No cartaz da “peça-concerto” de Cristina Carvalhal e João Henriques, Da Felicidade, vê-se um sol altamente contrastado em fundo azul. Logo nos primeiros minutos do espetáculo, percebe-se como aquela imagem remete para o ambiente solar, alegre e feliz, da terra mítica de Hiperbórea, que os gregos acreditavam existir para lá de onde sopra o vento norte, sítio onde o sol não se põe e um povo, bafejado pela paz perpétua e pela longa vida, vivia sem o flagelo das doenças e implicações da velhice, nem sequer as agruras do trabalho duro. Hiperbórea era uma terra tão bela, próspera e feliz que as suas florestas ficaram conhecidas como o “jardim de Apolo” e os seus habitantes, em homenagem às aves que migravam para aquele lugar, se faziam representar por gansos.
Como que louvando os “hiperbóreos” (e para isso até se lançam os dados no tabuleiro do jogo do “ganso”, ou da glória), os atores/cantores Bruno Huca, Júlia Valente e Sílvia Filipe, ao lado do pianista Ariel Rodriguez, da contrabaixista Sofia Queiroz e do clarinetista José de Geus, vão construindo com as palavras de poetas (Pessoa, Sylvia Plath, Ana Luísa Amaral), de filósofos (Espinoza, Walter Benjamin, Maria Filomena Molder) ou de escritores (Clarice Lispector, Virginia Woolf), um evocação de utopia sobre o palco. E como cimento da felicidade em construção, as canções de Chico Buarque, Sérgio Godinho, Queen, Prince ou Rag’n’Bone Man entrecruzam-se com pequenas histórias e fragmentos pessoais, memórias de momentos passados de alegria e bem-estar.
O lado mais íntimo e pessoal surge naturalmente como resultado de um processo criativo “muito colaborativo”, como lembra Cristina Carvalhal. Todo este espetáculo foi “feito em permanente diálogo com os músicos e com os atores, num processo longo e intenso”. João Henriques fala mesmo de “algo inteiramente novo” no seu percurso artístico: “quando começámos havia apenas uma proposta e agora temos um espetáculo. É como ter nos braços um bebé.”
Uma proposta que, conta Cristina Carvalhal, nasceu “ainda em tempo de pandemia, da necessidade de celebrar, da necessidade de alegria e da consciência do que aquilo que é de facto essencial é o amor”. Ao lado de João Henriques, músico e compositor, “com quem muito queria trabalhar”, veio a vontade de criar um objeto envolvendo “o teatro, a literatura, a música e o canto.”
Assumindo a forma de um recital, ou como os próprios apelidam “uma peça-concerto”, Da Felicidade acaba por propor uma reflexão sobre o próprio conceito de felicidade onde, nas palavras de Henriques, “as canções, com arranjos novos, surgem para estruturar, para interromper e dialogar, e para cruzar” com as ideias da filosofia, da poesia, do romance. E com a beleza das palavras contadas ou cantadas, lá está presente a alegria do gesto, do abraço, do amor e da paixão ou, simplesmente, da vida.
Nem que seja por pouco mais de hora e meia, Da Felicidade faz-nos sentir hiperbóreos, e antes que soe a última canção, já algo nos diz que havemos de chegar à casa do ganso e terminar o jogo em beleza.
Um espetáculo feliz, em cena até dia 16, na Sala Mário Viegas do São Luiz Teatro Municipal.
A capa do livro reproduz uma imagem criada por Noé Sendas, nome que é referido no diário da protagonista. De quem foi a escolha da capa: sua ou da editora? Que significado tem para si esta imagem no contexto do livro: o de uma mulher à beira do abismo?
Talvez à beira do abismo. Seguramente desamparada, e num movimento solipsista. Sugeri que a capa fosse do Noé Sendas, e de entre algumas opções do seu trabalho, achámos que esta transmitia aquilo que queria que o livro tivesse. Há também um certo mistério e uma hibridez que ela tem, que penso que falam com o livro. Esta cabeça de Diana ou de Atena, de deusa da antiguidade clássica, e este corpo que parece pouco de carne, têm qualquer coisa de muito sugestivo para mim. E gosto de pensar que ela pode mergulhar no abismo, mergulhar em si própria, ou pode até mergulhar num delírio, num sonho. Dizendo isto já estou a trazer muitas coisas que são importantes para o livro, e que têm que ver com uma zona de fronteira muito flexível, resvaladiça. Não por acaso o livro termina com essa interrogação: e se tudo não tiver sido um delírio?
O romance é descrito como sendo autoficcional. Que distinção faz entre autobiografia e autoficção, e porque se decidiu por um destes registos relativamente ao outro?
Este autodenominado género autoficcional tem em escritoras como Annie Ernaux, Natalia Ginzburg, Joan Didion, Elizabeth Strout, algumas das vozes mais eloquentes. E depois há uma outra escritora de que falo também, e que não faz autoficção, mas que faz auto e hétero-biografia, que é a Svetlana Alexijevich. O que há percorrendo todas estas autoras é uma deriva entre aquilo que é autobiográfico e o que é ficcional. O que é a experiência do sujeito e o que pode ser uma experiência do coletivo. Eu optei por fazer um registo autoficcional porque quis trabalhar sobre uma base biográfica. E tendo eu um percurso público enquanto jornalista, sobretudo a partir do meu trabalho em televisão, amadureci muito cuidadosamente aquilo que queria mostrar e as zonas de sombra, ou mesmo de equivocidade em que queria deixar o leitor. Optei por adensar a ambiguidade ao invés de esconder o que podem ser elementos reconhecíveis. Escrevi grandemente o romance durante a pandemia e a doença, mas foi tão ou mais importante o trabalho que fiz o ano passado depois de uma longa gestação, e este trabalho também me ajudou a compreender que aquilo que eu queria fazer era mesmo trabalhar neste registo da autoficção.
É público o seu entusiasmo em relação à obra de Annie Ernaux, autora que chegou a conhecer pessoalmente. Em que momento se situa a leitura que fez da obra de Ernaux relativamente à escrita de O Quarto do Bebé?
Aquilo a que chamo de primeira pedra, e que é um trabalho de escrita, é anterior à Annie Ernaux. Depois partilhei o que tinha escrito, e que era ainda informe, com a Susana Moreira Marques, uma escritora que admiro muito, que dá cursos de escrita de não-ficção, ela mesma escreve nesse registo, e a Susana deu-me o La Place [Um Lugar ao Sol], Anne Carson, e outros livros, achando que iam ser úteis para mim. Foi o meu encontro com a Annie Ernaux. Depois quando construí o romance, com a enxertia de microficções, cartas, sonhos, isso foi tudo feito já depois de ler os livros da Annie Ernaux.
O livro abre com uma advertência, que conta a descoberta e a obsessão de uma mulher com o diário de uma paciente do pai, psicanalista morto recentemente. Essa mulher nunca mais será referida. Que presença ou identificação é suposto guardarmos ou estabelecermos com ela?
Gosto muito dessa ideia de o leitor pensar onde estará essa “filha do meu pai”. É assim que ela assina. A história dessa advertência e desse dispositivo é tratar-se de um recurso machadiano. Eu dialogo com vários autores ao longo do livro, mas aquele com quem dialogo mais é Machado de Assis, o autor que estudo. Nos seus últimos romances, Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), os livros abrem justamente com uma advertência. E até a primeira frase [“Quando o meu pai morreu, achei-lhe na secretária uma série de cadernos manuscritos.”], e o verbo escolhido para essa frase, é um modo de me entranhar no Machado, porque o Esaú e Jacó diz qualquer coisa como “Quando o conselheiro Aires morreu, acharam-lhe na secretária sete cadernos ricamente encapados” tal e tal. Gosto muito dessa ideia de alguém no post mortem encontrar um legado, uma questão fundamental quando pensamos em filhos, é algo que me obceca a noção de legado que nós deixamos e alguém encontra. Há uma outra questão aqui que é a da autoria. Quem é verdadeiramente o autor daquilo que estamos a ler. Claro que, em última instância, os autores são o Machado de Assis e sou eu. Mas existem muitas camadas entre o que é um material encontrado, a ilusão de reconhecimento e identificação daquela pessoa, e depois o trabalho de edição de alguém que encontrou aquilo e se permite até mudar o título.
