David Greig, profícuo autor escocês, está longe de ser um nome estranho aos Artistas Unidos que o acompanham atentamente desde o início do século. Para a generalidade dos espectadores, Greig é recordado por ser autor de um dos grandes sucessos da companhia dirigida por Jorge Silva Melo: Cantigas de uma noite de verão, peça encenada por Franzisca Aarflot em 2010, no Teatro da Trindade, precisamente com Pedro Carraca no papel do protagonista masculino.

Agora, Carraca passa para o papel de encenador e leva à cena uma peça de 2006 que há muito o seduzia, mas que uma impressão errada foi tendendo a adiar. “Quando nos Livrinhos de Teatro publicámos o texto das Cantigas, e lhe associámos outras peças do David Greig, estava lá este Lua Amarela mas, na altura, o Jorge [Silva Melo] e eu ficámos com a sensação de que era uma peça muito juvenil. Um engano.”

Embora os protagonistas da peça sejam dois jovens adolescentes em fuga, Greig não se limita a construir uma viagem iniciática de procura do amor e do mundo. Antes, o autor conta uma história de juventude perdida por circunstâncias sociais e emocionais que se relacionam com a vida nos subúrbios, a desintegração familiar e a falta de perspetivas de futuro. Ou, citando o encenador, Lua Amarela “é uma espécie de Bonnie e Clyde moderno, mas um Bonnie e Clyde não por opção, mas por consequência.”

Lee, ou Macho Lee como prefere que o tratem, é um jovem problemático, referenciado pela segurança social e pela polícia, que vive com a mãe e o padrasto. Leila, ou Silenciosa Leila como é conhecida na escola, é uma boa aluna, de origem muçulmana, que esconde um segredo: às sextas a noite, dirige-se a uma loja de conveniência para ler revistas sobre celebridades enquanto se automutila.

Será numa dessas noites que o caminho dos dois se cruza, e perante o homicídio acidental do padrasto, Lee arrasta voluntariamente Leila da cidade para as highlands, onde procura reencontrar o pai que, por razão idêntica, também um dia fugiu, virando costas à cidade. O papel de Leila na vida do rapaz acaba por ir, como sublinha Carraca, “para além do amor que ambos descobrem”. Leila, com os seus silêncios, dores secretas e uma misteriosa delicadeza, faz com que ele se aperceba “de que, realmente, pode tomar a vida nas suas mãos”, não tendo de seguir um destino que à partida parecia traçado – o de replicar a vida do pai.

Com particular engenho, Greig constrói a road trip destes dois corações feridos usando como dispositivo a narração, recurso que tantas vezes é uma espécie de batota, ou um modo de atalhar as dificuldades do drama. Mas, em Lua Amarela, é esse uso que imprime uma tocante carga dramática ao texto, e que levou, por alturas da estreia americana da peça, o crítico Charles Isherwood, do New York Times, a falar numa “corrida impetuosa, quase incessantemente sussurrada nos nossos ouvidos.”

Lua Amarela, ou A Balada de Leila e Lee, conta, para além dos jovens atores Gonçalo Norton e Rita Rocha Silva nos papéis principais, com interpretações de Inês Pereira e de Paulo Pinto, que regressa em grande forma, mais de uma década depois, ao trabalho com os Artistas Unidos.

Os Diabo na Cruz separaram-se em 2019. Quando surgiu a vontade de formar uma nova banda?

Sérgio Pires (SP): Percebemos isso no último ano de Diabo. O Jorge [Cruz] já não pôde fazer os últimos concertos, fizemos a última tournée sem ele. A reação das pessoas e a química em palco mostraram-nos que, se calhar, devíamos continuar a fazer música juntos em vez de cada um seguir o seu caminho. Para além da amizade que nos une, tínhamos uma relação em palco cimentada em dez anos de estrada. Em SAL somos três ex-Diabo na Cruz. Na altura, ainda pensámos ir todos, mas com a pandemia tivemos de rearranjar a banda e acabámos por ficar três. Juntou-se o Dani, que já trabalhava connosco na estrada, e o Vicente Santos.

A sonoridade é parecida com o que já faziam em Diabo na Cruz. É um tipo de música que se enraizou no vosso ADN?

João Pinheiro (JP): Nunca pensámos em fazer uma coisa radicalmente diferente, nem igual. A formação da banda é diferente, por isso os dois projetos nunca poderiam ser iguais. Mas foi dali que SAL surgiu, não foi de outra banda e isso, por si só, já é parte do ADN.

SP: À medida que a música for sendo conhecida vai ser mais fácil perceber o universo de SAL, que é diferente do universo de Diabo na Cruz, que foi uma banda de personalidade muito forte que marcou uma época na música portuguesa. Naturalmente que há semelhanças, porque a raiz é a mesma. Não houve nenhuma intenção de seguir um caminho semelhante, foi um caminho natural, do ponto de vista da composição e da criatividade.

Como foi começar uma banda em circunstâncias tão atípicas?

JP: Na verdade, a idealização do projeto ocorreu antes da pandemia. Gravámos as primeiras músicas antes do primeiro confinamento ser decretado, mas o calendário que tínhamos previsto acabou por não se concretizar. Nessa altura, em março de 2020, estávamos com uma certa pressa de gravar um single, mas acabámos por não o fazer. Foram dois anos praticamente nulos de trabalho, mas acho que, de certa forma, até deu jeito, deu-nos tempo para fazer as coisas com calma.

SP: Para todos que trabalham na área da Cultura foram (e ainda estão a ser) tempos muito difíceis, mas não deixa de ser engraçado olhar para trás e pensar que estávamos cheios de pressa para lançar música e de repente fomos todos para casa e a música só saiu quase dois anos depois. Esse tempo que nos foi imposto acabou por servir como uma espécie de refúgio. Um músico fechado em casa sem poder dar concertos acaba por pegar nos instrumentos e fazer música. Isso acabou por amadurecer o nosso som, fez-nos estar mais preparados e ter mais repertório. Claro que gostávamos de já estar a lançar um segundo disco, mas cada coisa tem o seu tempo.

O primeiro single, Passo Forte, simboliza os vossos primeiros passos?

JP: A letra fala sobre isso, sobre a coragem de sair de uma banda com a dimensão de Diabo na Cruz e darmos o nosso próprio passo, o mais convicto e seguro possível, sem medos. A Lília Esteves acompanhou o último ano de Diabo na Cruz e esta passagem para os SAL e fez a primeira letra, que serviu de mote para o Sérgio começar a tirar da cartola montes de letras e uma criatividade que nós não conhecíamos (e se calhar nem ele).

SP: Quer a energia da canção, quer a letra, abriram espaço para acreditarmos que era possível. É normal ter receios, sobretudo depois de dez anos de banda, que era uma parte importante das nossas vidas. Pusemos muita coisa em causa, é como uma relação que termina. Junta-se isto à pandemia, à falta de concertos, e de repente as dúvidas vêm ao de cima. Esta canção serviu de alavanca.

“‘Passo Forte’ fala sobre a coragem de sair de uma banda com a dimensão de Diabo na Cruz e dar o nosso próprio passo, o mais convicto possível, sem medos”

Porquê SAL?

JP: Tínhamos uma lista inicial de nomes, que, a dada altura, passou a ter mais de cem. Quantos mais acrescentávamos, mais baralhados ficávamos. A certa altura, o Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de Lisboa, que sempre demonstrou um grande interesse por este projeto, também se envolveu na questão do nome. Um dia, ao telefone, perguntou-me: “E se for SAL?”. O nome foi para a lista e, de repente, tínhamos o primeiro videoclipe feito, as músicas todas gravadas e ainda sem nome para a banda. Às tantas, o Sérgio lembrou-se da sugestão do Carlos Guerreiro e todos concordámos.

SP: Quando estamos perdidos no meio de tantas hipóteses, questionamo-nos se foi a escolha certa, mas à medida que o tempo vai passando, vamos percebendo que sim. Conseguimos encontrar muitas ligações à nossa música e àquilo que fazemos.

O Sérgio assumiu o papel de vocalista. Foi difícil passar a ser o frontman?

