Gostaríamos de começar por lhe pedir que se apresentasse sucintamente aos leitores menos familiarizados com o universo da Dança.

Chamo-me Carlos Prado e tenho 59 anos. Nasci em Palmela. Comecei a estudar Dança anormalmente tarde (tinha 17 anos). Fiz a minha formação na Academia de Dança Contemporânea onde trabalhei com dois mestres maravilhosos, a quem devo tudo: a Maria Bessa e o António Rodrigues. Em 1984, fui convidado pelo Armando Jorge, então diretor da CNB a ingressar na Companhia, onde estive até 1990. Nesse ano, Jorge Salaviza, diretor do Ballet Gulbenkian (BG), convidou-me. Estive lá até à data da sua extinção, em 2005. Nesse ano deixei de dançar e fui convidado para ser professor e mestre de bailado numa companhia em Itália, dirigida pelo coreógrafo Mauro Bigonzetti. Estive lá sete anos. Voltei a Portugal porque tinha saudades e comecei a fazer trabalhos como freelancer. Dava aulas em várias companhias no mundo e remontava trabalhos do Mauro Bigonzetti. Um ano depois convidaram-me para ser assistente e mestre de bailado em Antuérpia, no Ballet Real da Flandres. Fiquei quatro anos e tive oportunidade de trabalhar com o Sidi Larbi Cherkaoui. O trabalho era maravilhoso, gostava bastante de estar em Antuérpia, mas tinha muitas saudades de Lisboa.

Em praticamente três meses no cargo teve tempo de delinear os principais eixos da sua nova função?

Tenho bastante definido o resto desta temporada e a próxima. Estão praticamente fechadas. E tenho também ideias para a terceira temporada. A CNB tem algumas obrigações, como a de fazer o repertório clássico. Tem que fazê-lo e tem de o fazer a um grande nível, o que significa que não pode fazer apenas uma produção clássica por ano, tem de fazer duas ou até mesmo três. Muito importante também é misturar repertório contemporâneo. É aquilo que todas as companhias da dimensão da CNB na Europa estão a fazer, desde a Ópera de Paris ao Royal Ballet. Todas essas companhias têm uma componente clássica e uma componente contemporânea. Os bailarinos devem ser, e são, versáteis. A escolha de repertório deve dar alimento para a sua evolução artística e técnica.

O que nos pode dizer acerca do programa de espetáculos a apresentar em 2022?

Em janeiro, vamos ao Porto com o programa Noite Branca [com coreografias de Luís Marrafa, Yannick Boquin, George Balanchine]. Em março estreamos um novo programa: uma obra de um coreógrafo emergente português (Miguel Ramalho, também bailarino da CNB), reposição de uma obra que ele fez já no período da pandemia [Symphony of Sorrows, com música de Henryk Górecki], e uma peça do Sidi Larbi Cherkaoui nunca vista em Portugal: Fall, com música de Arvo Pärt, que ele anuiu em remontar para nós. Em abril, no Dia Mundial da Dança, estreamos outra peça clássica, La Sylphide, com coreografia de August Bournonville e música de  Herman Löwenskjold. E para junho, como estamos em ano de centenário de José Saramago, convidei a Olga Roriz para fazer uma criação à volta do universo do escritor [Deste mundo e do outro]. Acabamos a temporada em julho, como é hábito no Festival ao Largo, com  a apresentação, uma vez mais, da Noite Branca.

“Não tenho preferência por clássico ou por contemporâneo. Tenho preferência por boa dança.”

Como é programar no contexto de instabilidade de uma pandemia feita de recuos e avanços?

Limita imenso, ou seja, pode limitar. O que penso é que se tem de programar, independentemente da pandemia. Depois, à medida que a situação se for alterando, vão-se fazendo os ajustes necessários. Todo este tempo decorrido, temos de ter uma visão de futuro e de abertura, e de programar sem restrições. Na eventualidade de vir a ser necessário, vamos ter de adaptar ou de adiar. Temos de pensar a CNB independentemente da pandemia. Claro que é um cenário muito presente e vamos ter que viver com isso. Mas não posso programar a pensar nesta situação, ou então não se faz nada.

Quais foram os principais ensinamentos que recolheu na sua experiência profissional no estrangeiro?

Um deles foi, sem dúvida, o contacto com muitos coreógrafos, muitos bailarinos, muitos diretores de vários teatros no mundo inteiro. Tive imensa sorte porque trabalhei em sítios onde se faz desde o mais contemporâneo ao mais clássico. Fui ao Bolshoi várias vezes remontar peças, fui assistente de um coreógrafo no New York City Ballet, estive em companhias mínimas. Em Itália, por exemplo, era uma companhia de tournée e fazia-se muita coisa fora do teatro, na rua, e outro tipo de projetos mais contemporâneos, mais vanguardistas. Ou seja, isto é a minha bagagem. Aquilo que posso utilizar agora resulta das diversas experiências que vivi nestes últimos 20 anos. Saber como é que funciona um teatro, como se faz uma produção, o que está envolvido nisso…

A sua preferência enquanto coreógrafo, entre o ballet clássico e o contemporâneo, vai refletir-se nas suas decisões de diretor?

Não tenho preferência por clássico ou por contemporâneo. Tenho preferência por boa dança. Boa dança quando é feita ao mais alto nível, seja clássico ou contemporâneo, seja moderno ou seja neoclássico… seja o que for. Quando é bem feito gosto de tudo. Além disso, acredito mesmo que, retirando da minha experiência como bailarino e de ter trabalhado diversos repertórios, foi o que me enriqueceu tanto tecnicamente como artisticamente, a capacidade de afrontar novas linguagens. Essa ductilidade de poder fazer isto e aquilo. Quanto mais se experimenta, mais fácil é dançar. O público espera ver não só clássico e não só contemporâneo. A CNB é uma grande companhia, tem muitos artistas (cerca de 60); um dos investimentos necessários é no repertório em que muitos bailarinos estejam envolvidos.

O que lhe ficou da disciplina requerida pelos seus tempos de bailarino, e o que faz ainda para se manter em forma?

Nesse aspeto tenho a sorte de nunca ter tido lesões. Mas, se de repente tenho um trabalho em que estou a ensinar alguma coisa e me mexo um bocado mais, fico uma desgraça. Essa já não é a minha função agora, já dancei o suficiente. A frequência de ginásios é algo que não me atrai. Deixo que o tempo faça agora o seu trabalho de escultor no meu corpo, e seja o que Deus quiser.

Pedro Proença encontra na Biblioteca Nacional de Portugal o lugar perfeito para celebrar o vasto universo referencial e ficcional de uma obra artística fundada nos livros, nas bibliotecas e assente na prática delirante da heteronímia. O resultado é uma espécie de “meta-mundo-artístico-literário” revelador da sua criatividade inesgotável, numa multiplicidade de domínios.

O artista acompanhou a Agenda Cultural de Lisboa na visita à exposição Mestres e Monstros e, com um humor contagiante, comentou alguns dos seus trabalhos.

Kasimir no Kashemir

Este é um dos signos do [heterónimo] Jorge Judas, mas têm a ver com uma coisa que já faço desde os anos 1985/86. Uma brincadeira com algumas marotices. Fundam-se em imagens abstratas ligadas à tradição do suprematismo de [Kasimir] Malevich e aos diagramas tântricos. Aliás, chama-se ‘Kasimir no Kashemir’ por causa do tantrismo de Caxemira e do mais filosófico dos grandes autores, Abhinava Gupta. É um trabalho um bocado clandestino na minha obra, mas que tenho vindo a desenvolver de vez em quando, às vezes de cinco em cinco anos, outras vezes mais continuamente ou com saltos maiores. São peças que funcionam como conjuntos e até gostava de as ter exposto em maior número. E são um bocadinho bombons, como uma criança lhes chamou, formas apetecíveis que criam empatia. Algumas são eróticas, mas isso é inevitável.

A Volta ao Mundo em 80 Amores

A Sandralexandra e a Sóniantónia são duas personagens intensas que surgiram como forma de trabalhar a minha vida amorosa interior e de a explorar literariamente. A certa altura tive que inventar obras para elas e surgiram os postais. A Sandralexandra faz uma espécie de “fake mail art” porque as coisas são todas ao contrário: escreve na parte da frente, onde não se deve escrever, está sempre a subverter as regras da comunicação e explora a obra de arte como paixão. A Sóniantónia também tem aqui umas frasezinhas, mas são coisas mais dolorosas. As pessoas divertem-se imenso a ler estes postais e eu a escrevê-los. E a ideia desta volta ao mundo, não em 80 dias mas em 80 amores, é uma ideia de universalidade amorosa.