A autora do diário chama-se Ester do Rio Arco. Um nome incomum, talvez mesmo um nome literário. A escolha do nome Ester liga-se para si à condição de esterilidade daquela mulher, incapaz de gerar filhos?
Isso é maravilhoso. Não pensei nisso; gostaria de ter pensado. Todos os nomes dos personagens são importantes. Têm um significado para mim que prefiro não partilhar. É mais uma coisa que aprendi com o Machado de Assis. No livro Esaú e Jacó a mãe dos gémeos chama-se Natividade. Gosto que os nomes já tenham uma carga simbólica. Todas as pessoas no livro têm nomes que não são os seus, e o mais comum é que os personagens condensem várias referências, pessoas, experiências. Ester é um nome que começa por ter uma ressonância bíblica, e é um nome de que gosto bastante.
Usando o paralelismo presente no livro entre a escrita e a gravidez (“Escrever é ser capaz de gerar.”), até pelo modo como o ato de escrever pode redimir a infertilidade daquela mulher, diria que este livro lhe aconteceu a si ou que foi algo planeado?
Se calhar as duas coisas, mas acho que foi mais planeado. Já tinha a intenção de escrever há algum tempo, e acabou por acontecer no confinamento ser incentivada a escrever, como forma de me ligar aos dias e de encontrar palavras para aquilo que estávamos a viver e que era inédito para todos nós. Mas que pudesse também a partir dali ligar-me com uma experiência traumática recente, sobre a qual não tinha conseguido ainda elaborar. Há aqui duas doenças, dois momentos de uma enorme perturbação física e psicológica, e a doença coletiva que vivemos todos com a pandemia. Tudo isto me pôs a pensar naquilo que é mais próprio e profundo do ser humano. O nascimento e a morte, e esse horizonte de mortalidade.

O tempo do diário de Ester ocupa sensivelmente um ano: período em que lhe morreram pessoas que amava, em que se descobriu com uma doença grave, em que foi obrigada ao isolamento pela pandemia da COVID. Onde vê maior superação: em chegar-se vivo depois de atravessar estas provações ou na capacidade de organizar tudo que ali se passou sob a forma de livro?
Acho que a superação é, estranhamente, querer o dia seguinte. Isso é muito misterioso no ser humano porque nós atravessamos estas provações, maiores ou menores, e qualquer coisa nos faz querer o dia seguinte. Mesmo com momentos de enorme desânimo, desesperança, sofrimento, mas depois surge uma energia vital, que acaba por brotar (a minha atenção às plantas também foi uma forma, não só de ter presenças vivas perto de mim, mas de compreender como é isto que ainda não estamos a ver, mas que se está a operar debaixo desta terra e já é vida). Connosco também acontece isso, algo que nos impele a viver, e a grande superação é essa, continuarmos a querer o dia seguinte.
O Quarto do Bebé é um relato cheio de morte. A partir de que altura a sua vida se começou a encher de morte, e até que ponto considera eficaz o efeito catártico que a arte representa face a essa inevitabilidade?
Concordo com essa leitura. Acho que o que predomina neste relato é a morte, a certeza da morte, a dor da morte, a dor da perda, mas como disse atrás, ainda que esse seja o elemento predominante, há depois estranhamente uma temperatura solar. Um desejo ainda de “voltar à gemada” [“A gemada da minha infância era só gema e açúcar, não se punha leite.”] e começar tudo de novo. A morte das pessoas que amamos é aquilo que nos começa a ensinar que somos mortais. Vivemos a maior parte da vida como se fossemos imortais, e está certo. Compreendi que sou mortal com a morte da minha avó. Mas também compreendi de uma forma muito decisiva quando morreu a pessoa que inspira a personagem Aurora.
Que sentimentos vieram à tona quando pôs um ponto final a este livro? Orgulho, alívio, vazio, limpeza, tristeza, outros?
Limpeza é uma palavra boa porque preciso de limpar e arrumar. Ajuda-me muito a pensar, a refletir sobre as coisas, estar a fazer um trabalho manual. Quando acabei de ler o romance tive sensações contraditórias. Essa impressão de limpeza como se fosse uma purga; também uma impressão de distância (aquela já não era eu, de facto); paradoxalmente também tive uma impressão de ter sofrido muito. Como se me visse agora de fora e dissesse, caramba foi duro. Mas já não sou eu e já passou.
O que é que a Anabela Mota Ribeiro poria numa dedicatória a O Quarto do Bebé, antes de entregar o livro nas mãos de Ester do Rio Arco?
[risos] Tenho que pensar. Acho que poria uma trave da Nadia Comăneci, como a das vinhetas do livro, e diria qualquer coisa como “Para a Ester, que sabe que a vida é levantar e cair.” Inverteria a ordem. Claro que a vida também é cair e levantar, é sobretudo isso que nos ensinam, mas é muito importante sentir o chão.
Toni Morrison
O Olhar mais Azul
“De par com a ideia de amor romântico, ela conheceu outra: a da beleza física. Provavelmente as duas ideais mais destrutivas da história do pensamento humano. Ambas tinham origem na inveja, prosperavam na insegurança e terminavam em desilusão”. No Ohio dos anos de 1940, Pecola tem a pele mais escura de toda a escola. Rejeitada e tratada com desdém, todas as noites reza para ter os olhos azuis como as atrizes de cinema, as meninas brancas privilegiadas e as bonecas de brincar (“Pecola nunca conheceria a sua beleza. Veria apenas o que havia para ver: os olhos das outras pessoas”). Esta é uma obra poderosa sobre as consequências trágicas e debilitantes de se achar a rejeição como legítima e sobre a forma como a protagonista se desmorona, silenciosamente, anonimamente, sem voz para exprimir ou reconhecer o trauma. Mas, é também um livro que rejeita a noção equivalente de fealdade/negridão e que confronta o conceito de beleza imposto. A autora, Prémio Nobel de Literatura em 1993, procurou com este romance de estreia, que tenta tocar no “nervo nevrálgico do autodesprezo racial”, uma escrita “indiscutivelmente negra” tentando “transfigurar a complexidade da cultura negra americana numa linguagem digna dela.” Presença
Fernando Pinto do Amaral
Última Vida
O volume poético Última Vida divide-se em três partes: a primeira constituída por sonetos; a segunda por uma não-carta-de-amor em sete estâncias; e a terceira por poemas reunidos sob o titulo de Fim do Mundo. Fernando Pinto do Amaral retoma o seu lirismo de tons melancólicos, um conjunto de poemas que parecem dar-nos o retrato de um espírito ou de um planeta feitos de sombras, em vésperas de um fim do mundo anunciado. Paralelamente, a presente coletânea propõe também uma profunda reflexão sobre o sentido da própria poesia. No poema Remorsos, inspirado nuns versos de Auden que expressam a esperança do poeta se libertar do inferno devido aos livros que escreveu, lê-se: “(…) não tenhas remorsos como Auden. / É já tarde para isso e os poemas /não mudam o que foi a tua vida: / quem os ler vai pensar que foi outra, / imaginá-la outra – é sempre assim / e os poemas não pesam no juízo final”. Mais adiante, no poema Sombra, interroga-se: “Para quê escrever mais?”. Certamente em busca da “(…) última paz / antes do infinito / como um verso que traz / o que nunca foi dito.” Dom Quixote
As Mil e uma Noites – Histórias Apócrifas
A labiríntica narração de Xerazade tem seduzido gerações de leitores conduzidos por um mundo lendário, mágico e alegórico, povoado de reis, califas, tapetes voadores, misteriosas princesas, enganos, e trágicos amores, em que exotismo e sensualidade se confundem. Porém, As Mil e uma Noites, é, simultaneamente, uma obra que faz parte do imaginário popular e uma das mais desconhecidas da literatura universal. As suas histórias, as mais antigas remontam ao século XIV, foram sucessivamente alteradas, aumentadas ou encurtadas e, até, inventadas por tradutores menos escrupulosos. Antoine Galland, o primeiro tradutor europeu de As Mil e Uma Noites, acrescentou à tradução do manuscrito em sua posse várias histórias. Estas histórias apócrifas, como as designam os especialistas, terão sido contadas a Galland por um mercador sírio Hanna Diab que falava francês. Entre elas, contam-se algumas das mais populares, como as de Ali Babá e os Quarenta Ladrões ou Aladino e a Lâmpada Mágica. Este volume reúne as histórias que não provêm dos manuscritos árabes que recolhem lendas e contos tradicionais. Provavelmente, nunca se poderá garantir se terão sido contadas pelo mercador sírio, inventadas por Galland ou constado de algum manuscrito entretanto desaparecido. E-Primatur
Gustave Flaubert
A Tentação de Santo Antão
Em 1845, o escritor Gustave Flaubert (1821/1880) admirou, no Palácio Balbi, em Genova, a pintura atribuída a Pieter Brueghel, o Jovem, A Tentação de Santo Antão. Esta experiência, juntamente com as recordações dos espetáculos ambulantes apresentados na feira de Saint-Romain em Rouen, inspirou a criação da presente obra, objeto estranho e inclassificável com a perfeição formal que caracteriza os escritos do autor. Antão, o eremita de Tebaida, dialoga com aparições sucessivas e tentações demoníacas: visões de luxúria, seduções de poder e de prazer e a aparição do seu discípulo, Hilarião, que faz desfilar, perante ele, “os deuses de todas as nações e de todas as épocas” sublinhando as contradições das Escrituras. Segundo Baudelaire, seu contemporâneo, a obra constituía o “gabinete secreto do seu espirito” através da qual Flaubert expôs a “faculdade subterrânea do sofrimento” que marca a “desordem tumultuosa da solidão”. Uma obra percursora que antecipa o movimento surrealista na sua estreita relação com a teoria psicanalítica, conduzindo o olhar do leitor, ora encantado, ora aterrado, através de um mundo “criado por um Deus em delírio.” Minotauro