SP: Isso remonta ainda ao tempo de Diabo na Cruz. Quando o Jorge saiu, ficámos na dúvida sobre o que fazer: se cancelávamos os concertos ou se continuávamos sem ele. Um dia, estávamos a fazer um brainstorming sobre as nossas hipóteses, e o nosso agente, José Morais, sugeriu que eu assumisse esse papel, uma vez que estava mais habituado a estar na linha da frente, no palco. Como músico, estou habituado a fazer muitos papéis diferentes. A digressão foi ótima, fomos felizes em cima do palco e as pessoas gostaram dos concertos e não se sentiram defraudadas, o que já foi uma grande vitória. Saltando para SAL, acho que acabou por ser uma transição natural dessa energia que veio de trás. Não sou detentor de uma grande voz, mas sempre participei nos coros, e estou a tentar cantar melhor. Apesar de ser tímido socialmente, o palco é um sítio onde me sinto extremamente confortável.

Os Diabo na Cruz criaram um vínculo muito forte com os fãs. Continuam a seguir-vos?

JP: Já temos um grupo de fãs [risos]. Uma das coisas que fez com que os nossos receios caíssem por terra, foi saber que tínhamos aquela malta amiga, que já vinha de Diabo na Cruz. Por exemplo, o Miguel Farrusco, que criou o grupo de fãs de SAL, envia-nos mel e garrafas de moscatel, é incrível! É muito bom saber que estavam à nossa espera.

SP: Diabo na Cruz tinha fãs muito leais e presentes, que iam aos concertos todos. Esta generosidade e gentileza das pessoas já é, por si só, um bálsamo que nos dá força. Saber que há um grupo de pessoas que não nos deixa cair, é quase como uma rede de proteção. São os primeiros concertos, estamos a começar, mas sabemos que, se correr mal, eles vão estar ali para nos amparar. Têm sido de uma generosidade incrível, estamos muito gratos.

O tema que fecha o disco, Não sou da Paz, conta com participação do Carlão. Como se lembraram dele?

JP: Essa é, talvez, a canção mais assertiva e interventiva do disco. Achámos que umas palavras, numa onda mais hip hop, podiam servir a canção. O Sérgio, que é amigo do Carlão, lembrou-se de o convidar a participar e passado uns dias ele enviou-nos a parte dele, que é o que está no disco.

SP: Quando fiz essa canção já tinha uma ideia mais ou menos definida do que gostava que a canção fosse. Já achávamos que seria a canção que fecha o disco, quase como que a embrulhar o presente. Sempre gostei de rap e da cultura hip hop e quando acabei de escrever a letra senti que faltava ali qualquer coisa mais assertiva. A voz do Carlão fazia todo o sentido ali. Ele acaba por embrulhar o poema, que foi escrito por ele, e depois a canção despede-se instrumentalmente. Ficou impecável, não se mexeu em nada. Era o desfecho que tínhamos pensado para este primeiro disco.

Em novembro apresentam o disco de estreia no Maria Matos. As saudades do palco são muitas?

SP: Será o primeiro concerto pós-lançamento do disco, portanto à partida as pessoas já irão conhecer as canções um bocadinho melhor. O disco é muito honesto e temos estado assim também no palco, despidos emocionalmente, com força para entregar as canções às pessoas. Neste concerto vamos tentar ser um bocadinho mais racionais. Estamos nesse momento de pegar nas canções e descobrir como as adaptar para um espetáculo indoor. Vamos também ter uma surpresa ou outra, que ainda não podemos revelar. Será um concerto de uma banda de rock crua, honesta e direta, mas com algumas nuances, nas quais estamos a trabalhar.

Festejar um aniversário é quase sempre um ritual de celebração da vida. Reunir familiares e amigos, cortar o bolo ou brindar à vida do aniversariante, fazem parte desta tão nossa tradição festiva associada à passagem do tempo. Ora, é precisamente para uma festa de aniversário do Teatro Meia Volta e Depois à Esquerda Quando Eu Disser, que a Casa do Capitão abre portas diariamente, até 20 de novembro, por volta das 19h30.

Por lá estarão as personagens-anfitriãs de Alfredo Martins, Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas, Luís Godinho e Sara Duarte prometendo a boa disposição que se exige à ocasião. Porém, não se surpreenda se a dado momento cada um deles o convidar a entrar num quarto ou numa sala mais recôndita da casa. Há, certamente, uma história para contar à margem da festa, e talvez esteja longe de ser tão festiva quanto o esperado num espetáculo que, afinal, se intitula Joyeux Anniversaire.

Descortinada parte da surpresa, talvez já tenha percebido que o espetáculo está longe de transbordar felicidade. É verdade que tudo começa e acaba numa festa, mas no recato do local onde se dança ou rebentam pinhatas, existem personagens que procuram lidar com o avanço dos anos, com os corações quebrados pela solidão ou com os sonhos nunca cumpridos nesses tempos que já não voltam. Em comum, este é o dia dos seus aniversários e, muitas vezes, como já nos ensinou tanta poesia, isso só pode mesmo ser trágico.

Aproveitando as particularidades arquitetónicas de um primeiro andar na Casa do Capitão, em Joyeux Anniversaire, o Teatro Meia Volta apanha a boleia da festa de aniversário e procura uma  reflexão sobre a vida e o tempo, a partir de cinco  monólogos escritos pelo artista plástico e poeta André Tecedeiro, concebidos especificamente para cada um dos atores do coletivo.

Ali mesmo ao lado da sala onde se faz a festa, em cada uma das cinco salas de cinco cores diferentes, cada uma das cinco personagens despoja-se perante uma plateia reduzidíssima (são três espectadores em cada sala, de um total de…15). E, muito provavelmente, quando no final anfitriões e convidados se reúnem para a fotografia de grupo, talvez se conclua que nunca uma festa de aniversário foi tão melancólica.

A Formiga Atómica cria peças de teatro, maioritariamente destinadas a um público mais jovem. Foi o que sempre quis fazer ou surgiu naturalmente?

Na verdade, não pensamos muito nisso. Vamos fazendo espetáculos e projetos que respondam a uma inquietação, a uma urgência. Começámos, de facto, com um trabalho muito direcionado para o público mais novo, A Caminhada dos Elefantes, mas aconteceu porque o que nos interessava mesmo era abordar a questão da morte com crianças a partir dos seis anos. A partir daí, os nossos espetáculos foram sendo sempre filhos uns dos outros, uns foram dando origem aos outros, e penso que já fizemos espetáculos para todos os públicos. O Estado do Mundo (Quando Acordas), por exemplo, pretende-se que seja um díptico, ou seja, agora há este para um público mais novo, mas depois haverá outro mais para a frente, com uma outra escala e uma pesquisa mais aprofundada, dirigido ao público adulto, onde esperamos abordar a ideia das alterações climáticas, mas já numa vertente mais política, geográfica e social.

Sentem que há necessidade de ter algum cuidado especial quando escrevem ou encenam para este tipo de público?

Nós gostamos que os nossos espetáculos tenham camadas diferentes, havendo sempre umas que são exclusivas para os adultos e outras exclusivas para crianças. E, mesmo dentro da infância, há coisas que vão funcionar para crianças de dez anos e que não vão funcionar para crianças de seis. Gostamos de construir os espetáculos com esse jogo em mente. Quando definimos uma faixa etária a partir da qual se pode assistir aos espetáculos, fazemo-lo tendo em conta quais os instrumentos que vamos utilizar e que possam ser apelativos para essas idades. Também tentamos sempre adaptar a linguagem, não no sentido da censura ou de não falarmos de determinado assunto, mas na forma como o fazemos. Normalmente, em criações direcionadas ao público mais jovem, damos sempre alguma informação que, naturalmente, uma criança de seis anos não tem. No início de cada espetáculo procuramos que haja sempre um momento de democratização, como se fosse um manual de instruções, para que, depois, todos estejam em pé de igualdade quando a história for contada.

Em novembro, apresentam no Lu.Ca o espetáculo O Estado do Mundo (Quando acordas), que aborda o tema das alterações climáticas e de até que ponto os nossos pequenos gestos podem causar grandes impactos. Como surgiu esta ideia?

