O Luccas é o maior influenciador infantil do Brasil e uma das pessoas mais poderosas da internet brasileira. Como é ser o ídolo de milhões de crianças e jovens?

Fico muito feliz com esse reconhecimento ao meu trabalho! Estou em constante processo de aprendizado e renovação, para poder entregar o meu melhor para meu público.

O que deseja transmitir às crianças através do seu trabalho?

Acredito que a minha missão com as crianças é contribuir de alguma forma positiva em seus desenvolvimentos. O meu trabalho vem como uma forma de ajudar naquilo que elas aprendem na escola, mas também dar suporte aos pais e tutores ao falar sobre valores morais, sobre a importância da educação, do respeito, do amor e da amizade.

Qual é o maior desafio de trabalhar para um público infantojuvenil? É um público muito exigente?

O maior desafio é levar um conteúdo que seja atrativo para eles, mas de uma maneira responsável. Por isso, conto com o apoio de uma equipa de profissionais que avaliam e aprovam tudo o que é produzido pela Luccas Toon. As crianças de hoje em dia são mais exigentes sim no que consomem, então é preciso estar sempre atualizado em tendências, nas novidades e no que as tem atraído e, com base nisso, formular algo que una tudo isso ao meu conteúdo.

A fama tem certamente um lado bom e outro mau. Qual é a parte mais difícil de gerir?

Eu gosto de focar no lado bom! A fama abre-me portas incríveis e dá-me o poder de produzir conteúdos e desenvolver projetos que vão totalmente ao encontro da minha missão, que é entreter e ajudar na educação das crianças.

De que forma é que a pandemia afetou o seu trabalho? Sentiu-se mais inspirado ou, por outro lado, sem motivação?

Tivemos que parar com as produções por um período, pois tivemos lockdown no Brasil também. Então, houve um processo de adaptação do trabalho que desenvolvemos aqui. Quando começámos a ter uma flexibilização, adaptamo-nos às novas medidas e a ter uma parte da equipa em home office. O meu processo criativo em si, cresceu! Consegui ter novas ideias, trazer outros projetos que estavam estacionados à tona novamente. Então, avalio como um período produtivo.

É dono de um canal Youtube – o Luccas Toon – com mais de 35 milhões de subscritores, produz filmes, atua neles, faz espetáculos, inclusive no estrangeiro, e ainda tem a sua marca espalhada por merchandising, como livros, jogos, bonecos, roupa… O que ainda lhe falta fazer?

Ainda tenho alguns sonhos! Um deles é levar meus filmes para os cinemas. A minha equipa e eu já estamos a trabalhar nisso e em breve levaremos a história de Os Aventureiros para os grandes ecrãs no Brasil. Também quero expandir o meu trabalho internacionalmente.

Em novembro, atua pela primeira vez em Portugal e traz consigo os seus companheiros, Os Aventureiros. O que é que as crianças portuguesas podem esperar deste espetáculo?

A minha família é de Portugal e tenho um carinho especial por esse país. As crianças portuguesas podem esperar um espetáculo mágico, com música, diversão, risadas e boas lições que elas levarão para a vida!

Num futuro próximo, para além dos vídeos para o Youtube, que outros projetos tem agendados?

Acabo de lançar mais um filme para as lojas on demand. Este é o décimo segundo da minha carreira. Também vem o filme do cinema e estou a trabalhar em mais alguns projetos. Vem bastante coisa legal por aí!

Ao longo dos últimos anos, Tiago Cadete tem desenvolvido, normalmente a solo, um conjunto de criações que procuram refletir sobre aquilo que é ser migrante, sobretudo atendendo à sua própria situação de viver entre o país de origem, Portugal, e o Brasil. Mas o olhar do autor e intérprete não se resume à experiência quotidiana daquele que deixa o seu país natal e procura “fazer vida” num outro. As peças de Cadete, como por exemplo Entrevistas (2018) ou Atlântico (2020), cruzam o tema da migração com a identidade, a relação histórica entre Portugal e o Brasil ou os mitos e memórias guardadas nesse imenso mar que é o oceano Atlântico.

Em Brasa, palavra da qual deriva Brasil (nome este associado às árvores de pau-brasil e à sua seiva de cor avermelhada e incandescente, parecendo, precisamente, a madeira em brasa), Cadete abandona o formato do solo, atendendo “à falta que sentia de os corpos que soavam no [seu] em anteriores trabalhos, tivessem agora presença”. E fá-lo com um grupo de artistas, uns brasileiros residentes em Portugal e outros portugueses que viveram no Brasil, os quais, em cena ou através do som e do vídeo, são convidados a “olhar como é que cada um escolhe o país do outro para migrar ou como é que estabelecem relações enquanto pessoas na condição de migrantes.”

©Teatro das Figuras/DR

Paralelamente à autoficção, Cadete constrói uma fantasmagoria, sublinhada num palco dividido em duas partes onde o público, sentado de um lado, não vê o outro, embora escute o que se passa para lá dos seus olhos. Para além deste dispositivo cénico pretender dar ao espectador “a experiência de abandonar a sua zona de conforto”, como se se tornasse, durante uma hora e meia, também ele um migrante, o autor procura estabelecer “uma ligação entre a condição do migrante e o desaparecimento da sua própria imagem”.

Cadete explicita essa “ligação” no espetáculo, como se a partida para um lugar distante encontrasse paralelismo na morte. “Quando fui para o Brasil, os meus pais sabiam que eu estava vivo, claro, mas a minha presença aqui, a minha imagem neste local, tinha morrido, tinha deixado de existir”, exemplifica. E a morte, mesmo que não entendida no sentido mais estrito e definitivo, parece estar presente no processo migratório, independentemente de ser desenvolvido numa condição mais ou menos precária. Afinal, a migração, pela sua complexidade ou pelos seus traumas, “é sempre um processo profundo de transformação” para alguém que o vive.

Para além do próprio Tiago Cadete, Brasa conta com as participações, em cena ou em vídeo, de Gaya de Medeiros, Julia Salem, Keli Freitas, Magnum Alexandre Soares, Ana Lobato, Dori Nigro, Gustavo Ciríaco, Isabél Zuaa e Raquel André. O espetáculo pode ser visto em Lisboa, até 17 de outubro, nas Carpintarias de São Lázaro.

Na abertura do evento é possível assistir a Eiffel (7 outubro, às 21h), filme biográfico de Martin Bourboulon, sobre o engenheiro Gustave Eiffel, protagonizado por Romain Duris que contracena com Emma Mackey (mais conhecida pelo seu papel na série da Netflix, Sex Education). A história segue Eiffel no auge da sua carreira, quando o governo Francês lhe pede que conceba para a Exposição Universal de Paris, de 1889, uma obra espetacular. Na mesma altura Eiffel reencontra o amor da sua juventude. Uma relação proibida que o inspira a transformar para sempre o horizonte de Paris.

Segue-se A Illha de Bergman (8 outubro, às 21h40), que integra o programa dedicado à obra de Mia Hansen-Løve. O filme, que teve estreia mundial no Festival de Cannes, centra-se num casal de cineastas americanos que se instala, em Fårö, a ilha sueca onde viveu Bergman, para escreverem os argumentos dos próximos filmes. Com o passar do tempo a fronteira ente realidade e ficção vai-se esbatendo.

Laurent Cantet que venceu, em 2018, a Palma de Ouro em Cannes com A Turma, marca presença na Festa com a antestreia do seu mais recente trabalho Arthur Rambo (9 outubro, às 19h). O filme é inspirado na histórica verídica de um jornalista e escritor de renome que vê a sua carreira destruída quando são reveladas as mensagens de ódio que escrevia online, sob um pseudónimo, antes de ser conhecido.

Um Triunfo (9 outubro, às 21h30) de Emmanuel Courcol, também baseado numa história real é outra das antestreias exibidas. O filme centra-se em Etienne, um ator desempregado que aceita o convite para dirigir uma oficina de teatro numa prisão, aí encontra um grupo improvável de prisioneiros com quem vai encenar a famosa peça de Samuel Beckett, À Espera de Godot.

Charllote Gainsbourg protagoniza Suzanna Andler (11 outubro, às 19h), que tem realização do veterano Benoît Jacquot. O filme, baseado na peça de Marguerite Duras (1968) acompanha uma mulher de meia-idade, oprimida por um casamento com um empresário rico e infiel, e que a certa altura tem de escolher entre aceitar a vida de casada, ou viver na companhia do seu jovem amante.