Ricardo Gonçalves Dias
Marcha de Alfama – A História da força de quem canta
O livro infantojuvenil O Primeiro País da Manhã narra a aventura de um menino que, para devolver um pouco de igualdade e de justiça ao mundo, decide inventar o seu próprio país. Em 2013, a obra vence o Prémio Branquinho da Fonseca Expresso/Gulbenkian. Em 2015, o autor, Ricardo Gonçalves Dias recebe o Prémio Jovens Criadores na área da Literatura. O escritor concentra agora a sua atenção na história da Marcha de Alfama. Desde a sua origem, as Marchas Populares de Lisboa alcançaram um lugar de relevo na vida cultural da cidade e um grande impacto nos bairros mais tradicionais que participam no evento. Para esta realidade, a Marcha de Alfama deu um contributo inegável, continuando a ser a marcha com mais títulos conquistados desde sempre e representando-se internacionalmente em países como Cabo Verde e Japão. Marcha de Alfama – A História da força de quem canta descreve o percurso de uma marcha popular, cruzando a história com a vida do bairro. A obra tem sempre presente a população alvo do texto, a que pertence ao universo da marcha e aquela que vive em Alfama, o bairro mais antigo de Lisboa que continua a encontrar caminhos para preservar a sua identidade perante a pressão dos tempos. Diário de Bordo
Nuno Costa Santos
Como um Marinheiro eu Partirei
Em centena e meia de páginas, Nuno Costa Santos presta tributo à sua relação com o cancioneiro e a figura de Jacques Brel (1929-1978), e com aqueles com quem tem partilhado este amor ao longo da vida. Como um Marinheiro eu Partirei – Uma Viagem com Jacques Brel usa por mote a frase “Um homem fuma um cigarro à proa do iate, concentrado no som do mar”, repetida algumas vezes até ao final, como que relançando na eternidade a viagem de barco que Brel iniciou (com as interrupções que o livro também assinala), após ter terminado a carreira nos palcos para se dedicar a viver como bem quis. No trajeto, aportou na ilha do Faial, onde teve início uma breve história de amizade com um médico local de ascendência belga. Nuno Costa Santos puxa por várias pontas da biografia de Brel, que cruza com a sua história pessoal entre os Açores e Lisboa, falando daquilo que se propõe intuir da personalidade do cantor belga, alguém que o levou a descobrir pessoas tão apaixonadas pelas suas canções como ele, e que fez ainda questão de dar a descobrir aos filhos. Trata-se um livro muito livre e muito afetuoso, que se constrói num registo híbrido pouco usual entre nós. RG Elsinore
Victor Correia (Organização)
Poemas eróticos sobre Frades, Freiras e Padres
A vida dos frades, freiras e padres está rodeada de interditos devido aos votos de castidade e celibato. A literatura erótica alimenta-se da transgressão associada à sexualidade. Em Portugal, desde a Idade Média, através dos cancioneiros medievais galego-portugueses, que se dá conta de transgressões praticadas por freiras e padres com indivíduos que não pertenciam à Igreja, por padres e freiras entre si, mas também entre os próprios padres e freiras. Porém, é sobretudo nos séculos XVII e XVIII que se escreveram esses poemas em consequência do contexto sociocultural da época, devido, por um lado, ao facto de haver mais conventos no país, e por outro, às influências que Portugal recebeu das “ideias libertinas da Europa desses séculos”. Organizada por Victor Correia, esta antologia única reúne poemas eróticos sobre frades, freiras e padres, escritos por mais de 50 autores portugueses clássicos, da Idade Média ao início do século XX. No final da antologia, divulga um conjunto de poemas inéditos do século XVIII, cujos manuscritos estão no arquivo nacional da Torre do Tombo: são da autoria de um frade, Frei João de Deus, e foram endereçados a diversas freiras. Têm agora, pela primeira vez, publicação em Portugal. Guerra & Paz
Honoré de Balzac
O Pai Goriot
Balzac (1799-1850) concebeu uma obra monumental com perto de 100 volumes. A quase totalidade forma um conjunto a que deu o título de A Comédia Humana, através do qual cria um extraordinário retrato da sociedade francesa da primeira metade do séc. XIX. Visionário poderoso, dotado de uma imaginação e sentido de observação invulgares, debruça-se sobre as problemáticas da paixão e da tomada do poder pela burguesia endinheirada. Este romance narra a história do pai Goriot, fabricante de massas viúvo que, tendo enriquecido durante a Revolução, permitiu às filhas, Anastasie e Delphine, encontrar bons partidos. Apesar da ingratidão das filhas, o protagonista dá provas de um amor paternal absoluto que quase raia a loucura. Paralelamente, desenvolve-se um tema tipicamente balzaquiano: o de um jovem provinciano ambicioso, de beleza delicada e algo andrógina, Eugène de Rastignac, que luta no mundo competitivo e adverso da grande cidade de Paris. A Comédia Humana, é uma obra colossal na qual as personagens passam de uns romances para os outros. Nesse sentido, embora na realidade não tenha sido concebido como tal, O Pai Goriot pode ser lido como o primeiro volume de uma pressuposta trilogia completada, respetivamente, por Ilusões Perdidas e Esplendores e Misérias das Cortesãs. Relógio D’Água
Edmund Wilson
Rumo à Estação da Finlândia
Edmund Wilson (1895 -1972) foi um escritor, ensaísta, jornalista, historiador e crítico norte-americano. Importante e influente crítico literário do The New Yorker influenciou o gosto literário de sua época promovendo novos escritores como William Faulkner e Ernest Hemingway. Na introdução a Rumo à Estação da Finlândia, a sua obra mais relevante, escreve: “É muito fácil romantizarmos uma sublevação social que acontece num país distante. (…) Ao longo deste livro, parte-se do princípio de que se deu um passo importante no sentido do progresso, de que ocorreu uma ‘conquista’ fundamental e de que nada na história da humanidade voltaria a ser como era”. Neste, que é o seu único estudo histórico, publicado pela primeira vez em 1940, desenvolve uma história intelectual em larga escala das ideias revolucionárias que deram forma ao mundo moderno, desde a Revolução Francesa até à chegada de Lenine, em 1917, à estação da Finlândia, em São Petersburgo. A obra é marcada por um tom vibrante, resultado do estilo do autor, mas também na sua convicção na ideia basilar de que é possível construir uma sociedade assente na justiça, na igualdade e na liberdade. O autor narra as vidas de anarquistas, socialistas, niilistas e utópicos como Vico, Michelet, Bakunin, Marx e o próprio Lenine. Com Wilson, a visão histórica é transformada num enredo pleno de romance, idealismo, intriga e conspiração. Imprensa da Universidade de Lisboa
Miriam Assor
Portugueses na Lista Negra de Hitler
O nazismo classificou os judeus como inimigos prioritários, mas perseguiu igualmente opositores políticos, testemunhas de Jeová, homossexuais, pessoas acusadas de serem criminosas profissionais e os chamados antissociais (mendigos, prostitutas, alcoólicos). Esterilizou, à força, afro-alemães, vitimou deficientes, empregou medidas extremas contra grupos considerados inimigos raciais, civilizacionais ou ideológicos, ciganos e funcionários e prisioneiros de guerra soviéticos, como lembra Miriam Assor no prefácio ao presente livro. Não obstante Portugal ter declarado neutralidade na II Guerra Mundial, houve cidadãos com documentação portuguesa tragicamente envolvidos na contenda. Fruto de uma pesquisa de mais de dez anos, esta é uma investigação inédita sobre os judeus portugueses que foram vítimas do totalitarismo nazi, do seu encarceramento, condições de transporte para os campos de extermínio. A obra inclui as memórias dos poucos que sobreviveram ao Holocausto, narradas pelos próprios ou pelos seus descendentes. Lembra a política consular do Estado Novo, que poderia ter feito muito mais para proteger os seus cidadãos no estrangeiro. Recorda os nomes dos diplomatas que desobedeceram às diretivas do Ministério dos Negócios Estrangeiros e a intervenção da Polícia portuguesa, no sentido de fechar as fronteiras e de encurtar o mais possível a estadia dos refugiados em território nacional. Casa das Letras
De saltos altos e cabelo armado, cheia de pose e sensualidade feminina, eis a intemporal Pantagruel, apresentadora televisiva de um popular programa de culinária, chef antropofagicamente requintada e bruxa vil, incestuosa e infanticida. A seu lado, o jovem Nosferatu, a cumprir uns meros três meses de estágio profissional, e um lobo cheio de estilo, após a fuga bem-sucedida ao desfecho conhecido do conto do Capuchinho Vermelho.