Este espetáculo partiu da premissa do tal díptico. Este primeiro momento é direcionado para o público jovem, é de pequena escala e parte de uma ideia de manipulação de pequenos objetos para que o outro espetáculo, dirigido ao público adulto, possa ser de grande escala. Mas há aqui uma intensão: havia muito esta vontade de podermos, através das miniaturas e dos objetos, levar à cena grandes catástrofes naturais. Portanto, posso dizer que é daqui que nasce a ideia: como abordar grandes desastres naturais através das miniaturas e de um espaço reduzido em cima do palco. E, ao mesmo tempo, como é que vamos abordar esta temática tão complexa e tão essencial, a de sermos conscientes por todos nós. Como é que a vamos abordar, não só para as crianças, mas também para as famílias.
©Enric Vives-Rubio

As vossas criações são sempre obras que procuram fazer pensar e refletir. Nesta peça, que reflexões procuram suscitar no público para além da questão central, a tal exploração de causa-efeito entre pequenos gestos e grandes consequências?

A coisa mais relevante nesta peça é, sem oferecer quaisquer soluções e sendo apenas um veículo para todos juntos refletirmos sobre a questão, a importância da consciência. É nós sabermos o que é que se passa no mundo. Que o planeta é este lugar de recursos finitos e de um equilíbrio absolutamente periclitante e instável onde, de certa forma, tudo depende de tudo. Portanto, se estamos a dar conta dos recursos do petróleo, estamos obviamente a impor a seca em alguns lugares, estamos naturalmente a emitir CO2 de uma forma descontrolada. Esta ideia de equilíbrio é muito importante, mas ela não pode existir sem esse princípio da consciência. Aquilo que o espetáculo também propõe é o retrato do mundo; é fazer uma viagem para percebermos quais são os problemas que se vivem nos dias de hoje, de que forma eles estão ligados e de que modo, em última análise, a ação individual de cada um pode causar algum impacto.

Em paralelo a esta peça, criaram ainda Isto não é uma brincadeira, uma série de oito ‘mini-episódios’ que é um convite para crescer em ativismo enquanto se decresce em consumismo. O que se pode ver ali?

A ideia é, precisamente, através de vídeos de três minutos, termos especialistas em determinados assuntos a falarem das cinco coisas mais importantes que é preciso saber para se estar minimamente consciente do problema em questão. Como compreender a crise climática, como se pode fazer uma compra de roupa completamente sustentável, como fazer para ir as compras e não trazer mais nada senão aquilo que nos propusemos comprar são alguns dos conteúdos que se podem encontrar nestes filmes, que mais não são que convites ágeis e ativos para pensarmos e agirmos em relação ao tema.

Já se percebeu que o teatro é um veículo eficaz na transmissão de mensagens, especialmente quando se trata dos mais novos. Que outros temas urgentes e inquietantes pensam abordar num futuro próximo?

Neste momento estamos muito concentrados nesta questão, pois parece-nos ser absolutamente essencial e urgente, pensando no futuro e no tempo que nos resta a todos, enquanto humanidade. É um tema sobre o qual queremos muito refletir nas suas múltiplas dimensões. No entanto, interessa-nos sempre abordar outras questões, como o feminismo e o racismo, por exemplo. Em breve teremos também um espetáculo onde será abordado o tema da Educação e que proporá uma reflexão sobre o que é educar e como é que se educa.

Foste vocalista dos Capitães da Areia. Quando é que percebeste que querias ‘voar’ sozinho?

Bastante tarde [risos]. Foi no momento em que percebi que queria continuar a existir artisticamente, que precisava de escrever canções, que precisava do palco, mais num sentido anímico do que qualquer outro. Na banda, cada um tinha a sua profissão e a sua vida. Eu estava muito agarrado a essa vontade de estar em cima de um palco, os outros membros da banda tinham também outros interesses, e às tantas entrámos num processo de pausa. Eu estava disposto a esperar, e continuo. A questão é que esta pausa nos Capitães da Areia tanto poderia demorar um ano como seis (que é o tempo que já dura).

O disco de estreia foi lançado em 2020 e o segundo saiu em outubro de 2021. Pode dizer-se que, no teu caso, o confinamento foi bastante produtivo?

Faço sempre por ser produtivo. Não tenho problema em dizer que me fui muito abaixo nas primeiras semanas, mas depois pensei “pior não pode ficar”. Então, achei por bem arregaçar as mangas e reagir. O primeiro disco acaba por ser essa reação.

As tuas canções parecem revelar imenso sobre ti. São uma espécie de catarse?

Talvez essa seja a palavra que melhor exprime o que as canções são para mim. As canções que escrevo para outras pessoas são trabalhadas, pensadas. As que escrevo para mim acabam por ser quase um desabafo, como se estivesse a escrever um diário. Como sou eu que as vou cantar, e não me considero propriamente um intérprete, ou seja, não vejo em mim uma grande capacidade para cantar o que os outros escrevem, acabo por ficar refém daquilo que sinto. É-me mais natural cantar coisas que sinto ou senti, do que propriamente histórias imaginadas. Acaba por ser a solução, partindo de uma fraqueza (se é que lhe podemos chamar assim).

Essa exposição pode ser dolorosa?

Bastante, mas faz parte do processo. O palco é um território onde me sinto bem, mas claro que há o reverso da medalha. Já me aconteceu estar em cima do palco e não conseguir cantar determinados versos naquele momento específico, estando determinada pessoa na plateia a assistir. Como não sou ator, é muito difícil desligar o interruptor e fingir que me é tudo indiferente ou que são coisas que escrevi por acaso. Geralmente, os artistas não são pessoas emocionalmente muito estáveis, mas essa incapacidade de sentir frieza perante o que estou a cantar torna-se num grande desafio, que é o de estar sempre preparado não para interpretar, mas para abrir o coração e as coisas começarem a sair.

O que acaba por ser muito genuíno…

As pessoas reconhecem dessa forma. É quase como se eu estivesse dentro de casa. Na rua, ou noutros locais, estamos sempre um bocadinho mais de pé atrás ou protegemo-nos em determinadas situações. Em casa somos o que somos: se tivermos de chorar choramos, se tivermos de gritar gritamos. O palco acaba por ser uma segunda casa, tem é esse lado de as pessoas estarem ali perto de mim. Se de repente me distraio e me apercebo disso, fico muito envergonhado. É como se fosse um monólogo e a partir do momento em que as pessoas reagem às canções isso mexe comigo.

“Temos de merecer o ‘sim’ das pessoas, seja no trabalho, nas relações ou no mundo artístico.”

Continuas a contar com a participação do Tiago Brito [membro dos Capitães da Areia] nos teus discos. Para quando o regresso da banda?

Essa é uma conversa recorrente entre nós, mas é um assunto difícil, porque as vidas de cada um estão encaminhadas e os astros não estão alinhados [risos]. Às vezes é uma questão de timing. Quando parece que vai ser a altura certa, afinal não é. É uma incógnita. Acreditamos que esse regresso se irá concretizar, mas mais vale nem pensar muito nisso, quando tiver de ser será. É um cliché, mas é mesmo assim. A predisposição existe, estivemos muito tempo juntos, houve muitos momentos bons, o que nos traz uma certa nostalgia. Da mesma forma que as relações, por existirem, não têm de durar para sempre, uma banda também acaba por ser assim.

O primeiro disco chama-se Depois logo se vê, e o mais recente Tinha de ser assim. Há alguma mensagem por trás destes títulos?