As comédias Fantasias (8 outubro, às 19h), dos irmãos Stéphane e David Foenkinos e Adeus Idiotas (16 outubro, às 19h), de Albert Dupontel são duas propostas para sair do cinema com boa disposição. No primeiro seis casais tentam explorar o lado oculto da sua vida íntima. No segundo uma mulher que descobre estar gravemente doente envolve-se num insano labirinto burocrático, para encontrar o filho que teve de abandonar aos 15 anos.

“Fantasias” de Stéphane e David Foenkinos

 

As Coisas que Dizemos as Coisas que Fazemos (13 outubro, às 18h20), de Emmanuel Mouret e Uma Paixão Simples (15 outubro, às 21h30), de Danielle Arbid são outras duas propostas que têm em comum o tema da paixão, da infidelidade, dos desencontros e encontros amorosos.

“Uma Paixão Simples” de Danielle Arbid

 

Para os mais jovens também há filmes em antestreia: A Fantástica Viagem de Margot e Marguerite (10 outubro, às 16h), de Pierre Coré, que conta a história de duas amigas de 12 anos que vivem em séculos diferentes, mas que se encontram graças a uma arca mágica que as transporta entre as duas eras; e Gagarine (17 outubro, às 18h), de Fanny Liatard e Jérémy Trouilh, o filme segue Yuri, de 16 anos, que sempre viveu nas Torres Gagarine, um grande bairro social nos arredores de Paris e que sonha ser astronauta. Quando são divulgados planos para a demolição das torres, Yuri e os seus amigos embarcam numa missão para salvar a casa que se tornara na sua “nave espacial”.

“A Fantástica Viagem de Margo e Marguerite” de Pierre Coré

 

No encerramento da Festa é exibido A Voz do Amor (17 outubro, às 21h), de Valérie Lemercier, livremente inspirado na vida de Celine Dion. A realizadora, que é também protagonista no filme, marca presença no dia da antestreia no Cinema São Jorge.

Mais antestreias:

Herói em 30 Dias, de Tarek Boudali (10 outubro, às 19h)

#Estouaqui, de Eric Lartigau (11 outubro, às 21h40)

Caixa Negra, de Yann Gozlan (12 outubro, às 18h30)

Irmãs de Armas, de Caroline Fourest (12 outubro, às 21h40)

Delicioso, de Eric Besnard (14 outubro, às 21h20)

Sob as Estrelas de Paris, de Claus Drexel (15 outubro, às 19h)

Ilusões Perdidas, de Xavier Giannoli (16 outubro, às 21h30)

Programação integral aqui

Sandro William Junqueira

A Sangrada Família

Algures entre as páginas deste livro se diz que ele é um “Romeu e Julieta pós-moderno”. Na realidade, trata-se de um romance polifónico sobre um triângulo amoroso autofágico situado no interior da serra e no coração de uma adega. Dois irmãos, Teodoro e Ezequiel, amam a mesma rapariga, Filomena. Pertencem a famílias rivais produtoras de medronho: os Capotes (Capuletos) e os Monteiros (Montéquios). A aguardente de uns é famosa pelas “ascendência espiritual” e a dos outros pela “inclinação medicinal”. A Sangrada Família é uma obra visceral sobre a natureza bruta que contrapõe amor e ódio, forte e fraco, natureza e intelecto, cidade e campo, realidade e ficção. Um olhar impiedoso sobre a instituição familiar. Escreve Sandro William Junqueira: “A família é um lugar perigoso. Uma ode à carnificina. Uma matilha que se come a si mesma”. Um local onde não se distinguem os bons dos maus, porque “a mesma mão que escreve o Mein Kampf pode escrever A Casinha do Ursinho Pooh”. Uma obra intensa que lança uma interrogação provocadora: “Será que não podemos simplesmente ser pessoas sem laços familiares?” Caminho

Margaret Atwood

Afectuosamente

As questões de género são cruciais na obra de Margaret Atwood que explora os ideais culturais da feminilidade, a representação do corpo da mulher na arte, o relacionamento entre os sexos e os “comportamentos transgressores” da mulher. A poesia representa o cerne da sua relação com a linguagem, enquanto a prosa reproduz a sua visão moral do mundo. Sobre Afectuosamente, a sua primeira colectânea de poesia em mais de uma década, escreve a autora: “A poesia lida com o âmago da existência humana: a vida, a morte, a renovação, a mudança; tal como a imparcialidade e a parcialidade, a injustiça e por vezes a justiça. O mundo em toda a usa variedade. O clima. O tempo, A tristeza. A alegria.” E, sobre estes poemas escritos no período entre 2008 e 2019, acrescenta: ”Durante esses onze anos as coisas foram ficando mais sombrias no mundo. Além disso, envelheci. Pessoas muito próximas de mim morreram.” Foi o caso de Graeme Gibson, seu parceiro de vida, que morreu em 2019, após uma luta contra a demência, a quem o livro é dedicado, e que evoca no poema Homem Invisível: “ (…) Estarás aqui, mas não aqui, / uma memória muscular como dependurar um chapéu / num gancho que já lá não está.” Bertrand Editora

Ahmed Saadawi

Frankenstein em Bagdade

A explosão de um carro armadilhado no centro de Bagdade afecta um vasto conjunto de personagens cujas vidas representam o destino colectivo da cidade: um cenário em ruínas assombrado por um fantasma formado por partes dos corpos de vítimas de guerra que querem vingar as suas mortes para poderem descansar em paz. Numa Bagdade destruída pelos combates, este ser compósito, alimentado pelo medo e pelo desespero dos seus habitantes, acusado de cometer crimes, é afinal a única justiça que resta. De autoria do romancista, poeta e argumentista iraquiano Ahmed Saadawi, Frankenstein em Bagdade recebeu o Prémio Internacional de Ficção Árabe 2014 e o Grand Prix de L’Imaginaire 2017. Recorrendo ao imaginário de Frankenstein, figura de referência do universo de terror ocidental criada pela escritora Mary Shelley em 1818, popularizada pelas adaptações ao cinema de James Whale e pela recente versão de Kenneth Branagh com Robert de Niro, o autor constrói uma impressiva metáfora de uma realidade que muitos ocidentais evitam conhecer: a de uma cidade e de um país devastados “pela cobiça, pela ambição, pela megalomania e por uma sede de sangue insaciável” Gradiva

Isabel Nogueira

História da Arte em Portugal – Do Marcelismo ao Final do Século XX

As artes plásticas e o pensamento crítico em Portugal, entre o início do Marcelismo (1968) e o final do século XX, constituem o objeto de estudo deste livro assente na análise de um conjunto de acontecimentos: exposições colectivas, artistas, obras, políticas culturais de fundo, instituições, ensino artístico, publicações periódicas da especialidade, problematização teórica e crítica, bem como uma ligação ao pano de fundo internacional. Com um certo distanciamento, possibilitado pela passagem do tempo, a autora crê ser possível “concretizar uma proposta de compreensão deste panorama, por vezes complexo e até contraditório, inclusivamente pelas mutações políticas, sociais e culturais que nesta época se operaram na vida portuguesa, nomeadamente com a Revolução de Abril de 1974 e a consequente queda do regime ditatorial, com todas as suas implicações e desenvolvimentos”. Não obstante os tempos e a intensidade da arte portuguesa não terem sido, muitas vezes, os mesmos da arte ocidental, as exposições em causa e certos percursos individuais justificam a hipótese da necessária reavaliação da história da arte em Portugal do período em análise, tornando-a parte constitutiva do movimento mais vasto da história da arte ocidental. Bookbuilders

“Diz-lhe que Estás Ocupado”

Conversas com Alexandre O’Neill

2021 É um ano em que continuaremos a ouvir falar de Alexandre O’Neill (1924-1986). O realizador João Botelho dá os retoques finais a Um Filme em Forma de Assim; e acessível à consulta por todos existe já o site dedicado àquele que é um dos poetas maiores da língua portuguesa, e que conta com a coordenação de Joana Meirim, que exerceu idênticas funções no livro de conversas agora editado pela Tinta-da-china. O verso “diz-lhe que estás ocupado” é parte do poema Entrevista, e pôs a circular a ideia de que o escritor era avesso a este compromisso, algo que o próprio foi desmentindo nas conversas que teve com jornalistas. As mais confessionais encontram-se na última década de vida de O’Neill, e tiveram por interlocutores Baptista-Bastos (1982), Fernando Assis Pacheco (82), e Clara Ferreira Alves (85). Estas conversas e as outras comprovam que o virtuosismo de Alexandre O’Neill não se manifestava somente quando escrevia, mas que era notório no seu discurso (de poucas palavras, mas certeiras). Tinta-da-china

Stravos Stravides

Espaço Comum – A Cidade como Obra Colectiva

Espaço Comum – A Cidade como Obra Colectiva estuda o significado e a produção de espaços de comunalização no contexto do mundo urbanizado de hoje. Entendidos como distintos dos espaços públicos bem como dos espaços privados, os espaços comuns emergem nas metrópoles contemporâneas como locais abertos à utilização publica , com regras e formas de utilização que não dependem de uma autoridade vigente nem são controladas por ela, mas de praticas de comunalização que definem bens e produtos a partilhar. Escreve Joana Braga no prefácio à presente obra: “As cidades, mostra-nos Stravides, são sistemas de relações espaciais em mutação continuada, investidas e mobilizadas também pelas práticas quotidianas dos seus habitantes, As dinâmicas urbanas podem exceder as formas de regulação e controlo que as procuram sujeitar, levando à emergência de práticas espaciais de liberdade”. Seguindo o princípio de Lefebvre do direito à cidade, Stavros Stavrides aproxima-se do pensamento social e político de Foucault, Rancière, Hardt e Negri para desafiar a nossa percepção quotidiana do lugar que habitamos.

