicial do jornalista. Incluem-se outras figuras relevantes do tempo anterior ao 25 de Abril e de todo o Período Revolucionário Em Curso (PREC), também num novo posfácio ilustrado e novas situações-chave, antes e após o dia a que Sophia chamou “inicial, inteiro e limpo” que ajudam a contar melhor a revolução, os seus protagonistas e “a poesia que vai na rua”. Caminho


Tiago Borges Lourenço e Raquel Seixas
Júlio de Castilho – Mestre da Lisboa Antiga

De um modo inédito, Júlio Castilho (1840-1919) propôs-se estudar os bairros de Lisboa sob as perspetivas histórica, arqueológica, artística, literária, sociológica e genealógica. Foi autor de Lisboa Antiga, o primeiro ensaio histórico-literário sobre a cidade publicado em livro e liberto de encomendas e discursos oficiais. A sistematicidade e inovação das suas obras abriu caminho a uma nova forma de estudar e divulgar a história de Lisboa. A sua longa lista de atributos e ocupações incluía, entre muitos outros, a poesia, os estudos histórico-biográficos, o desenho, o memorialismo. Contudo, esta obra foi concebida como um estudo sobre a vida de Castilho centrado no seu trabalho como olisipógrafo. Escrevem os seus autores: “Não é, portanto, uma biografia no sentido mais ortodoxo do termo, não só pela forma ativa como o biografado dialoga com o leitor, em períodos de quase narração autodiegética, mas sobretudo pelo modo como a sua vida é percorrida cronologicamente por duas vezes: sobrevoada descritivamente para se desvendar o homem antes de se pousar analiticamente na Olisipografia, o solo que tudo justifica.” Imprensa Nacional

Joel Dicker
Um Animal Selvagem

É no dia 2 de julho de 2022, às nove e meia da manhã em ponto, com um assalto à mão armada a uma joalharia de Genebra por um par de delinquentes que se inicia o novo mistério de Joël Dicker. O escritor estreou-se com Os últimos dias dos nossos pais. Mas foi a publicação do segundo romance que fez dele um fenómeno literário global: A verdade sobre o caso Harry Quebert foi publicado em 33 países, vendeu mais de quatro milhões de exemplares e venceu o prémio de melhor romance da Academia Francesa de Letras, o Prix Goncourt des Lycéens e o prémio da revista Lire para melhor romance em língua francesa. O seu sétimo romance policial conta a história desse roubo, um engenhoso plano que nada tem de comum. A narrativa recua 20 dias antes do assalto, dando a conhecer Sophie Braun, cuja vida de sonho com a família está prestes a ruir; o seu marido, que oculta inexplicáveis segredos; o vizinho mais próximo, agente da polícia, e um homem misterioso que oferece a Sophie um arriscado presente. Apresentadas as personagens, a hábil narrativa acompanhará os acontecimentos de cada um dos dias que antecederam o assalto até terminar de novo no momento do crime, unindo princípio e fim, num círculo perfeito. Alfaguara

Nos bairros da cidade, os arcos alegóricos e as danças por alturas do Santo António eram costume intemporal quando, em 1932, o periódico Notícias Ilustrado, por iniciativa do seu diretor José Leitão de Barros, decidiu organizar no Parque Mayer o primeiro desfile das coletividades, evento na génese do atual concurso das marchas populares de Lisboa. Se, no início, é o folclore e as raízes rurais de parte da população lisboeta a marcar o tom da iniciativa, com o passar dos anos, pelo forte envolvimento das autoridades administrativas, sobretudo a autárquica, as marchas afirmaram-se no imaginário popular urbano, promovendo entre os bairros uma competição criativa, artística e, quase sempre, bastante salutar.

Depois de um período em que a “tradição” foi associada a um certo passadismo característico de tempos idos, as marchas populares ganharam novo fulgor e motivos de interesse nos anos 90 do século passado, independentemente de os bairros históricos da cidade estarem já a passar pelo processo de gentrificação, que haveria de agudizar-se com maior intensidade na última década.