A doce vida de Pantagruel, repleta das melhores iguarias canibais, prepara-se para ficar ainda mais apaladada quando chegam os irmãos parricidas Hansel e Gretel. E nem mesmo a misteriosa presença de dois fetos de gémeos monozigóticos, responsáveis por caos q.b. nas taxas Euribor e confusões em redes sociais, poderão evitar que outros acontecimentos monstruosos estejam prestes a acontecer.
Para O livro de Pantagruel, a mais recente “loucura” de Ricardo Neves-Neves, o ponto de partida foi o humor “grotesco, escatológico e controverso” do escritor quinhentista francês François Rabelais. “Procurava fazer qualquer coisa que parecesse não jogar”, ou seja, “encenar um musical sobre canibalismo quando, por norma, ao musical se aplicam temáticas bem mais nobres”, explica Neves-Neves. Como parceiro criativo, e depois do sucesso dos espetáculos Banda Sonora (2018), A reconquista de Olivença (2020) e a ópera As Cortes de Júpiter (2022), Filipe Raposo, um compositor habituado a conceber música para acompanhar grandes clássicos do cinema mudo, como por exemplo Nosferatu, de Murnau, filme visivelmente citado na peça.
Um menu de influências
Se o conceito de musical antropofágico nos lembra imediatamente Sweeney Todd, the Demon Barber of Fleet Street de Stephen Sondheim e Hugh Wheeler, Neves-Neves continua fiel aos momentos mais empolgantes do seu percurso e reúne, em O livro de Pantagruel, um vasto cardápio de influências, que vai dos contos infantis ao cinema de terror, e não só (spoiler alert: contém cenas à Tarantino), passando pelo teatro do absurdo e pelo non sense, “condimentos” que lhe são sempre particularmente caros.
A ideia do canibalismo surgiu da leitura de Rabelais, e dos seus monstros Pantagruel e Gargantua. “Ele é um dos pais da comédia e há nos seus textos um lado agreste e de nojo ao qual acho muita piada”, sublinha. Mas, “se a comédia” tem o condão de ser. “muitas vezes, rasteira, pode ao mesmo tempo ser elevada”, e O livro de Pantagruel usa um humor muito negro e o canibalismo como “metáfora para o modo como usamos o outro, como nos nutrirmos através do outro.”
Associado ao canibalismo, abriu-se caminho para um pot-pourri de bestialidades que O livro de Pantagruel não deixa por mãos alheias. Pela peça desfilam enredos incestuosos, crimes de vingança, casos de parricídio, matricídio e infanticídio, e outras e demais perversidades, que a dotam de um caráter subversivo que parece em desuso nos tempos que vivemos. “Acho que andamos a fingir em demasia quando todos procuramos ser elegantes e bem-nascidos”, confessa o encenador. “Enquanto artista, discordo da ideia do palco ser um sítio de pureza, um sítio de pedagogia para ensinar o outro a viver. O palco é lugar do pecado e da observação da falha.”
Construir legos
“Há um conceito temático, uma ideia musical e sonora e… acontece”. É assim que Filipe Raposo sintetiza o modo como trabalha com Ricardo Neves-Neves, lembrando que o processo é como que “brincado”. “Abrimos uma caixa de legos onde, previamente, o Ricardo já escolheu as cores e as formas, e começamos a montar.”
Para a música de O livro de Pantagruel, o compositor recorreu às muitas memórias visuais e sonoras que guarda do cinema fantástico e de terror, e nem todas provenientes de obras-primas como o citado Nosferatu. “Quando era miúdo as minhas irmãs mais velhas pediam-me recorrentemente para ir ao clube de vídeo e escolher o pior filme de terror que encontrasse. Acabei por ver coisas muito más, as quais reconheço por vezes surgirem como influências no meu trabalho.”
E, das influências mais explícitas de Neves-Neves, refiram-se as personagens dos contos infantis como aquelas que parecem dominar a forma do lego de que nos fala Raposo. O autor e encenador assume que tenta vestir sempre a pele da criança que foi e dar a essas personagens “um discurso desviante”, como aliás “as crianças fazem quando brincam a partir da realidade.”
“Parto quase sempre da pergunta e se, colocando as personagens ou num contexto diferente ou até explorando a ideia de que aquilo que conhecemos da história onde elas são protagonistas é um equívoco”, partilha. Assim, na peça, e a exemplo, temos a dupla Hansel e Gretel errando pela floresta após um sanguinário ato de vingança. Mas, há outras revelações surpreendentes sobre personagens que tão nem conhecemos.
Protagonizado por Sandra Faleiro, no papel de Pantagruel, o espetáculo conta com interpretações de Andreia Valles, António Ignês, Célia Teixeira, Diogo Fernandes, Eliana Lima, Inês Cotrim, Juliana Campos, Rafael Gomes, Rita Carolina Silva, Ruben Madureira e Sissi Martins, e com a Orquestra Metropolitana de Lisboa, dirigida pelo maestro Pedro Neves. A direção vocal é de João Henriques, o cenário de Henrique Ralheta e, como habitualmente no Teatro do Eléctrico, e mais especificamente nas criações de Neves-Neves, os figurinos são de Rafaela Mapril.
Com estreia agendada para 6 de julho no Teatro São Luiz, O livro de Pantagruel fica em cena até dia 16, apresentando-se em Loulé, no Cineteatro Louletano, a 22 e 23.
O livro de Pantagruel é tema do mais recente episódio do podcast Frente de Sala disponível aqui.
Reunindo alguns dos mais reconhecidos nomes da arte urbana nacional e internacional, a mostra, com curadoria de Pauline Foessel e Pedro Alonzo, apresenta instalações originais de 17 artistas que moldaram e continuam a moldar o panorama mundial do movimento. Paralelamente, um conjunto de fotografias da mítica Martha Cooper documenta a evolução da street art ao longo das últimas décadas, fazendo “uma caracterização do lado mais subversivo” do fenómeno, nas palavras da própria.