Orfeu Negro

Jorge Amado

Navegação de Cabotagem

“Não quero erguer um monumento nem posar para a História cavalgando a glória. Que glória? Puf! Quero apenas contar algumas coisas, umas divertidas, outras melancólicas, iguais à vida. A vida, ai, quão breve navegação de cabotagem!” O livro de memórias de Jorge Amado Navegação de Cabotagem – Apontamentos para um Livro de Memórias que Jamais Escreverei, escrito num estilo despretensioso, passa em revista a sua extensa e rica vida, em episódios vibrantes e impressivos que lembram a sua ficção: uma bebedeira com Pablo Neruda, uma reunião política com Picasso, uma visita ao bordel ou ao terreiro de candomblé com Carybé ou Dorival Caymmi, os últimos dias de Glauber Rocha. Recordando com franqueza e autoironia a sua trajetória de êxitos e obstáculos, de encontros e equívocos, evoca as paixões de juventude, a glória literária, os escritores e artistas com quem conviveu (Carlos Scliar, Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez ou Jean-Paul Sartre), a militância política, o exílio, as amizades e os amores. Com Navegação de Cabotagem, Jorge Amado insere-se, por fim, na prodigiosa galeria de personagens que criou. Dom Quixote

Lúcia Vicente

Raízes Negras

Aos 12 anos, Lúcia Vicente leu O Diário de Anne Frank e a sua vida nunca mais foi a mesma. Ou melhor, a forma como passou a ver a vida nunca mais foi a mesma. Desenvolveu pensamento político, instruiu-se, e passou a estar mais atenta a determinadas questões. Dedicou-se ao ativismo feminista desde a adolescência e as injustiças sempre a incomodaram. Em Raízes Negras, livro com o qual “pretende contribuir para a desconstrução do racismo cultural que está enraizado na sociedade”, a autora traça o perfil de mais de 50 pessoas negras visionárias, que tiveram a coragem de sonhar e mudar a sua vida e a dos outros. Gilda Barros, uma jovem e premiada ilustradora natural do Mindelo, dá imagem às 53 histórias biográficas, de Nelson Mandela a Nina Simone ou Jean-Michel Basquiat. O resultado deste trabalho está à vista: um álbum que é uma prova de como os muros do preconceito podem ser derrubados e uma inspiração na luta por um mundo melhor e mais livre. (por Ana Rita Vaz) Nuvem de Tinta

Partiu do universo pessoal para contar esta história. O que a levou a fazê-lo?

O filme começou a ser pensado em 2014. Numa conversa com o meu pai e, no meio de assuntos completamente triviais, ele diz-me: “Catarina quero que saibas que o teu avô me pediu para queimarmos a correspondência trocada entre ele e a tua avó, Beatriz.” Achei interessante o meu pai estar a comunicar-me aquilo, como se adivinhasse que aquela ideia me ia cair mal. Lutei contra aquilo, porque não conhecia a minha avó Beatriz e pensava que através da correspondência, a poderia vir a conhecer de alguma forma. Mas o meu pai argumentou que apesar de ser a correspondência dos meus avós, era também a intimidade de duas pessoas. Essa conversa acabou por ser a semente para o filme. Achei que era profundamente injusto uma pessoa morrer duas vezes. Havia a morte física de Beatriz e agora esta morte literária, das palavras que lhe tinham saído das mãos. Comecei a pensar em fazer alguma coisa sobre Beatriz, sobre quem tinha sido esta mulher. Depois o meu pai falou-me de um disco vinil que a minha avó tinha gravado, em 1957, para enviar ao meu avô, que na altura estava no mar: de um lado havia uma espécie de carta de amor e do outro, as vozes dos filhos a saudarem o pai. Esta descoberta comoveu-me profundamente e achei que tinha de fazer o filme.

O filme retrata a sua família, mas, ao mesmo tempo espelha também a história de tantas outras famílias e de uma época. Concorda?

Este filme é sobre uma história completamente banal. Infelizmente muitos já passaram pela morte de uma mãe. O tempo que retrata reflete também aquilo que muitas famílias viveram na época: o ter a figura paterna fora, enquanto a mulher ficava a gerir a casa e os filhos. Foi o que a minha avó fez e tantas outras mulheres. Nos anos 50, 60 e 70, em Portugal, o papel da mulher estava muito relacionado com a ideia de cuidar e não com a de uma carreira, ao contrário dos homens, que no caso do meu avô fez a carreira de almirante na marinha. A História que tem vindo a ser contada é sempre a dos homens que vão para o mar, que vão à descoberta. É um mito que existe na nossa História. A história daqueles que ficam não é contada ou fica em segundo plano.

Como se consegue manter o distanciamento necessário para contar uma história tão pessoal?

Antes de fazer o filme tive uma conversa com a minha família, com o meu pai e com os meus tios, comuniquei-lhes as minhas intenções. Inicialmente acharam fantástico, algum tempo depois questionaram o meu interesse em fazer um filme sobre uma pessoa que eu não conhecia e por fim disseram-me que era uma péssima ideia fazer um filme sobre a mãe deles. (risos) Hoje já me consigo rir, mas na altura fiquei em pânico, porque tinha feito entrevistas extraordinárias com os meus tios, com o meu pai e com outros membros que tinham conhecido a minha avó. Foram entrevistas de uma enorme generosidade, que me deram muito e senti que tinha de partilhar isso de alguma forma. Há claramente uma proximidade, porque é a minha família. Mas este foi um longo processo que durou seis anos até o filme estar pronto. Durante esse período aconteceram muitas coisas. Às tantas o filme foi um bocadinho esquecido por parte da minha família, o que me deu a possibilidade de me afastar e trabalhar sobre estas pessoas próximas. Ao mesmo tempo esse distanciamento permitiu-me também ficcionar. Durante as entrevistas senti que havia coisas que não me contavam. A certa altura achei que havia um enorme segredo que me queriam ocultar. Mais tarde percebi que é assim que as famílias são, uma coleção de segredos. Há coisas que nunca são ditas. Isso também ajudou a distanciar-me e deu-me “carta-branca” para inventar os espaços que estavam por preencher. A informação que me davam e a que não me davam, o conhecer e o não conhecer a minha avó Beatriz, fez com que pudesse criar uma avó Beatriz.

A sua avó era uma mulher extraordinária e a principal força desta narrativa familiar. À medida que trabalhava no filme foi surpreendida por alguma das facetas que a caracterizavam?

Sempre senti que a minha avó era uma espécie de ausência presente. Não se estava sempre a falar dela, mas havia frequentemente referências, uma espécie de campainhas que me chamavam a atenção. Era uma mulher perseverante, de uma grande força. Surpreendeu-me a sua enorme fé em Deus, algo que eu não tenho. Essa fé possibilitava que ela enfrentasse a sua condição de mulher sozinha que cuidava de seis filhos e que tinha o marido em alto mar. Acreditava em Deus, acreditava no amor… Era uma mulher de múltiplas fés. Isso foi surpreendente.

Esta é ao mesmo tempo uma história sobre a perda da sua avó, mas também da sua mãe. Ao contá-la está de certo modo a exorcizar essa perda?

Há um processo de catarse, mas só me foi possível fazer o filme porque a minha mãe morreu há 18 anos, o que é mais de metade da minha vida. Durante um dos momentos mais difíceis na realização do filme a minha terapeuta questionou-me se este filme não seria também uma forma de estar mais tempo com a minha mãe. Isso fez-me pensar que se calhar fazer este filme é uma maneira de estar de facto mais tempo e mais próximo dos meus mortos.

A certa altura no filme revela-nos que depois de ler o guião o seu pai lhe disse que algumas coisas na história não refletiam bem a realidade. Aproveitando esse reparo pode dizer-se que o filme é um documentário ficcionado?