Pan

O meu pai lia-me, aos seis, sete anos, os mitos. Aos nove anos sabia praticamente tudo sobre o assunto e ficou-me o gosto por estas histórias. Durante o confinamento peguei num texto sobre mitologia que comecei a desenvolver. Depois, na sequência duma exposição que fiz na Galeria Valbom, decidi ironicamente tornar-me num mestre da aguarela. Comecei a trabalhar imenso tendo os mitos como tema central. Fiz muitas naturezas-mortas na tradição dos meus desenhos, que no fundo são objetos que se juntam num palco a teatralizarem-se. Só que aqui aparece a cor e apeteceu-me transportar a escala na aguarela, que geralmente é uma coisa intimista, para algo maior. A cor, que habitualmente na aguarela é ténue, aqui surge quase explosiva e consegue formar os volumes. Os insetos derivam de tradição das naturezas-mortas barrocas, que quase desaparecem naqueles fundos muito cheios. Eu aumentei-os porque quis dar maior enfase à vida que está presente nesta relação entre plantas, objetos e coisas, como algo que faz cócegas. Porque a vida é uma grande coceira!

Depois de A Raça Forte, este é o regresso do Griot ao teatro de Wole Soyinka. Porquê esta peça, a primeira e uma das mais famosas do autor?

A peça tem um universo extraordinário, povoada de personagens que estão vivas e, ao mesmo tempo, mortas, em que uns são espíritos da floresta, outros deuses ou orixás. De alguma forma, tudo isso lhe confere um sentido fantasioso, mas também um humor muito diferente daquilo que tem sido habitual no trabalho do Teatro Griot. O voltar ao Soyinka foi, precisamente, por vermos neste texto hipóteses para propor e explorar múltiplas leituras. Uma Dança das Florestas é um texto que questiona as relações de poder de forma muito inteligente e criativa. E, também muito simbólica, que é um território que a mim enquanto artista me interessa especialmente.

Segundo a história, a peça está rodeada de uma controvérsia relacionada com o facto de ter desagradado bastante à classe dirigente pós-colonial da Nigéria, em 1960.

Convém lembrar que a peça foi uma encomenda do governo pós-colonial para celebrar a independência do país. Na verdade, Uma Dança das Florestas encerra imensas críticas, que passam pela África colonizada e vão até às independências e à base em que elas foram construídas. Toda esta temática é muito profícua para criar, para explorar espaços menos evidentes e mais lacunares destas narrativas. E esta peça oferece-nos, como poucas, essa possibilidade.

No espetáculo, à peça junta textos seus. É a sua condição de africana, tal como o autor, que a inspira a fazê-lo?

Não consigo, ou melhor, não quero trabalhar sem pensar os espetáculos através das minhas palavras. Por isso mesmo, às palavras do Soyinka juntei as minhas como se, em momentos pontuais, convergíssemos. O Soyinka é um homem africano, mais velho do que eu, negro, também com formação fora de África, mas que, pelo menos nos últimos anos, vive sobretudo na Nigéria. Eu sou uma mulher negra, nascida em Angola, mas que cresceu, estudou e vive na Europa, embora agora procure estar cada vez mais em África… Parece um sacrilégio estar a “conspurcar” com palavras minhas o texto do grande professor Wole Soyinka, Prémio Nobel da Literatura. Mas ele não sabe, e espero que não venha a ler esta entrevista! [risos]

Enquanto angolana, e tendo em conta o processo de descolonização que aconteceu no seu país, reconhece as críticas que Soyinka, na peça, aponta àquela Nigéria que acaba de conquistar a independência?

Acho que se podem encontrar pontos comuns. Em primeiro, foram países que estiveram durante séculos sobre o domínio de outro e, quando conquistaram as suas independências, passaram pela incógnita de como se organizar política e socialmente. Logo, questiona-se como é que uma herança do colonialismo pode funcionar num país que é agora independente? Na peça, surge o exemplo de um totem que é erigido para a celebração da independência, mas a base em que é construído é toda ela bastante questionável. Ora, essa é uma reflexão que se pode aplicar a todos os países africanos que passaram pelo processo.

Independentemente de ser uma das vozes mais notáveis e influentes da África pós-colonial, a obra de Soyinka é universal…

Esta peça, por exemplo, pode ser lida para além do contexto africano. Ela fala sobre o poder, sobre quem o detém e como o usa, as relações determinadas pelos jogos e intrigas, a manipulação… Ou seja, são temas presentes nas nossas vidas e em qualquer lugar. Contudo, há um a que dou especial importância neste texto: o do pensamento crítico. Num sistema necropolítico, quem o possui é o primeiro a ser aniquilado. Em Uma Dança das Florestas, o personagem que o representa está morta, mas é convocado por um deus num dia de ritual. Ao voltar à vida, regressa também ao passado, ao dia em que é condenado à morte, e diz: “parece que comecei o contágio de uma nova doença.” Estranhamente, hoje, na altura em que vivemos uma pandemia, seria bom que o contágio a que estivéssemos sujeitos fosse, tão só, o que ele anuncia – o do pensamento crítico.

Este espetáculo era para ter sido encenado por uma figura iminente do nosso teatro, e habitualíssimo colaborador do Griot, Rogério de Carvalho…

Quando pensei o espetáculo para a companhia era, de facto, para ser o Rogério a encená-lo. Porém, houve um percalço de saúde e também tendo em conta todo este contexto de pandemia, mais a mais com a idade avançada que tem, decidimos que seria conveniente ele abandonar o projeto. Mas, chegámos ainda a trabalhar os dois na dramaturgia, embora a que ficou seja completamente diferente.

Como funciona o processo de criação quando trabalha um texto já publicado, conhecido e tão debatido como este?

Devo dizer que trabalho pouco o texto porque não é daí que parto. Trabalho muito mais com as imagens, os gestos e os movimentos, e por isso os meus espetáculos têm de envolver sempre pessoas das artes visuais, da dança ou da música. Curiosamente, são universos que me conseguem potencializar muito mais artisticamente e, daí permitem que mergulhe num formato ou num pensamento de teatro mais formal. Embora, como é o caso deste espetáculo, o texto tenha de ter uma temática que me interesse, me inquiete e me dê vontade de traduzir em cena.

Mas, numa companhia como o Teatro Griot, que já encenou outros mestres da palavra como Pepetela, Shakespeare, Al Berto ou Genet, essa secundarização do texto pode surpreender…

Claro que me interessa ter um bom texto, ter uma boa autora ou autor, com um universo poético e filosófico interessante. Mas, o texto é aquilo que aparece no fim, depois de trabalhar com os performers o corpo, a voz, a sonoridade, o gestuário e outros aspetos mais plásticos. E faço-o sempre em colaboração com a Neuza Trovoada enquanto artista visual; ou com o Chullage, o músico e compositor da companhia; ou, no caso particular deste espetáculo, com a coreógrafa Vânia Doutel Vaz, que está a colaborar connosco pela primeira vez.

“Esta peça fala sobre o poder, sobre quem o detém e como o usa […], ou seja, são temas presentes nas nossas vidas e em qualquer lugar.”

Mais de uma década depois da sua formação, que reflexão lhe merece um projeto tão singular no teatro português como é o Griot, fundado e constituído por artistas angolanos negros?

É muito difícil fazê-lo, até porque essa reflexão é constante, é quotidiana, e não se esgota. Mas é importante apontar o lugar instável em que esta companhia se encontra a vários níveis. Desde logo o financeiro, enquadrado no panorama geral do setor; mas também esse lado de sermos uma companhia com artistas negros. Hoje, dentro do possível, tento perceber este percurso com um outro rigor e consciência que, provavelmente, não teria quando fizemos o primeiro espetáculo…

O qual cumpre, em abril, dez anos que estreou…

No Institut Français du Portugal. É interessante que o Faz Escuro nos Olhos foi um espetáculo todo ele pensado não só tendo em conta o universo do encenador, o Rogério de Carvalho, e os textos de múltiplos autores, como foi conscientemente assente na imobilidade – éramos um conjunto de atores que passavam grande parte do tempo imóveis, a interpretar monólogos de dez a 15 minutos. Olhando hoje para esse espetáculo, lembro como isso surpreendeu o público, um público muito pouco habituado a sentar-se numa plateia e ver pessoas negras. Acho que aquilo que esperavam era ver-nos, atores negros, a movimentarem-se muito, a dançarem, e não a falar, falar, falar…

Mas respiram-se tempos de mudança, e vocês notam-nos, ou não?