Com o Depois logo se vê, eu tinha o título antes de ter as canções. Esse disco partiu de umas conversas que tive com o meu agente, ainda ele era apenas meu amigo, em que ele dizia que se calhar estava na altura de fazer um caminho a solo, porque podia ficar muito tempo à espera que os Capitães da Areia se voltassem a reunir. Nessas conversas, perguntava-lhe “e a que é que eu vou soar?”. Ele dizia “depois vê-se, isso depende de quem for o produtor. Avança e depois logo se trata disso”. Decidi então construir uma carreira a solo e depois, a todas as questões que me fizessem na altura, eu responderia com “depois logo se vê”. Pensei que fazia sentido dar esse nome ao disco, até para me lembrar bem do meu estado de espírito nessa altura. O Tinha de ser assim é exatamente o oposto. Tinha outros títulos para este disco, e outras ideias que acabaram por não se concretizar, só que, entretanto, as coisas começaram a alinhavar-se de determinada forma. O Tiago [Brito] reagiu imediatamente à chamada e disse que tínhamos de avançar e fazer o disco em tempo record. O disco foi feito num sprint, e na altura pensei que era porque “tinha de ser assim”. Acho importante que os títulos dos discos e dos filmes não sejam escolhidos ao acaso. Gosto que façam muito sentido.

Carrossel conta com a voz do Rui Reininho. Como surgiu esta parceria?

Cantar com o Rui Reininho já era um sonho muito antigo, daqueles que vamos reprimindo porque sabemos que é muito difícil e que, por isso mesmo, não vale a pena pensar neles. Desde miúdo que tinha esse desejo. Da mesma forma que sou sonhador compulsivo, também tenho noção de que tenho de estar preparado para a realidade. Não basta enviar um email, ou encontrar a pessoa na rua e dizer-lhe que gostava de trabalhar com ela. Temos de merecer o ‘sim’ das pessoas, seja no trabalho, nas relações ou no mundo artístico. Escrevi esta canção de madrugada e na manhã seguinte mostrei a canção e disseram-me que a devia enviar ao Rui Reininho porque talvez ele gostasse. Achei curioso dizerem-me isso. Decidi então arriscar e enviei-lhe um email a perguntar se gostava da canção e a dizer-lhe o que ele representava para mim. A resposta foi muito simpática, com imenso tato e muito divertida. Perguntou-me se eu queria que ele viesse a Lisboa gravar ou se ia eu ter com ele ao Porto. Tratei de tudo para ir ter com ele ao Porto para gravarmos a canção e foi mais fácil do que alguma vez imaginei. Houve um momento em que, sorrateiramente, dei um beliscão no meu braço para ter a certeza de que aquilo estava mesmo a acontecer. Foi um momento que dificilmente esquecerei, mesmo que comece a ficar com a memória turva daqui a muitos anos [risos].

O concerto de 11 de novembro, no Capitólio, marca o teu regresso aos palcos lisboetas. Tens saudades de dar concertos?

Não é só saudade, é uma ressaca muito forte. É algo que me faz muita falta, só espero é estar à altura. O último concerto que dei foi precisamente há um ano, o que é muito tempo.

És muito proativo e rápido a produzir novas canções. Isso quer dizer que já há material para um novo disco?

Material já há, não sei é se é esse que vai ser usado. Quando lanço um disco, sinto sempre um certo alívio, no sentido de “agora já não é comigo”, é um assunto que já está trancado. A partir do momento em que isso está resolvido, começo a pensar no que vem a seguir. Este, de facto, demorou pouco tempo, mas há discos que demoram quatro, cinco anos a fazer. Certamente não irei demorar esse tempo, mas sim, já estou a pensar na continuidade destes dois discos, mas isso também vai depender do que a vida nos vai trazer. Se me mandar para casa, privado de concertos, provavelmente esse disco vai acabar por ser um reflexo disso. Neste momento, sinto que as coisas estão um bocado em suspenso, acho que está tudo em aberto, mas dentro de dois anos conto ter outro disco lançado.

O LEFFEST está de regresso para a 15.ª edição com um programa ambicioso que apresenta em antestreia muitos dos filmes mais aguardados da temporada e que conta com a presença de vários cineastas, músicos e convidados especiais. Homenagens e retrospetivas fazem também parte da programação, contemplando, entre outras personalidades, Jane Campion, Ryûsuke Hamaguch, Cristi Puiu e Rodrigo Areias. Este ano celebra-se ainda a cultura Rom (da qual fazem parte os povos roma) com um programa especial que inclui música, cinema, literatura e artes plásticas.

Em Competição

A Night of Knowing Nothing, de Payal Kapadia

Primeira longa-metragem, da cineasta indiana Payal Kapadia teve estreia, este ano, no Festival de Cannes, na Quinzena dos Realizadores. O filme, à semelhança das curtas anteriormente desenvolvidas pela realizadora, desvenda questões sociais e políticas que assombram a Índia. Através de memórias, sonhos e ansiedades são reveladas injustiças, preconceitos, tradições e crenças culturais. Uma estudante do Instituto de Cinema e Televisão da Índia, troca cartas com o namorado, que a irá abandonar por exigência da família, uma vez que ela pertence a uma casta inferior; estudantes fazem greve na escola contra a nomeação de um novo diretor, ator de televisão e cinema comercial, militante do partido do governo. Cruzando realidade e ficção esta é também uma obra em defesa de um cinema livre.

Ouistreham, de Emmanuel Carrère

Emmanuel Carrère, escritor francês, regressa à realização depois de um interregno de 16 anos. Carrère faz uma adaptação livre do livro de não ficção da jornalista francesa Florence Aubenas, Le da Quai de Ouistreham (uma crónica social e uma denúncia das condições instáveis e exaustivas do trabalho em empresas de limpeza). Juliette Binoche é a protagonista desta história que segue uma escritora infiltrada no mundo do negócio dos trabalhos de limpeza, com o objetivo de investigar e conhecer a realidade da precariedade laboral na sociedade francesa. O filme venceu no Festival San Sebastián 2021 o Prémio do Público para Melhor Filme Europeu.

Red Rocket, de Sean Baker

Depois do aclamado Florida Project, Sean Baker está de volta com Red Rocket um filme novamente centrado nos que são marginalizados e vivem nas franjas da sociedade americana. Baker conjuga com mestria, humor e drama para caracterizar uma realidade angustiante. A narrativa acompanha uma estrela, em declínio, do cinema porno que regressa à sua cidade natal (Texas City), para pedir à ex-mulher que o acolha em sua casa por uns tempos. Parte do elenco é composto por não atores, no entanto o protagonista, Simon Rex, ator americano mais conhecido por participar em sitcoms de adolescentes e em filmes leves como Scary Movie, apresenta-se aqui num registo muito diferente do habitual, que tem merecido o elogio da crítica.

Unclenching The Fist, de  Kira Kovalenko

A russa Kira Kovalenko conta uma história de sofrimento e trauma. Numa antiga cidade mineira da Ossétia do Norte, a jovem Ada, uma das muitas vítimas do cerco escolar de 2004 em Beslan, levado a cabo por chechenos que exigiam a retirada da Rússia do seu país, é mantida numa redoma sufocante pelo pai. A recuperar do trauma proveniente do ataque, Ada procura escapar ao domínio excessivo da família que ama mas que planeia abandonar. As montanhas que envolvem a cidade e que servem de cenário à narrativa, o corpo marcado e ferido de Ada são a metáfora perfeita de uma nação desolada que, à semelhança da adolescente, precisa de se libertar. O filme venceu no Festival de Cannes o Prémio Un Certain Regard.

Fora da Competição

A Hero, de Agashar Farahid

O realizador iraniano, que já arrecadou dois Óscares na categoria de Melhor Filme Estrangeiro, apresenta o seu mais recente filme A Hero, vencedor do Grande Prémio do Júri, em Cannes e que é novamente candidato ao Óscar. A história segue Rahim, um homem que foi preso por não conseguir pagar uma dívida. Durante uma saída precária de dois dias Rahim tenta resolver o problema que o colocou na atual situação, mas uma escalada de mal-entendidos e mentiras vai levá-lo a um maior desespero. De regresso ao país de origem, o cineasta volta a recriar um enredo estimulante, onde intriga, moral e crença popular se conjugam e oferecem um retrato do dia-a-dia do Irão contemporâneo.