Já não sendo esta a “Lisboa d’outras eras” como cantava Amália, nem estes “lisboetas” como aqueles que nos idos de 50 do século passado iniciaram o ritual de descer a Avenida da Liberdade em noite de Santo António, as marchas populares continuam a ser o ponto alto das Festas de Lisboa graças aos que procuram manter viva a tradição. Numa homenagem a todos eles, e às 20 marchas concorrentes este ano, desafiámos seis marchantes da Marcha da Bica, a grande vencedora do concurso em 2023, a contarem o que é ser protagonista numa marcha popular de Lisboa no século XXI.

Virgílio Barata

39 anos
Auxiliar administrativo

Terá sido pelos seus 20 anos, quando convidado por uma grande amiga a vir assistir a um ensaio da Marcha da Bica, que nasceu o contagiante amor de Virgílio “pelas festas da cidade e pelas marchas populares”. Fotógrafo amador, foi nessa condição que começou por se ligar ao mais pequeno dos bairros históricos de Lisboa, e acompanhar a marcha.

Em 2008, “o antigo presidente do Marítimo Lisboa Clube [coletividade organizadora da marcha e arraial popular], Fernando Duarte, vira-se para mim e diz: tens jeito, bates o pé, decoras as músicas rápido, portanto, apronta-te e vem ensaiar”. Assim foi. Desde então, “isto entrou no sangue e nunca mais parei.”

Tânia Fernandes

43 anos
Escriturária

Depois de conversarmos com Tânia, estamos certos de que no bilhete de identidade deveria estar inscrito: “nascida e criada na Bica”. Manifestação natural de todo o seu bairrismo são as quase três décadas de marchante. “Fiz apenas um pequeno interregno a dada altura por circunstâncias da vida”, explicita.

“Tudo isto começou com a minha mãe, marchante nos tempos áureos do Fernando Farinha [o fadista de O miúdo da Bica]. E o meu avô e o meu pai foram dirigentes do Marítimo”. Embora viva desde os 18 anos na margem sul do Tejo, Tânia nunca deixou de ter coração bicaense. Nem o corpo e a alma na marcha do bairro, onde a sua pequena filha é já “mascote”.

Tiago Correia

28 anos
Lojista

“Tudo se faz por amor”, declara Tiago, natural de uma família de marchantes do Monte da Caparica. “Somos sete irmãos e todos marchamos”, conta, lembrando que “isto é coisa que corre no sangue.”

O gosto pelas marchas populares é tal que Tiago ensaia simultaneamente em duas: na do seu bairro, no concelho de Almada, e na da Bica. “Isto é compatível porque em Lisboa celebra-se o Santo António, e, na margem sul, o São João”. A ligação ao bairro da Bica começou em 2016, quando amigos da outra marcha o desafiaram a vir para Lisboa. “Eles tinham contactos aqui e liguei-me à Bica. Sinto mesmo que encontrei uma família pela qual valem todos os sacrifícios.”

Rita Santos

36 anos
Gerente

2024 ficará para sempre na sua memória como o ano de estreia absoluta em marchas populares. Mas, atenção, apenas enquanto marchante! Desde pequena, acompanhada pela família, Rita habituou-se a assistir ao desfile na Avenida em véspera de Santo António, e pensar: “um dia, hei-de estar ali a marchar”. “A dada altura, o meu pai foi viver para a Bica e abriu um estabelecimento de restauração no bairro. Vinha muitas vezes ajudá-lo e isso levou-me a criar o gosto pelo bairro e pelas pessoas.”

Embora resida atualmente fora de Lisboa, em Santa Iria de Azóia, Loures, este ano tomou a decisão de se juntar a todos aqueles que sempre admirou “pela garra com que marcham”, e vestir as cores do bairro.