Quando esse espetáculo estreou digamos que a plateia era composta por uns 98% de pessoas não negras. E os dois por cento de negros eram nossos familiares ou amigos. Recentemente, quando há uns meses estivemos na Culturgest com O Riso dos Necrófagos, estou muito à vontade para afirmar que a esmagadora maioria da plateia era negra, e uns 60% seriam mulheres. Isto é maravilhoso…

E é uma forte demonstração de mudança…

Há de facto mudança, mas seria falso eu dizer que essa mudança tem reflexo imediato na vida das pessoas, sobretudo na da população negra. O que me parece ser verdadeiro é haver uma possibilidade real de mudança, e isso decorre de uma crescente abertura por parte das pessoas para alterar alguma coisa. Se estamos a fazer uma reflexão profunda sobre tudo isto, diria que não. Acho que andamos ainda sobre a superfície, e isso prende-se também com essa tendência tão humana de ao surgir a novidade a agarrarmos, normalmente, pelo lado mais fácil e visível. Claro que é importante falar de episódios de racismo quotidiano, mas a mudança efetiva chegará quando atingirmos o cerne da questão, que é bastante mais profunda e complexa.

De que modo é que o Teatro Griot contribui para o aprofundar da questão?

O modo como o fazemos é, provavelmente, mais abstrato; porém, é real. O visível é impossível esconder, e não serei eu a dar-me ao trabalho de o mostrar a quem não o quer ver. Interessa-nos trabalhar sobre aquilo que não está falado, não está refletido, não está discutido. As artes, nomeadamente as performativas, têm o papel vanguardista de começar a refletir sobre as questões primeiro do que as outras áreas da sociedade. E o Griot tem contribuído, desde o modo como apresentamos as nossas criações à relação que estabelecemos com as comunidades negras. Tanto nos apresentamos na Culturgest ou no São Luiz como no Vale da Amoreira ou na Quinta do Mocho. E isso é ainda um lugar singular, embora se escute já, nas artes e na sociedade, um murmúrio anunciando que algo está efetivamente a mudar.

Fernando Namora

Deuses e Demónios da Medicina

Quando o diretor da empresa farmacêutica Pfizer perguntou a Alexander Fleming porque não tinha feito as coisas de maneira a obter direitos que lhe permitissem viver como merece um homem que prestou tal serviço à humanidade, o “pai da penicilina” limitou-se a responder: – “Nunca pensei nisso”. Contudo, nesta obra monumental que reúne 22 biografias de figuras marcantes da medicina, nem tudo são exemplos de abnegação pessoal e desinteresse material. Como escreve Manuel Sobrinho Simões no prefácio à presente edição: “Nem sequer é preciso escabichar demasiado as biografias desde Hipócrates, Galeno e Avicena até ao seculo XX, para se perceber que tanto se pode fazer muito bem como muito mal à custa da Medicina. (…) Não é estranho, por tudo isto, que Fernando Namora haja chamado aos médicos, Deuses e Demónios”. A vasta experiência do autor como médico concorre para tornar claros e acessíveis os conteúdos científicos inerentes a um projeto desta natureza; o seu talento de escritor contribui para transformar dados biográficos em fascinantes narrativas de perícia consumada. Caminho

Virginie Despentes

Teoria King Kong

“É daqui que escrevo, enquanto mulher não sedutora, mas ambiciosa, atraída pelo dinheiro que eu própria ganho, atraída pelo poder de fazer e de recusar, atraída pela cidade e não pelo interior, sempre excitada pelas experiências e incapaz de me satisfazer com o relato que me hão-de fazer delas”. Virginie Despentes, escritora e cineasta, publicou o seu primeiro romance Baise-moi (1993), que mais tarde adaptou ao cinema. Tanto o livro como o filme exploram a experiência fundadora da violação (“ao mesmo tempo o que me desfigura e me constitui”) na sua vida e obra. Sobre a violação escreve: “é um programa político preciso: esqueleto do capitalismo, é a representação crua e directa do exercício do poder”. Teoria King Kong opõe à retórica tradicional dominante, um discurso pessoal, iconoclasta e subversivo sobre a violação, a prostituição e a pornografia, “desconstruindo os modos de apropriação do corpo feminino que levam à subordinação social, económica e sexual”. A autora, membro da Academia Goncourt desde 2016, tomou a peito a máxima de Virginia Woolf, segundo a qual: ”O primeiro dever de uma mulher escritora é matar a fada do lar.” Orfeu Negro

Tiago Salazar

O Pirata das Flores

“Uma coisa é certa. Tudo o que se queira de grandioso na vida há-de partir de uma obsessão”. O Pirata das Flores conta, justamente, a história de uma obsessão: António de Freitas, aluno do seminário de Hangra, natural da Ilha das Flores, foge da vida monástica e, em 1810, embarca numa viagem rumo aos mares da China, onde sonha alcançar riqueza. Acompanha-o um jovem que com ele estudava, igualmente sem vocação religiosa, mas com gosto pelas letras e que, “mesmo sem saber ainda se para tanto me ajeitava com mais ou menos mestria”, vai passar a escrito as aventuras daquele que virá a ser “o mais façanhudo dos piratas desta ilha perdida no mar”. Ao longo de inúmeras peripécias, António lança-se no ramo do jogo, “sem descuidar do tráfico de ópio, os raptos e extorsões, a compra e venda de crianças pagãs e os assaltos de circunstância” nos mares e aldeias por onde passava o seu bando. Com O Pirata das Flores, Tiago Salazar consuma a transição de escritor de viagens para romancista de pleno direito. A obra agradará por certo, quer aos que se regozijam com uma boa narrativa repleta de aventuras, quer aos que se enlevam com um exercício de escrita exigente e criativo. Oficina do Livro

John Gray

Filosofia Felina: Os Gatos e o Sentido da Vida

“Os humanos, julgando conseguir conceber o fim da sua vida, acreditam saber mais da morte que outros animais. Mas o que sabem da sua morte vindoura é uma imagem gerada pelo espírito graças à consciência da passagem do tempo. Os gatos, sabendo da vida apenas o que vivem, são imortais mortais que só pensam na morte quando estão prestes a morrer. É fácil perceber porque acabaram por ser venerados.” O filósofo John Gray vive com gatos há muito e disso ficamos apenas a saber nos agradecimentos finais. O livro é composto com exemplos da convivência de outros pensadores ou escritores que observaram os seus felinos (Michel de Montaigne, John Laurence), ou biógrafos de escritores que tiveram gatos por companhia (de Colette, Patricia Highsmith ou Mary Gaitskill). Filosofia Felina vai equilibrando o seu pendor filosófico com histórias ternurentas protagonizadas por estes patudos em grande parte insondáveis. Quando observamos um gato a comer, a dormir ou remetido à sua existência solitária, percebemos que tudo nele é da ordem do tempo presente, do qual não fazem parte a ansiedade ou a depressão. Editorial Presença

Samuel Beckett

Teatro Completo

Samuel Beckett (1906/1989), Prémio Nobel da Literatura em 1969, nasce em Dublin mas abandona a Irlanda no início da década de 1930. Em Paris torna-se secretário e amigo de James Joyce que influencia a sua obra. Entre 1938 e 1953 publica algumas novelas e poemas que não encontram grande recetividade pública, nem reconhecimento crítico. Porém, a estreia, em Paris, da sua primeira obra teatral À Espera de Godot (1953) causa um profundo impacto. Aí se condensam todos os temas recorrentes da sua obra – a obsessão com a passagem do tempo, a morte, o vazio e a futilidade da condição humana – que o estabelecem, desde logo, como um dos expoentes do “teatro do absurdo”. Pela primeira vez em Portugal, é reunida a obra teatral de Samuel Beckett. O presente volume compila todas as suas peças de teatro, incluindo as peças para rádio e televisão, e um argumento para filme, textos que exploram de forma cada vez mais radical os limites da linguagem e da comunicação. Inclui traduções de Miguel Esteves Cardoso, Luís Miguel Cintra, Jorge Silva Melo ou Margarida Vale de Gato. Edições 70

João Seixas

Lisboa em Metamorfose

Entre centro e periferia, cosmopolitismo e localismo, desenvolvimento e crise, a cidade de Lisboa teve um posicionamento histórico sempre oscilante. O plano de reconstrução após o terramoto constituiu uma das primeiras manifestações mundiais do Iluminismo, contudo tal não garantiu uma modernização constante da cidade. O metropolitano de Lisboa, por exemplo, será inaugurado com cem anos de atraso em relação ao primeiro, em Londres. Em meados dos anos 1970, perto de um quarto da população da capital vivia sem condições mínimas de conforto e salubridade habitacionais. Após cinco décadas de explosão metropolitana, Lisboa chega agora ao fim de uma década de transição. Embora a metrópole se tenha tornado mais cosmopolita e integrada social e economicamente em múltiplas tendências globais, mantém simultaneamente amplas estruturas de precaridade e desigualdade. Observando o passado e o presente, este ensaio produz uma ampla reflexão sobre a evolução contemporânea da cidade e os múltiplos desafios colocados: uma economia produtiva, social, redistributiva e circular, comunidades coesas e solidárias, habitats e mobilidades acessíveis, qualificados e ecológicos. FFMS