Benedetta, de Paul Verhoeven

Com uma obra que atravessa várias gerações e géneros, Paul Verhoeven é uma figura incontornável do cinema atual. No seu mais recente trabalho adapta para cinema o livro Immodest Acts: The Life of a Lesbian Nun in Renaissance Italy, da historiadora americana Judith C. Brown. Bendetta é uma reconstrução da história da abadessa italiana do século XVII Benedetta Carlini, que teve visões de cristo e que viveu um caso real de homossexualidade no contexto de alta hierarquia monástica. No filme, onde o erotismo é um elemento marcante, é apresentado um retrato da vida religiosa renascentista, das intrigas e políticas da igreja, permitindo uma reflexão sobre a relação entre fé e sexualidade.

Correu Tudo Bem, de François Ozon

Depois de Graças a Deus (2018), onde abordava o abuso sexual de menores por parte de membros da Igreja Católica, François Ozon regressa a temas controversos. Em Correu Tudo Bem o realizador centra-se na morte assistida. André, de 85 anos, sofre um acidente vascular cerebral e a sua filha Emmanuèle corre para junto dele. Na cama de hospital, doente e com metade do corpo paralisado, André pede à filha que o ajude a pôr fim à vida. O filme conta com excelentes interpretações de André Dussolier e de Sophie Marceau, naquela que é a primeira colaboração da atriz com o realizador.

Crónicas de França, do Liberty, Kansas Evening Sun, de Wes Anderson

A mais recente obra de Wes Anderson, filme de abertura do LEFFEST, presta homenagem aos editores e jornalistas destemidos de revistas literárias similares a uma The New Yorker, que davam aos seus colaboradores uma liberdade que nos dias que correm está longe de acontecer. A história, uma paródia nostálgica, ambientada numa cidade fictícia francesa no século XX, apresenta-se como uma espécie de antologia de curtas-metragens assente nas reportagens dos escritores da revista. Anderson usa, mais uma vez, o humor de forma subtil e irónica. Visualmente o filme segue o estilo único e criativo do realizador, onde a conjugação da cor e adereços resulta em quadros meticulosos, elegantes e divertidos. O filme conta ainda com um elenco de luxo que inclui Timothée Chalamet, Elizabeth Moss, Bill Murray, Christoph Waltz, Tilda Swinton, Edward Norton e Benicio del Toro.

Mães Paralelas, de Pedro Almodóvar

O premiado realizador espanhol Pedro Almodóvar volta a trabalhar com Penélope Cruz, neste drama que tem a maternidade como figura central. Segundo o cineasta esta é a personagem mais difícil e dolorosa que Penélope Cruz já interpretou e o resultado é esplendido. A grande revelação do filme é a jovem Milena Smit, com quem Cruz contracena. O filme conta a história de duas mães que se encontram no hospital para o nascimento dos filhos. As duas são solteiras e para ambas a gravidez foi um acidente. Janis, uma mulher mais velha, está contente e não se arrepende, mas Ana, uma adolescente, está assustada e infeliz. Nos corredores do hospital cresce a amizade entre ambas, algo que acaba por evoluir e complicar-se, alterando para sempre o curso das suas vidas.

The Lost Daughter, de Maggie Gyllenhaal

A atriz e produtora Maggie Gyllenhaal adapta ao cinema o romance homónimo, de Elena Ferrante, naquela que é a sua estreia na realização. A história segue Leda, uma solitária professora de Inglês, que decide passar férias numa vila costeira no sul de Itália. O seu sossego acaba quando surge uma família de desconhecidos, que a faz reavivar as memórias traumáticas de escolhas que fez enquanto mãe. O filme estreou no Festival de Veneza onde foi bem recebido pela crítica, acabando por ganhar o prémio Osella de Ouro para o Melhor Argumento. Olivia Colman é a protagonista deste drama que conta também com Dakota Johnson e Peter Sarsgaard no elenco.

The Card Counter: O Jogador, de Paul Schrader

Um dos filmes mais antecipados do ano, marca também o regresso do argumentista e realizador veterano: Paul Schrader. Em The Card Counter, Oscar Issac interpreta um ex-militar com um passado misterioso que, depois de ter estado preso, conta cartas (uma estratégia de jogo ilícita) para ganhar a vida. Quando se cruza com um jovem com quem partilha um inimigo, resolve ajudá-lo numa tentativa de redimir o passado. Neste thriller de vingança e redenção, Schrader volta às questões da culpa e expiação sempre tão presentes na sua obra.

Pathos Ethos Logos, de Joaquim Pinto e Nuno Leonel

Com um total de 641 minutos, a trilogia Pathos Ethos Logos, de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, está dividida em três capítulos: Pathos que decorre em 2028, centrado em Ângela; Ethos, em 2017, que se foca em Rafaela; e Logos, cuja ação decorre em 2037, em ambientes apocalípticos, mas que recua depois a outro tempo, à vida de Fabiana e Cláudio. A história segue assim três mulheres de diferentes gerações e origens que se cruzam, trazendo experiências e acontecimentos da vida real para o âmago de cada personagem. A dupla inspirou-se e cruzou textos de Víbia Perpétua, Vittoria Colonna, Simone Weil, Sófocles, Da Vinci, Camões, Padre António Vieira e Pessoa. Sobre Pathos Ethos Logos disse Luís Miguel Cintra: “É o mais camaleónico dos filmes. E, no entanto, tem a sua intensíssima arrumação. Concluo exaltado: isto sim, este é já um cinema novo.”

Programação integral aqui

Esta Exposição de Amantes pode ser entendida como uma revisitação da Coleção de Amantes, que o público tem vindo a conhecer ao longo dos anos através do espetáculo?

A exposição corresponde à vontade que sempre tive, desde o início da coleção, de não a limitar a um espetáculo de teatro. Até porque a Coleção de Amantes é não só o projeto fundador de todo um trabalho que me vem ocupando ao longo dos últimos anos, como continua a ser o espetáculo que mais apresentei, tanto em Portugal como por todo o mundo.

Estamos perante um objeto que se aproxima mais de uma exposição num museu do que de um espetáculo de teatro?

Aqui, o público é convidado a entrar, literalmente, numa casa de seis por oito, um T1. Ora, nessa casa, projetada pelo [arquiteto e cenógrafo] José Capela, todos os materiais, do chão às paredes, da cama ao sofá, das peças decorativas aos utensílios, estão impressos com fotografias (selecionadas por mim, pelo Capela e pelo seu assistente, o António [Pedro Faria]), de um total de sete mil, que integram a Coleção de Amantes. Por exemplo, o sofá é estofado com uma fotografia saída de uma seleção que reunia todas as fotos que tirei junto de amantes em sofás; como estamos no espaço da sala, o mesmo sucederá com a divisória ou com as porcelanas, as almofadas ou os guardanapos.

O público poderá, portanto, percorrer a casa in loco?

Sim, numa lotação muito reduzida de quatro espetadores de cada vez, sendo que dois entram pela casa em lugares diferentes e os outros dois estarão num plano acima…

Mas, todos guiados pela Raquel…

Os quatro visitantes estão munidos de aparelhos de audiodescrição, sendo que cada um vai sendo guiado ao som da minha voz e da música de Odete. Conforme vão percorrendo a casa, vão sendo partilhados os episódios de intimidade que vivi através daquelas fotografias. Acontece então que os dois visitantes no interior da casa se encontram e, nesse momento, cabe-me a mim guiá-los de modo a proporcionar a ambos uma experiência de intimidade com um desconhecido, à semelhança do que faço nos meus encontros e que são a matéria do espetáculo Coleção de Amantes.

E os dois espectadores no plano superior da casa?

São como testemunhas que, por estarem numa plataforma elevada, conseguem perceber a casa como um labirinto. Mas, não é só a casa que é um labirinto, é a própria intimidade enquanto sítio onde nos perdemos, onde não sabemos onde começamos e onde acabamos. É essa perceção que lhes vou transmitindo através da audiodescrição, para que eles acabem por viver uma experiência voyeurística com o encontro entre os outros visitantes.

Portanto, cada grupo vai ter da Exposição de Amantes perspetivas radicalmente diferentes?

Vamos ainda um pouco mais longe. Cada um dos espectadores vai ter uma experiência totalmente diferente do outro, mesmo que dois deles percorram a casa e sejam convidados a interagir. Adivinho que possam vir a ser polémicas todas essas diferenças de perspetivas, mas procuro que cada pessoa possa ter uma experiência pessoal e única.