Jéssica Barradas

31 anos
Auxiliar

“Marchava desde miúda na marcha da Costa da Caparica até que, a dada altura, decidi que tinha de vir para Lisboa”, lembra Jéssica. Amigos deste lado do rio trouxeram-na à Bica e, em 2013, deu-se a primeira tentativa de ingresso na marcha do bairro típico lisboeta. “Acabei por não ser escolhida naquele ano, mas no seguinte voltei e, desde aí, aqui estou.”

Mas, o que é isto de ser marchante num bairro distante? “A maneira como nos acolhem faz-nos sentir em casa. Foi isso que sucedeu aqui, mesmo que este não seja o nosso bairro”. Até porque, acrescenta, “marchar é união, força e amor, ou seja, tudo aquilo que devemos encontrar numa família!”

Ismael Pereira

35 anos
Técnico de redes

“Há quem diga que os bebés começam por aprender a andar. No meu caso, comecei logo a marchar”. Ismael é já da terceira geração de marchantes de uma família da Bica, cujo avô chegou a ser o mais antigo participante em marchas populares de Lisboa. Campeão pela Bica em 1992, enquanto “mascote”, Ismael estreia-se apenas este ano na marcha.

“Durante 13 anos fui pela marcha adversária [a do Bairro Alto]”, confessa. Ainda para usar a gíria do futebol, esta transferência é “uma homenagem ao avô e será aqui, na Bica, que pretendo acabar a carreira.”

A viver em Quinta do Conde, Sesimbra, todos os dias vence mais de 50 quilómetros, ida e volta, porque se hoje os bairros típicos de Lisboa já não são o que eram, “restam as marchas para mantermos como nosso o bairro onde nascemos e fomos criados.”

Sob a égide de Santo António, eis-nos em mais uma edição das Festas de Lisboa que, como não poderia deixar de ser, têm marchas populares, tronos, arraiais e casamentos de Santo António. Enquanto manifestação popular da Lisboa intergeracional e multicultural, dentro das Festas cabem outras festas, particularmente as que evocam visões, sons, cheiros e paladares de outras latitudes, tais como o Festival Bollywood Holi e Mercado da Índia, na Comunidade Hindu de Portugal (2 de junho), a Festa da Cultura Coreana, no Museu de Lisboa – Palácio Pimenta (dia 8), o Thai Festival (entre os dias 21 e 23) e a Festa do Japão (dia 29), no Jardim Vasco da Gama, em Belém.

Mariza ©DR

Os arraiais populares prometem estar ao rubro ao longo de todo o mês nas freguesias de Alcântara, Carnide, Estrela, Misericórdia, Olivais, Penha de França, Santa Maria Maior e São Vicente. Mas, há mais festas na agenda: o Festival de Telheiras (de 24 de maio a 2 de junho); o Arraial dos Navegantes (30 de maio a 2 de junho), no Parque das Nações, a Trezena de Santo António (de 1 a 11 de junho), com fados, visitas e guitarradas no Largo de Santo António; o incontornável Arraial da Vila Berta (de 1 a 12 de junho); ou os três dias de música, gastronomia e artesanato na Alameda D. Afonso Henriques, onde decorre o VIII Encontro do Associativismo e Regionalismo da cidade de Lisboa, entre 14 e 16 de junho. Destaque ainda para o já tradicional Arraial Pride marcado para dia 22, no Terreiro do Paço.

As festas das Marchas Populares

Depois das exibições no MEO Arena, os marchantes de Lisboa rumam à Avenida da Liberdade para a noite mais longa da cidade, a de 12 para 13 de junho. Este ano, o desfile inicia-se com um momento especial: a Dança do Dragão, pela Associação Geral Desportiva de Macau Lo Leong (grupo convidado), comemorativa do 25.º aniversário do Estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau.