Mia Couto

O Caçador de Elefantes Invisíveis

Um dos ficcionistas mais conhecidos das literaturas de língua portuguesa, Mia Couto nasceu em Moçambique em 1955 e escreve “pelo prazer de desarrumar a língua”. O seu estilo desenvolve-se num permanente processo de contaminação entre prosa e poesia. Inventor de palavras, recorre aos cruzamentos e à mestiçagem de que o idioma português é alvo em Moçambique para captar “o lado menos visível do mundo”, que o fascinava na infância, procurando estabelecer uma relação profunda entre o homem e a terra. O Caçador de Elefantes Invisíveis recolhe sob este título, que é também o de um dos textos antologiados, os contos publicados ao longo dos dois últimos anos na revista Visão. O autor aproveitou a oportunidade para lhes dar uma demão, mais ou menos intensa aqui e ali, reescrevendo estas belas histórias tão diversas e variadas. Tal como Bernardo, um dos personagens destas breves narrativas, também Mia Couto através das suas ficções “recusa estar perante a derradeira versão da realidade.” Caminho

Thibaut Villanova

Os Banquetes de Astérix

Não é preciso ser apreciador de banda desenhada para saber que, em pequeno, Obélix caiu no caldeirão da poção mágica, razão da sua força e apetite descomunais. Esta obra ilustrada com desenhos e fotografias, reúne 40 receitas inspiradas nas viagens dos gauleses mais populares da literatura mundial: Astérix e Obélix. Dividido em quatro partes – Banquetes Gauleses, Banquetes dos Povos Vizinhos, Banquetes Romanos e Banquetes das Terras Longínquas – apresenta sugestões irrecusáveis como o suculento javali, o salmão caledónio, o rancho legionário, o caril vegetariano, a compota e os brioches bretões ou a suprema tentação do menir de chocolate. Para além destas magníficas especialidades gastronómicas regionais e internacionais revisitadas à moda da Gália, o livro contém um sugestivo herbário do druída Panoramix que dá a conhecer ao leitor uma assinalável variedade de ervas aromáticas. Divirta-se a preparar e degustar estas receitas, mas com moderação. Imite a coragem dos famosos heróis gauleses, não a gulodice! Asa

O teu último disco, 2019: Rumo ao Eclipse saiu em outubro de 2020, em plena pandemia. Que histórias conta este disco?

As minhas músicas não contam histórias. São fotografias. Não sou nada bom a contar histórias, não há nenhum enredo nas minhas canções. É quase como se fossem fotografias a momentos pausados. Fora as canções de amor, que são típicas de qualquer era da Humanidade, elas são fotografias a determinadas tensões que já se sentiam em 2019 e que ficaram ainda mais óbvias em 2020 e em 2021.

As tuas letras são quase encriptadas, difíceis de decifrar. É propositado?

Hoje em dia a música pop está demasiado óbvia e muito pouco exigente. Aprendi a escrever com os artistas que sempre ouvi, quer internacionais, quer a ouvir muito fado ou a ler escritores portugueses, e aprendi a poesia nesse sentido, ou seja, que não é suposto as coisas serem literais. Não é suposto estares a contar o que se passa na tua vida e as pessoas irem ouvir porque querem saber o que aconteceu entre ti e a tua namorada e de que forma estás a lidar com isso. A minha escrita tem sempre um gatilho real e depois há outras coisas que acrescento, algumas até premonitórias e que acontecem mesmo, e outras coisas que escondo, que acho que são muito mais bonitas ditas dessa maneira. Acho que é feio ser-se muito literal. É possível ser-se literal de uma maneira bonita, mas tem de ser feito de uma forma muito inocente. Os brasileiros conseguem fazer isso na bossa nova, encontrar essa simplicidade e essa inocência. O Carlos Tê também faz isso, quando diz que “um sargo assa no braseiro”. São uns pormenores muito literais, mas não se sabe muito bem o que acontece no resto da história. A maneira como escrevo é produto dos professores que tive.

O que também permite que cada um interprete à sua maneira…

Faz com que a música resista ao tempo. Se a ouvires hoje ela diz-te uma coisa, e se a ouvires daqui a uns anos ela diz outra coisa…

O disco conta com várias participações especiais, entre elas Mariza, Cláudia Pascoal ou Ivo Canelas. Como surgiram estes nomes?

Em relação à Mariza, eu precisava de uma voz que soubesse dizer “está tudo bem” de uma maneira potente, ou seja, uma voz que sabemos que pode dar muito mais do que está ali a dar. Acho isso muito engraçado. Hoje em dia, por causa da quantidade de concursos de talentos, está muito na moda a ideia de que se deve dar tudo. Acho muito bonito ver uma interpretação de um artista e perceber que ele consegue dar muito mais, mas que a canção não pede isso. Eu queria uma voz como a da Mariza, que é girante e que pode dar muito mais, mas que ficasse ali num registo grave a dizer que vai ficar tudo bem. A ideia era essa, passar a serenidade de quem tem um talento muito grande dentro de si. Em relação ao Ivo Canelas, precisava de um melhor amigo para uma personagem que surgiu durante a gravação deste álbum, e achei que ele tinha veneno suficiente para ser o melhor amigo venenoso deste alter-ego [risos]. A Cláudia Pascoal usei-a como coro, como usei também a Mariana Norton. Elas tinham cantado comigo no último Coliseu que fiz e encaixaram tão bem que, quando precisei de duas vozes femininas, chamei-as e ficou muito bonito. O Fred Ferreira [baterista] também participou, entra em todos os meus álbuns. Quando preciso de uma bateria mais rock, ele é imbatível.

Como foi lançar um disco neste contexto?

Foi um bocadinho duro. O álbum era para ter saído em março ou abril de 2020. Achei piada à ideia do disco se chamar 2019: Rumo ao Eclipse, mas tive de esperar uns meses para o lançar. Mal nós sabíamos que ainda ia haver outro confinamento. Acabámos por lançá-lo em novembro, a tournée de lançamento foi adiada duas ou três vezes até que desistimos, e só conseguimos fazê-la depois do fim do segundo confinamento. É muito estranho ter na mão um álbum que é novo, mas que já tem um ano e que ainda tocámos muito pouco ao vivo. Temos de ser criativos e arranjar novas maneiras de o promover. E tentar perceber que outras músicas conseguimos ir lançando para dizer que o álbum ainda é relativamente novo. O concerto ao vivo está a ser ultra emotivo de tocar. Está muito forte, acho que as pessoas estão a gostar muito, mesmo em termos cenográficos.

Voltar a pisar o palco foi como sair de uma longa ressaca?

Com o Tiago na Toca acabei por trabalhar mais durante o confinamento do que antes. Todas as semanas tinha de dar concertos, e tinha de ensaiar imenso. Como sou um bocadinho perfecionista queria sempre fazer versões complicadas, por isso trabalhei muito durante o confinamento, e acabei por não sentir tanto essa falta. Ficava muito mais nervoso antes dos lives do que antes de qualquer concerto, até porque era eu que tratava de tudo, incluindo da parte técnica. Nos concertos estou mais descansado porque estou a tocar com a minha banda, tenho uma equipa por trás, as coisas estão ensaiadas, está tudo oleado. Foi um alívio voltar à estrada, voltar a ver pessoas. Lembro-me que, no primeiro concerto que demos, ainda a 50%, as pessoas estavam mesmo muito felizes. Isso foi muito importante para nós, músicos, e ajudou a que fossemos dando concertos cada vez melhores. As pessoas estavam a precisar muito de ouvir música alto, de sentir a música no corpo. Via-se que estavam mais sensíveis, foi muito bom.

“A Humanidade está a passar uma fase um bocadinho estranha e agressiva. Há muita consciência do que se está a passar, a reação a isso é que tarda” ©Martim Torres

Sentes que essa forma de interagir através dos lives do Instagram foi mais terapêutico para ti ou para o público?

Acho que foi muito terapêutico para mim. Nem sei o que estaria a fazer, embora saiba que não ia conseguir estar parado. Se calhar ia gravar outro disco ou concentrar-me num projeto meio instrumental. Mas, sem dúvida que foi muito terapêutico. Foi um desafio muito interessante, cansativo, por vezes. Houve alturas em que me apetecia parar um bocadinho, mas fui recebendo mensagens muito bonitas. Comecei a perceber que realmente fazia companhia a muitas pessoas e acho que foram poucos os lives que mantiveram aquela média de mil/duas mil pessoas (sem contar com o do Bruno Nogueira), mas a certa altura sentia uma certa responsabilidade por ter de fazer aquilo todas as semanas e para poder gerar dinheiro para a minha equipa que estava sem trabalho, e senti esse amor de volta, não só do público, mas também da minha equipa. Foi uma ideia pequenina que acabou por resultar muito bem.

