Esta Exposição de Amantes pode ser entendida como uma revisitação da Coleção de Amantes, que o público tem vindo a conhecer ao longo dos anos através do espetáculo?
A exposição corresponde à vontade que sempre tive, desde o início da coleção, de não a limitar a um espetáculo de teatro. Até porque a Coleção de Amantes é não só o projeto fundador de todo um trabalho que me vem ocupando ao longo dos últimos anos, como continua a ser o espetáculo que mais apresentei, tanto em Portugal como por todo o mundo.
Estamos perante um objeto que se aproxima mais de uma exposição num museu do que de um espetáculo de teatro?
Aqui, o público é convidado a entrar, literalmente, numa casa de seis por oito, um T1. Ora, nessa casa, projetada pelo [arquiteto e cenógrafo] José Capela, todos os materiais, do chão às paredes, da cama ao sofá, das peças decorativas aos utensílios, estão impressos com fotografias (selecionadas por mim, pelo Capela e pelo seu assistente, o António [Pedro Faria]), de um total de sete mil, que integram a Coleção de Amantes. Por exemplo, o sofá é estofado com uma fotografia saída de uma seleção que reunia todas as fotos que tirei junto de amantes em sofás; como estamos no espaço da sala, o mesmo sucederá com a divisória ou com as porcelanas, as almofadas ou os guardanapos.
O público poderá, portanto, percorrer a casa in loco?
Sim, numa lotação muito reduzida de quatro espetadores de cada vez, sendo que dois entram pela casa em lugares diferentes e os outros dois estarão num plano acima…
Mas, todos guiados pela Raquel…
Os quatro visitantes estão munidos de aparelhos de audiodescrição, sendo que cada um vai sendo guiado ao som da minha voz e da música de Odete. Conforme vão percorrendo a casa, vão sendo partilhados os episódios de intimidade que vivi através daquelas fotografias. Acontece então que os dois visitantes no interior da casa se encontram e, nesse momento, cabe-me a mim guiá-los de modo a proporcionar a ambos uma experiência de intimidade com um desconhecido, à semelhança do que faço nos meus encontros e que são a matéria do espetáculo Coleção de Amantes.
E os dois espectadores no plano superior da casa?
São como testemunhas que, por estarem numa plataforma elevada, conseguem perceber a casa como um labirinto. Mas, não é só a casa que é um labirinto, é a própria intimidade enquanto sítio onde nos perdemos, onde não sabemos onde começamos e onde acabamos. É essa perceção que lhes vou transmitindo através da audiodescrição, para que eles acabem por viver uma experiência voyeurística com o encontro entre os outros visitantes.
Portanto, cada grupo vai ter da Exposição de Amantes perspetivas radicalmente diferentes?
Vamos ainda um pouco mais longe. Cada um dos espectadores vai ter uma experiência totalmente diferente do outro, mesmo que dois deles percorram a casa e sejam convidados a interagir. Adivinho que possam vir a ser polémicas todas essas diferenças de perspetivas, mas procuro que cada pessoa possa ter uma experiência pessoal e única.
Esta coleção já foi espetáculo, livro, agora exposição. O projeto encerra aqui?
Não de todo. Aliás, para assinalar os dez anos do início do projeto tenho pensada uma reativação da coleção através de uma performance duracional. Ainda não estou totalmente ciente do que poderá ser, mas aquilo que gostava mesmo era de poder contar todas as histórias destes encontros, poder partilhar tudo o que não coube nos espetáculos, na exposição ou até mesmo no livro [publicado numa edição do Teatro Nacional D. Maria II].
Talvez importe esclarecer que tanto a Coleção como a Exposição de Amantes são partes de um projeto artístico, e que as pessoas “colecionadas” estavam cientes disso mesmo e daquilo que é uma intimidade ficcionada.
É curioso porque, ao longo do tempo, o projeto, que começou por ser algo muito romantizado e parecia procurar responder às minhas aflições com o amor, tornou-se mesmo muito ativista, ou não fosse feito por uma mulher. De certo modo, acaba por haver uma provocação às convenções quando não é um homem, mas sim uma mulher, a “colecionar” amantes. E essa consciência partiu de fora, quando comecei a dar as primeiras entrevistas e a ver comentários na internet acusando-me de tudo, até de usar apoios públicos para “andar a fazer isto” [risos].
Será interessante recuar uns anos e perceber como é que alguém se torna uma colecionadora de pessoas porque, aos amantes, seguiram-se os colecionadores, os artistas e os espectadores…
Começou no Brasil, país para onde fui em 2011 com uma bolsa de estudos. Sem o perceber de antemão, estava a imigrar porque a crise económica instalava-se em Portugal, e depois de uns meses a estagiar na Cia. dos Atores [companhia de teatro do Rio de Janeiro], acabei mesmo por ficar. A experiência de estar e viver fora da Europa a partir dos 23 anos fez-me tomar consciência do que é ser europeia, do que é ser uma mulher branca sendo, simultaneamente, uma artista portuguesa. Vivi lá sete anos, portanto, foi no Brasil, sozinha, que me tornei uma mulher adulta. E só ali poderia ter nascido este movimento artístico de querer guardar uma pessoa que, ao mesmo tempo, me guarda a mim.
A Coleção de Amantes começa, precisamente, no Rio de Janeiro…
Numa altura em que procurava perceber como é que nos tornamos íntimos do outro. E, ao mesmo tempo, quando começo a relacionar a intimidade com essa coisa de estarmos e de nos sentirmos em casa. Um dia, conheci alguém na rua e comecei a falar da vontade de fotografar em casas de desconhecidos. Acabei por pedir para ir a casa dessa pessoa e passei lá 16 horas. Tivemos uma conversa tão intensa e interessante que, quando sai, pensei: tenho de me encontrar com outra pessoa. Nunca mais parou, tanto que, quando estreei o espetáculo, tinha já “colecionado” 73 amantes, muitas histórias e largas centenas de fotografias.
Mas a vontade de ser colecionadora começa somente nesse dia, nesse encontro com essa pessoa?
É curioso, mas eu nunca tinha colecionada nada na vida. Ao continuar, fui percebendo que estava a tornar-me uma colecionadora, aplicando uma metodologia precisa não só aos encontros mas à construção do próprio arquivo, mais a mais, sendo um arquivo de encontros com pessoas, logo efémero. Foi isso que me levou, a seguir, a iniciar a Coleção de Colecionadores no intuito de “colecionar” pessoas como eu, ou naquilo em que me tinha tornado. Junto de outros colecionadores, parti em busca de respostas para questões como “o que é isso de ser colecionador” ou “porque queremos guardar coisas”…
E depois veio a Coleção de Artistas…
Quando cheguei ao Brasil era uma jovem atriz recém-formada, e não encontrei lugar, tendo trabalhado, sobretudo, como assistente de encenação. Portanto, foi com a Coleção de Amantes que me tornei autora, e com ela comecei a perceber o que é isso de ser criador. Inevitavelmente, depois dos colecionadores, a coleção seguinte foi a de artistas, tentando usar o meu corpo como um arquivo de coisas que outros artistas tinham criado. Ao mesmo tempo, era ali que questionava o que é isso de ser e de como nos tornamos artistas, estando consciente de que no meu percurso jamais foi evidente que pudesse tornar-me artista. Digo isto porque não venho de um lugar onde hajam artistas, porque nunca ninguém me incentivou a sê-lo, porque não tive uma educação que antecipadamente me preparasse para o ser, porque sou uma mulher que veio dos subúrbios de Lisboa, onde muitas vezes ver um espetáculo é um privilégio raro. Portanto, a arte apareceu na minha vida porque se tornou, recorrentemente, naquilo que me salvava nos momentos mais difíceis e delicados.