Esta coleção já foi espetáculo, livro, agora exposição. O projeto encerra aqui?

Não de todo. Aliás, para assinalar os dez anos do início do projeto tenho pensada uma reativação da coleção através de uma performance duracional. Ainda não estou totalmente ciente do que poderá ser, mas aquilo que gostava mesmo era de poder contar todas as histórias destes encontros, poder partilhar tudo o que não coube nos espetáculos, na exposição ou até mesmo no livro [publicado numa edição do Teatro Nacional D. Maria II].

Talvez importe esclarecer que tanto a Coleção como a Exposição de Amantes são partes de um projeto artístico, e que as pessoas “colecionadas” estavam cientes disso mesmo e daquilo que é uma intimidade ficcionada.

É curioso porque, ao longo do tempo, o projeto, que começou por ser algo muito romantizado e parecia procurar responder às minhas aflições com o amor, tornou-se mesmo muito ativista, ou não fosse feito por uma mulher. De certo modo, acaba por haver uma provocação às convenções quando não é um homem, mas sim uma mulher, a “colecionar” amantes. E essa consciência partiu de fora, quando comecei a dar as primeiras entrevistas e a ver comentários na internet acusando-me de tudo, até de usar apoios públicos para “andar a fazer isto” [risos].

“A arte apareceu na minha vida porque se tornou, recorrentemente, naquilo que me salvava nos momentos mais difíceis e delicados.”

Será interessante recuar uns anos e perceber como é que alguém se torna uma colecionadora de pessoas porque, aos amantes, seguiram-se os colecionadores, os artistas e os espectadores

Começou no Brasil, país para onde fui em 2011 com uma bolsa de estudos. Sem o perceber de antemão, estava a imigrar porque a crise económica instalava-se em Portugal, e depois de uns meses a estagiar na Cia. dos Atores [companhia de teatro do Rio de Janeiro], acabei mesmo por ficar. A experiência de estar e viver fora da Europa a partir dos 23 anos fez-me tomar consciência do que é ser europeia, do que é ser uma mulher branca sendo, simultaneamente, uma artista portuguesa. Vivi lá sete anos, portanto, foi no Brasil, sozinha, que me tornei uma mulher adulta. E só ali poderia ter nascido este movimento artístico de querer guardar uma pessoa que, ao mesmo tempo, me guarda a mim.

A Coleção de Amantes começa, precisamente, no Rio de Janeiro…

Numa altura em que procurava perceber como é que nos tornamos íntimos do outro. E, ao mesmo tempo, quando começo a relacionar a intimidade com essa coisa de estarmos e de nos sentirmos em casa. Um dia, conheci alguém na rua e comecei a falar da vontade de fotografar em casas de desconhecidos. Acabei por pedir para ir a casa dessa pessoa e passei lá 16 horas. Tivemos uma conversa tão intensa e interessante que, quando sai, pensei: tenho de me encontrar com outra pessoa. Nunca mais parou, tanto que, quando estreei o espetáculo, tinha já “colecionado” 73 amantes, muitas histórias e largas centenas de fotografias.

Mas a vontade de ser colecionadora começa somente nesse dia, nesse encontro com essa pessoa?

É curioso, mas eu nunca tinha colecionada nada na vida. Ao continuar, fui percebendo que estava a tornar-me uma colecionadora, aplicando uma metodologia precisa não só aos encontros mas à construção do próprio arquivo, mais a mais, sendo um arquivo de encontros com pessoas, logo efémero. Foi isso que me levou, a seguir, a iniciar a Coleção de Colecionadores no intuito de “colecionar” pessoas como eu, ou naquilo em que me tinha tornado. Junto de outros colecionadores, parti em busca de respostas para questões como “o que é isso de ser colecionador” ou “porque queremos guardar coisas”…

E depois veio a Coleção de Artistas…

Quando cheguei ao Brasil era uma jovem atriz recém-formada, e não encontrei lugar, tendo trabalhado, sobretudo, como assistente de encenação. Portanto, foi com a Coleção de Amantes que me tornei autora, e com ela comecei a perceber o que é isso de ser criador. Inevitavelmente, depois dos colecionadores, a coleção seguinte foi a de artistas, tentando usar o meu corpo como um arquivo de coisas que outros artistas tinham criado. Ao mesmo tempo, era ali que questionava o que é isso de ser e de como nos tornamos artistas, estando consciente de que no meu percurso jamais foi evidente que pudesse tornar-me artista. Digo isto porque não venho de um lugar onde hajam artistas, porque nunca ninguém me incentivou a sê-lo, porque não tive uma educação que antecipadamente me preparasse para o ser, porque sou uma mulher que veio dos subúrbios de Lisboa, onde muitas vezes ver um espetáculo é um privilégio raro. Portanto, a arte apareceu na minha vida porque se tornou, recorrentemente, naquilo que me salvava nos momentos mais difíceis e delicados.

E a Coleção de Espectador_s

Na estreia da Coleção de Amantes, estando eu a falar de encontros efémeros, de momentos que não dão para guardar, ocorre-me olhar para a plateia e pensar que também aquele momento é único e tão efémero como os outros. Pensei imediatamente em comprar uma polaroid e registar cada plateia. Porém, há as questões dos direitos de imagem, pelo que abandono a ideia mas passo a desafiar, no final de cada récita das coleções, cada espectador a fotografar-se e a enviar-me a fotografia por email. Assim nasceu a coleção, contudo alarguei o âmbito e acabei por criar um espetáculo sobre os momentos que nós, enquanto espectadores, não esquecemos e de como eles nos transformam.

Vai continuar a ser uma atriz que é também uma colecionadora?

Muitas vezes pensei que ser atriz não era um lugar para mim. Hoje em dia, questiono-me mesmo se sou uma atriz, ou até mesmo uma artista, se não serei simplesmente alguém que faz teatro. Aquilo que sei é que vou continuar a “colecionar” pessoas.

Maria Teresa Horta

Paixão

O mais recente volume de poemas de Maria Teresa Horta é marcado pelos temas da paixão e do luto. No final de 2019, a escritora perdeu o seu marido (“Foste sempre o desacato / dia após dia após dia / ao longo da minha vida”), a quem a presente obra é dedicada: “Para Ti, Luís, numa revolvida e eterna paixão”. A reprodução, na capa, da pintura O Ferolho, de Fragonard, indicia que a autora não abandonou a dimensão feminina e erótica da sua poesia, com ênfase particular no desejo. De facto, o livro subordina-se aos seguintes temas: Paixão (“Sempre misturámos / os corpos um do outro // prazer desejo / e paixão // Avidez arrebatada / numa pressa singular /onde a vida sequiosa / sempre e sempre // se inventava”), Desejo, Sobressalto e Solidão (“Está sempre vazia / agora / a nossa cama // meu amor… // Mesmo se nela / me deito / já tarde de madrugada // tento fechar os olhos / para não ver / o seu nada”). Uma belíssima despedida com os olhos postos na eternidade: “”Será ainda possível / meu amor /trocar a vida por ti… // trazer-te devagar / ao coração? // Entregar-me ao teu / secreto abraço / e só então…// abrirmos as asas / devagar / a voar a eternidade //…até ser não”. Dom Quixote

André Gide

Paludes

André Gide (1869/1951), Prémio Nobel da Literatura de 1947, foi uma das grandes mentes literárias do século XX. Romancista, dramaturgo, memorialista, crítico e editor, representou, segundo Thomas Mann, “o ponto extremo da curiosidade do espírito”. A sua ficção divide-se em dois géneros principais: o seu único romance, Os Moedeiros Falsos, texto eminentemente moderno que questiona a própria natureza do romance e uma série de narrativas (récits) de profundo teor confessional e admirável recorte clássico. Paludes é a primeira das três sotias que escreveu, palavra arcaica das farsas satíricas medievais francesas. Relata as adversidades da composição de um romance (Paludes) que o autor/narrador nunca chega a aceitar como satisfatório e que satiriza a mediocridade dos salões literários parisienses do final do século XIX. Paludes é, nas palavras de Aníbal Fernandes, tradutor da obra e autor do seu prefácio, um “não-romance”, “um estranho cometimento literário, exterior a tudo o que se conhecia na literatura francesa”. “É um verdadeiro novo-romance (…) construído sobre nada, com sensações extremamente vivas, a forma de Gide é de uma elegância extrema”, declarou Nathalie Sarraute. Sistema Solar