A arte urbana, que inicialmente se desenvolveu tendo por base a tinta spray e a pasta de trigo, rapidamente evoluiu e incorporou diversas técnicas. Mais tarde, as ideias, a moda, a música, a dança e imagética da arte urbana chegaram aos media, o que a tornou num definidor da cultura popular.
“Esta exposição surge da vontade de dar a conhecer a evolução do movimento de arte urbana no mundo. Para isso, convidámos a fotógrafa americana Martha Cooper, reconhecida pelas suas imagens captadas desde o início da cultura urbana, na década de 1970, em Nova Iorque”, avança Pauline. “Além de Martha Cooper, convidámos mais 17 artistas, nacionais e internacionais, e desafiámo-los a criar in situ. Para nós, curadores, era importante dar aos artistas espaços com limitações, como na rua, mas num local que pode dar ao visitante uma experiência imersiva, não possível fora de um espaço de arte”, acrescenta. “A abertura do movimento de arte urbana, a versatilidade dos artistas e das criações, a facilidade de disseminação do movimento e a acessibilidade são os quatro conceitos que, para nós, fazem da arte urbana um movimento imperdível e que vai ficar na história da arte”, conclui a curadora.
±MaisMenos±, Add Fuel, AkaCorleone, André Saraiva, Barry McGee, Felipe Pantone, Futura, Jason Revok, Lee Quiñones, Maya Hayuk, Nuno Viegas, Obey SKTR, Shepard Fairey, Swoon, Tamara Alves, Vhils e Wasted Rita formam o restante alinhamento deste ambicioso projeto, que nasce de uma parceria entre a Everything is New e a Galeria Underdogs.

Para Tamara Alves, que apresenta na Cordoaria uma instalação com som, luz e sombra, é importante que o visitante crie uma relação direta com a peça. “Quero atrair o público para o mundo do meu trabalho, o meu desejo é que o espetador sinta que há uma certa intimidade com a minha obra”, diz a artista visual, fascinada pela estética da rua e contexto urbano.
Já AkaCorleone considera que este é um “projeto de sonho”. “Estamos a falar de um projeto que integra artistas que fizeram parte do início do movimento do graffiti e a da street art e de artistas que estão a definir o que é o futuro desta prática”, sublinha o artista que é reconhecido pela multidisciplinaridade e pela procura contínua de novas formas de apresentação do trabalho. Sobre a sua obra na Cordoaria, AkaCorleone avança: “A minha instalação quer ser o mais imersiva possível, de contemplação, onde o visitante entra e faz parte do seu universo. Espero que as pessoas percam algum tempo a explorá-la, a procurar as nuances do trabalho e, quem sabe, a encontrarem-se a elas próprias”.
Urban [R]Evolution, a mostra que explora a explosão criativa que varreu o mundo, pode ser visitada na Cordoaria Nacional até 3 de dezembro.
Quando há umas semanas se anunciou o regresso da companhia israelita Batscheva a Lisboa, no âmbito do Festival de Almada, o resultado foi, como é habitual por todo o mundo, uma corrida aos bilhetes. Em poucos dias, a lotação do Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB) esgotou para as duas datas agendadas, mas – excelentes notícias! -, a organização do Festival anunciou, durante a apresentação à imprensa da 40.ª edição, uma sessão extra, a 14 de julho, sexta-feira, às 18h30.
Fundada em 1964, a companhia israelita teve como primeira grande figura a coreógrafa Martha Graham, responsável por colocar a Batscheva Dance Company como uma das companhias mais destacadas do mundo. Através do trabalho desenvolvido pelo mentor da linguagem de movimento Gaga e diretor artístico da companhia, Ohad Naharin, a Batscheva atingiu um estatuto absolutamente incontornável no atual panorama da dança contemporânea.
Ao Festival de Almada, Naharin traz MOMO (acrónimo de “magic of missing out”, ou seja, “magia da perda”), uma peça inspirada no álbum Landfall que Laurie Anderson gravou, em 2018, com o Kronos Quartet. Em palco, 18 bailarinos são desafiados a deixarem-se levar pelas “suas emoções, ficando habitados por elas”. O resultado é, como escreveu o The Jerusalem Post, uma criação indescritível, “e essa será porventura uma marca das obras-primas: impossíveis de descrever e, portanto, de visionamento obrigatório.”

Outro regresso à capital é o de Milo Rau e da berlinense Schaubühne com Everywoman. O conceituado e muitas vezes controverso autor e encenador suíço, mestre do teatro documental, apresenta, a 15 e 16 de julho no Pequeno Auditório do CCB, “um espetáculo muito belo”, nas palavras do diretor artístico do Festival de Almada, Rodrigo Francisco. “Embora a morte esteja presente, Everywoman é, acima de tudo, um espetáculo sobre a beleza,” sublinha.
Estreado em 2021 no Festival de Salzburgo, a peça surgiu como a resposta de Rau ao desafio anual que o festival austríaco lança a um encenador consagrado de encenar a peça “faustiana” de Hugo von Hoffmannsthal Jadermann (em português, “todos os homens”). Fiel ao seu percurso, o suíço decidiu subverter o convite e, embora inspirado pela alegoria do homem que é visitado pela morte na peça de Hoffmannsthal, decidiu cumprir o desejo de voltar a trabalhar com a atriz residente da Schaubühne Ursina Lardi (que tivemos oportunidade de ver, no ano passado, aquando da passagem pelo Festival de Almada, do Édipo de Thomas Ostermeier), considerada uma das maiores intérpretes em língua alemã da atualidade, e alterar a visão sobre o texto.
Everywoman parte assim de uma carta que a atriz recebeu, em 2020, numa altura em que os teatros fecharam devido ao confinamento resultante da pandemia. A remetente, de seu nome Helga Bedau, era uma admiradora a padecer de uma doença terminal, triste por presumir que, muito provavelmente, nunca mais poderia ir ao teatro. Além disso, a mulher revelava ter, há muitos anos, sido figurante numa produção de Romeu e Julieta, sendo seu malogrado desejo ainda conseguir voltar a pisar um palco.
No espetáculo, que Bedau já não viu estrear, a atriz Ursina Lardi contracena com a própria Helga Bedau, a mulher que em vídeo incorpora a alegoria de “todas as mulheres“. Mas, desengane-se quem pense que Rau e Lardi recorrem ao sentimentalismo ou à comoção fácil que o estado da mulher poderia suscitar como motor do espetáculo. Em Everywoman há um piano em cena e há Bach, logo, é música a pulsar vida e a levar-nos para além da inevitabilidade da morte.
Peter Stein e Declan Donnellan em Almada
A celebrar 65 anos de vida no teatro, João Mota é a figura homenageada nesta edição do Festival. Para além do regresso ao palco de uma das suas mais recentes encenações, Não Andes Nua Pela Casa de Georges Feydeau (dia 8 no Palco Grande da Escola D. António da Costa, em Almada), o ator, encenador e fundador da Comuna Teatro de Pesquisa é evocado na exposição-instalação da autoria de José Manuel Castanheira A escola do círculo repetido sem fim (no teatro de João Mota) que enfatiza a vertente de pedagogo ao longo de mais de três décadas na Escola Superior de Teatro e Cinema e na própria companhia que fundou há 51 anos.
Numa edição marcada por vários (e notáveis) regressos, incluindo o de espetáculos portugueses de grande sucesso – como Montanha-Russa de Miguel Fragata e Inês Barahona, e Aquilo que ouvíamos do Teatro do Vestido – os nomes de Peter Stein e Declan Donnellan assumem um especial protagonismo. Mestres do teatro contemporâneo, grandes diretores de obras-primas da dramaturgia universal, o regresso a Almada faz-se com Pinter e de la Barca, respetivamente.

Stein, que a imprensa italiana se arrisca a prognosticar estar a assinar a sua última encenação, apresenta O Aniversário (12 de julho). Tal como na sua última vinda ao Festival (O Regresso A Casa, em 2015), o grande encenador alemão regressa com um texto de Harold Pinter – um dos seus primeiros – e com um elenco italiano para interpretar uma das peças mais perturbadoras do autor inglês ou, como diz o diretor do Festival, “uma inquietante peça sobre a verdade onde todas as personagens estão a mentir.”