E a Coleção de Espectador_s…
Na estreia da Coleção de Amantes, estando eu a falar de encontros efémeros, de momentos que não dão para guardar, ocorre-me olhar para a plateia e pensar que também aquele momento é único e tão efémero como os outros. Pensei imediatamente em comprar uma polaroid e registar cada plateia. Porém, há as questões dos direitos de imagem, pelo que abandono a ideia mas passo a desafiar, no final de cada récita das coleções, cada espectador a fotografar-se e a enviar-me a fotografia por email. Assim nasceu a coleção, contudo alarguei o âmbito e acabei por criar um espetáculo sobre os momentos que nós, enquanto espectadores, não esquecemos e de como eles nos transformam.
Vai continuar a ser uma atriz que é também uma colecionadora?
Muitas vezes pensei que ser atriz não era um lugar para mim. Hoje em dia, questiono-me mesmo se sou uma atriz, ou até mesmo uma artista, se não serei simplesmente alguém que faz teatro. Aquilo que sei é que vou continuar a “colecionar” pessoas.
Maria Teresa Horta
Paixão
O mais recente volume de poemas de Maria Teresa Horta é marcado pelos temas da paixão e do luto. No final de 2019, a escritora perdeu o seu marido (“Foste sempre o desacato / dia após dia após dia / ao longo da minha vida”), a quem a presente obra é dedicada: “Para Ti, Luís, numa revolvida e eterna paixão”. A reprodução, na capa, da pintura O Ferolho, de Fragonard, indicia que a autora não abandonou a dimensão feminina e erótica da sua poesia, com ênfase particular no desejo. De facto, o livro subordina-se aos seguintes temas: Paixão (“Sempre misturámos / os corpos um do outro // prazer desejo / e paixão // Avidez arrebatada / numa pressa singular /onde a vida sequiosa / sempre e sempre // se inventava”), Desejo, Sobressalto e Solidão (“Está sempre vazia / agora / a nossa cama // meu amor… // Mesmo se nela / me deito / já tarde de madrugada // tento fechar os olhos / para não ver / o seu nada”). Uma belíssima despedida com os olhos postos na eternidade: “”Será ainda possível / meu amor /trocar a vida por ti… // trazer-te devagar / ao coração? // Entregar-me ao teu / secreto abraço / e só então…// abrirmos as asas / devagar / a voar a eternidade //…até ser não”. Dom Quixote
André Gide
Paludes
André Gide (1869/1951), Prémio Nobel da Literatura de 1947, foi uma das grandes mentes literárias do século XX. Romancista, dramaturgo, memorialista, crítico e editor, representou, segundo Thomas Mann, “o ponto extremo da curiosidade do espírito”. A sua ficção divide-se em dois géneros principais: o seu único romance, Os Moedeiros Falsos, texto eminentemente moderno que questiona a própria natureza do romance e uma série de narrativas (récits) de profundo teor confessional e admirável recorte clássico. Paludes é a primeira das três sotias que escreveu, palavra arcaica das farsas satíricas medievais francesas. Relata as adversidades da composição de um romance (Paludes) que o autor/narrador nunca chega a aceitar como satisfatório e que satiriza a mediocridade dos salões literários parisienses do final do século XIX. Paludes é, nas palavras de Aníbal Fernandes, tradutor da obra e autor do seu prefácio, um “não-romance”, “um estranho cometimento literário, exterior a tudo o que se conhecia na literatura francesa”. “É um verdadeiro novo-romance (…) construído sobre nada, com sensações extremamente vivas, a forma de Gide é de uma elegância extrema”, declarou Nathalie Sarraute. Sistema Solar
Uma Ultima Pergunta
Entrevistas Com Mário Césariny
António Duarte, que entrevistou Mário Cesariny em 1979, dá uma definição da experiência, num par de linhas: “Mário Cesariny pinta poemas a falar. Sugere viagens descontroladas pelo imaginário deslumbrante da Grande Loucura.” É pela loucura que vamos, a loucura saudável que deixa vazios os hospitais (palavras do poeta). As entrevistas reunidas neste volume por Laura Mateus Fonseca, estendem-se de 1952 a 2006. “Num assomo de irreverência e confronto, o Cesariny poeta, pintor e surrealista, sem perder de vista o seu passado, comenta diferentes tempos de Portugal.” O livro faz acompanhar as conversas de fotos de arquivo das principais figuras do surrealismo em Portugal, e consoante a relevância documental mostra ainda alguns recortes de jornais. O prefácio é da autoria de Bernardo Pinto de Almeida, e a anteceder a indicação da origem de cada entrevista e do índice remissivo, Perfecto E. Cuadrado assina o posfácio. Cesariny leva as palavras para um território onde só ele é dono e senhor. Este livro, uma vez fechado, deixará sempre várias leituras em aberto. Documenta
Naguib Mahfouz
Entre os Dois Palácios
Naguib Mahfouz (1911/2006) é o mais importante escritor de língua árabe do século XX e o único galardoado com o Prémio Nobel da Literatura (1988). Entre Dois Palácios constitui o primeiro volume da celebrada Trilogia do Cairo. Narra a história de uma família em três gerações, durante a ocupação britânica do Egipto. O patriarca oprime a mulher e enclausura as filhas, enquanto à noite se entrega aos prazeres do Cairo. Os três filhos lutam para se libertar do seu domínio, enquanto o mundo que os rodeia se abre às correntes da modernidade. Os dramas desta família espelham os do seu país, no período entre as duas guerras mundiais, à medida que as mudanças se fazem sentir numa sociedade que há séculos lhes resiste. A arte de Mahfouz reside na capacidade de criar uma galeria de personagens cujas circunstâncias de vida estão profundamente distantes das nossas e, no entanto, possuem as mesmas aspirações. Através delas, o mundo que descreve – a realidade do Egipto colonial, as suas gentes e os seus conceitos – deixa de nos parecer estranho. Traduzir a realidade local à escala da humanidade é o mérito da grande literatura. E-Primatur
Margarida Almeida Bastos
António José de Barros Veloso – Uma Vida, Vários Mundos
A presente biografia, em forma de entrevista, presta tributo uma figura relevante da medicina, da música (em especial do Jazz, no qual se destacou como pianista), da azulejaria, da História da Ciência e do panorama geral da cultura nacional. Aos noventa anos de idade, estas entrevistas constituem, segundo Margarida Almeida Bastos, autora da obra, “uma reflexão sobre o passado, mas também sobre o presente, que Barros Veloso analisa de forma original nas suas múltiplas vertentes, antecipando por vezes o futuro, com uma enorme lucidez e um profundo sentido critico”. Na cerimónia do seu doutoramento honoris causa, na Reitoria da universidade Nova de Lisboa, Barros Veloso destacou o papel da cultura: “Cultura é outra palavra-chave. Sem ela é difícil perceber o que a medicina tem de mais profundo e humano. Não é por acaso que entre os médicos se inscrevem os nomes de algumas das maiores figuras da literatura portuguesa.” Uma vida rica e improvável, num diálogo sempre estimulante. By the Book
António Lobo Antunes
As Crónicas
Numa escrita mais intimista e num estilo mais acessível do que os dos seus romances, as crónicas de António Lobo Antunes abordam uma vastíssima variedade temática que incluem não só a infância, a família, as mulheres, os amigos, os amores e os desamores, a vida e a morte, mas também relatos sobre pessoas anónimas encontradas ocasionalmente, apontamentos de viagem ou sobre pequenos restaurantes de bairro e, como não podia faltar, algumas notas sobre a escrita e os livros. As crónicas reunidas neste volume resultam de uma seleção feita a partir de mais de quatrocentos textos publicados pelas Publicações Dom Quixote em cinco volumes independentes entre 1998 e 2013. Inclui também uma seleção de crónicas inéditas em livro. Salienta Marcelo Rebelo de Sousa, no prefácio à presente obra: “Convidado a escrever umas linhas, li ou reli, as crónicas. Horas sem parar. E, nelas encontrei – mais do que seria óbvio ou inevitável – um impressivo retrato de António Lobo Antunes.” Dom Quixote