Em termos criativos, que efeito teve a pandemia no teu trabalho?

Em termos criativos, penso que não teve grande impacto. Também tinha acabado de gravar um disco, e quando isso acontece entro sempre numa fase em que não componho nem quero escrever absolutamente nada. Respeito muito essa fase de absorção. Ouço discos, vejo peças de teatro, viajo… se houve coisa que me fez falta foi fazer uma viagem a seguir a ter gravado o disco. É sempre uma parte de libertação para mim a seguir a lançar um disco. Faz-me bem viajar sozinho durante um mês, fez-me falta essa terapia. Quando pudemos sair, fui para os Açores. Se calhar se não fosse o Tiago na Toca, ia acabar por fazer alguma coisa inevitavelmente, mas essa criatividade foi toda canalizada para os lives. Todas as semanas tinha de arranjar três ou quatro versões originais de artistas que, muitas vezes, não eram fáceis de trabalhar.

Por muito paradoxal que pareça, achas que a pandemia veio provar que as novas tecnologias podem aproximar as pessoas?

Foi uma surpresa para mim perceber esta ponte que existia entre mim e o público através do Instagram. Não tenho grande jeito para as redes sociais e, de repente, consegui arranjar uma forma natural de, estando longe, estar perto das pessoas. De criar um espaço de interação, quase como se fosse um cenário. No entanto, é muito diferente de estar com alguém presencialmente, nunca será a mesma coisa. O mundo abriu-se muito mais para este tipo de comunicação virtual, acho que nos tornou um bocadinho mais preguiçosos [risos]. É um bocado o reflexo do que as redes sociais fazem. Esta maneira de ouvir música em shuffle, de repente os discos desapareceram, ouvimos música em streaming, não se paga absolutamente nada pela música que é feita… acho que isso fez com que a música ficasse bastante mais vazia. As pessoas não têm paciência para ouvir, para tirar mais de uma música, para dar mais tempo a uma música. Passados 15/20 segundos já tem de haver um refrão ultra catchy. Estas pontes tornaram-nos mais preguiçosos.

Participaste no disco Tozé Brito (de) Novo. Que tipo de emoção te provoca fazer versões de músicas de outros?

Só emprestei a voz, a versão foi feita pelo Benjamim, que é o produtor juntamente com o João Correia. Confio muito no gosto do Benjamim, gosto muito do trabalho dele. Acho que o importante, quando se fazem versões, é ter um respeito grande pela música que se está a cantar. É preciso perceber em que é que se pode mexer e em que é que nunca se pode mexer. Tenho ouvido algumas versões que parecem outras músicas, são mais fruto da vaidade do artista, de mostrar que se é muito original. Mudam-se as notas, muda-se a linha vocal e a certa altura é uma música completamente diferente, só a letra é que se mantém. Isso faz-me uma confusão gigante. Tem sempre que haver um respeito gigante pela versão original. Dou valor à melodia, à letra, às notas essenciais. É tentar jogar um bocadinho com isso sem estragar.

Acaba por dar mais trabalho do que compor uma música de raiz?

Isso acho que não porque a fórmula da música já está resolvida, só tens de a mostrar de outra maneira.

Passa-te pela cabeça gravar um disco inspirado na pandemia?

Acho que este  2019: Rumo ao Eclipse foi um bocadinho premonitório, já fala bastante disso. As coisas que escrevo são reflexo do mundo à minha volta, daquilo que me toca e que me inquieta. Nunca escolho um tema para um álbum. As coisas vão surgindo naturalmente. Aliás, quando estava a gravar este disco não sabia que título lhe ia dar. De repente percebi que ele falava daquele ano em específico, de uma crise de valores que se estava a tornar cada vez mais aguda e que tem vindo a aumentar nos últimos tempos. Acho que a Humanidade está a passar uma fase um bocadinho estranha e agressiva. Há muita consciência do que se está a passar, a reação a isso é que tarda, parece estar difícil de acontecer.

O concerto no Coliseu será em formato 360º, o que dá ainda um ar mais intimista. Isso é possível com tantas pessoas presentes?

Vai ser a primeira vez que vou atuar completamente sozinho no Coliseu, por isso vou tentar tornar o concerto o mais interessante possível. Ainda estou a tentar perceber de que maneira é que se consegue passar essa intimidade do Tiago na Toca para aquele espaço em termos cenográficos. Estando no meio da sala, vou ter de me virar para todos os lados, pelo que ainda estou a tentar entender como faço esse jogo. Mas, vai ter certamente um ambiente muito giro, muito intimista e muito especial.

Para além do citado Rilke, nesta seleção podemos encontrar Guy de Maupassant, David Mourão-Ferreira, José Saramago, Sophia de Mello Breyner Andresen, Alexandre Nobre Pais, Charles Dickens, Truman Capote, um conjunto de histórias escolhidas por Vasco Graça Moura e a arte da pintora Paula Rego.

Rainer Maria Rilke

A Vida de Maria

Publicado em 1913, Vida de Maria constitui um ciclo completo sobre a figura da Virgem Maria. A sequência dos poemas segue uma cronologia que acompanha os seus momentos mais significativos, orientada pelas representações plásticas de dois manuais da arte do leste europeu: o Manual de Pintura do monge pintor Dionísio do Monte Athos e o Paterikon do Mosteiro da Caverna de Kiev, sobre a pintura de ícones. A Bíblia e a Legenda aurea de Jacobus de Voragine constituem as fontes principais do texto. Tal como nas Elegias de Duíno, Rilke opera uma síntese poética do seu diálogo com formas de arte tanto ocidentais, como orientais. Portugália Editora

Guy de Maupassant

Dois Contos

Os contos Uma Consoada e Noite de Natal, de autoria de um dos maiores expoentes do género, Guy de Maupassant, pertencem ao volume Intitulado Mademoiselle Fifi, publicado em 1882. O primeiro apresenta um tema manifestamente macabro e o segundo surge repleto de humor. Deliciosas pequenas narrativas, bem representativas do espírito do autor, tal como José Saramago, tradutor e prefaciador destes contos, o definiu: ”truculento, capaz de escárnio, destruidor de conformações sociais e morais.” Relógio D’Água

Paula Rego

Ciclo da Vida da Virgem Maria – Capela do Palácio de Belém

O sagrado e o profano

Paula Rego foi convidada, em 2002, a criar um ciclo de oito quadros alusivo à vida da Virgem Maria destinado a ocupar a antiga capela de Nossa Senhora de Belém, na residência oficial do Presidente da Republica. A pintora opera, com este surpreendente conjunto, uma extraordinária síntese entre o sagrado e o profano, entre o bíblico ou o mítico e o quotidiano. Esta magnífica publicação ajuda-nos a entender melhor o verdadeiro significado deste notável ciclo de pinturas: um diálogo complexo e inspirado entre o património cultural de que somos herdeiros e as vivências de Paula Rego enquanto mulher e artista. Museu da Presidência da Republica

David Mourão-Ferreira

Cancioneiro de Natal

Iniciado em 1960, e que o autor considerava uma “obra “aberta” ou “em suspenso”, Cancioneiro de Natal foi finamente concluído com um poema de 1995, Som de Natal. Nesta coletânea de poemas, escritos entre 1960 e 1986, David Mourão-Ferreira evoca as memórias de infância, a figura inspiradora de Jesus e o mistério do nascimento, propõe uma ideia de despojamento e partilha e constata, com ironia, como o mundo dos homens se afastou do espírito do Natal. Perspetiva, por fim, um tempo sem tempo que se eterniza depois da morte: “Um tempo em que o Nada retome a cor do Infinito.” Assírio & Alvim

Sophia de Mello Breyner Andresen

Noite de Natal

Joana não tem irmãos e brinca sozinha. Um dia, conhece Manuel, “todo vestido de remendos”, e convida-o a visitar o seu magnífico jardim. Na noite de Natal, lembra-se do amigo, pobre e sem presentes. Guiada por uma estrela, atravessa a floresta e leva-lhe o que recebeu. Celebrado conto infantil sobre o tema da amizade e da partilha e sobre o verdeiro significado do Natal, foi sucessivamente ilustrado por Maria Keil, José Escada, Júlio Resende, e Jorge Nesbit. Porto Editora

José Saramago

O Evangelho Segundo Jesus Cristo

 Poucos livros fraturaram tanto a sociedade portuguesa como O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Os sectores católicos consideraram-no blasfemo; a Associação Portuguesa de Escritores atribui-lhe o Grande Premio de Romance e Novela. O governo, num ato de censura, riscou o livro da lista de candidatos ao Prémio Literário Europeu. Zangado, o escritor partiu para Lanzarote. Em 1998, recebeu o Prémio Nobel de Literatura. Polémicas passadas, o romance permanece como um dos melhores do autor e, das suas páginas, ressalta um Cristo da mais profunda humanidade. Porto Editora