O filme começou por ser sobre a morte de uma mulher, mas para falar disso senti que era preciso explicar a importância que ela tinha. Era necessário falar primeiro sobre a família. Tornou-se visível que iria fazer o filme com os meus primos mais novos, que iriam interpretar os seus avós, que são os meus tios. A partir daí este filme, que ia ser uma coisa documental, passou a ter um lado muito mais ensaístico, muito mais ficcional verdadeiramente.

A natureza é fulcral em toda a história: o mar, as flores, as árvores, os pássaros. É o elemento que caracteriza o meio em que as personagens se movem, mas também as suas emoções, épocas e fases da vida. Porquê esta utilização tão acentuada da natureza?

Numa das conversas com a minha família descobri que a minha avó Beatriz chamava a um dos seus filhos “periquito”, achei delicioso. Ao mesmo tempo há um terreno no Alentejo que a minha família adquiriu e que a minha avó fez um grande esforço para plantar com os filhos. Ainda hoje me comove comer laranjas que foram plantadas pela minha avó, é como se as mãos dela nos continuassem a alimentar. A relação com as árvores, com a natureza, era uma coisa que a minha avó tinha e a minha mãe também. Embora fossem sogra e nora partilhavam isso e era algo que as unia. Não creio em Deus, não tenho essa fé, mas sinto que a natureza nos dá um imenso consolo face à perda, porque há este lado extraordinário: depois do inverno vem a primavera. As coisas morrem, mas depois continuam de uma outra forma. Nesse sentido a natureza acabou por ser uma metáfora para coisas que não fazem muito sentido, como a morte. Mesmo sendo a coisa mais natural da vida, temos uma relação incómoda com a morte.

O texto narrado é de uma enorme beleza poética e há uma simbiose perfeita com a imagem que surge no ecrã. Qual o processo que utiliza para ligar tão bem estes dois elementos?

Escrevi um guião cena a cena onde explicava sobretudo como seria o filme a nível de imagens e tinha uma nota sobre o que seria a voz-off. Filmámos tudo ao longo de três anos, porque queria apanhar as estações do ano. Depois disso fiz um primeiro corte. Quando a montagem estava terminada estive cerca de cinco meses sozinha a escrever. Imprimi todos os stills do filme onde escrevi várias notas e a partir disso nasceu o texto.

A Metamorfose dos Pássaros foi o filme português mais premiado em 2020. O que representam para si estes prémios?

Fico muito grata e comovida com a reação ao filme. Não estava à espera e fiquei muito contente. Percebi que não há língua para a morte, para o sentimento de perda, é uma coisa universal. Continuamos a fazer cinema em Portugal com muito pouco, é um milagre haver cinema em português. O que gostávamos mais era que houvesse um reconhecimento cá dentro, sem menosprezar obviamente os prémios internacionais. Um reconhecimento pelas políticas culturais que não existem, pela defesa do cinema português, do cinema de autor.

Juntos publicaram um livro de fotografias que retrata o bairro de Campolide. Em vossa opinião quais as características essenciais do bairro que o distinguem dos demais da capital?

José Vieira Mendes (JVM): A malha urbana, o facto de estar num dos pontos, ou melhor, numa das colinas mais altas (senão a mais alta colina da cidade, o Alto de Campolide), o facto de ser uma zona de transição e passagem (fica ali à saída da autoestrada para Cascais, fica relativamente perto do centro da cidade), estação dos comboios da Linha de Sintra e onde começa o túnel do Rossio. Poucos lisboetas sabem que existe este túnel. E o facto ainda de se misturarem edifícios e vestígios pombalinos (Alto do Carvalhão, Rua do Arco do Carvalhão), com a modernidade das Torres das Amoreiras, que são vistas quase como nave espacial no centro da malha urbana. Onde está uma grande ícone e monumento da cidade: o Aqueduto das Águas Livres, que sobreviveu ao terramoto de 1755.

Sociologicamente é também um bairro muito interessante, onde persiste ainda um certo status ou estratificação social bem diferenciada: os mais pobres vivem nas habitações sociais do vale (Quinta da Bela Flor, por exemplo), os mais abonados no Alto de Campolide (na Av. Conselheiro Fernando de Sousa e, recentemente, na Nova Campolide). Eu, que pertencia à classe media, vivi e cresci ao meio, no bloco de prédios da Calçada dos Mestres. Apesar da evolução, Campolide permanece um bairro um pouco esquecido, sem grande status (comparado, por exemplo, com Campo de Ourique), envelhecido, sem uma livraria, sem atividades culturais (recordo que foi lá que nasceu o Grupo de Campolide do Joaquim Benite, que deu origem à Companhia de Teatro de Almada), sem uma biblioteca, e também com as velhas coletividades de recreio a definharem, aliás, como o comercial tradicional.

Costumo dizer, meio na brincadeira, que Campolide parece dominada e conhecida por ter um Centro Cultural do Frango Assado, (a Valenciana, que já ocupou um quarteirão e aquele prédio lindíssimo do Alto de Campolide, a velha Pastorinha e, diga-se com mérito, porque tem o melhor ‘frango assado do mundo’!). Nada contra, mas parece que falta, apesar das mudanças, qualquer coisa para ganhar status e cultura de bairro, que creio se foi perdendo. E não é preciso ser popular ou popularucho: simplesmente cultura de proximidade e bairro! Mas creio que há esperança, pois começaram a chegar jovens residentes e franceses, atraídos por preços de habitação e consumo mais baixos (do que Campo de Ourique, que está um bairro completamente afrancesado) e, claro, pelo Liceu Francês, que já existia quando eu era criança e que é uma escola muito boa.

Jorge Lima Alves (JLA): Na minha opinião, Campolide é um bairro desvalorizado, mal conhecido, um pouco à margem da pulsação da cidade. Todos os dias, muitos milhares de pessoas passam por aqui, de carro ou no autocarro, a caminho do centro ou de outros bairros com mais escritórios, mais oficinas e lojas mais modernas. Muitos procuram as Amoreiras ou Campo de Ourique, por exemplo, onde a oferta de bens e serviços é ampla e concentrada. A verdade é que Campolide tem pouco para oferecer ao forasteiro, tirando a sua vida pacata e a sua arquitetura muito particular. Se não há uma livraria ou uma biblioteca, também não há uma piscina, e os parques infantis que existem são inóspitos, pouco adaptados às necessidades lúdicas das crianças, muito expostos ao sol e à poluição causada pelo trânsito. Por isso, aos meus olhos, as vantagens de Campolide são essencialmente a sua centralidade e a paz de que gozam os locais pouco procurados.

Como surgiu a ideia de publicar este livro?

JVM: Foi durante a quarentena, ou melhor, durante os confinamentos. Vivo na fronteira entre Campolide e Campo de Ourique e decidi fazer os meus passeios pelas seis e meia, sete da manhã, já que sempre tive o hábito de acordar cedo. Fascinou-me (cumprindo as regras de não sair muito da minha área de residência) ver as ruas vazias e, por outro lado, reviver as memórias, os locais da minha infância, da Campolide onde vivi até aos 25 anos e onde a minha família chegou há cem e viveu até há pouco mais de três, quando faleceu o meu pai. Não vivendo lá, fui muitas vezes ao bairro para visitar e proporcionar o melhor aos meus pais. Fotografo obsessivamente e tenho mais de mil fotos de Campolide e muitas, mesmo muitas de Lisboa, que faço durante as minhas caminhadas, por uma questão de bem-estar e saúde. Reparei nas redes sociais que o meu amigo Jorge Lima Alves, que vive em Campolide há uns 15 anos, estava a fazer o mesmo: a fotografar o bairro. Quando isto aliviou das limitações sanitárias, desafiei o Jorge (ele já tem uns livros de fotografia publicados, em edições de autor) a fazermos um livro um bocadinho mais ambicioso, onde as nossas perspetivas e fotografias de autor se pudessem destacar. As fotografias acabam por dialogar e complementam-se, com visões e uma vivência diferente do bairro. É bastante divertido e interessante verificar isso, já que as fotografias de um e outro, no livro, só estão identificadas num índice final.

JLA: De facto, foi o José Viera Mendes quem teve a brilhante  ideia de me desafiar para este projeto, que abracei imediatamente por várias razões, como explico no texto de introdução que incluí no livro. Para mim, este projeto é um tributo à nossa amizade e uma forma de eu agradecer ao bairro que me acolheu com simpatia há 15 anos. Algo que não disse nesse prefácio, mas que tenho de dizer agora, alto e bom som: é precisamente o facto de Campolide ser um bairro tão desconhecido dos outros lisboetas que torna esta nossa iniciativa tão importante.