Vital Moreira e José Domingues
No Bicentenário da Revolução Liberal – Vol. III
Vida e Obra Política de José Ferreira Borges
Segundo os autores, José Ferreira Borges (1786-1838) foi o “principal estratego operacional da sublevação de 24 de Agosto e uma das mentes mais acutilantes da geração heroica de 1820”. Face à convicção de que “apesar do seu nome integrar, com toda a justiça, a toponímia de muitas cidades, a começar pelo seu Porto natal”, não ser generalizado o conhecimento publico “sobre o eu contributo decisivo para o êxito da Revolução [Liberal de 1820], os seus textos de combate, no exílio, contra a usurpação miguelista, (1828-1832), o seu pensamento político-constitucional (…) e, por fim, a sua independência e coragem pessoal, intelectual e política”, é objetivo do presente livro colmatar essa lacuna historiográfica. Havendo vários estudos sobre aspetos marcantes da sua vida e da sua carreira profissional – sobretudo como jurisconsulto, economista e comercialista –, faltava um estudo especialmente dedicado ao seu percurso político e às suas ideias político-constitucionais. Esta obra percorre o pensamento político-constitucional de Ferreira Borges, coligindo e analisando os seus escritos políticos. Porto Editora
João Pedro Mésseder e Rachel Caiano
Coisas que Gostam de Coisas
Coisas que Gostam de Coisas insere-se num conjunto de livros que têm a palavra “coisas” no título. Este, em particular, é um livro de pequenos poemas onde, em cada um deles, se pode encontrar a palavra gostar. Segundo João Pedro Mésseder “é através da palavra gostar que, de certa forma, se mostra que existe um equilíbrio no Universo, que relaciona as coisas umas com as outras”. “Com os elementos cósmicos sempre presentes, como a água, a lua e o sol, esta obra mostra uma certa comoção com o esplendor do mundo”, avança o autor, parafraseando Sophia de Mello Breyner Andresen. “Porque o mundo é um lugar realmente esplendoroso e pode continuar a sê-lo, se fizermos por isso”. A ilustradora Rachel Caiano escolheu usar carvão vegetal nas ilustrações para sublinhar um carácter e um traço nem muito limpo, nem muito acabado, recorrendo ao esboço. “Por vezes, o esboço dá-nos mais que as imagens demasiado acabadas. Os esboços retêm mais vestígios do pensamento e eu quis explorar um pouco essa linguagem”, esclarece. Porque a vida não seria boa se não gostássemos de tantas coisas! [texto de Ana Rita Vaz] Caminho
Poderá soar a coisa em desuso, mas Laura e Daniel não se conheceram no Tinder, nem noutro qualquer site de encontros, como poderia parecer natural nos dias que correm. O primeiro encontro deu-se olhos nos olhos, no frenesim de uma festa dada por Laura no seu novo e elegante apartamento. Como bem especifica o encenador João Lourenço, “um encontro cara a cara de um homem e de uma mulher, sem os filtros e as máscaras das redes sociais.”
Começar é a história dessa noite, daquilo que, após a festa, aconteceu a Laura e Daniel logo que os convidados abandonaram o apartamento. Como ponto de partida, sabemos que agradam um ao outro, que ela está disponível para se entregar a alguém como ele, com “cara de boa pessoa”. Aquilo que também sabemos é que ele é desajeitado na arte da sedução, fala quando não deve e que morre de medo de se deixar envolver nas teias da paixão, ou não houvesse todo um passado que o ensombrasse.
“O que me agradou neste texto, que tem tanto de leve como de profundo, foi toda a partitura da força e da fragilidade do começo de uma relação amorosa”, refere João Lourenço, lembrando que Começar acabou por ser o texto escolhido para este arranque de temporada devido à impossibilidade, motivada pela pandemia, de prosseguir os trabalhos de Tempestade Ainda, de Peter Handke, criação de “outro grau de exigência, e com uma equipa artística bem mais extensa.”
Mas a peça de David Eldridge, uma comédia romântica que, afinal, “não é assim tão ‘levezinha'”, mas profundamente ácida no modo como observa as relações amorosas entre adultos nos nossos tempos, abriu na imaginação de João Lourenço a hipótese de “explorar outras linhas de ação e situações”. “Procurei integrar no espetáculo cenas filmadas, misturando teatro e cinema, tal como o tinha feito há uns anos em Noite Viva de Conor McPherson.”
Seduzido pelas personagens de Laura e Daniel, o encenador acabou por lhes dar vida fora do apartamento e, ao lado do realizador Nuno Neves, fez nascer um projeto paralelo de cinema. Desse projeto, o espetáculo de teatro mostra apenas o prólogo, ou seja, a longa cena da festa, e uma pequena cena de amor, quase no final, que altera, já no palco, o “happy end” sugerido no texto original.
“Ainda não sei o que vai acontecer ao filme, mas logo após estrearmos o espetáculo retomámos as filmagens para o concluir”, esclarece João Lourenço. Garantidamente, a existência proporcionada a Laura e a Daniel no cinema, “teve uma repercussão profunda no modo como os atores passaram a desempenhar as personagens no teatro”.
Cleia Almeida e Pedro Laginha emprestam uma notável química ao par romântico de Começar. “É que o trabalho de filmagens deu-lhes outra dimensão sobre quem são as suas personagens, dando-lhes a conhecer a família, os amigos, os colegas de trabalho, mas também as experiências traumáticas e os momentos de felicidade que viveram”, salienta o encenador.
Assim, enquanto não sabemos tudo sobre Laura e Daniel numa tela de cinema ou num ecrã de televisão, é no palco do Teatro Aberto que podemos testemunhar como tudo começou.
Como nasceram os Neon Soho?
O projeto começou comigo e com a Vera [Condeço]. Ela tinha algumas ideias para umas músicas e pediu-me para fazer uns improvisos. Isto já foi há alguns anos, e estávamos com alguma dificuldade em materializar estas ideias. Entretanto, e por coincidência, para uma das músicas do EP, Man Behind Me, a Vera pediu ao Ricardo Cruz que ajudasse com a guitarra. A partir daí houve uma enorme empatia, e a Vera sugeriu que ele fizesse parte do projeto. A partir do momento em que ele entrou foi incrível, foi uma espécie de elemento aglutinador porque somos os três completamente diferentes.
Porquê o nome Neon Soho?
São metáforas muito subjetivas que saíram de um brainstorming, e tem tudo a ver connosco. Soho é aquele lugar que existe em qualquer parte do mundo, algo multicultural de fusão de géneros musicais e de culturas. Somos muito diferentes quer a nível musical, quer de personalidade, por isso achámos que fazia todo o sentido. Por questões técnicas tivemos de acrescentar o ‘Neon’ porque em termos digitais ficava estranho ser só uma palavra. Escolhemos ‘Neon’ porque também tem a ver com um conceito citadino mais relacionado com a noite, e achámos que tinha a ver com a nossa música.
O vosso press anuncia este disco como “uma salada de pop, sem regras ou formalismos”. Como definem a música que fazem?
Exatamente assim. Escolhemos arriscar no que gostamos e no que nos diverte, de uma forma despretensiosa. Não quisemos fazer música para agradar, ou para seguir um género, quisemos fazer algo de que gostássemos realmente. Não há formalismos nem regras. Há algumas alusões a determinadas coisas dos anos 80 e 90, respeitando sempre as particularidades de cada um, uma vez que temos personalidades e gostos musicais distintos.
Proof of Love, o álbum de estreia, conta com produção de Rui Maia, um peso pesado na música eletrónica em Portugal. Como correu esta parceria?