Charles Dickens

Um Cântico de Natal

William Thackeray comentou (com um ponta de inveja?) que os livros de Charles Dickens eram escritos para um público de adultos com mentalidade de crianças. Dickens agradeceu a observação e declarou: “Precisamente. Escrevo para a espécie humana”. Nenhuma das obras do autor parece corresponder melhor a esta premissa do que Um Cântico de Natal. A história do Sr. Scrooge, um homem avarento que abomina a época natalícia, transformado pela vista de três espíritos, tornou-se um dos maiores clássicos de Natal, amado por sucessivas gerações de leitores de todas as idades. Clube do Autor

Truman Capote

Um Natal

Profundamente diferente do estilo objetivo e documental de A Sangue Frio, a mais famosa narrativa de Truman Capote, o conto Um Natal é um texto poético, intimista e de cariz autobiográfico. Um rapazinho, filho de pais divorciados, entregue aos cuidados de uma velha prima numa pequena cidade do Alabama, evoca a experiência de um Natal que se viu obrigado a passar com o pai, que mal conhece, em Nova Orleães. Uma comovente narrativa sobre um desencontro afectivo e o fim das ilusões de infância. ASA

Alexandre Nobre Pais

O Presépio em Portugal

O historiador Alexandre Nobre Pais, Mestre em Presépios Portugueses de Barro do Século XVIII, reúne, num belíssimo álbum profusamente ilustrado, alguns dos mais importantes presépios nacionais, incluindo de diferentes coleções particulares. Os Presépios de Barro reúnem duas das principais áreas artísticas de interesse do autor: a escultura e a faiança. Neste documento raro da bibliografia portuguesa fique a conhecer algumas representações inesperadas nestes tradicionais conjuntos de arte sacra como a Guerra de Tróia, cenas de caçadas, jogos de cartas ou uma fila de cegos. Caleidoscópio

Vasco Graça Moura e outros

Gloria in Excelsis – As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal

Vasco Graça Moura escreveu num poema evocativo do Natal: “na mais pobre semente a intensa dança / de tempo adulto e tempo de criança”. Neste volume seleciona mais de 40 histórias natalícias de autoria dos grandes clássicos portugueses dos séculos XIX e XX. Textos de Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Fialho de Almeida, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, José Régio, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Alves Redol, Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, José Saramago, Natália Nunes, Maria Ondina Braga, Isabel da Nóbrega e José Eduardo Agualusa, entre muitos outros. Quetzal

Segundo o programador Nuno Sena “há vários anos que a Cinemateca tinha a intenção de organizar um extenso ciclo sobre a obra de um dos mais relevantes – e porventura menos conhecidos – cineastas americanos, cuja prolífica obra (com cerca de 1600 títulos) atravessa cinco décadas da história dessa cinematografia, desde o tempo dos pioneiros até ao final do período clássico.”

Inicialmente programada para 2020 “acabou por ser adiada pela pandemia, mas é finalmente apresentada, preenchendo talvez a maior lacuna da história da programação da Cinemateca, já que nunca tínhamos dedicado um programa com alguma extensão a este enorme cineasta.”

“The Most Dangerous Man Alive” (1961)

Allan Dwan nasceu no Canadá em 1885. Ainda jovem muda-se com a família para os Estado Unidos, onde se formou em engenharia elétrica. Quando trabalhava numa empresa do ramo como especialista de iluminação, entrou em contacto com a Essanay Film Manufacturing Company. Foi nesse estúdio cinematográfico que começou a colaborar, clandestinamente, como escritor, acabando por ingressar na empresa, que cedo o promoveu a editor. Estava criada a base para uma surpreendente e longa carreira no cinema que terminou apenas em 1958, com a rodagem de The Most Dangerous Man Alive, estreado em 1961. Allan Dwan faleceu vinte anos após a estreia do seu último filme, na Califórnia.

“Sans of Iwo” (1949) filme onde Jonh Wayne recebeu a primeira nomeação para o Óscar

A maior parte dos filmes realizados por Dwan datam de 1911, ano em que começou a dirigir a partir de uma bobina, ao ritmo de três filmes por semana. Era o início do cinema, onde tudo estava ainda por inventar, o que contribuiu para que Dwan fosse um dos pioneiros da indústria cinematográfica americana. Foi com ele que nasceu o dolly shot  – usou um automóvel em movimento para filmar o passeio do ator William H. Crane, em David Harum (1915). A sua capacidade inventiva era extraordinária e num trabalho que fez para o realizador D.W. Griffith, colocou pela primeira vez as câmaras a “pairar” sobre os gigantescos cenários de Intolerance (1916).

Cineasta imaginativo, pragmático e elegante fez um percurso que passou pelo período pré-clássico e por todo o classicismo americano, atravessando várias décadas onde trabalhou os diferentes géneros: musical, filme de guerra, melodrama, noir, western, comédia.

“Manhandled” protagonizado por Gloria Swanson

A primeira parte da retrospetiva, já em dezembro, abre com a curta-metragem Mother of The Ranch, obra do ano inicial de Dwan como realizador e o título mais antigo apresentado no ciclo. De seguida é exibido o seu derradeiro trabalho The Most Dangerous Man Alive (1961), uma história de ficção científica que o produtor Benedict Bogeaus, com quem Dwan colaborou nos últimos anos da sua obra, planeara como episódio-piloto para uma série televisiva de baixo budget.

Destaque também para Sands of Iwo Jima (1949), excelente filme de guerra onde o tom documental de Dwan imprimi um enorme realismo. Aqui, John Wayne protagoniza o tradicional papel do sargento duro, tendo recebido a primeira nomeação para o Óscar.

Ainda em dezembro, de salientar Manhandled, obra feminista, que conta, para além de Douglas Fairbanks, com outra vedeta do apogeu do cinema mudo, Gloria Swanson; e Driftwood, filme do pós-guerra, período em que o cineasta passou a trabalhar quase exclusivamente para produtores independentes e pequenos estúdios de “série B”, onde dirige a muito jovem Natalie Wood.

“Driftwood” com Natalie Wood

Para janeiro Nuno Sena destaca “três das obras máximas de Dwan, feitas em períodos muito distintos da sua filmografia e que são prova do seu talento e à vontade em géneros tão diferentes: ainda do período mudo, Robin Hood, um fabuloso filme de aventuras com o lendário Douglas Fairbanks como protagonista, Silver Lode, um trepidante western que merece figurar entre os maiores filmes deste género; e Slightly Scarltet, um film noir (a cores) de uma modernidade surpreendente que mostra que mesmo quase até ao final da carreira Dwan foi capaz de renovar o seu cinema.”

“Slightly Scarltet”

Por fim, é importante referir que a organização deste ciclo contou com a colaboração de diversas entidades estrangeiras, com destaque para os arquivos americanos, nomeadamente a George Eastman House, a Library of Congress e a UCLA.  Sem a sua ajuda não teria sido possível revelar ao público a obra única de um realizador que esteve esquecido, mas que nos últimos anos tem vindo a ser valorizado por várias gerações de críticos e historiadores.

A retrospetiva é acompanhada por uma pequena edição dedicada ao cineasta, a primeira de uma nova coleção da Cinemateca Portuguesa, de cadernos de apoio a ciclos de autores estrangeiros ou temas do cinema internacional.