O José Vieira Mendes nasceu em Campolide. De que forma a vivência no bairro moldou o seu crescimento e influenciou o ser humano que é?

JVM: Viver num bairro onde vivem pessoas de estratos sociais e níveis de formação e cultura muito diferenciados, moldou muito a minha maneira de ser. Como estava no meio sempre soube olhar para os que estavam abaixo e para os que estavam acima e aprendi a respeitar todos de igual maneira. Os meus amigos eram de todos os estratos e é curioso que, indiferentemente do seu status, houve vários que ficaram pelo caminho e outros, como eu e o meu irmão (infelizmente já falecido), seguimos as nossas vidas de uma forma estável e, posso dizer, até bem-sucedida.

Há 50 anos, Campolide ficava um pouco afastado do roteiro dos principais cinemas da capital. Como surgiu a paixão de José Vieira Mendes pela sétima arte, e que salas frequentava na infância e adolescência?

JVM: O que está a dizer não é exatamente verdade! O bairro tinha o maravilhoso Campolide Cinema, na Rua Leandro Braga. Aos fins-de-semana realizavam-se matinés duplas a dois escudos e cinquenta centavos. Foi a minha cinemateca de bairro, onde vi grandes clássicos do cinema, de todos os géneros. Era um cinema muito elegante quando foi inaugurado na década de 20, já estava um bocadinho degradado quando eu era miúdo, mas funcionava e estava sempre cheio de miúdos, sobretudo nas matinés. Não havia muito aquela questão das classificações: o irmão mais velho levava o mais novo, mesmo que não fosse irmão de verdade. Encerrou em 1977 (eu tinha 17 anos), o edifício original creio que foi demolido e substituído por uma barracão ocupado por uma tipografia. Tenho fotografias do edifício agora, mas é tão feio, e nada tem nada a ver com o edifício original, que não merece sequer figurar no nosso livro. De qualquer modo, também vivia a 15 minutos a pé (menos de bicicleta ou de motorizada) da Avenida da Liberdade, onde estavam o São Jorge, o Tivoli, o Condes, o Odéon, entre outros (e, mais tarde, a Cinemateca Portuguesa); e também muito perto do Europa e do Paris em Campo de Ourique. Mais uma razão para dizer que Campolide fica perto de tudo, e por isso não se compreende porque sempre foi apenas um bairro popular sem o status de outros bairros de Lisboa. Um bairro um pouco esquecido, lembro-me que quando dizia que morava em Campolide, era quase como viver num ‘bairro de índios’.

O livro está apenas disponível em algumas livrarias de Lisboa.

 

O Jorge Lima Alves nasceu no ex-Congo Belga e viveu em França. Reside em Campolide desde 2005. Que vivências lhe proporciona o bairro que não tenha experienciado nos outros locais onde viveu?

JLA: Tive várias casas em Portugal, nomeadamente em Algés e em Benfica, mas tanto num local como no outro não podia verdadeiramente andar a pé, uma das minhas atividades preferidas. Estava sempre muito dependente dos transportes públicos, pois quase tudo o que me interessava ficava longe da minha residência. Em Campolide posso ir a pé à Gulbenkian, ao Corte Inglês, ao Parque Eduardo VII, às Amoreiras ou a Campo de Ourique, tudo locais onde não me canso de ir. Quase nem sinto a falta do Metro, que é uma das lacunas mais graves desta zona da cidade.

O Jorge é autor, entre outros, de livros de viagens. Em seu entender o que tem Campolide para oferecer ao visitante (nacional ou estrangeiro) que não viva no bairro?

JLA: Uma das razões que nos leva a viajar é a curiosidade, a necessidade de conhecer outras realidades. O que eu sugiro a quem queira conhecer Campolide é que deambule pelo bairro como se estivesse numa cidade estrangeira. Todas as coisas ganham interesse quando nos interessamos por elas. Quem por aqui passeie com os olhos bem abertos, encontrará muito mais do que imagina: as surpresas são constantes e as recompensas mais que muitas.

Como surgiu a vossa paixão comum pela fotografia?

JVM: Falo por mim: sou neto de um dos primeiros ardinas de Campolide e daí nasceu a minha paixão pela leitura e pelas imagens e pelo jornalismo. Trabalhei com o Jorge Lima Alves no Expresso, com quem aprendi muito sobre jornalismo e imagens. Ou seja, como trabalhar com as imagens no contexto de um jornal ou revista, como destacar um artigo ou fazer uma boa capa, por exemplo! Quando tinha 23 anos fiz o Curso de Fotografia do IPF e o resultado é um conjunto de fotografias que só agora vou ter oportunidade de mostrar na exposição Aqui Lisboa: Anos 80, que inaugura no dia 30, no Arquivo Municipal de Lisboa – Fotográfico. Ao longo da minha vida profissional, sobretudo de crítico e jornalista de cinema, tenho uma quantidade enorme de fotografias e reportagens de viagens, espetáculos, festivais de cinema, rodagens de filmes, atores, fotografias de rua que parecem cinema, enfim, um gigantesco portfólio que estou aos poucos a tentar organizar em paralelo com a minha atividade profissional. Digamos que, além das câmaras fotográficas, analógicas e digitais, de que sou colecionador, a câmara de um bom smartphone veio facilitar-me também essa obsessiva relação como o olhar, a fotografia e o cinema.

JLA: Comecei a tirar fotos quando me ofereceram uma máquina fotográfica. Depois, pouco a pouco, comecei a perceber que olhar para o mundo através de uma lente me permitia vê-lo melhor. Para se ser bom fotógrafo é prestar ao mundo a atenção que ele merece. Por exemplo: todas as casas de Campolide têm uma história que aflora na sua fachada. Uma casa é como um rosto, cada uma tem a sua personalidade. Todas, sem exceção, têm pormenores únicos. E depois há as pessoas que, em Campolide, como em qualquer outro lado são fascinantes se repararmos verdadeiramente nelas. No modo como se vestem, como falam, como se deslocam, como comunicam.

Porque consideram Campolide um “bairro fotogénico”?

JVM: Em parte isso está explicado numa destas respostas acima, mas, em síntese, Campolide é um bairro de contrastes a todos os níveis, entre o baixo, o alto, o antigo e o moderno, entre o velho e o novo. São estes contrastes que são revelados nas nossas fotografias, curiosamente num formato quadrado que bem poderia ser o velho 6X6.

Campolide mudou muito nos últimos anos. Houve algo que se tenha perdido e de que sintam saudades? O que falta ainda mudar?

JVM: Mudou muito, sim, e para melhor também, em certos aspetos! Obviamente o que vou dizer não está nas fotografias, porque foram tiradas numa altura muito excecional. Mas uma das coisas que noto é uma população envelhecida e, sobretudo, que faltam crianças no bairro, falta um bom jardim arborizado. Lembro-me que no passeio largo em frente à casa dos meus pais, na Calçada dos Mestres, e nas ruas do Bairro da Calçada dos Mestres, havia sempre muitos miúdos a brincar, a jogarem à bola ou a andarem de bicicleta, com eu e o meu irmão. Agora não se vê ninguém! A Calçada dos Mestres, por exemplo, era uma rua muito movimentada e com muito comércio tradicional, como o Vieira Mendes Alfaiate, o meu pai, as mercearias, os cafés, as drogarias, as lavandaria. Agora, a rua está deserta e a maioria das lojas fecharam. Enfim, acho que se perdeu um bocadinho essa cultura de bairro, o bairro envelheceu. Mas está mais bonito, principalmente o Alto de Campolide, com o quiosque e o regresso dos elétricos 24. Confesso que não sei exatamente o que é preciso mudar para melhorar! Pode ser, pelo menos, que o livro e as fotografias deem notoriedade a Campolide e isso atraia pessoas. Aliás, parece-me que estão a fazer-se novos e modernos empreendimentos imobiliários, e que isso arraste também a cultura e a peculiaridade e a sensação de proximidade e vizinhança que traz o comércio de bairro. Sei que é injusto, mas tenho sempre a forte tentação de comparar com Campo de Ourique, onde vivo desde que sai de Campolide.

JLA: Nos 15 anos em que aqui vivo, não se perdeu nada de essencial, a não ser talvez as agências bancárias Por isso, como disse um famoso poeta, do que tenho mais saudades é do futuro. Campolide merecia mais do que tem tido até agora. É um bairro cheio de potencialidades, porque há ainda muita coisa a fazer aqui. Neste momento, estão a construir-se vários condomínios de luxo e sei que os novos habitantes do bairro vão mostrar-se mais exigentes dos que já cá estão. E isso enche-me de otimismo.