Já tínhamos uma enorme admiração pelo trabalho do Rui e por todos os projetos em que participa. Achámos que ele era a pessoa certa para trabalhar connosco e desbloquear um bocadinho os nossos debates espasmódicos [risos]. Ele foi espetacular e deu-nos um input muito importante. Este álbum é uma espécie de patchwork, na medida em que há muitas canções que começaram a ser feitas há algum tempo e que contaram com o desempate do Rui. Temos músicas muito diferentes, é uma espécie de manta de retalhos de várias coisas, mas é mesmo a nossa ‘prova de amor’ e de partilha uns pelos outros.
Quem são as tuas referências musicais?
Há uma pessoa a quem quis fazer uma pequenina homenagem, a Ana Deus, dos Três Tristes Tigres. Sempre gostei muito do trabalho dela. Em termos internacionais, as minhas referências recaem sobre artistas como Portishead ou Björk. Dentro da pop dos anos 80, nomes como Boy George ou Dead or Alive.
Trabalhaste com o Rodrigo Leão. Isso deu-te mais segurança enquanto vocalista?
Sim, aprendi imenso com ele e utilizo cada experiência que tive. São projetos completamente diferentes, e tive o prazer de contar com o apoio do Rodrigo neste novo projeto. Mostrei-lhe as músicas e foi muito giro ver a reação dele. Se não fosse tudo o que aprendi ao trabalhar com ele, não estaria tão à vontade agora.
Como olhas para o estado da música eletrónica em Portugal?
De há um tempo para cá acho que se começou a fazer mais divulgação deste género musical. Há muitos projetos incríveis a acontecer. Há uns 20/25 anos havia espaço para os grandes artistas, mas pouco espaço para as bandas de garagem e acho que agora se nota uma grande diferença. A geração atual de músicos jovens tem muito conhecimento digital e utiliza uma data de recursos para apresentar as suas ideias. Não tem receio de o fazer nem quer colar-se a nenhum género, avança com toda a segurança. Acho que isso é uma coisa diferente que está a acontecer agora, e que ajuda a que haja mais divulgação e mais projetos. Em relação à divulgação, penso que a música portuguesa poderia ser mais divulgada e já agora também poderia haver mais orçamento para a Cultura. Uma sociedade com Cultura resolve melhor os seus problemas, ajuda-nos a amadurecer e a ser mais justos.
Apresentam o disco de estreia no Maria Matos neste início de novembro. Como vai ser o concerto?
Desde o início da pandemia nunca estivemos parados. Estivemos sempre a ensaiar, nem que fosse cada um em sua casa. Na última fase de preparação do disco tivemos mesmo que trabalhar dessa forma, o que também o torna diferente e especial. A partir do momento em que começou a haver uma maior abertura, agarrámos essa oportunidade com unhas e dentes e temos estado a trabalhar bastante. Uma coisa é trabalhar para o álbum, outra é preparar um espetáculo ao vivo, que é algo que só ao longo do tempo se vai melhorando e afinando. Estamos a trabalhar afincadamente nisso porque queremos que as pessoas vivam uma experiência a vários níveis.
Um dos convidados já é conhecido, e é Alex D’Alva Teixeira. Há mais surpresas que possas revelar?
Estamos a trabalhar nisso, mas neste momento ainda não posso revelar [risos].
Já há planos para o próximo disco ou ainda é cedo?
Já estamos a pensar nisso, como se fosse um sonho projetado para o futuro. O disco de estreia corresponde, definitivamente, àquilo que passámos nos últimos anos. O próximo será um pouco diferente.
O Luccas é o maior influenciador infantil do Brasil e uma das pessoas mais poderosas da internet brasileira. Como é ser o ídolo de milhões de crianças e jovens?
Fico muito feliz com esse reconhecimento ao meu trabalho! Estou em constante processo de aprendizado e renovação, para poder entregar o meu melhor para meu público.
O que deseja transmitir às crianças através do seu trabalho?
Acredito que a minha missão com as crianças é contribuir de alguma forma positiva em seus desenvolvimentos. O meu trabalho vem como uma forma de ajudar naquilo que elas aprendem na escola, mas também dar suporte aos pais e tutores ao falar sobre valores morais, sobre a importância da educação, do respeito, do amor e da amizade.
Qual é o maior desafio de trabalhar para um público infantojuvenil? É um público muito exigente?
O maior desafio é levar um conteúdo que seja atrativo para eles, mas de uma maneira responsável. Por isso, conto com o apoio de uma equipa de profissionais que avaliam e aprovam tudo o que é produzido pela Luccas Toon. As crianças de hoje em dia são mais exigentes sim no que consomem, então é preciso estar sempre atualizado em tendências, nas novidades e no que as tem atraído e, com base nisso, formular algo que una tudo isso ao meu conteúdo.
A fama tem certamente um lado bom e outro mau. Qual é a parte mais difícil de gerir?
Eu gosto de focar no lado bom! A fama abre-me portas incríveis e dá-me o poder de produzir conteúdos e desenvolver projetos que vão totalmente ao encontro da minha missão, que é entreter e ajudar na educação das crianças.
De que forma é que a pandemia afetou o seu trabalho? Sentiu-se mais inspirado ou, por outro lado, sem motivação?
Tivemos que parar com as produções por um período, pois tivemos lockdown no Brasil também. Então, houve um processo de adaptação do trabalho que desenvolvemos aqui. Quando começámos a ter uma flexibilização, adaptamo-nos às novas medidas e a ter uma parte da equipa em home office. O meu processo criativo em si, cresceu! Consegui ter novas ideias, trazer outros projetos que estavam estacionados à tona novamente. Então, avalio como um período produtivo.
É dono de um canal Youtube – o Luccas Toon – com mais de 35 milhões de subscritores, produz filmes, atua neles, faz espetáculos, inclusive no estrangeiro, e ainda tem a sua marca espalhada por merchandising, como livros, jogos, bonecos, roupa… O que ainda lhe falta fazer?
Ainda tenho alguns sonhos! Um deles é levar meus filmes para os cinemas. A minha equipa e eu já estamos a trabalhar nisso e em breve levaremos a história de Os Aventureiros para os grandes ecrãs no Brasil. Também quero expandir o meu trabalho internacionalmente.
Em novembro, atua pela primeira vez em Portugal e traz consigo os seus companheiros, Os Aventureiros. O que é que as crianças portuguesas podem esperar deste espetáculo?
A minha família é de Portugal e tenho um carinho especial por esse país. As crianças portuguesas podem esperar um espetáculo mágico, com música, diversão, risadas e boas lições que elas levarão para a vida!
Num futuro próximo, para além dos vídeos para o Youtube, que outros projetos tem agendados?
Acabo de lançar mais um filme para as lojas on demand. Este é o décimo segundo da minha carreira. Também vem o filme do cinema e estou a trabalhar em mais alguns projetos. Vem bastante coisa legal por aí!
Ao longo dos últimos anos, Tiago Cadete tem desenvolvido, normalmente a solo, um conjunto de criações que procuram refletir sobre aquilo que é ser migrante, sobretudo atendendo à sua própria situação de viver entre o país de origem, Portugal, e o Brasil. Mas o olhar do autor e intérprete não se resume à experiência quotidiana daquele que deixa o seu país natal e procura “fazer vida” num outro. As peças de Cadete, como por exemplo Entrevistas (2018) ou Atlântico (2020), cruzam o tema da migração com a identidade, a relação histórica entre Portugal e o Brasil ou os mitos e memórias guardadas nesse imenso mar que é o oceano Atlântico.
Em Brasa, palavra da qual deriva Brasil (nome este associado às árvores de pau-brasil e à sua seiva de cor avermelhada e incandescente, parecendo, precisamente, a madeira em brasa), Cadete abandona o formato do solo, atendendo “à falta que sentia de os corpos que soavam no [seu] em anteriores trabalhos, tivessem agora presença”. E fá-lo com um grupo de artistas, uns brasileiros residentes em Portugal e outros portugueses que viveram no Brasil, os quais, em cena ou através do som e do vídeo, são convidados a “olhar como é que cada um escolhe o país do outro para migrar ou como é que estabelecem relações enquanto pessoas na condição de migrantes.”