Quanto às marchas populares, antecedendo o desfile na Avenida, elas exibem-se no MEO Arena entre 31 de maio e 2 de junho, sempre a partir das 21 horas. A saber: Marcha Infantil “A Voz do Operário”, Marcha de Marvila, Marcha da Baixa, Marcha de Alfama, Marcha de Alcântara, Marcha da Penha de França, Marcha do Alto do Pina e Marcha do Castelo (dia 31); Marcha dos Mercados, Marcha do Lumiar, Marcha do Bairro Alto, Marcha de Belém, Marcha da Bela Flor-Campolide, Marcha de Santa Engrácia, Marcha do Bairro da Boavista e Marcha da Graça (dia 1); e Marcha Santa Casa, Marcha dos Olivais, Marcha da Bica, Marcha de Carnide, Marcha da Mouraria, Marcha de São Vicente e Marcha da Madragoa  (dia 2).

Marcha Infantil “A Voz do Operário” ©EGEAC/José Frade

A 15 de junho, no Jardim da Torre de Belém, quase duas mil crianças, divididas em 39 grupos, marcham sob o lema Lisboa Cidade de Tradições: o Tejo. As Marchas Infantis das Escolas de Lisboa são uma iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, em parceria com as escolas da cidade, as associações de pais e as juntas de freguesia.

Música e tudo o resto

Como não poderia deixar de ser, a música é um dos pontos altos das Festas, com concertos bastante ecléticos que vão do fado ao jazz, passando pela música popular, pelo dancehall, pelo R&B e pela música clássica. Para além dos concertos de Tony Carreira (29 de junho) e de Richie Campbell (30 de junho) que fecham as Festas de Lisboa na Praça do Comércio, o grande destaque vai para um concerto único de Mariza (dia 20) no Castelo de São Jorge. Acompanhada pelos músicos Luís Guerreiro, Phelipe Ferreira, Adriano Alves, João Freitas e João Frade, a fadista apresenta o seu mais recente trabalho e percorre duas décadas de carreira num espetáculo que promete ser inesquecível.

A registar ainda a música clássica no Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian, com uma viagem musical à Europa dos séculos XIX e XX (dia 15), e o jazz, com sete concertos no Largo do Picadeiro, com artistas nacionais e internacionais (entre 1 e 15 de junho).

As Festas de Lisboa incluem ainda cinema, teatro e diversas exposições.

Programação integral.

Da já emblemática secção Boca do Inferno às sessões na piscina, o IndieLisboa continua a mostrar que um festival de cinema pode surpreender para além dos filmes.

“All of Us Strangers” de Andrew Haigh

Indie Date

A experiência de encontro às cegas (romântico ou não), que se realizou pela primeira vez no ano passado com boa adesão, está de regresso para juntar cinéfilos e “contrariar a tendência de que tudo se faz online”. A premissa é “promover o contacto direto entre as pessoas que, ao terem uma companhia para assistir ao filme, podem depois conversar e partilhar ideias pessoalmente”, afirma Susana Santos Rodrigues, enfatizando que se procura  “tentar que a vivência física numa sala de cinema não seja esquecida.”

A participação neste Indie Date pressupõe a compra de um bilhete para assistir ao mais recente filme de Andrew Haigh, All of us Strangers, com Andrew Scott e Paul Mescal, numa exibição única em sala em Portugal. Os candidatos ao Indie Date são convidados a responder a um questionário, através do qual o “departamento de compatibilidade” do festival identifica as afinidades entre os inscritos, medindo as sintonias de forma a criar os melhores matches para que o final seja feliz.

“Palombella Rossa” de Nanni Moretti

Cinema na Piscina

A Piscina da Penha de França transforma-se numa sala de cinema flutuante, à semelhança do que aconteceu em 2023. A primeira edição da iniciativa teve grande participação e, este ano, repete-se com um programa de curtas-metragens para famílias e, pela primeira vez, duas longas para adultos.