Se vos pedissem para recomendar, de forma sucinta, este livro a um potencial leitor, como o fariam?

JVM: Não se trata de um livro de leitura, portanto não tem potenciais leitores! Tem potenciais visualizadores ou observadores, que também são importantes e pontos de partida para outras viagens pelo bairro. I Love Campolide é um álbum de fotos artísticas, é um livro no qual a fotografia contribui significativamente para o objetivo geral, que é dar uma visão do bairro de Campolide para a memória futura. Um álbum de fotos obviamente está relacionado com as memórias, mas também pode ser usado como um livro de mesa ou objeto de estudo dessa malha urbana e populacional. Para mim, e creio que também para o Jorge, é uma declaração de amor a Campolide, a ‘minha terra’ e a ‘terra onde ele vive”.

JLA: Se gostam de Campolide, este livro é indispensável. Se querem ter uma boa ideia de como é o bairro, espreitem o livro, creio que ele apanha bem a sua “essência”. Ou a sua “alma”, se preferirem. Este livro destina-se ainda a todos os que gostam genuinamente de fotografia e de objetos bonitos.

Na primeira pessoa, Pedro Penim dirige-se à plateia para contar as múltiplas incidências por que tem passado com o marido desde que, há cerca de três anos, decidiram ser pais através de um processo de gestação por substituição, a decorrer no Canadá.

Como esclarece, em conversa com a Agenda Cultural de Lisboa, o monólogo inicial de Pais & Filhos não pretende ser uma “démarche para reivindicar algum direito negado” a casais homossexuais. Antes, é esse prólogo autobiográfico que abre caminho à ficção, neste caso, à adaptação livre de um dos mais famosos romances do século XIX, Pais e Filhos, do escritor russo Ivan Turguéniev.

“Quando há uns dois anos a Aida Tavares [diretora artística do Teatro Municipal São Luiz] me desafiou a adaptar um clássico, assustei-me porque não é algo que esteja habituado a fazer, nem sequer me interessa particularmente”, explica. “Geralmente, nos meus projetos, faço o aproveitamento de um facto biográfico ou de um acontecimento político ou social, qualquer coisa do mundo real, por assim dizer, que me dê vontade de falar sobre.”

Nessa altura, Penim estava “tão emocionalmente envolvido no processo de surrogacy”, ou seja, de gestação por substituição (vulgarmente denominado por barriga de aluguer), que procurava ler tudo o que encontrasse sobre o assunto. E, na teoria queer vem a descobrir pontos de vista dispares sobre a matéria, “uns a favor, outros ferozmente contra”. Dai, assumir a inevitabilidade de “qualquer projeto artístico” em que se envolvesse, acabar “contaminado pelo que estava a acontecer na vida real.”

Um dia, no escaparate de uma livraria, salta à vista do encenador um exemplar de Pais e Filhos, romance que lera no final da adolescência e que poderia ser, “pelo tema, pela abordagem ao conflito de gerações no seio da família, pelo retrato das mudanças sociais, culturais e políticas”, o clássico.

Na peça, Rita Blanco encarna uma atriz de teatro, mãe de uma “niilista queer” interpretada pela atriz João Abreu.

Juntando ao “velho” Turguéniev (que reescreveu ao longo de dois meses, resultando “300 páginas de teatro irrepresentável”) a teoria queer acerca de filiação, parentalidade e família – destacando-se todo um conjunto de interrogações que são levantadas sobre eliminação dos laços de sangue e a abolição da família por autoras como a comunista Sophie Lewis ou a anarquista Alyson Escalante –, Penim construiu um espetáculo que do clássico resgata muito mais do que o título. “Mantive a forma do romance e as personagens principais, dando-lhes o vocabulário e os temas contemporâneos.”

À procura da “nova” família

O monólogo introdutório de Pedro Penim dá testemunho da complexidade, para lá da ciência médica, que acarreta um processo de gestação por substituição (aliás, suficientemente pormenorizado durante o testemunho em nome próprio). Trata-se apenas do ponto de partida para interrogações em catadupa que vão sendo colocadas pelas personagens ao logo da peça. E toda e qualquer certeza pré-concebida que tenhamos acerca do assunto, arrisca-se a ser abalada cena a cena.

“Uma grande virtude do texto”, salienta Hugo van der Ding, ator que representa na peça o marido de Penim, “é entregar a cada personagem as dúvidas e incertezas com que o Pedro se deparou na vida real”. Um exemplo, logo no início: a jovem gestante, Katya (Ana Tang), procura o casal para anunciar que desistiu de fazer parte do processo de surrogacy, independentemente do dinheiro que iria ganhar, o qual, por ser “uma rapariga pobre”, lhe faz falta.

Katya crê numa reação compreensiva por parte do casal, estando certa de que se adotassem “também [iriam] adorar a criança”. Porém a resposta que ouve incide sobre o argumento da “ligação biológica”, depressa considerada pela jovem como resultado de uma noção burguesa e conservadora de família, mesmo que renovada sob a perspetiva daquilo que caracteriza como “o mundo de merda dos veadinhos neoliberais.”

No ato seguinte, o estudante Arkasha (personagem interpretada por David Costa, e que a traço grosso é o ingénuo e idealista Arkádi do romance de Turguéniev) está de regresso a casa do pai (Diogo Bento), trazendo consigo Eugénia, “a camarada” (João Abreu), uma assumida niilista queer que vem anunciar a destruição de toda a infraestrutura do mundo capitalista (para usar a terminologia marxista de onde, aliás, todas as teses expostas descendem).

No topo da lista de Eugénia – personagem que é a versão queer de Bazarov (precisamente, o niilista no romance de Turguéniev) – estão conceitos como género e família, este último referido como o mais influente na perpetuação da ordem social capitalista, não só por simbolizar a reprodução biológica, como a reprodução dos valores sociais. Profundamente influenciado pela amiga “genial” (como o próprio a considera), Arkasha entra em profundo conflito ideológico com a família, sobretudo com o pai, devoto do mais sincero amor filial pelo filho, e com os tios gay, incapazes de compreender como é que a abolição da família pode ser operacionalizada no futuro.

Nestes dois exemplos, condensam-se os polos temáticos da peça, desde os conflitos geracionais (muito bem representados nas diferentes faixas etárias que compõem o elenco) à urgência revolucionária proposta pela teoria queer ao colocar o conceito de família no seu epicentro.

Com engenho, mas sem nunca perder algum sarcasmo, Penim baralha o jogo, trabalhando a harmonia familiar, sublinhada na relação cúmplice e fraterna entre os irmãos, e assim esvaziando de sentido a tese de abolição da família. É verdade que a família pode ser o inferno (a violência doméstica, o carater patriarcal e outros abusos no seio familiar vão sendo referidos ), mas é grande o desconforto que se sente quando se ataca uma instituição geralmente considerada intocável. Afinal, ao pô-la em causa é como se “estivéssemos a atacar quem amamos”, sublinha o encenador.

A atriz Rita Blanco, que na peça interpreta a mãe de Eugénia, e surge como um contraponto à ideia dos laços de sangue significarem necessariamente amor, relembra a experiência, de certo modo desconcertante, por que passou ao chegar aos ensaios de Pais & Filhos. “Ao tomar contacto com toda esta problemática, e refletir sobre estes assuntos, percebi que tinha todo um conjunto de preconceitos que jamais me ocorreu considerar. Alguma vez tinha imaginado questionar a família enquanto instituição?”

Pais & Filhos abre certamente um manancial de questões que servem para indicar caminhos apontados a respostas concretas. E à boa maneira marxista, , confronta a “tese” à “antítese” para projetar uma “síntese”, que mais não é do que uma nova conceção de família, distante da fórmula hierárquica, patriarcal e exclusiva em que a cultura judaico-cristã a concebeu.

Talvez seja “ficção científica”, como se diz no final da peça, mas ao dessacralizar e reinventar o conceito, a “nova” família imerge mais igualitária, mais plural e mais justa. E, inevitavelmente, abre o caminha à esperança naquilo que podemos vir a conceber como um mundo melhor.

A presente seleção de miradouros percorre, de oriente a ocidente, a paisagem ao longo do rio.

1 – Telecabine de Lisboa

Parque das Nações | ©Humberto Mouco

A oriente, esta instalação de 40 cabines suspensa a 30 metros de altura do rio, não sendo propriamente um miradouro, possui uma das melhores vistas da cidade. Num percurso de 1230 metros, avista-se o estuário, os jardins, o Oceanário, o Pavilhão de Portugal, a Doca dos Olivais, a Ponte Vasco da Gama, entre outros pontos de interesse.

https://www.telecabinelisboa.pt
Parque das Nações. Passeio de Neptuno – Estação Sul (próximo do Oceanário)
Tel. +351 218 956 143
Horário: Varia ao longo do ano. Consultar o site antes da visita. Entrada paga.