Paralelamente à autoficção, Cadete constrói uma fantasmagoria, sublinhada num palco dividido em duas partes onde o público, sentado de um lado, não vê o outro, embora escute o que se passa para lá dos seus olhos. Para além deste dispositivo cénico pretender dar ao espectador “a experiência de abandonar a sua zona de conforto”, como se se tornasse, durante uma hora e meia, também ele um migrante, o autor procura estabelecer “uma ligação entre a condição do migrante e o desaparecimento da sua própria imagem”.
Cadete explicita essa “ligação” no espetáculo, como se a partida para um lugar distante encontrasse paralelismo na morte. “Quando fui para o Brasil, os meus pais sabiam que eu estava vivo, claro, mas a minha presença aqui, a minha imagem neste local, tinha morrido, tinha deixado de existir”, exemplifica. E a morte, mesmo que não entendida no sentido mais estrito e definitivo, parece estar presente no processo migratório, independentemente de ser desenvolvido numa condição mais ou menos precária. Afinal, a migração, pela sua complexidade ou pelos seus traumas, “é sempre um processo profundo de transformação” para alguém que o vive.
Para além do próprio Tiago Cadete, Brasa conta com as participações, em cena ou em vídeo, de Gaya de Medeiros, Julia Salem, Keli Freitas, Magnum Alexandre Soares, Ana Lobato, Dori Nigro, Gustavo Ciríaco, Isabél Zuaa e Raquel André. O espetáculo pode ser visto em Lisboa, até 17 de outubro, nas Carpintarias de São Lázaro.
Na abertura do evento é possível assistir a Eiffel (7 outubro, às 21h), filme biográfico de Martin Bourboulon, sobre o engenheiro Gustave Eiffel, protagonizado por Romain Duris que contracena com Emma Mackey (mais conhecida pelo seu papel na série da Netflix, Sex Education). A história segue Eiffel no auge da sua carreira, quando o governo Francês lhe pede que conceba para a Exposição Universal de Paris, de 1889, uma obra espetacular. Na mesma altura Eiffel reencontra o amor da sua juventude. Uma relação proibida que o inspira a transformar para sempre o horizonte de Paris.
Segue-se A Illha de Bergman (8 outubro, às 21h40), que integra o programa dedicado à obra de Mia Hansen-Løve. O filme, que teve estreia mundial no Festival de Cannes, centra-se num casal de cineastas americanos que se instala, em Fårö, a ilha sueca onde viveu Bergman, para escreverem os argumentos dos próximos filmes. Com o passar do tempo a fronteira ente realidade e ficção vai-se esbatendo.
Laurent Cantet que venceu, em 2018, a Palma de Ouro em Cannes com A Turma, marca presença na Festa com a antestreia do seu mais recente trabalho Arthur Rambo (9 outubro, às 19h). O filme é inspirado na histórica verídica de um jornalista e escritor de renome que vê a sua carreira destruída quando são reveladas as mensagens de ódio que escrevia online, sob um pseudónimo, antes de ser conhecido.
Um Triunfo (9 outubro, às 21h30) de Emmanuel Courcol, também baseado numa história real é outra das antestreias exibidas. O filme centra-se em Etienne, um ator desempregado que aceita o convite para dirigir uma oficina de teatro numa prisão, aí encontra um grupo improvável de prisioneiros com quem vai encenar a famosa peça de Samuel Beckett, À Espera de Godot.
Charllote Gainsbourg protagoniza Suzanna Andler (11 outubro, às 19h), que tem realização do veterano Benoît Jacquot. O filme, baseado na peça de Marguerite Duras (1968) acompanha uma mulher de meia-idade, oprimida por um casamento com um empresário rico e infiel, e que a certa altura tem de escolher entre aceitar a vida de casada, ou viver na companhia do seu jovem amante.
As comédias Fantasias (8 outubro, às 19h), dos irmãos Stéphane e David Foenkinos e Adeus Idiotas (16 outubro, às 19h), de Albert Dupontel são duas propostas para sair do cinema com boa disposição. No primeiro seis casais tentam explorar o lado oculto da sua vida íntima. No segundo uma mulher que descobre estar gravemente doente envolve-se num insano labirinto burocrático, para encontrar o filho que teve de abandonar aos 15 anos.
As Coisas que Dizemos as Coisas que Fazemos (13 outubro, às 18h20), de Emmanuel Mouret e Uma Paixão Simples (15 outubro, às 21h30), de Danielle Arbid são outras duas propostas que têm em comum o tema da paixão, da infidelidade, dos desencontros e encontros amorosos.
Para os mais jovens também há filmes em antestreia: A Fantástica Viagem de Margot e Marguerite (10 outubro, às 16h), de Pierre Coré, que conta a história de duas amigas de 12 anos que vivem em séculos diferentes, mas que se encontram graças a uma arca mágica que as transporta entre as duas eras; e Gagarine (17 outubro, às 18h), de Fanny Liatard e Jérémy Trouilh, o filme segue Yuri, de 16 anos, que sempre viveu nas Torres Gagarine, um grande bairro social nos arredores de Paris e que sonha ser astronauta. Quando são divulgados planos para a demolição das torres, Yuri e os seus amigos embarcam numa missão para salvar a casa que se tornara na sua “nave espacial”.
No encerramento da Festa é exibido A Voz do Amor (17 outubro, às 21h), de Valérie Lemercier, livremente inspirado na vida de Celine Dion. A realizadora, que é também protagonista no filme, marca presença no dia da antestreia no Cinema São Jorge.