Quanto ao britânico Declan Donnellan, que marcou o público do Festival em 2014 com o seu inesquecível Ubu Roi, dirige um dos mais emblemáticos textos do siglo de oro espanhol A Vida é Sonho. Uma grande produção que junta a Cheek by Jowl de Donnellan à Compañia Nacional de Teatro Clásico, de Madrid (17 e 18 de julho, no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada).
De entre a presença portuguesa, destaque para duas estreias absolutas: Calvário de Rodrigo Francisco para a Companhia de Teatro de Almada, e Ventos do Apocalipse de Noé João numa coprodução do Teatro GRIOT com os Artistas Unidos. A primeira é uma incursão do teatro dentro do teatro em torno de uma companhia que encena uma peça de Thomas Bernhard e acaba por se debater com um autêntico “calvário”. A segunda, o olhar do ator e agora encenador angolano Noé João sobre o romance homónimo da escritora moçambicana Paulina Chiziane, naquilo que o próprio define como um exercício sobre “a memória e a guerra interpretado por quatro personagens em busca da terra prometida.”
Para além dos 20 espetáculos de teatro, dança e novo circo a serem apresentados entre 4 e 18 de julho, o Festival de Almada é composto por encontros, exposições, debates e pequenos concertos ao ar livre. Os bilhetes para os espetáculos variam entre os 13 e os 35 euros, estando já disponíveis as Assinaturas, que permitem o acesso a todos os espetáculos numa das sessões programadas, com o custo de 85 euros. Todos os detalhes da programação podem ser consultados no site oficial da Companhia de Teatro de Almada.
Para Andreia Bento e Nuno Gonçalo Rodrigues, atores que assinam a quatro mãos a encenação de Adam, teria sido possível a ambos acumular o trabalho de encenar com o de interpretar a multiplicidade de personagens que compõem o espetáculo. Mas, “dada a temática da peça, achámos que o ideal seria ter em palco atores da comunidade trans”, e, desse modo, “promover a representatividade de uma comunidade que ainda se depara com situações de exclusão e de extrema violência”, refere Andreia Bento.
Escrita por Frances Poet, Adam estreou no Festival de Edimburgo em 2017, interpretada pelo próprio Adam Kashmiry, um ator trans nascido no Egito que, anos antes, procurara asilo na Escócia de modo a conseguir “encontrar um lugar onde pudesse existir”. Um lugar que, como afirma o ator Tomás de Almeida, que interpreta na peça o Adam masculino, não é somente geográfico, “mas identitário”.
Identificado à nascença com o género feminino, Adam Kashmiry depressa se apercebe que estava a crescer no corpo errado. Perante a sua própria incompreensão, que se revelará insustentável no futuro, e a intolerância com que sistematicamente se confronta da parte da família e da sociedade, chegado à adolescência Adam decide rumar à Europa em busca de um lugar onde se possa cumprir como pessoa.
Depois de múltiplas atribulações e angústias, entra no Reino Unido e fixa-se na cidade escocesa de Glasgow. Mas, outra batalha se lhe impõe: para requerer asilo, há barreiras burocráticas a vencer de modo a garantir os cuidados médicos que lhe permitam provar que é um homem trans. Será a agonia vivida por Adam ao longo dos cerca de 700 dias em que se manteve confinado num pequeno quarto em Glasgow, enquanto espera pelas decisões das autoridades, que servirá de cenário ao texto de Frances Poet.
Esse espaço de confinamento é como que um mergulho na cabeça de Adam e nas suas conflitualidades latentes. Por um lado, aquelas que esgrime com as vozes do passado, repletas de incompreensão e de falta de compaixão, que ecoam do Egito natal. Por outro, aquelas que se escutam num presente que lhe traz a frustração e a desilusão com o país onde pretende encontrar o seu lugar.
Contudo, o epicentro do drama está no conflito identitário entre o Adam feminino (que aqui é interpretado por Eduarda Arryaga) e o Adam masculino. Uma dualidade que Poet estrutura com particular engenho e que, nas palavras da co-encenadora Andreia Bento, justificam este namoro antigo com um texto que descobriu em 2019 e que, desde logo, revelou “um enorme potencial artístico e emocional.”
Foram as qualidades do texto e “a visão sobre o tema da identidade” que acabaram também por seduzir Nuno Gonçalo Rodrigues, que não só co-encena como assina a tradução. “Enquanto lia o texto comecei a traduzir mentalmente e quando dei conta tinha umas 20 páginas prontas.”
O palco inclusivo dos Artistas Unidos
Ao longo de um processo de criação “muito fluído”, os Artistas Unidos decidiram que seria importante contar com pessoas da comunidade trans na criação do espetáculo. “Até aqui, os Artistas Unidos foram sempre um palco cisgénero. Daí Adam ser um espetáculo histórico para a companhia”, sublinham os encenadores, lembrando que, para lá dos atores, Adam conta com trabalho em vídeo da artista dominicana não binária Marie Jiménez e a consultoria do próprio Kashmiry e da ativista trans Dani Bento, da Associação GRIT e da ILGA Portugal.
De um open call aberto a artistas trans, os encenadores selecionaram Eduarda Arryaga e Tomás de Almeida, ambos atores formados pela Escola Superior de Teatro e Cinema, que sublinham a relevância “pessoal e para a comunidade trans de serem protagonistas num espetáculo de uma das mais importantes companhias de teatro portuguesas.”
Quanto à peça, embora exista um caráter biográfico explícito (sem comprometer as afirmações da autora e do próprio Adam Kashmiry a assumirem que Adam vai para além de um percurso exclusivamente pessoal), os atores sublinham “a importância de estas histórias começarem a ganhar palco”. Eduarda Arryaga, que fez o “percurso” inverso ao da personagem da peça, enfatiza que, por mais díspar que tenha sido a sua experiência, “é impossível a uma pessoa trans não se identificar” com muito daquilo que está na peça. “Partilhamos muita daquela dor, daquela angústia de saber que é preciso transformar o nosso corpo para que nos aceitemos, para que nos amemos e, consequentemente, para que os outros nos aceitem e possam amar também”.
Com estreia marcada para 8 de junho (numa sessão de entrada livre, sujeita à lotação da sala e a confirmação prévia), Adam está em cena até 24 de junho, de terça a sábado, no Teatro da Politécnica.
O seu percurso académico é ligado ao design. Como surgiu a vontade de ser músico?
Tirei um curso profissional de multimédia e estudei artes plásticas na faculdade, mas sempre tive uma paixão secreta pela música. Não acreditava que um dia pudesse seguir esse caminho, mas era um sonho que tinha desde criança. À medida que o tempo foi passando fui aprendendo por minha conta, fui ganhando confiança. Juntava-me com amigos, escrevíamos letras, cantávamos uns para os outros… Quando saí da faculdade acabei por perceber que era esse o caminho que ia seguir.
Esse lado visual permite-lhe saber bem o que quer da estética musical?
Sem dúvida que influencia a forma como apresento a minha música. O lado visual quase que faz parte da música em si. Aquilo que proponho não é só uma canção. Quero ter impacto cultural e mexer com as mentalidades.
A sua sonoridade é uma mistura de estilos. Como a caracteriza?
É música popular portuguesa. Gosto do limite entre popular e pop. O que é que é pop e o que é que é música popular? Se pensarmos bem, não é muito fácil separar estes dois universos. Rock’n’roll também é música popular americana. Temos tendência a olhar para a música popular portuguesa como folclórica e tradicional, mas isso é muito redutor. Por exemplo, neste disco – que tem inspirações diferentes do disco anterior – fui buscar sonoridades como a música de baile, as marchas ou as rumbas portuguesas. São géneros que estão muito presentes. As marchas são criadas todos os anos e vividas intensamente. Os géneros que abordo podem parecer tradicionais, mas são bastante contemporâneos e estão bem vivos.
O primeiro disco, Por este Rio Abaixo, saiu em 2021. Grande parte dele foi escrito durante a pandemia. É por isso que tem um tom melancólico?
As canções já existiam antes, mas foram muito trabalhadas durante a pandemia. Em termos de letras e de conceito não foi muito influenciado pela pandemia, mas mais pela fase que eu estava a viver a nível pessoal. É um disco mais melancólico, mais trágico, de coração partido, mais fadista. O disco novo – Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente – é totalmente diferente. As inspirações musicais são completamente diferentes, apesar de continuarmos na música popular portuguesa. O estado de espírito é totalmente o oposto, é um disco 100% alegre.