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2 – Terraço do Panteão Nacional – Igreja de Santa Engrácia

Panteão Nacional | ©Francisco Levita

A igreja de Santa Engrácia, fundada na segunda metade do século XVI, foi reconstruída nos finais do século XVII. Em 1906, foi-lhe atribuída a função de Panteão Nacional.
O edifício de arquitetura barroca e planta de cruz grega, situado em local privilegiado, possui um terraço com uma vista excepcional sobre a cidade e o rio.

Campo de Santa Clara
Tel. +351 218 854 820
Horário: De 3ª feira a domingo, 10h-13h (última entrada às 12h40) e 14h-17h (última entrada às 16h40). Encerrado: 2ª feira, 01/01, domingo de Páscoa, 01/05, 13/06 e 25/12. Entrada paga.

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3 – Miradouro das Portas do Sol

Miradouro de Santa Luzia | ©Francisco Levita

Continuando na zona oriental da cidade, o Miradouro das Portas do Sol possui uma das vistas mais icónicas de Lisboa, sobre o tradicional e labiríntico bairro de Alfama e o rio Tejo. O seu nome deriva da antiga Porta do Sol, uma das antigas entradas da primitiva muralha de Lisboa. No largo, existe uma estátua do padroeiro da cidade, São Vicente.
Muito perto, situa-se o miradouro de Santa Luzia, adornado de pérgulas de flores e painéis de azulejos decorativos, com uma vista pitoresca sobre os telhados de Alfama e o rio.

Largo das Portas do Sol, Alfama
Horário: 24h

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4 – Miradouro do Castelo de São Jorge

Castelo de São Jorge | ©Francisco Levita

Considerado por muitos o mais importante miradouro de Lisboa, com uma vista panorâmica sobre a cidade, daqui avista-se a Baixa Pombalina, o Convento do Carmo, o Chiado, Alfama, a Sé, o Campo de Santa Clara, a Basílica da Estrela, o Parque Eduardo VII, o rio Tejo e a outra margem, além de muitos outros pontos de interesse.

Rua de Santa Cruz
Tel. +351 218 800 620
Horário: Todos os dias. De 01/11 a 28/02 – 09h-18h. De 01/03 a 31/10 – 09h-21h (últimas entradas 30 minutos antes da hora do fecho)
Encerrado: 01/01, 01/05, 24, 25 e 31/12. Entrada paga.

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5 – Miradouro do Elevador de Santa Justa

Elevador de Santa Justa | ©Francisco Levita

Inaugurado em 1902, o Elevador de Santa Justa, de estilo neogótico, é um dos poucos exemplares da arquitetura do ferro da cidade, sendo atualmente o único elevador de ascensão vertical em Lisboa. O miradouro situa-se no terraço do edifício, a 45 metros de altura, e oferece uma panorâmica extraordinária sobre o Convento do Carmo, o Rossio, o Teatro Nacional Dona Maria II, a Baixa Pombalina, o Castelo de São Jorge, a Sé e o rio.

https://www.carris.pt
Rua de Santa Justa, entre os nºs 94 e 103
Tel. +351 213 613 000
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6 – Miradouro do Jardim de São Pedro de Alcântara

São Pedro de Alcântara | ©Francisco Levita

O Jardim António Nobre (também conhecido por Jardim de São Pedro de Alcântara), de inspiração romântica, foi construído no século XIX. Tem um miradouro de onde se contempla uma panorâmica ímpar sobre Lisboa, com vista sobre a Praça dos Restauradores e Avenida da Liberdade, áreas novas da cidade a norte, colina do Castelo, Baixa, Mouraria, Alfama, rio Tejo e margem sul. Um telescópio e um mapa em azulejos facilitam a identificação de alguns locais.

Rua de São Pedro de Alcântara
Horário: 24h
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7 – Miradouro da Rocha do Conde de Óbidos

Rocha Conde de Óbidos | ©Humberto Mouco

Situado no Jardim da Rocha do Conde de Óbidos (também conhecido por Jardim 9 de Abril ou Jardim das Albertas) e ao lado do Museu Nacional de Arte Antiga, o miradouro possui uma vista panorâmica sobre o porto e o rio Tejo, a Ponte 25 de Abril e a margem sul. Ao fim da tarde, a paisagem que daqui se avista, torna-se ainda mais bonita. Duas escadarias permitem o acesso à Avenida 24 de Julho, junto do Cais.

Miradouro da Rocha de Conde de Óbidos
Rua Presidente Arriaga
Horário: 24h
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8 – Miradouro do Padrão dos Descobrimentos

Padrão dos Descobrimentos | ©Francisco Levita

O Padrão dos Descobrimentos, edifício isolado à beira-rio, evoca a expansão ultramarina portuguesa. O monumento, na forma de uma caravela estilizada, eleva-se a mais de 50 metros de altura e possui, no seu terraço, um miradouro cuja vista magnífica abrange Lisboa, o rio, a Ponte 25 de Abril e a margem sul do Tejo.

Avenida Brasília
Tel. +351 213 031 950
Horário: março a outubro – todos dias – 10h-19h (última entrada 18h30)
novembro a fevereiro – De 3ª feira a domingo – 10h-18h (última entrada 17h30)
Encerrado: 01/01, 01/05, 24, 25 e 31/12. Entrada paga.

“O teatro como lugar de questionamento e reflexão”, assume a diretora artística Aida Tavares, é a trave-mestra da Temporada 2021/2022 do Teatro São Luiz. E esse lugar começa já a perfilar-se com o primeiro espetáculo a subir ao palco da Sala Luís Miguel Cintra (a principal do teatro municipal). Pais e Filhos, projeto nascido do desafio feito há dois anos por Aida Tavares a Pedro Penim no sentido de adaptar um clássico, tornou-se algo mais do que trazer o influente romance de Ivan Turguéniev para o teatro.

Para este espetáculo, Penim agarrou num facto autobiográfico, como a vontade de abraçar a paternidade, e expôs o processo a que recorreu – a vulgarmente chamada “barriga de aluguer” – para abordar teses tão controversas como a da abolição da família. E ao reescrever a primeira adaptação que fez de Turguéniev (que “resultaria numa peça com umas cinco horas de duração” como o próprio confessa), foi “integrando esse assunto do foro intimo e pessoal e outros contributos”, lançando as bases para uma peça que, à boleia de um clássico, apela à reflexão sobre o modo como se entende a parentalidade e o conceito de família nos nossos dias.

Da noção de família para o meio educativo, que dela parte para a escola, e numa temporada em que a programação Mais Novos alarga o seu âmbito à criação para a adolescência, a diretora artística destaca o novo espetáculo dos criadores de Montanha Russa, Inês Barahona e Miguel Fragata, que em março do próximo ano estreiam Má Educação – Peça em 3 Rounds. “Da mesma forma que o Pedro Penim questiona a noção de família, este espetáculo vai fazê-lo com o tema da educação, propondo uma reflexão sobre o modo como se educa e para quem se educa, hoje”, sublinha Aida Tavares. A propósito do espetáculo, a 9 de março, o São Luiz recebe uma conferência com o desafiante título O meu Ministério da Educação.

A aposta em dar enfase a temas que partem da intimidade e da vida privada para entrar na esfera pública, e consequentemente política, está também vincada no ciclo, agendado para dezembro, dirigido por Daniel Gorjão e o Teatro do Vão, Um Coração Normal. Através de dois espetáculo (Vita & Virginia, de Gorjão, a partir da correspondência entre Virginia Woolf e Vita Sackville- West; e Gejaco, de João Villas-Boas, a propósito do processo interior de assunção da homossexualidade), e uma conversa informal que alia testemunhos na primeira pessoa e a voz de especialistas, abordam-se temas relacionados com identidade de género.

“Fraternité, Conte Fantastique”, de Caroline Guiela Nguyen ©Christophe Raynaud de Lage

Nunca indiferente ao questionamento e ao debate está Miguel Bonneville, artista que rasura o nome próprio como expressão de alguém que está em permanente transição, e que neste arranque de temporada veste o papel de curador do ciclo Recuperar o Corpo. Assumindo este protagonismo como uma continuação do seu trabalho enquanto criador, Bonneville reúne sete solos marcantes da performance em Portugal, para procurar refletir sobre a relação “entre arte e corpo” e a “necessidade de entender o ser humano e a relação com o seu corpo próprio.”