Mais antestreias:
Herói em 30 Dias, de Tarek Boudali (10 outubro, às 19h)
#Estouaqui, de Eric Lartigau (11 outubro, às 21h40)
Caixa Negra, de Yann Gozlan (12 outubro, às 18h30)
Irmãs de Armas, de Caroline Fourest (12 outubro, às 21h40)
Delicioso, de Eric Besnard (14 outubro, às 21h20)
Sob as Estrelas de Paris, de Claus Drexel (15 outubro, às 19h)
Ilusões Perdidas, de Xavier Giannoli (16 outubro, às 21h30)
Programação integral aqui
Sandro William Junqueira
A Sangrada Família
Algures entre as páginas deste livro se diz que ele é um “Romeu e Julieta pós-moderno”. Na realidade, trata-se de um romance polifónico sobre um triângulo amoroso autofágico situado no interior da serra e no coração de uma adega. Dois irmãos, Teodoro e Ezequiel, amam a mesma rapariga, Filomena. Pertencem a famílias rivais produtoras de medronho: os Capotes (Capuletos) e os Monteiros (Montéquios). A aguardente de uns é famosa pelas “ascendência espiritual” e a dos outros pela “inclinação medicinal”. A Sangrada Família é uma obra visceral sobre a natureza bruta que contrapõe amor e ódio, forte e fraco, natureza e intelecto, cidade e campo, realidade e ficção. Um olhar impiedoso sobre a instituição familiar. Escreve Sandro William Junqueira: “A família é um lugar perigoso. Uma ode à carnificina. Uma matilha que se come a si mesma”. Um local onde não se distinguem os bons dos maus, porque “a mesma mão que escreve o Mein Kampf pode escrever A Casinha do Ursinho Pooh”. Uma obra intensa que lança uma interrogação provocadora: “Será que não podemos simplesmente ser pessoas sem laços familiares?” Caminho
Margaret Atwood
Afectuosamente
As questões de género são cruciais na obra de Margaret Atwood que explora os ideais culturais da feminilidade, a representação do corpo da mulher na arte, o relacionamento entre os sexos e os “comportamentos transgressores” da mulher. A poesia representa o cerne da sua relação com a linguagem, enquanto a prosa reproduz a sua visão moral do mundo. Sobre Afectuosamente, a sua primeira colectânea de poesia em mais de uma década, escreve a autora: “A poesia lida com o âmago da existência humana: a vida, a morte, a renovação, a mudança; tal como a imparcialidade e a parcialidade, a injustiça e por vezes a justiça. O mundo em toda a usa variedade. O clima. O tempo, A tristeza. A alegria.” E, sobre estes poemas escritos no período entre 2008 e 2019, acrescenta: ”Durante esses onze anos as coisas foram ficando mais sombrias no mundo. Além disso, envelheci. Pessoas muito próximas de mim morreram.” Foi o caso de Graeme Gibson, seu parceiro de vida, que morreu em 2019, após uma luta contra a demência, a quem o livro é dedicado, e que evoca no poema Homem Invisível: “ (…) Estarás aqui, mas não aqui, / uma memória muscular como dependurar um chapéu / num gancho que já lá não está.” Bertrand Editora
Ahmed Saadawi
Frankenstein em Bagdade
A explosão de um carro armadilhado no centro de Bagdade afecta um vasto conjunto de personagens cujas vidas representam o destino colectivo da cidade: um cenário em ruínas assombrado por um fantasma formado por partes dos corpos de vítimas de guerra que querem vingar as suas mortes para poderem descansar em paz. Numa Bagdade destruída pelos combates, este ser compósito, alimentado pelo medo e pelo desespero dos seus habitantes, acusado de cometer crimes, é afinal a única justiça que resta. De autoria do romancista, poeta e argumentista iraquiano Ahmed Saadawi, Frankenstein em Bagdade recebeu o Prémio Internacional de Ficção Árabe 2014 e o Grand Prix de L’Imaginaire 2017. Recorrendo ao imaginário de Frankenstein, figura de referência do universo de terror ocidental criada pela escritora Mary Shelley em 1818, popularizada pelas adaptações ao cinema de James Whale e pela recente versão de Kenneth Branagh com Robert de Niro, o autor constrói uma impressiva metáfora de uma realidade que muitos ocidentais evitam conhecer: a de uma cidade e de um país devastados “pela cobiça, pela ambição, pela megalomania e por uma sede de sangue insaciável” Gradiva
Isabel Nogueira
História da Arte em Portugal – Do Marcelismo ao Final do Século XX
As artes plásticas e o pensamento crítico em Portugal, entre o início do Marcelismo (1968) e o final do século XX, constituem o objeto de estudo deste livro assente na análise de um conjunto de acontecimentos: exposições colectivas, artistas, obras, políticas culturais de fundo, instituições, ensino artístico, publicações periódicas da especialidade, problematização teórica e crítica, bem como uma ligação ao pano de fundo internacional. Com um certo distanciamento, possibilitado pela passagem do tempo, a autora crê ser possível “concretizar uma proposta de compreensão deste panorama, por vezes complexo e até contraditório, inclusivamente pelas mutações políticas, sociais e culturais que nesta época se operaram na vida portuguesa, nomeadamente com a Revolução de Abril de 1974 e a consequente queda do regime ditatorial, com todas as suas implicações e desenvolvimentos”. Não obstante os tempos e a intensidade da arte portuguesa não terem sido, muitas vezes, os mesmos da arte ocidental, as exposições em causa e certos percursos individuais justificam a hipótese da necessária reavaliação da história da arte em Portugal do período em análise, tornando-a parte constitutiva do movimento mais vasto da história da arte ocidental. Bookbuilders
“Diz-lhe que Estás Ocupado”
Conversas com Alexandre O’Neill
2021 É um ano em que continuaremos a ouvir falar de Alexandre O’Neill (1924-1986). O realizador João Botelho dá os retoques finais a Um Filme em Forma de Assim; e acessível à consulta por todos existe já o site dedicado àquele que é um dos poetas maiores da língua portuguesa, e que conta com a coordenação de Joana Meirim, que exerceu idênticas funções no livro de conversas agora editado pela Tinta-da-china. O verso “diz-lhe que estás ocupado” é parte do poema Entrevista, e pôs a circular a ideia de que o escritor era avesso a este compromisso, algo que o próprio foi desmentindo nas conversas que teve com jornalistas. As mais confessionais encontram-se na última década de vida de O’Neill, e tiveram por interlocutores Baptista-Bastos (1982), Fernando Assis Pacheco (82), e Clara Ferreira Alves (85). Estas conversas e as outras comprovam que o virtuosismo de Alexandre O’Neill não se manifestava somente quando escrevia, mas que era notório no seu discurso (de poucas palavras, mas certeiras). Tinta-da-china
Stravos Stravides
Espaço Comum – A Cidade como Obra Colectiva
Espaço Comum – A Cidade como Obra Colectiva estuda o significado e a produção de espaços de comunalização no contexto do mundo urbanizado de hoje. Entendidos como distintos dos espaços públicos bem como dos espaços privados, os espaços comuns emergem nas metrópoles contemporâneas como locais abertos à utilização publica , com regras e formas de utilização que não dependem de uma autoridade vigente nem são controladas por ela, mas de praticas de comunalização que definem bens e produtos a partilhar. Escreve Joana Braga no prefácio à presente obra: “As cidades, mostra-nos Stravides, são sistemas de relações espaciais em mutação continuada, investidas e mobilizadas também pelas práticas quotidianas dos seus habitantes, As dinâmicas urbanas podem exceder as formas de regulação e controlo que as procuram sujeitar, levando à emergência de práticas espaciais de liberdade”. Seguindo o princípio de Lefebvre do direito à cidade, Stavros Stavrides aproxima-se do pensamento social e político de Foucault, Rancière, Hardt e Negri para desafiar a nossa percepção quotidiana do lugar que habitamos.
Orfeu Negro
Jorge Amado
Navegação de Cabotagem
“Não quero erguer um monumento nem posar para a História cavalgando a glória. Que glória? Puf! Quero apenas contar algumas coisas, umas divertidas, outras melancólicas, iguais à vida. A vida, ai, quão breve navegação de cabotagem!” O livro de memórias de Jorge Amado Navegação de Cabotagem – Apontamentos para um Livro de Memórias que Jamais Escreverei, escrito num estilo despretensioso, passa em revista a sua extensa e rica vida, em episódios vibrantes e impressivos que lembram a sua ficção: uma bebedeira com Pablo Neruda, uma reunião política com Picasso, uma visita ao bordel ou ao terreiro de candomblé com Carybé ou Dorival Caymmi, os últimos dias de Glauber Rocha. Recordando com franqueza e autoironia a sua trajetória de êxitos e obstáculos, de encontros e equívocos, evoca as paixões de juventude, a glória literária, os escritores e artistas com quem conviveu (Carlos Scliar, Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez ou Jean-Paul Sartre), a militância política, o exílio, as amizades e os amores. Com Navegação de Cabotagem, Jorge Amado insere-se, por fim, na prodigiosa galeria de personagens que criou. Dom Quixote
Lúcia Vicente
Raízes Negras
Aos 12 anos, Lúcia Vicente leu O Diário de Anne Frank e a sua vida nunca mais foi a mesma. Ou melhor, a forma como passou a ver a vida nunca mais foi a mesma. Desenvolveu pensamento político, instruiu-se, e passou a estar mais atenta a determinadas questões. Dedicou-se ao ativismo feminista desde a adolescência e as injustiças sempre a incomodaram. Em Raízes Negras, livro com o qual “pretende contribuir para a desconstrução do racismo cultural que está enraizado na sociedade”, a autora traça o perfil de mais de 50 pessoas negras visionárias, que tiveram a coragem de sonhar e mudar a sua vida e a dos outros. Gilda Barros, uma jovem e premiada ilustradora natural do Mindelo, dá imagem às 53 histórias biográficas, de Nelson Mandela a Nina Simone ou Jean-Michel Basquiat. O resultado deste trabalho está à vista: um álbum que é uma prova de como os muros do preconceito podem ser derrubados e uma inspiração na luta por um mundo melhor e mais livre. (por Ana Rita Vaz) Nuvem de Tinta
Partiu do universo pessoal para contar esta história. O que a levou a fazê-lo?