Todas as obras programadas têm como premissa o elemento água na sua temática. Susana Santos Rodrigues destaca as sessões da noite onde são exibidos dois filmes clássicos: Palombella Rossa, uma sátira política, realizada e interpretada por Nanni Moretti, sobre um líder comunista amnésico que é também jogador de polo aquático; e Piranha, paródia de culto realizada por Joe Dante, onde piranhas geneticamente alteradas e mortíferas aterrorizam uma estância de verão banhada por um belíssimo lago.

“Coweb” de Jee-Woon Kim

Maratona Boca do Inferno

A secção mais arrojada do festival, Boca do Inferno, onde terror, sarcasmo e adrenalina se misturam, traz uma novidade: uma sessão maratona que começa às 23 horas de 31 de maio e termina às seis da manhã do dia seguinte. Para a programadora, esta maratona “é uma tentativa de criar um espírito de partilha cinéfila comunitária.”

O público mais audacioso é convidado a passar a madrugada no Cinema Ideal e assistir a um programa que inclui curtas e longas-metragens. Entre elas, destacam-se Late Night with the Devil, de Cameron Cairnes e Colin Cairnes, que revela uma gravação perdida de um episódio de Halloween, de um talkshow de 1977, onde as entrevistadas são uma parapsicóloga e uma rapariga que aparenta ser a única sobrevivente de um suicídio em massa de uma igreja satânica; e Cobweb, do coreano Jee-Woon Kim, uma comédia sobre um realizador que resolve aprisionar os críticos do seu filme até conseguir uma obra-prima.

“I’m Not Everything I Want to be” de Klára Tasovská

7 filmes “fora da caixa” + 2 filmes surpresa

Da vasta programação e a pedido da Agenda Cultural de Lisboa, Susana Santos Rodrigues sugere ainda sete filmes a não perder.

Um deles, na sessão de abertura: I’m Not Everything I Want to be, um retrato da fotógrafa Libuše Jarcovjáková, apelidada de “Nan Goldin da Checoslováquia”, uma figura pouco convencional que juntamente com a realizadora Klára Tasovská vêm a Lisboa para apresentar o documentário. Outro é o filme de encerramento: Dream Scenario, do realizador Kristoffer Borgli, autor de um dos filmes sensação da edição passada, Farta de Mim Mesma, com Nicholas Cage a interpretar um insignificante professor de biologia que, subitamente, se torna famoso por aparecer nos sonhos de muita gente.

No Other Land, realizado por um coletivo palestiniano, sobre a destruição que Israel causa na tentativa de ir ocupando maiores faixas de terreno; A Fidai Film, de Kamal Aljafari, que se rebela contra o roubo de memórias de um país, a Palestina; Rotting In The Sun, de Sebastián Silva, filme de enorme sarcasmo, mas que não deixa por isso de ter momentos incrivelmente comoventes; The Afterlight, de Charlie Shackleton, onde atores de todo o mundo, já mortos, voltam à vida criando um elenco de anjos e fantasmas; La Chimera, de Alice Rohrwacher, que segue um arqueólogo em busca de tesouros antigos e desejos impossíveis; The Feeling That The Time For Doing Something Has Passed, de Joanna Arnow, que realiza, protagoniza, escreve e edita a sua primeira longa-metragem, um mosaico cómico de experiências e por fim, In Restless Dreams: The Music of Paul Simon, de Alex Gibney, sobre o músico e compositor, Paul Simon, completam a lista de recomendações.

Pela primeira vez, estão também programados dois filmes surpresa, a serem exibidos no último fim-de-semana do festival e sobre os quais só haverá informação perto da data de exibição. Dois segredos bem guardados para desafiar os mais curiosos.

“Entre Rochas e Nuvens” de Franco García Becerra

Tricot no Festival

Susana Santos Rodrigues destaca ainda um momento improvável de Tricot no Festival que tem como ponto de partida a exibição do filme Entre Rochas e Nuvens, de Franco García Becerra. “Esta belíssima longa-metragem que tem lugar no Peru conta a história de um menino de oito anos, amante da família, de futebol e da natureza, que é pastor de alpacas”. Paralelamente à exibição do filme, o Indie convidou um clube de tricot local, interessados e entusiastas do trabalho com fios, para ensinarem espectadores de todas as idades a tricotar, com agulhas ou com os dedos.