Uma Ultima Pergunta

Entrevistas Com Mário Césariny

António Duarte, que entrevistou Mário Cesariny em 1979, dá uma definição da experiência, num par de linhas: “Mário Cesariny pinta poemas a falar. Sugere viagens descontroladas pelo imaginário deslumbrante da Grande Loucura.” É pela loucura que vamos, a loucura saudável que deixa vazios os hospitais (palavras do poeta). As entrevistas reunidas neste volume por Laura Mateus Fonseca, estendem-se de 1952 a 2006. “Num assomo de irreverência e confronto, o Cesariny poeta, pintor e surrealista, sem perder de vista o seu passado, comenta diferentes tempos de Portugal.” O livro faz acompanhar as conversas de fotos de arquivo das principais figuras do surrealismo em Portugal, e consoante a relevância documental mostra ainda alguns recortes de jornais. O prefácio é da autoria de Bernardo Pinto de Almeida, e a anteceder a indicação da origem de cada entrevista e do índice remissivo, Perfecto E. Cuadrado assina o posfácio. Cesariny leva as palavras para um território onde só ele é dono e senhor. Este livro, uma vez fechado, deixará sempre várias leituras em aberto. Documenta

Naguib Mahfouz

Entre os Dois Palácios

Naguib Mahfouz (1911/2006) é o mais importante escritor de língua árabe do século XX e o único galardoado com o Prémio Nobel da Literatura (1988). Entre Dois Palácios constitui o primeiro volume da celebrada Trilogia do Cairo. Narra a história de uma família em três gerações, durante a ocupação britânica do Egipto. O patriarca oprime a mulher e enclausura as filhas, enquanto à noite se entrega aos prazeres do Cairo. Os três filhos lutam para se libertar do seu domínio, enquanto o mundo que os rodeia se abre às correntes da modernidade. Os dramas desta família espelham os do seu país, no período entre as duas guerras mundiais, à medida que as mudanças se fazem sentir numa sociedade que há séculos lhes resiste. A arte de Mahfouz reside na capacidade de criar uma galeria de personagens cujas circunstâncias de vida estão profundamente distantes das nossas e, no entanto, possuem as mesmas aspirações. Através delas, o mundo que descreve – a realidade do Egipto colonial, as suas gentes e os seus conceitos – deixa de nos parecer estranho. Traduzir a realidade local à escala da humanidade é o mérito da grande literatura. E-Primatur

Margarida Almeida Bastos

António José de Barros Veloso – Uma Vida, Vários Mundos

A presente biografia, em forma de entrevista, presta tributo uma figura relevante da medicina, da música (em especial do Jazz, no qual se destacou como pianista), da azulejaria, da História da Ciência e do panorama geral da cultura nacional. Aos noventa anos de idade, estas entrevistas constituem, segundo Margarida Almeida Bastos, autora da obra, “uma reflexão sobre o passado, mas também sobre o presente, que Barros Veloso analisa de forma original nas suas múltiplas vertentes, antecipando por vezes o futuro, com uma enorme lucidez e um profundo sentido critico”. Na cerimónia do seu doutoramento honoris causa, na Reitoria da universidade Nova de Lisboa, Barros Veloso destacou o papel da cultura: “Cultura é outra palavra-chave. Sem ela é difícil perceber o que a medicina tem de mais profundo e humano. Não é por acaso que entre os médicos se inscrevem os nomes de algumas das maiores figuras da literatura portuguesa.” Uma vida rica e improvável, num diálogo sempre estimulante. By the Book

António Lobo Antunes

As Crónicas

Numa escrita mais intimista e num estilo mais acessível do que os dos seus romances, as crónicas de António Lobo Antunes abordam uma vastíssima variedade temática que incluem não só a infância, a família, as mulheres, os amigos, os amores e os desamores, a vida e a morte, mas também relatos sobre pessoas anónimas encontradas ocasionalmente, apontamentos de viagem ou sobre pequenos restaurantes de bairro e, como não podia faltar, algumas notas sobre a escrita e os livros. As crónicas reunidas neste volume resultam de uma seleção feita a partir de mais de quatrocentos textos publicados pelas Publicações Dom Quixote em cinco volumes independentes entre 1998 e 2013. Inclui também uma seleção de crónicas inéditas em livro. Salienta Marcelo Rebelo de Sousa, no prefácio à presente obra: “Convidado a escrever umas linhas, li ou reli, as crónicas. Horas sem parar. E, nelas encontrei – mais do que seria óbvio ou inevitável – um impressivo retrato de António Lobo Antunes.” Dom Quixote

Vital Moreira e José Domingues

No Bicentenário da Revolução Liberal – Vol. III

Vida e Obra Política de José Ferreira Borges

Segundo os autores, José Ferreira Borges (1786-1838) foi o “principal estratego operacional da sublevação de 24 de Agosto e uma das mentes mais acutilantes da geração heroica de 1820”. Face à convicção de que “apesar do seu nome integrar, com toda a justiça, a toponímia de muitas cidades, a começar pelo seu Porto natal”, não ser generalizado o conhecimento publico “sobre o eu contributo decisivo para o êxito da Revolução [Liberal de 1820], os seus textos de combate, no exílio, contra a usurpação miguelista, (1828-1832), o seu pensamento político-constitucional (…) e, por fim, a sua independência e coragem pessoal, intelectual e política”, é objetivo do presente livro colmatar essa lacuna historiográfica. Havendo vários estudos sobre aspetos marcantes da sua vida e da sua carreira profissional – sobretudo como jurisconsulto, economista e comercialista –, faltava um estudo especialmente dedicado ao seu percurso político e às suas ideias político-constitucionais. Esta obra percorre o pensamento político-constitucional de Ferreira Borges, coligindo e analisando os seus escritos políticos. Porto Editora


João Pedro Mésseder e Rachel Caiano

Coisas que Gostam de Coisas

Coisas que Gostam de Coisas insere-se num conjunto de livros que têm a palavra “coisas” no título. Este, em particular, é um livro de pequenos poemas onde, em cada um deles, se pode encontrar a palavra gostar. Segundo João Pedro Mésseder “é através da palavra gostar que, de certa forma, se mostra que existe um equilíbrio no Universo, que relaciona as coisas umas com as outras”. “Com os elementos cósmicos sempre presentes, como a água, a lua e o sol, esta obra mostra uma certa comoção com o esplendor do mundo”, avança o autor, parafraseando Sophia de Mello Breyner Andresen. “Porque o mundo é um lugar realmente esplendoroso e pode continuar a sê-lo, se fizermos por isso”. A ilustradora Rachel Caiano escolheu usar carvão vegetal nas ilustrações para sublinhar um carácter e um traço nem muito limpo, nem muito acabado, recorrendo ao esboço. “Por vezes, o esboço dá-nos mais que as imagens demasiado acabadas. Os esboços retêm mais vestígios do pensamento e eu quis explorar um pouco essa linguagem”, esclarece. Porque a vida não seria boa se não gostássemos de tantas coisas! [texto de Ana Rita Vaz] Caminho

Poderá soar a coisa em desuso, mas Laura e Daniel não se conheceram no Tinder, nem noutro qualquer site de encontros, como poderia parecer natural nos dias que correm. O primeiro encontro deu-se olhos nos olhos, no frenesim de uma festa dada por Laura no seu novo e elegante apartamento. Como bem especifica o encenador João Lourenço, “um encontro cara a cara de um homem e de uma mulher, sem os filtros e as máscaras das redes sociais.”