O filme começou a ser pensado em 2014. Numa conversa com o meu pai e, no meio de assuntos completamente triviais, ele diz-me: “Catarina quero que saibas que o teu avô me pediu para queimarmos a correspondência trocada entre ele e a tua avó, Beatriz.” Achei interessante o meu pai estar a comunicar-me aquilo, como se adivinhasse que aquela ideia me ia cair mal. Lutei contra aquilo, porque não conhecia a minha avó Beatriz e pensava que através da correspondência, a poderia vir a conhecer de alguma forma. Mas o meu pai argumentou que apesar de ser a correspondência dos meus avós, era também a intimidade de duas pessoas. Essa conversa acabou por ser a semente para o filme. Achei que era profundamente injusto uma pessoa morrer duas vezes. Havia a morte física de Beatriz e agora esta morte literária, das palavras que lhe tinham saído das mãos. Comecei a pensar em fazer alguma coisa sobre Beatriz, sobre quem tinha sido esta mulher. Depois o meu pai falou-me de um disco vinil que a minha avó tinha gravado, em 1957, para enviar ao meu avô, que na altura estava no mar: de um lado havia uma espécie de carta de amor e do outro, as vozes dos filhos a saudarem o pai. Esta descoberta comoveu-me profundamente e achei que tinha de fazer o filme.
O filme retrata a sua família, mas, ao mesmo tempo espelha também a história de tantas outras famílias e de uma época. Concorda?
Este filme é sobre uma história completamente banal. Infelizmente muitos já passaram pela morte de uma mãe. O tempo que retrata reflete também aquilo que muitas famílias viveram na época: o ter a figura paterna fora, enquanto a mulher ficava a gerir a casa e os filhos. Foi o que a minha avó fez e tantas outras mulheres. Nos anos 50, 60 e 70, em Portugal, o papel da mulher estava muito relacionado com a ideia de cuidar e não com a de uma carreira, ao contrário dos homens, que no caso do meu avô fez a carreira de almirante na marinha. A História que tem vindo a ser contada é sempre a dos homens que vão para o mar, que vão à descoberta. É um mito que existe na nossa História. A história daqueles que ficam não é contada ou fica em segundo plano.
Como se consegue manter o distanciamento necessário para contar uma história tão pessoal?
Antes de fazer o filme tive uma conversa com a minha família, com o meu pai e com os meus tios, comuniquei-lhes as minhas intenções. Inicialmente acharam fantástico, algum tempo depois questionaram o meu interesse em fazer um filme sobre uma pessoa que eu não conhecia e por fim disseram-me que era uma péssima ideia fazer um filme sobre a mãe deles. (risos) Hoje já me consigo rir, mas na altura fiquei em pânico, porque tinha feito entrevistas extraordinárias com os meus tios, com o meu pai e com outros membros que tinham conhecido a minha avó. Foram entrevistas de uma enorme generosidade, que me deram muito e senti que tinha de partilhar isso de alguma forma. Há claramente uma proximidade, porque é a minha família. Mas este foi um longo processo que durou seis anos até o filme estar pronto. Durante esse período aconteceram muitas coisas. Às tantas o filme foi um bocadinho esquecido por parte da minha família, o que me deu a possibilidade de me afastar e trabalhar sobre estas pessoas próximas. Ao mesmo tempo esse distanciamento permitiu-me também ficcionar. Durante as entrevistas senti que havia coisas que não me contavam. A certa altura achei que havia um enorme segredo que me queriam ocultar. Mais tarde percebi que é assim que as famílias são, uma coleção de segredos. Há coisas que nunca são ditas. Isso também ajudou a distanciar-me e deu-me “carta-branca” para inventar os espaços que estavam por preencher. A informação que me davam e a que não me davam, o conhecer e o não conhecer a minha avó Beatriz, fez com que pudesse criar uma avó Beatriz.
A sua avó era uma mulher extraordinária e a principal força desta narrativa familiar. À medida que trabalhava no filme foi surpreendida por alguma das facetas que a caracterizavam?
Sempre senti que a minha avó era uma espécie de ausência presente. Não se estava sempre a falar dela, mas havia frequentemente referências, uma espécie de campainhas que me chamavam a atenção. Era uma mulher perseverante, de uma grande força. Surpreendeu-me a sua enorme fé em Deus, algo que eu não tenho. Essa fé possibilitava que ela enfrentasse a sua condição de mulher sozinha que cuidava de seis filhos e que tinha o marido em alto mar. Acreditava em Deus, acreditava no amor… Era uma mulher de múltiplas fés. Isso foi surpreendente.
Esta é ao mesmo tempo uma história sobre a perda da sua avó, mas também da sua mãe. Ao contá-la está de certo modo a exorcizar essa perda?
Há um processo de catarse, mas só me foi possível fazer o filme porque a minha mãe morreu há 18 anos, o que é mais de metade da minha vida. Durante um dos momentos mais difíceis na realização do filme a minha terapeuta questionou-me se este filme não seria também uma forma de estar mais tempo com a minha mãe. Isso fez-me pensar que se calhar fazer este filme é uma maneira de estar de facto mais tempo e mais próximo dos meus mortos.
A certa altura no filme revela-nos que depois de ler o guião o seu pai lhe disse que algumas coisas na história não refletiam bem a realidade. Aproveitando esse reparo pode dizer-se que o filme é um documentário ficcionado?
O filme começou por ser sobre a morte de uma mulher, mas para falar disso senti que era preciso explicar a importância que ela tinha. Era necessário falar primeiro sobre a família. Tornou-se visível que iria fazer o filme com os meus primos mais novos, que iriam interpretar os seus avós, que são os meus tios. A partir daí este filme, que ia ser uma coisa documental, passou a ter um lado muito mais ensaístico, muito mais ficcional verdadeiramente.
A natureza é fulcral em toda a história: o mar, as flores, as árvores, os pássaros. É o elemento que caracteriza o meio em que as personagens se movem, mas também as suas emoções, épocas e fases da vida. Porquê esta utilização tão acentuada da natureza?
Numa das conversas com a minha família descobri que a minha avó Beatriz chamava a um dos seus filhos “periquito”, achei delicioso. Ao mesmo tempo há um terreno no Alentejo que a minha família adquiriu e que a minha avó fez um grande esforço para plantar com os filhos. Ainda hoje me comove comer laranjas que foram plantadas pela minha avó, é como se as mãos dela nos continuassem a alimentar. A relação com as árvores, com a natureza, era uma coisa que a minha avó tinha e a minha mãe também. Embora fossem sogra e nora partilhavam isso e era algo que as unia. Não creio em Deus, não tenho essa fé, mas sinto que a natureza nos dá um imenso consolo face à perda, porque há este lado extraordinário: depois do inverno vem a primavera. As coisas morrem, mas depois continuam de uma outra forma. Nesse sentido a natureza acabou por ser uma metáfora para coisas que não fazem muito sentido, como a morte. Mesmo sendo a coisa mais natural da vida, temos uma relação incómoda com a morte.
O texto narrado é de uma enorme beleza poética e há uma simbiose perfeita com a imagem que surge no ecrã. Qual o processo que utiliza para ligar tão bem estes dois elementos?
Escrevi um guião cena a cena onde explicava sobretudo como seria o filme a nível de imagens e tinha uma nota sobre o que seria a voz-off. Filmámos tudo ao longo de três anos, porque queria apanhar as estações do ano. Depois disso fiz um primeiro corte. Quando a montagem estava terminada estive cerca de cinco meses sozinha a escrever. Imprimi todos os stills do filme onde escrevi várias notas e a partir disso nasceu o texto.
A Metamorfose dos Pássaros foi o filme português mais premiado em 2020. O que representam para si estes prémios?