A restante programação do festival e mais pormenores sobre estas sugestões estão disponíveis aqui.

Dir-se-ia que Rupert e Alex teriam tudo para nunca resultar como casal. Ela é rebelde, ou como assume a própria Sara Barradas que lhe dá corpo e alma no espetáculo, “ela é disrupção”. Da incontinência verbal ao gosto pelas pequenas transgressões, Alex tem em Rupert o mais perfeito oposto: ele é a ordem, gosta de números (tanto que até é contabilista) e de ter as coisas nos sítios certos, jamais lhe passando pela cabeça ir contra as regras da sociedade e da família.

Como o amor não se explica, os opostos atraem-se com tamanha paixão que depressa estão a viver juntos e a discutir a cor com que vão pintar o quarto do bebé que esperam. E se será menino ou menina, e que nome lhe vão dar.

Chegado o grande momento, a felicidade contagiante dos emergentes papás é irremediavelmente assombrada pela perda. O bebé nasce morto e o caminho que se segue é profundamente doloroso, com Alex mergulhada na voragem da perda e a roçar a loucura, e Rupert a empreender um luto silencioso e paciente face a toda uma vida que se desmorona.

Se acreditares muito (no original, Anything Is Possible If You Think About It Hard Enough), peça da atriz e dramaturga britânica Cordelia O’Neill, é uma tragicomédia romântica distinguida em 2022 nos Offies (os prémios para as produções Off West End), que conquistou o encenador Flávio Gil, tanto do ponto de vista profissional como do pessoal.

“Foi das melhores peças recentes que li. É um texto cheio de camadas, que conforme fomos trabalhando íamos descobrindo, e que mesmo usando uma linguagem mais contemporânea é de uma enorme riqueza”, salienta o encenador. Por outro lado, o drama vivido por Alex e Rupert não é completamente estranho a Gil. “Pelos meus 10 anos, a minha mãe perdeu a Patrícia, filha que teve uma passagem muito breve pela vida, cerca de um mês e meio. De certo modo, ao encenar esta peça estou a fazer alguma catarse e a honrar a memória da Patrícia que está sempre comigo.”

Caracterizada por um ritmo vertiginoso e uma grande intensidade emocional, Se acreditares muito é um desafio para os atores. “A peça passa-se na cabeça de um pai que não chegou a sê-lo, com as memórias a sobreporem-se e a atropelarem-se umas às outras. Isso dá um ritmo frenético à peça, nomeadamente ao nível das emoções que os atores vivem e nos fazem viver ao longo de perto de hora e meia”, explica o encenador.

De certo modo, isto “é um exercício de resistência para dois atores”, sendo que o principal desafio “é levar todas essas emoções vividas para além do exercício” e fazer um espetáculo de teatro capaz de mexer com todo o tipo de emoções de uma plateia.

Sara Barradas julga mesmo ser “impossível não gostar da peça porque, de uma forma ou de outra, ela é capaz de nos tocar, independentemente de sermos alguém que perdeu um filho ou de sermos pais ou mães”. Diogo Martins acompanha a sua parceira em palco: “mesmo não sendo pai, tenho os meus sobrinhos, e a peça faz-nos lidar com a dor da perda e pensar naqueles de que tanto gostamos.”

Radiante por ter juntado “a equipa certa” para retirar do texto todas as potencialidades (destaque para o cenário modular, e nada realista, de Eurico Lopes), Flávio Gil confessa ainda a felicidade de ter contado, 20 anos depois de se terem conhecido nas filmagens de uma telenovela da TVI, com “dois dos melhores atores da nossa geração, a Sara e o Diogo”. E eles justificam plenamente a escolha, revelando uma cumplicidade pungente para dar vida a Alex e Rupert.

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