Isso está relacionado com a fase pessoal e profissional que está a viver?
Quando fiz este disco estava a entrar numa nova fase da vida, muito mais feliz, o que me transportou para um sítio completamente diferente. É interessante observar como em três anos tudo mudou, e o impacto que isso teve no meu trabalho. No início, quando comecei a trabalhar neste disco, estava um bocado inseguro. Achava que o disco era alegre demais, que lhe faltava profundidade. Mas pensei que tinha de aproveitar este bom momento e marcá-lo no tempo. Agora é avançar e ver o que vem a seguir.

O disco inclui bailes, rumbas e marchas. A ideia foi homenagear estes géneros musicais?
As marchas e a música de baile fazem parte das minhas memórias de infância. A música de baile é transversal, transporta-nos para as festas na aldeia. Aliás, basta ligarmos a televisão ao domingo e temos essa realidade. Acho que é uma realidade linda, com elementos musicais muito interessantes. É o tipo de música que oiço quando estou a celebrar com amigos: à segunda cerveja já estou a pôr uma rumba portuguesa ou uma música de baile [risos]. São géneros musicais que me ajudaram a encontrar a minha postura musical feliz. Há muito esta ideia – que para mim era verdade até há pouco tempo – de que a música feliz é bastante desinteressante. Por norma, as melodias que mais me interessam caem muito para as escalas menores, são melodias tristes. A música de baile e as marchas têm uma grande personalidade melódica. Encontrei aqui uma fórmula musical feliz – que transmite o meu estado de espírito – e que me permite explorar algo que nunca tinha explorado antes.
O primeiro single deste novo trabalho, Estrada, conta com a participação dos Mineiros de Aljustrel. Como surgiu a ideia para esta parceria?
Andava a trabalhar numa rumba portuguesa há algum tempo. Numa das vezes que estava a trabalhar esta música, subi o tom e comecei a ouvir o hino dos mineiros dentro da minha cabeça. Tive uma epifania e quis muito que esta ideia resultasse. “Samplei” o hino dos mineiros e percebi que casava perfeitamente com a canção. Achei muito curioso, isto diz muito sobre o hino dos mineiros e sobre o cante alentejano. O hino dos mineiros encaixa perfeitamente na escala da música cigana. Havia uma proximidade musical entre as duas coisas que me interessava explorar. Essa é uma das mensagens da música: unir o universo musical alentejano ao universo cigano português. Como sabemos, são dois mundos que, infelizmente, têm estado em tensão nos últimos tempos. A música não resolve problemas, mas cria um espaço onde estes dois mundos diferentes se aproximam. Acho isso bonito e com potencial para mudar mentalidades.
Qual é a história por trás da canção Preço Certo (que conta com uma pequena participação do ator e apresentador Fernando Mendes)?
Para mim, o Fernando Mendes é um símbolo de otimismo e de celebração, de generosidade e de união. Representa o sentimento que eu queria transmitir com esta música. O nome da música está relacionado com a minha experiência pessoal: estou feliz, tenho pessoas lindas ao meu lado. Sinto-me como se tivesse ganho a montra final do Preço Certo.
Produziu e participou no álbum da sua companheira, Ana Moura, e ela também participa no seu disco. Gerir o lado emocional e profissional é pacífico para os dois?
A Ana ajuda-me muito com a sua opinião, sobretudo com as melodias. Todos temos um “ouvido” que nos dá opiniões e eu tenho a sorte de ter um ótimo ouvido para me dar opiniões [risos]. Encorajamo-nos muito nos nossos trabalhos, e também nos ajudamos participando nos discos um do outro.
Em junho, apresenta este disco no arraial do Centro Cultural Magalhães Lima, em Alfama. Vai ser uma festa ou um lançamento do disco?
Vão ser as duas coisas na verdade. Este ano tenho estado muito próximo da marcha de Alfama: muitos dos coros femininos do meu álbum são de marchantes da marcha de Alfama e também da ensaiadora das marchas. O disco também conta com participação do cavalinho (banda filarmónica) que trabalha com a marcha de Alfama. Estou extremamente entusiasmado por mostrar ao bairro de Alfama o que tenho estado a fazer. Temo-nos ajudado mutuamente, por isso quero muito mostrar-lhes o fruto disso tudo. Também estou perto da Graça, que foi o sítio onde cresci. Vai ser bonito poder apresentar à cidade uma música que tem tanto dela.
Abdulrazak Gurnah
O Desertor
Abdulrazak Gurnah, escritor nascido em Zanzibar em 1948, que vive no Reino Unido desde 1960, foi considerado pela Academia Sueca, ao atribuir-lhe o Prémio Nobel de Literatura 2021, “um dos autores pós-coloniais mais proeminentes do mundo”. O Desertor, o seu quarto título editado em Portugal, é uma obra admirável sobre duas histórias proibidas de amor inter-racial, separadas por duas gerações. De forma inesperada, essas histórias são quase elididas, ficando o leitor a saber apenas que existiram factualmente. O que interessa ao autor são as circunstâncias em que ocorrem: o complexo ambiente cultural, político, social e religioso da África Oriental na época colonial. O mundo imperial inflexível de 1899, “que se tornara uma extensão da respeitabilidade britânica”, e os finais de década de 1950, nas vésperas da independência, asfixiados “pelo servilismo colonial, religiosidade medieval e mentiras sobre o decurso da história”. No final da obra, o narrador, tomando conhecimento de um antigo diário, consegue estabelecer o traço de união entre as duas histórias de amor, projetando-as no futuro. Um livro fascinante que une a tradição narrativa da Africa Oriental com uma estrutura de romance herdeira do modernismo literário europeu. Cavalo de Ferro
Konstandinos Kavafis
Os Poemas
Esta magnífica edição bilingue, traduzida por Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, reúne a obra poética completa de Konstandinos Kavafis. Poeta grego (1863/1933), nasce e vive praticamente toda a sua vida em Alexandria, no Egipto. Concilia, na sua obra, duas formas de expressão opostas: a coloquial e a erudita, por vezes arcaizante. Os seus poemas, sem recurso à metáfora ou a efeitos de retórica, reportam-se, essencialmente, à Alexandria do período Helenístico e Greco-Romano (de 325 aC a 400 dC). Através deles, procura estabelecer um paralelo entre a cidade dessa época e o mundo moderno, deixando prevalecer um sentimento de decadência de culturas. Temas mitológicos e históricos (Pois O Deus Abandona Marco António), elementos eróticos de natureza homossexual – entre eles o culto da beleza física e a obsessão do desejo (Dias de 1908) -, e alusões à decadência e à mudança (À Espera dos Bárbaros) conjugam-se para definir o tom de ironia, mas também de profundo lamento pela transitoriedade das coisas que caracteriza a obra deste grande poeta. Relógio d’Água
Itamar Vieira Junior
Salvar o Fogo
O vencedor do prémio Leya 2018 está de regresso com um novo romance onde, uma vez mais, as mulheres têm um papel preponderante. Em Tapera do Paguaçu, uma pequena localidade da Bahia dominada pelos poderes da igreja, vivem Luzia, o seu irmão Moisés e o pai Mundinho. A mãe morreu, os irmãos “caíram no mundo” e Luzia viu-se obrigada a tomar conta deles. Desprezada pelo povo, vista por muitos como uma feiticeira que consegue controlar o fogo, Luzia passa a trabalhar como lavadeira do mosteiro, educando o ‘Menino’ de forma a que ele possa estudar na escola dos padres e assim seguir um caminho diferente do dos irmãos. Mas a vida no mosteiro, em cujas “entranhas vive a história da aldeia”, e a convivência com Dom Tomás marcam Moisés de tal maneira que resolve abandonar a aldeia e ir para a capital. Anos mais tarde, com o pai à beira da morte os irmãos voltam a reunir-se, “contidos, com tantas contas por ajustar, com tanto por dizer, se é que algum dia seria possível perdoarmos em silêncio uns aos outros as mágoas que nos provocamos”. Arrependida pelos silêncios e magoada pelas mentiras, Luzia ganha novo fôlego e luta como nunca contra as injustiças. “Seu nome é coragem, e já não teme a morte.” Sara Simões Dom Quixote
George Orwell
Dias da Birmânia