Programação completa aqui

José Gardeazabal

Viver feliz Lá Fora

No passado mês de março, José Gardeazabal publicou Quarentena – Uma História de Amor sobre um casal decidido a separar-se, condenando pela pandemia a um regime forçado de intimidade, analisando a sua vivência dentro das quatro paredes de um apartamento e a vida coletiva do “mundo de fora”. O tema da pandemia regressa na sua mais recente obra, um volume poético em cinco líricas (“anunciam-se óbitos em dominó”, “respiramos com medo de respirar”, “somos todos iguais / ninguém queria esta igualdade”). Também aqui explora o contraste entre “dentro” (a humanidade do lado de dentro/ de pé/ encostada a uma porta”), e “fora” (“vou lá fora viver um bocadinho / que aqui faz muito calor / vou a uma parte bonita da Suíça”). Paralelamente, reflete sobre o estado do mundo (“como uma ilha temos naufrágios por todo o lado), o presente (“a nossa civilização parada como Pompeia”) e o futuro (“o futuro a olhar para trás / e a sussurrar-nos / vês? nada”), o mito da eternidade (“a eternidade é uma fábula / só os bichos sobrevivem”) ou a fé na humanidade (“a fé na natureza humana inspirou guilhotinas / mas essa não é razão para não acreditar / acreditemos sem cabeça / alimentemos a fé de baixo”). Relógio D’Água

Henrik Brandão Jönsson

Viagem pelos Sete Pecados da Colonização Portuguesa

Henrik Brandão Jönsson, jornalista, correspondente sueco na América Latina, que  vive há 20 anos no Brasil, propõe-se dividir o mundo lusófono de acordo com os sete pecados capitais: “Em Goa, as drogas e a gula tinham uma posição segura. Em Macau, o dinheiro e a avareza dominavam. Na ilha paradisíaca de Timor-Leste, a soberba florescia e a na sensual Moçambique vivia-se a luxúria. Na temperamental Angola crescia a ira e no Brasil espalhava-se a preguiça. Entretanto, a pátria portuguesa sente a inveja de tudo o que criou no exterior mas não conseguiu conquistar em casa”. Num livro de leitura compulsiva, o autor alia os seus vastos conhecimentos da história colonial portuguesa às suas experiências pessoais nestes territórios e, através de vários episódios reveladores, tenta encontrar um fio condutor que, além da língua, ligue os países lusófonos caracterizando, justamente, aquilo que distingue a lusofonia. Uma obra fascinante que nos dá a ver o reverso da nossa identidade: a forma como os “outros” – ex-colonizados, emigrantes e estrangeiros – percecionam o nosso passado colonial e o momento presente. Objectiva   

Mário de Carvalho

De Maneira que é Claro

“Ainda hoje utilizo fórmulas breves que dispensam longos parágrafos, e associo palavras de acordo com os étimos, quer para descortinar, quer para criar sentidos. Também certas construções de frase me incomodam, perturbando uma cadência que trago no ouvido desde então”. Desta forma, Mário de Carvalho sustenta a necessidade do regresso do latim ao ensino secundário. Nestes textos breves com um limite de palavras que o autor se impôs, escritos “ao correr da pena”, surgem muitos outros temas que a memória quis abordar: a infância em Lisboa, as férias, o Liceu Camões, as amizades, o despertar da consciência politica, a faculdade, os movimentos associativos, a prisão ou o exílio. Contudo, estes textos tão evocativos não devem ser entendidos apenas como um profícuo exercício de memória, pois como confessa o autor: “Oxalá nos encontremos caro leitor. No fundo, no fundo – mesmo disfarçando -, é a si que eu busco”. E o encontro é perfeito porque, através da arte do escritor, estas vivências pessoais assumem ressonâncias coletivas. Porto Editora

Ray Bradbury

Crónicas Marcianas

A influência de Ray Bradbury (1920-2012) no universo da ficção científica, como qual é quase sempre identificado, foi profunda. Contudo, o autor transcende o género. A Morte É um Acto Solitário, por exemplo, é um belo romance policial inteiramente dominado pelo peso do passado. Crónicas Marcianas é, a par de Fahrenheit 451, a sua obra mais famosa. Ambas têm por tema o futuro da humanidade, numa perspetiva mais ou menos distópica. O livro é constituído por uma série de pequenas narrativas ordenadas cronologicamente que têm por tema a chegada do Homem a Marte, a sua conquista e colonização do planeta. Um impressivo relato sobre a natureza contraditória do Homem: o seu rasgo heroico e a sua tendência destruidora (“Nós os Homens da terra possuímos um talento especial para arruinar coisas grandes e belas”). Uma obra que adquire profundas repercussões, traçando um paralelo com a trágica história da colonização do continente americano. Por isso, escreve Ray Bradbury nestas Crónicas Marcianas: “A História jamais perdoará a Cortês.” Cavalo de Ferro

Guia de Arquitetura de Lisboa 1948-2021

O Guia de Arquitetura de Lisboa 1948-2013, que se encontrava esgotado, levou os editores a uma reflexão sobre a sua importância e a sua atualização, ultrapassado que ficou perante uma intensa construção na segunda década do século XXI e o acentuado crescimento da atividade turística na cidade e sua região. Assim, surge a segunda edição, revista e atualizada até ao ano de 2021. Seguindo o modelo da primeira edição, divide a cidade em 19 zonas específicas, delimitadas pela geografia, planeamento e fatores históricos que as congregam como tal. Às obras selecionadas para cada zona, aquando da primeira edição, juntam-se cerca de 50 novas entradas, construídas desde essa data até aos dias de hoje, e que espelham novos desafios e ideias a diferentes escalas para a capital. Esta escolha reflete a obra de Arquitetura na sua máxima variedade, desde os espaços exteriores aos interiores, dos espaços públicos aos privados. Para cada exemplo oferecido é fornecida uma informação base e um pequeno texto explicativo/crítico que facilita ao leitor a compreensão da obra. A+A Books

Ana Cássia Rebelo

Babilónia

Na capa do livro a imagem estilizada do Centro Comercial Babilónia, um dos shoppings mais antigos de Portugal, situado na Amadora. O livro de Cássia Rebelo não tem marcos toponímicos precisos, mas para quem viva em Portugal, e sobretudo os que tenham idade aproximada à da autora (n. 1972), apanharão algumas descrições de tipos físicos, ou citações culturais, e até mesmo impressões de uma vivência que sugere suburbanidade, que ajudam a pintar o quadro geral de relativa desolação que está em fundo nestas pequenas narrativas que não ultrapassam as três páginas. Mas o sentido de “babilónia” é mais amplo, e o livro sugere que o mesmo se refira às diferentes vozes de todas as protagonistas que se chamam invariavelmente Aninhas (como a escritora, Ana Cássia Rebelo). O jogo entre autobiografia e ficção é sugestivo; algumas destas Aninhas têm comportamentos que desafiam o conceito de escândalo, e nisso o livro parece procurar um sentido de rebelião que liberte estas mulheres dos condicionalismos do quotidiano. A literatura como reduto de liberdade que só conhece os limites da imaginação. Bookbuilders

Albert Hourani

História dos Povos Árabes

Albert Hourani (1915-1993) deixou uma obra considerável formada por mais de uma centena de ensaios e vários livros inovadores que culminaram na História dos Povos Árabes, publicada em 1991. Nas três décadas seguintes, a história dos árabes foi marcada por acontecimentos que nem ele poderia ter previsto, como os atentados de 11 de Setembro, a invasão americana do Iraque ou o fenómeno da “Primavera Árabe”. A presente edição surge, assim, atualizada por Malise Ruthven, académico, escritor e jornalista anglo-irlandês especializado em estudos religiosos, nomeadamente islâmicos, história cultural e extremismos religiosos, com uma vasta bibliografia publicada sobre o tema. Esta obra monumental tem por objeto a história das regiões de língua árabe do mundo islâmico, desde a ascensão do islão até meados da segunda década do século XX. A obra produz uma síntese magistral das estruturas sociais, económicas e culturais do mundo islâmico, bem como da forma como este evoluiu e se desenvolveu. Como escreve Malise Ruthven: “Os especialistas admirarão este livro pela profundidade da sua erudição, e o leitor comum por tornar tão acessível a história dos árabes.” Bookbuilders

Benji Davies

Floco de neve

Benji Davies, autor, ilustrador e realizador de animação, vive em Londres e estreou-se na literatura para crianças em 2014, com o livro A Baleia, pelo qual recebeu em 2014 o Prémio Oscar’s First Book. Os seus livros falam-nos de amizade, do amor pela natureza e da busca do nosso lugar especial no mundo. É um autor publicado internacionalmente e apreciado pelos leitores de todo o mundo. Floco de neve é uma das suas obras mais recentes, datada de 2020. Bem alto, nas nuvens, nasce um minúsculo floco de neve. Fofo, cristalino e branco, ele saltita e rodopia dentro da nuvem até que começa a cair… Este livro conta a história de uma menina, Noelle, e de um pequeno floco de neve – ambos ansiando por algo e em busca do seu lugar especial no mundo. Floco de neve é uma narrativa de Natal sobre a magia dos encontros inesperados, brilhantemente contada e ilustrada por Benji Davies, singular criador de álbuns ilustrados. Orfeu Negro

Esperança é o sucessor de Vem (2017). Qual é a mensagem deste novo disco?

Este disco tem um conceito e um tom muito natural e calmo. Embora tenha canções mais intensas, é o retrato de uma nova maneira de conduzir as coisas. Tenho tentado levar as coisas de uma forma mais natural e tranquila e penso que este álbum reflete isso.

O título pretende ser uma mensagem para os tempos que vivemos?