Recuperar o Corpo percorre cerca de 20 anos de performance, desde Notforget-Not Forgiven (1999) de Carlota Lagido a Julieta Bebe uma Cerveja no Inferno (2018) de Tiago Vieira, que abre o ciclo a 30 de outubro. Até 14 de novembro, voltam ao palco Maria Duarte com A Balada e Morte do Porta Estandarte Christoph Rilke, Odete com Anita escorre branco, Sónia Baptista com Haikus, Mónica Calle e Rita Só com Interior e Tiago Barbosa com A Grande Sombra Loira.

Para fechar o capítulo dos grandes ciclos (pelo menos para já), Aida Tavares destaca uma programação ainda em construção, comissariada por Tiago Bartolomeu Costa, que visa celebrar os 48 anos do 25 de Abril. “Uma celebração fundamental, mais a mais no preciso ano em que a democracia ultrapassará em longevidade a ditadura, a que demos o título de Mais Um Dia“. Para além de muito debate, reflexão e pensamento (sobretudo num teatro que coabitou, paredes-meias com a sede da polícia política do salazarismo), o ciclo inclui música – um especialíssimo concerto encenado de Luca Argel -, o regresso ao palco do espetáculo de Joaquim Horta Memórias de uma falsificadora, a partir do livro autobiográfico de Margarida Tengarrinha; e a estreia em Portugal de um dos espetáculos sensação do último Festival d’Avignon: Fraternité, Conte Fantastique, peça escrita e dirigida por Caroline Guiela Nguyen, que apenas uma semana antes levará o aclamado Saigão ao Teatro Nacional D. Maria II.

Regressos com estreias e muita música

A marcar a temporada, o São Luiz volta a ser palco dos novos trabalhos de alguns dos artistas “muito da casa”: Cristina Carvalhal apresenta, já este mês, Sou uma ópera, um tumulto, uma ameaça; Rita Calçada Bastos prossegue o seu tríptico (semi-auto) biográfico, iniciado em Eu Sou Nina, com Eu Sou Clarice, dedicado à vida e obra de Clarice Lispector; o coreógrafo Victor Hugo Pontes volta a trabalhar com Joana Craveiro em Meio no Meio; e Ricardo Neves-Neves dirige a Companhia Maior, numa criação ainda sem título definido que estreia no final de junho de 2022.

Também regressam ao teatro municipal Rogério de Carvalho e o Teatro Griot, com Uma Dança das Florestas, de Wole Soyinka; António Pires com Senhora Weigel – A Última Refeição, de António Cabrita; Leonor Keil com Histórias de Além Terra; ou Jorge Silva Melo e os Artistas Unidos numa nova incursão à obra fundamental de Noël Coward, com a peça Vida de Artistas.

Para além do teatro e da dança, o São Luiz é palco de inúmeros concertos. Nos três primeiros meses do ano, destacam-se as homenagens a Manuel Alegre, nos 85 anos do poeta (6 de outubro); ao maestro Christopher Bochmann, com a Orquestra Sinfónica Juvenil que o próprio dirige (31 de outubro); e a José Saramago, celebrando o centenário do nascimento do escritor (16 de novembro). O fado faz-se ouvir nas vozes de Gil do Carmo (4 de dezembro) e Marco Oliveira (5 de dezembro). A fechar o trimestre, em duas noites (20 e 21 de dezembro) que prometem ser inesquecíveis, os Dead Combo despedem-se definitivamente dos palcos, colocando ponto final a um percurso notável de 18 anos de carreira.

Toda a programação pode ser consultada no site oficial do São Luiz.

A menos de um ano de assumir a direção artística do Festival d´Avignon, Tiago Rodrigues prepara-se para passar a “pasta” ao também ator, encenador e dramaturgo Pedro Penim, que assumirá, já a partir do próximo ano, a condução dos destinos do Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II). Para os próximos meses, Rodrigues preparou uma programação que compreende cerca de três dezenas de produções, muitas delas prometendo ser momentos altos da temporada cultural lisboeta. O arranque da Temporada 2021/2022 acontece já no próximo dia 23, com a estreia mundial de Andy, a primeira incursão do cineasta norte-americano Gus Van Sant no teatro.

Como sublinha Rodrigues, “esta é uma temporada para encapsular as anteriores”, sublinhando e consolidando aquela que tem sido a matriz do TNDM II desde o último trimestre de 2014, quando assumiu funções. Ou seja, um teatro “aberto e plural” que não se limita às paredes do edifício do Rossio e se estende em rede pelo país e o mundo, um teatro que sublinha “o património literário e dramático da humanidade”, embora esteja sempre aberto às “novas palavras”, através das cada vez mais “plurais escritas do teatro contemporâneo.”

A programação gizada para a atual temporada é particularmente representativa de todas essas características. Há Gil Vicente (Pranto de Maria Parda segundo Miguel Fragata), Dante (o capítulo final, ou seja, o Paraíso, do tríptico A Divina Comédia, pelo Teatro O Bando) ou Molière (a assinalar os 400 anos do nascimento do comediógrafo francês, Tónan Quito dirige O Tartufo, no âmbito do projeto Nós). E por falar em clássicos, há também o muito aguardado O Cerejal, de Anton Tchékhov (9 a 19 de dezembro), protagonizado por Isabelle Huppert e dirigido por Tiago Rodrigues, numa grande coprodução entre o TNDM II e vários teatros franceses (com o Odéon-Théâtre de l’Europe, à cabeça).

A peça de grande sucesso de Tiago Rodrigues “Catarina e a beleza de matar fascistas” regressa em 2022. ©Pedro Macedo

Pelo TNDM II vão ainda passar as mais recentes criações de alguns dos mais consagrados criadores e companhias portuguesas – como Joana Craveiro e o Teatro do Vestido (Juventude Inquieta), Miguel Seabra e o Teatro Meridional (Ilhas), Jorge Andrade e a mala voadora (OFF e Cornucópia) ou Nuno Cardoso e o Teatro Nacional de São João (Espectros de Ibsen) – a par de algumas das vozes mais emergentes do teatro português da atualidade – Os Possessos, com uma criação de Catarina Rôlo Sagueiro e Leonor Buescu (Ainda Marianas, a partir das Novas Cartas Portuguesas), a Aurora Negra de Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema (Cosmos) e Sofia Santos Silva, vencedora da quarta edição da Bolsa Amélia Rey Colaço, promovida pelo TNDM II (Another Rose). Destaque ainda para novas criações de Pedro Gil (O Inesquecível Professor), Isabel Abreu (com o projeto online Diários da Peste), Cláudia Lucas Chéu e Albano Jerónimo (Orlando), Hotel Europa (Esta é a minha história de amor) e Marta Carreiras e Romeu Costa (Maráia Quéeri).

No plano internacional, e para além do TNDM II continuar a ser palco de acolhimento de excelência de diversos espetáculos integrados no Alkantara Festival, FIMFA Lx, Festival de Almada ou no novíssimo Feminist Futures Festival (projeto em rede que alia 11 instituições de igual número de países em torno da criação feminista), os grandes destaques vão para a estreia em Portugal do espetáculo Saigão, escrito e encenado por Caroline Guiela Nguyen, e que se tornou, desde a estreia em 2017, um dos maiores sucessos de público e de crítica em França; e para o regresso do coreógrafo congolês Faustin Linyekula com o inédito Lisbon, My Lisbon. Nota ainda para o reagendamento de O Silêncio e o Medo, arrojada peça em torno da cantora norte-americana Nina Simone, assinada por um dos mais promissores autores do atual teatro europeu, o francês David Gelson.

A temporada é ainda marcada por regressos a palco de várias espetáculos que conquistaram o público nos últimos tempos. Marlene Monteiro Freitas volta a apresentar Bacantes – Prelúdio para uma purga e António Fonseca volta à integral de Os Lusíadas. Em junho do próximo ano, e depois de correr o país e alguns dos principais palcos da Europa, Catarina e a beleza de matar fascistas, a aclamada e aplaudida peça de Tiago Rodrigues, sobe ao palco da Sala Garrett para uma curtíssima temporada (6 a 10 de julho de 2022).

Mas, a esse propósito, há uma boa nova, sobretudo para quem acusa as salas de espetáculos das “temporadas relâmpago”: já em janeiro próximo nasce a parceria D. Maria Matos que, unindo o TNDM II ao Teatro Maria Matos (atualmente gerido pela Força de Produção), visa prolongar “a vida dos espetáculos na cidade”. A peça Última Hora, escrita por Rui Cardoso Martins, encenada por Gonçalo Amorim e protagonizado por Maria Rueff e Miguel Guilherme, é a primeira a merecer uma temporada extra.

Toda a programação, incluindo outros espetáculos programados e as mais variadas iniciativas do TNDM II, encontra-se disponível aqui.

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