Um sinal de nascença deformante no rosto de Flory, negociante inglês de madeiras, fá-lo sentir-se condenado à solidão e à inadequação social. Quando se estabelece na Birmânia não consegue adaptar-se a um regime colonial desumano que fomenta o servilismo dos nativos e compactua com a insídia e a corrupção. Ao escolher como único amigo um médico birmanês hostiliza irremediavelmente a comunidade britânica a que pertence. A experiência de George Orwell (1903-1950) como agente da polícia na Birmânia inspirou este seu primeiro romance que traça um retrato sem concessões do domínio colonial britânico. O autor de 1984 elege o clube britânico local, exclusivo para membros brancos, como símbolo e último reduto do Império, lugar de culto das suas tradições e costumes (o ténis e o bridge, o whisky e o gin, a leitura de jornais, revistas e livros ingleses) e, simultaneamente, de afirmação dos valores da superioridade, elitismo e intolerância: “Nada de nativos neste clube!” Guerra & Paz
Vivant Denon
Sem Amanhã
Nobre francês, Vivant Denon (1747–1825) escapou à guilhotina durante a Revolução Francesa. Mais tarde, veio a cair nas graças de Napoleão, que acompanhou durante a campanha militar, munido de material de desenho, tendo depois recebido do imperador a nomeação para primeiro diretor do Museu do Louvre, que mantém hoje o seu nome numa das galerias. Sem Amanhã foi um dos poucos textos que deixou: 40 páginas que tiveram existência atribulada na sua fixação original, e que geraram um culto, impulsionado por gente como Anatole France, Honoré de Balzac, Milan Kundera e Louis Malle (cuja adaptação e atualização do texto de Denon por Louise de Vilmorin, deu origem ao filme de 1958, Les Amants). Narrado na primeira pessoa, por um jovem de 20 anos (que poderá corresponder a um relato autobiográfico do próprio autor), ingénuo nas coisas do amor, conta-nos a sua experiência de uma noite com uma aristocrata que, vem a saber, mantinha várias relações amorosas (mais ou menos breves) fora do casamento, estagnado com um marido indiferente. Estamos em território da libertinagem no feminino, extremamente bem contextualizado pela apresentação e pelo apêndice final da autoria do tradutor, Aníbal Fernandes. Ricardo Gross VS. Editor
Miguel Torga
Teatro
Adolfo Correia da Rocha, conhecido pelo pseudónimo Miguel Torga (1907/1995), distinguiu-se como poeta, contista e memorialista. Paralelemente, exerceu também uma importante e reconhecida atividade de dramaturgo. Este volume reúne as peças de teatro mais significativas de Miguel Torga: Terra Firme (1941), Mar (1941) e O Paraíso (1949). Várias vezes levadas à cena em Portugal e no estrangeiro, tiveram algumas representações marcantes, como a de Terra Firme pelo TEUC (com encenação de Paulo Quintela), e as de Mar pelo Teatro Moderno da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, por um grupo de estudantes do King’s College de Londres (sob a direcção de Ruben A., que fez também uma adaptação da peça para a BBC), pelo Teatro Experimental do Porto (com encenação de António Pedro), pelo CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) e pelo Teatro Experimental de Cascais (com encenação de Carlos Avilez e cenário de Almada Negreiros). Peças representativas do carácter humanista da obra de Miguel Torga. O autor escreve em O Paraíso: “O homem fabrica sem querer as suas próprias fatalidades. E é nelas que realiza, positiva ou negativamente, a grandeza de que é capaz.” Dom Quixote
Mascarada Política – O Carnaval na obra de Rafael Bordalo Pinheiro
Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), homem da imprensa, desenhador, caricaturista, ceramista, assume-se como uma figura incontornável da segunda metade do século XIX. Figura do seu tempo, não poderia deixar de retratar o Entrudo enquanto festa pública repleta de múltiplos significados. O catálogo da exposição Mascarada Política – O Carnaval na Obra de Rafael bordalo Pinheiro, patente no Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras até ao próximo dia 30 de junho, com edição bilingue português/inglês, profusamente ilustrado, inclui alguns originais nunca antes mostrados. A publicação mergulha na obra artística bordaliana, olhando para o Carnaval, não apenas como um momento de inversão da ordem social estabelecida – característica intemporal da folia carnavalesca –, mas como um fenómeno histórico e sociológico que contempla inúmeros significados e objetivos sociais, políticos, económicos e religiosos. O catálogo e a exposição são produto de uma primeira investigação sobre a forma como Rafael Bordalo Pinheiro retratou o Carnaval, data importante nos divertimentos públicos de Lisboa, e a relevância dos ritos e das práticas carnavalescas na sua abundante produção jornalística, caricaturista e decorativa. Câmara Municipal de Torres Vedras / Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras
Pode ter passado mais de um século sobre os tempos de Isadora Duncan (1877-1927), mas a memória da mulher e o seu pensamento permanecem absolutamente atuais. Essa é a convicção de Rita Lello que, com a cumplicidade de Eugénia Vasques, traçou as coordenadas para uma viagem “a partir do itinerário proposto na poesia de Graça Pires”, no livro Jogo Sensual no Chão do Peito, e “na prosa da própria Isadora recolhida de várias fontes.”
De Duncan poderíamos dizer que é a precursora da dança contemporânea. Nascida americana, mas cidadã soviética nos últimos anos de vida, era a bailarina que não queria ser assim chamada porque, tal como um escritor usa as palavras, Isadora usava o corpo. Um uso vincado pelo “seu caráter destemperado, pela sua crença inabalável na liberdade – a liberdade das mulheres, a liberdade das pessoas, a liberdade criativa”, enfatiza Rita Lello, lembrando que ela foi mais do que “a criadora revolucionária” a quem chamavam “dançarina dos pés descalços”. Duncan foi uma feminista implicada, “uma pensadora com enorme lucidez crítica, que lutou pela emancipação das mulheres e pelo direito a terem o seu próprio espaço.”
Indissociável do seu pensamento, está uma vida aventurosa e invulgar, repleta de contornos trágicos – como o afogamento no rio Sena de dois dos seus filhos, ou até o violento acidente de carro que lhe causou a morte na Riviera francesa – e de amores ardentes – entre eles, as relações que manteve com o cenógrafo Gordon Craig, pai dos seus primeiros dois filhos, ou com o poeta russo Sergei Yesenin, seu único casamento; no campo da especulação mantem-se o caráter do relacionamento com a atriz italiana Eleonora Duce após a morte dos filhos.
Todos estes episódios da vida de Isadora Duncan vão compondo a viagem que Rita Lello faz a solo ao longo de pouco mais de uma hora. “Quis que o espetáculo tivesse algo de onírico e diáfano, mas sem que necessitasse de o colocar na representação”, explica. Para isso, é essencial o desenho de luz de Vasco Letria a acentuar a leveza e a transparência dos tules suspensos por onde a atriz se move. “Todos os elementos que aqui estão fazem parte do universo de Isadora: os tules que remetem para os cenários de Gordon Craig ou o vestido vermelho [figurino de Dino Alves] que era uma das suas marcas. Ela era uma vanguardista”, salienta Rita Lello.
Mas o que leva uma atriz de teatro a arriscar vestir a pele de uma personalidade que marcou a história da dança? “Quando li aquela frase da Isadora a pedir que não lhe chamassem bailarina achei que eu, que não sou uma atleta nem nunca dancei senão ballet em criança, poderia ser Isadora”, conta com um sorriso. “Para isso, devo muito à Amélia Bentes [coreógrafa] que me pôs a mexer e esteve constantemente a meu lado para que chegasse aqui sem que o meu corpo sentisse restrições.”
Quanto à urgência de recuperar o percurso e o pensamento desta mulher excecional, Rita Lello deixa a resposta no último parágrafo do texto que escreveu para a Folha de Sala de Isadora, fala!, nele reivindicando “um espaço de memória e um espaço de intervenção onde se estabelece o diálogo entre o discurso em defesa da liberdade de ontem, de hoje e de sempre.”
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