Na verdade, o álbum ficou pronto no final de 2019 e era suposto ser lançado entre janeiro e fevereiro de 2020. Entretanto surgiu a pandemia e lançar o álbum deixou de fazer sentido, ainda mais com o título que tinha, Felicidade. É um disco muito solar, mesmo a capa original, dourada, não fazia sentido tendo em conta as circunstâncias. Passei o confinamento dedicada à rotina possível, enfrentando as perdas e a gerir uma criança, e percebi que não era a altura de lançar o disco. Depois de um ano e tal, decidi voltar a pensar sobre isso e percebi que o álbum já não era o que tinha pensado originalmente. Já tinha mudado, mesmo sem ter sido lançado. Senti que tinha uma energia muito forte de esperança–que acaba por ser uma energia irmã da felicidade – e que estava mais de acordo com o momento que estamos a viver. Dar-lhe este nome evoca e intensifica ainda mais o seu significado. Também se alterou a capa, é azul – cor da calma e também cor da vida, do mar, do céu…

O confinamento serviu para escrever novas canções?

Tenho uma criança pequena, que me consumia grande parte do tempo, e foi muito complexo ter de lidar com a rotina da escola online. Depois também tive de ir ao Brasil para lidar com algumas perdas de amigos e familiares. Foi um ano muito difícil, não houve tempo para compor, mas acho que a composição vai nascendo dentro da minha cabeça. O ato de compor é colher. Mesmo que eu não esteja a compor, a minha cabeça está. As plantinhas vão nascendo, e quando preciso tirar alguma coisa eu vejo o que é que tem lá dentro [risos].

O disco tem participação de Preta Gil (Deixa Menina) e Nelson Motta (Barcelona). Como surgiram estas parcerias?

Nunca tinha convidado ninguém para participar num disco meu. Desta vez, numa conversa com o Marcelo [Camelo –músico e marido de Mallu] comentei que, sempre que canto esta música [Deixa Menina], na minha cabeça é a Preta Gil que a canta. Admiro-a há muitos anos enquanto mulher, cantora e artista, e ouvia sempre a voz dela na minha cabeça a cantar esta canção. Então ele sugeriu que a convidasse para cantar comigo, nunca me tinha ocorrido tal coisa [risos]!Ela aceitou logo, fiquei toda orgulhosa. Depois, no estúdio, quando estava a gravar Barcelona, sobrou um momento instrumental. Imaginei logo o Nelson a narrar qualquer coisa daquele jeito muito particular dele. Desta vez, já tinha aprendido que é possível pedir à pessoa para colaborar [risos]. Curiosamente, quando lhe mandei mensagem a fazer o convite, ele respondeu a dizer que estava em Lisboa. Foi ao estúdio e fizemos o dueto, foi ótimo.

Abriu-se uma porta para futuras colaborações?

Sem dúvida, achei divertidíssimo!

“A minha filha dá-me referências que depois ficam nas canções, faz-me ter um tom mais alegre e mais construtivo”.

Deixa Menina fala sobre a sua filha. A maternidade alterou a sua forma de compor?

A presença de um filho muda completamente a nossa vida, passamos a ter outras prioridades. Por mais cansaço que sinta, também tenho mais energia e quero sempre mais do mundo e mais de mim. Ela é uma motivação muito grande. Dá-me referências que depois ficam nas canções, há uma série de vivências que surgem pela presença dela. Acho também que existe um tom mais alegre e construtivo. Faço o melhor por ser uma boa mãe e isso repercute-se positivamente noutras áreas da minha vida. Tê-la na minha vida fez com que a composição ficasse mais alegre, positiva, construtiva e dançante. A minha vida melhorou com ela, por isso as minhas músicas ficaram melhores.

O disco tem também canções em espanhol e inglês. De onde vem essa preferência?

Quando era criança, já adorava cantar e gostava muito de Johnny Cash e Bob Dylan. Aprendi as músicas e cantava para os adultos e reparei que, quando cantava em inglês, ficavam muito mais impressionados. Nas férias, quando tocava na rua, também percebi que as pessoas me davam muitas moedas se eu cantasse em inglês. Então comecei a cantar e a compor em inglês… Quando comecei a tocar profissionalmente fi-lo em português, para poder comunicar melhor com o público. O espanhol acho muito elegante, então comecei a cantar em espanhol só para ser chique [risos].

De que forma Lisboa influencia a sua musicalidade?

Lisboa é uma cidade muito cosmopolita. No Cais do Sodré, por exemplo, há escolas de design, o Mercado da Ribeira, restaurantes… tudo isso são referências que vêm de vários lugares do mundo. As pessoas vestem-se de forma inovadora, dizem coisas interessantes, há sempre música nova para descobrir. Estas novas referências influenciam totalmente as minhas ideias. O meu dia-a-dia é muito dinâmico aqui. Como vivo no centro da cidade, reclamo do movimento, mas gosto dele, e isso influencia a minha música. Gosto muito da calma, mas acho que prefiro o movimento.

Existe uma forte comunidade musical brasileira em Lisboa. Isso ajuda a matar as saudades do Brasil?

Sem dúvida. Tenho uma amiga que tem um bar na Voz do Operário, o Samambaia. Ir lá é como viajar até ao Brasil em cinco minutos. Há música brasileira, samba, forró, pão de queijo… há muita vida cultural brasileira em Lisboa, o que também me faz sentir em casa.

A saudade dos palcos é muita?

Quando dei o primeiro concerto da tournée, em Guimarães, a sensação que tive quando comecei a cantar foi de descontrolo. Nestes momentos a entrega tem de ser superior ao trabalho que faço no dia-a-dia. Tem de ser uma entrega emocional e intelectual. Nesse concerto, senti que havia uma força que não controlava. Como se eu estivesse ao serviço de uma entidade maior.

Já há material para um futuro disco?

Tenho muitas ideias para o próximo álbum, estou doida para começar. Neste momento estou muito ocupada com a tournée, por isso não me consigo dedicar já a esse projeto, mas assim que as coisas acalmarem, talvez no início do ano que vem eu consiga começar a compor e – quem sabe -lá para meio do ano que vem começo a gravar.

A vontade da experimentação, do assumir do risco e de “nem sequer ter propriamente medo de falhar” sentem-se a cada momento de Arena, segunda criação do coletivo Outro, dirigido por João Leão e Sílvio Vieira, este último autor do espetáculo. Explicar o que por ali se passa, sobretudo quando a dita arena fica numa velha oficina de automóveis situada no coração de um dos bairros residenciais da freguesia de Arroios, seria como desvendar parte do mistério que rodeia esta aventura cénica, onde nada é previsível nem descura o efeito da surpresa.

Contudo, e sem com isso apontar um caminho, podemos revelar a existência de seis criaturas que se movem como uma unidade orgânica (a que o autor chamou Jan), embora cada um desempenhe um papel no coletivo. Rotineiramente, empreendem uma movimentação ritual, até que um dia, esta vai ser abalada quando, de dentro de água (literalmente), sai uma personagem alienígena em fato de astronauta.

Na génese de Arena esteve a premissa de que seria um espetáculo de teatro sem palavra dita. “Quando há dois anos, ainda antes da pandemia, começámos a trabalhar no projeto pensou-se que o pilar seria a tradução de música em cena teatral. Como o coreógrafo que traduz em gestos a música, aqui, o objetivo era traduzi-la em teatralidade, ou seja, em imagens, situações, personagens”, explica Sílvio Vieira.

Ao longo do processo criativo, foi precisamente a partir da música que os atores improvisaram, nascendo o essencial das situações de Arena. Mas, ao contrário do programado, algo essencial aconteceu: o espetáculo não iria acontecer na black box de um palco convencional, mas sim numa garagem. “Quando aqui chegámos, pedi aos atores para olharem para o espaço, escolher um canto e tentarem explorá-lo”, recorda o autor, sublinhando como a arquitetura desta antiga oficina abandonada, no 21A da Rua Carlos José Barreiros, “entrou na própria dramaturgia do espetáculo, sendo impossível transportar o que aqui sucede para outro local.”

Sem impor uma linha narrativa ou, como frisa o autor, “qualquer conceito político e ideológico”, Arena revela-se um objeto artístico de plena liberdade, “onde aquilo que se valorizou é a experimentação e a procura do belo, ou uma certa poesia. Como o dipositivo é aberto, qualquer espectador poderá fazer a leitura que entender. E isso é algo que me agrada num espetáculo”, lembra Vieira.

Esta aventura cénica que concilia com grande engenho e irreverência movimento, som, luz e todo um imaginário reivindicado do cinema mudo e dos grandes nomes da comédia, como Charlie Chaplin, Buster Keaton ou Harold Lloyd, é protagonizado pelos jovens atores Anabela Ribeiro, André Cabral, Catarina Rabaça, Inês Realista, Miguel Galamba, Miguel Ponte e Pedro Peças. No percurso da associação cultural Outro, nascida em 2018, Arena é o sucessor de As árvores deixam morrer os ramos mais bonitos, espetáculo escrito também por Sílvio Vieira, estreado em 2020, no Festival Temps d’Images.

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