Começar é a história dessa noite, daquilo que, após a festa, aconteceu a Laura e Daniel logo que os convidados abandonaram o apartamento. Como ponto de partida, sabemos que agradam um ao outro, que ela está disponível para se entregar a alguém como ele, com “cara de boa pessoa”. Aquilo que também sabemos é que ele é desajeitado na arte da sedução, fala quando não deve e que morre de medo de se deixar envolver nas teias da paixão, ou não houvesse todo um passado que o ensombrasse.

“O que me agradou neste texto, que tem tanto de leve como de profundo, foi toda a partitura da força e da fragilidade do começo de uma relação amorosa”, refere João Lourenço, lembrando que Começar acabou por ser o texto escolhido para este arranque de temporada devido à impossibilidade, motivada pela pandemia, de prosseguir os trabalhos de Tempestade Ainda, de Peter Handke, criação de “outro grau de exigência, e com uma equipa artística bem mais extensa.”

Mas a peça de David Eldridge, uma comédia romântica que, afinal, “não é assim tão ‘levezinha'”, mas profundamente ácida no modo como observa as relações amorosas entre adultos nos nossos tempos, abriu na imaginação de João Lourenço a hipótese de “explorar outras linhas de ação e situações”. “Procurei integrar no espetáculo cenas filmadas, misturando teatro e cinema, tal como o tinha feito há uns anos em Noite Viva de Conor McPherson.”

Seduzido pelas personagens de Laura e Daniel, o encenador acabou por lhes dar vida fora do apartamento e, ao lado do realizador Nuno Neves, fez nascer um projeto paralelo de cinema. Desse projeto, o espetáculo de teatro mostra apenas o prólogo, ou seja, a longa cena da festa, e uma pequena cena de amor, quase no final, que altera, já no palco, o “happy end” sugerido no texto original.

“Ainda não sei o que vai acontecer ao filme, mas logo após estrearmos o espetáculo retomámos as filmagens para o concluir”, esclarece João Lourenço. Garantidamente, a existência proporcionada a Laura e a Daniel no cinema, “teve uma repercussão profunda no modo como os atores passaram a desempenhar as personagens no teatro”.

Cleia Almeida e Pedro Laginha emprestam uma notável química ao par romântico de Começar. “É que o trabalho de filmagens deu-lhes outra dimensão sobre quem são as suas personagens, dando-lhes a conhecer a família, os amigos, os colegas de trabalho, mas também as experiências traumáticas e os momentos de felicidade que viveram”, salienta o encenador.

Assim, enquanto não sabemos tudo sobre Laura e Daniel numa tela de cinema ou num ecrã de televisão, é no palco do Teatro Aberto que podemos testemunhar como tudo começou.

Como nasceram os Neon Soho?

O projeto começou comigo e com a Vera [Condeço]. Ela tinha algumas ideias para umas músicas e pediu-me para fazer uns improvisos. Isto já foi há alguns anos, e estávamos com alguma dificuldade em materializar estas ideias. Entretanto, e por coincidência, para uma das músicas do EP, Man Behind Me, a Vera pediu ao Ricardo Cruz que ajudasse com a guitarra. A partir daí houve uma enorme empatia, e a Vera sugeriu que ele fizesse parte do projeto. A partir do momento em que ele entrou foi incrível, foi uma espécie de elemento aglutinador porque somos os três completamente diferentes.

Porquê o nome Neon Soho?

São metáforas muito subjetivas que saíram de um brainstorming, e tem tudo a ver connosco. Soho é aquele lugar que existe em qualquer parte do mundo, algo multicultural de fusão de géneros musicais e de culturas. Somos muito diferentes quer a nível musical, quer de personalidade, por isso achámos que fazia todo o sentido. Por questões técnicas tivemos de acrescentar o ‘Neon’ porque em termos digitais ficava estranho ser só uma palavra. Escolhemos ‘Neon’ porque também tem a ver com um conceito citadino mais relacionado com a noite, e achámos que tinha a ver com a nossa música.

O vosso press anuncia este disco como “uma salada de pop, sem regras ou formalismos”. Como definem a música que fazem?

Exatamente assim. Escolhemos arriscar no que gostamos e no que nos diverte, de uma forma despretensiosa. Não quisemos fazer música para agradar, ou para seguir um género, quisemos fazer algo de que gostássemos realmente. Não há formalismos nem regras. Há algumas alusões a determinadas coisas dos anos 80 e 90, respeitando sempre as particularidades de cada um, uma vez que temos personalidades e gostos musicais distintos.

Proof of Love, o álbum de estreia, conta com produção de Rui Maia, um peso pesado na música eletrónica em Portugal. Como correu esta parceria?

Já tínhamos uma enorme admiração pelo trabalho do Rui e por todos os projetos em que participa. Achámos que ele era a pessoa certa para trabalhar connosco e desbloquear um bocadinho os nossos debates espasmódicos [risos]. Ele foi espetacular e deu-nos um input muito importante. Este álbum é uma espécie de patchwork, na medida em que há muitas canções que começaram a ser feitas há algum tempo e que contaram com o desempate do Rui. Temos músicas muito diferentes, é uma espécie de manta de retalhos de várias coisas, mas é mesmo a nossa ‘prova de amor’ e de partilha uns pelos outros.

Quem são as tuas referências musicais?

Há uma pessoa a quem quis fazer uma pequenina homenagem, a Ana Deus, dos Três Tristes Tigres. Sempre gostei muito do trabalho dela. Em termos internacionais, as minhas referências recaem sobre artistas como Portishead ou Björk. Dentro da pop dos anos 80, nomes como Boy George ou Dead or Alive.

“Uma sociedade com Cultura resolve melhor os seus problemas, ajuda-nos a amadurecer e a ser mais justos.”

Trabalhaste com o Rodrigo Leão. Isso deu-te mais segurança enquanto vocalista?

Sim, aprendi imenso com ele e utilizo cada experiência que tive. São projetos completamente diferentes, e tive o prazer de contar com o apoio do Rodrigo neste novo projeto. Mostrei-lhe as músicas e foi muito giro ver a reação dele. Se não fosse tudo o que aprendi ao trabalhar com ele, não estaria tão à vontade agora.

Como olhas para o estado da música eletrónica em Portugal?

De há um tempo para cá acho que se começou a fazer mais divulgação deste género musical. Há muitos projetos incríveis a acontecer. Há uns 20/25 anos havia espaço para os grandes artistas, mas pouco espaço para as bandas de garagem e acho que agora se nota uma grande diferença. A geração atual de músicos jovens tem muito conhecimento digital e utiliza uma data de recursos para apresentar as suas ideias. Não tem receio de o fazer nem quer colar-se a nenhum género, avança com toda a segurança. Acho que isso é uma coisa diferente que está a acontecer agora, e que ajuda a que haja mais divulgação e mais projetos. Em relação à divulgação, penso que a música portuguesa poderia ser mais divulgada e já agora também poderia haver mais orçamento para a Cultura. Uma sociedade com Cultura resolve melhor os seus problemas, ajuda-nos a amadurecer e a ser mais justos.

Apresentam o disco de estreia no Maria Matos neste início de novembro. Como vai ser o concerto?

Desde o início da pandemia nunca estivemos parados. Estivemos sempre a ensaiar, nem que fosse cada um em sua casa. Na última fase de preparação do disco tivemos mesmo que trabalhar dessa forma, o que também o torna diferente e especial. A partir do momento em que começou a haver uma maior abertura, agarrámos essa oportunidade com unhas e dentes e temos estado a trabalhar bastante. Uma coisa é trabalhar para o álbum, outra é preparar um espetáculo ao vivo, que é algo que só ao longo do tempo se vai melhorando e afinando. Estamos a trabalhar afincadamente nisso porque queremos que as pessoas vivam uma experiência a vários níveis.

Um dos convidados já é conhecido, e é Alex D’Alva Teixeira. Há mais surpresas que possas revelar?

Estamos a trabalhar nisso, mas neste momento ainda não posso revelar [risos].

Já há planos para o próximo disco ou ainda é cedo?

Já estamos a pensar nisso, como se fosse um sonho projetado para o futuro. O disco de estreia corresponde, definitivamente, àquilo que passámos nos últimos anos. O próximo será um pouco diferente.

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