Fico muito grata e comovida com a reação ao filme. Não estava à espera e fiquei muito contente. Percebi que não há língua para a morte, para o sentimento de perda, é uma coisa universal. Continuamos a fazer cinema em Portugal com muito pouco, é um milagre haver cinema em português. O que gostávamos mais era que houvesse um reconhecimento cá dentro, sem menosprezar obviamente os prémios internacionais. Um reconhecimento pelas políticas culturais que não existem, pela defesa do cinema português, do cinema de autor.
Juntos publicaram um livro de fotografias que retrata o bairro de Campolide. Em vossa opinião quais as características essenciais do bairro que o distinguem dos demais da capital?
José Vieira Mendes (JVM): A malha urbana, o facto de estar num dos pontos, ou melhor, numa das colinas mais altas (senão a mais alta colina da cidade, o Alto de Campolide), o facto de ser uma zona de transição e passagem (fica ali à saída da autoestrada para Cascais, fica relativamente perto do centro da cidade), estação dos comboios da Linha de Sintra e onde começa o túnel do Rossio. Poucos lisboetas sabem que existe este túnel. E o facto ainda de se misturarem edifícios e vestígios pombalinos (Alto do Carvalhão, Rua do Arco do Carvalhão), com a modernidade das Torres das Amoreiras, que são vistas quase como nave espacial no centro da malha urbana. Onde está uma grande ícone e monumento da cidade: o Aqueduto das Águas Livres, que sobreviveu ao terramoto de 1755.
Sociologicamente é também um bairro muito interessante, onde persiste ainda um certo status ou estratificação social bem diferenciada: os mais pobres vivem nas habitações sociais do vale (Quinta da Bela Flor, por exemplo), os mais abonados no Alto de Campolide (na Av. Conselheiro Fernando de Sousa e, recentemente, na Nova Campolide). Eu, que pertencia à classe media, vivi e cresci ao meio, no bloco de prédios da Calçada dos Mestres. Apesar da evolução, Campolide permanece um bairro um pouco esquecido, sem grande status (comparado, por exemplo, com Campo de Ourique), envelhecido, sem uma livraria, sem atividades culturais (recordo que foi lá que nasceu o Grupo de Campolide do Joaquim Benite, que deu origem à Companhia de Teatro de Almada), sem uma biblioteca, e também com as velhas coletividades de recreio a definharem, aliás, como o comercial tradicional.
Costumo dizer, meio na brincadeira, que Campolide parece dominada e conhecida por ter um Centro Cultural do Frango Assado, (a Valenciana, que já ocupou um quarteirão e aquele prédio lindíssimo do Alto de Campolide, a velha Pastorinha e, diga-se com mérito, porque tem o melhor ‘frango assado do mundo’!). Nada contra, mas parece que falta, apesar das mudanças, qualquer coisa para ganhar status e cultura de bairro, que creio se foi perdendo. E não é preciso ser popular ou popularucho: simplesmente cultura de proximidade e bairro! Mas creio que há esperança, pois começaram a chegar jovens residentes e franceses, atraídos por preços de habitação e consumo mais baixos (do que Campo de Ourique, que está um bairro completamente afrancesado) e, claro, pelo Liceu Francês, que já existia quando eu era criança e que é uma escola muito boa.
Jorge Lima Alves (JLA): Na minha opinião, Campolide é um bairro desvalorizado, mal conhecido, um pouco à margem da pulsação da cidade. Todos os dias, muitos milhares de pessoas passam por aqui, de carro ou no autocarro, a caminho do centro ou de outros bairros com mais escritórios, mais oficinas e lojas mais modernas. Muitos procuram as Amoreiras ou Campo de Ourique, por exemplo, onde a oferta de bens e serviços é ampla e concentrada. A verdade é que Campolide tem pouco para oferecer ao forasteiro, tirando a sua vida pacata e a sua arquitetura muito particular. Se não há uma livraria ou uma biblioteca, também não há uma piscina, e os parques infantis que existem são inóspitos, pouco adaptados às necessidades lúdicas das crianças, muito expostos ao sol e à poluição causada pelo trânsito. Por isso, aos meus olhos, as vantagens de Campolide são essencialmente a sua centralidade e a paz de que gozam os locais pouco procurados.
Como surgiu a ideia de publicar este livro?
JVM: Foi durante a quarentena, ou melhor, durante os confinamentos. Vivo na fronteira entre Campolide e Campo de Ourique e decidi fazer os meus passeios pelas seis e meia, sete da manhã, já que sempre tive o hábito de acordar cedo. Fascinou-me (cumprindo as regras de não sair muito da minha área de residência) ver as ruas vazias e, por outro lado, reviver as memórias, os locais da minha infância, da Campolide onde vivi até aos 25 anos e onde a minha família chegou há cem e viveu até há pouco mais de três, quando faleceu o meu pai. Não vivendo lá, fui muitas vezes ao bairro para visitar e proporcionar o melhor aos meus pais. Fotografo obsessivamente e tenho mais de mil fotos de Campolide e muitas, mesmo muitas de Lisboa, que faço durante as minhas caminhadas, por uma questão de bem-estar e saúde. Reparei nas redes sociais que o meu amigo Jorge Lima Alves, que vive em Campolide há uns 15 anos, estava a fazer o mesmo: a fotografar o bairro. Quando isto aliviou das limitações sanitárias, desafiei o Jorge (ele já tem uns livros de fotografia publicados, em edições de autor) a fazermos um livro um bocadinho mais ambicioso, onde as nossas perspetivas e fotografias de autor se pudessem destacar. As fotografias acabam por dialogar e complementam-se, com visões e uma vivência diferente do bairro. É bastante divertido e interessante verificar isso, já que as fotografias de um e outro, no livro, só estão identificadas num índice final.
JLA: De facto, foi o José Viera Mendes quem teve a brilhante ideia de me desafiar para este projeto, que abracei imediatamente por várias razões, como explico no texto de introdução que incluí no livro. Para mim, este projeto é um tributo à nossa amizade e uma forma de eu agradecer ao bairro que me acolheu com simpatia há 15 anos. Algo que não disse nesse prefácio, mas que tenho de dizer agora, alto e bom som: é precisamente o facto de Campolide ser um bairro tão desconhecido dos outros lisboetas que torna esta nossa iniciativa tão importante.
O José Vieira Mendes nasceu em Campolide. De que forma a vivência no bairro moldou o seu crescimento e influenciou o ser humano que é?
JVM: Viver num bairro onde vivem pessoas de estratos sociais e níveis de formação e cultura muito diferenciados, moldou muito a minha maneira de ser. Como estava no meio sempre soube olhar para os que estavam abaixo e para os que estavam acima e aprendi a respeitar todos de igual maneira. Os meus amigos eram de todos os estratos e é curioso que, indiferentemente do seu status, houve vários que ficaram pelo caminho e outros, como eu e o meu irmão (infelizmente já falecido), seguimos as nossas vidas de uma forma estável e, posso dizer, até bem-sucedida.
Há 50 anos, Campolide ficava um pouco afastado do roteiro dos principais cinemas da capital. Como surgiu a paixão de José Vieira Mendes pela sétima arte, e que salas frequentava na infância e adolescência?
JVM: O que está a dizer não é exatamente verdade! O bairro tinha o maravilhoso Campolide Cinema, na Rua Leandro Braga. Aos fins-de-semana realizavam-se matinés duplas a dois escudos e cinquenta centavos. Foi a minha cinemateca de bairro, onde vi grandes clássicos do cinema, de todos os géneros. Era um cinema muito elegante quando foi inaugurado na década de 20, já estava um bocadinho degradado quando eu era miúdo, mas funcionava e estava sempre cheio de miúdos, sobretudo nas matinés. Não havia muito aquela questão das classificações: o irmão mais velho levava o mais novo, mesmo que não fosse irmão de verdade. Encerrou em 1977 (eu tinha 17 anos), o edifício original creio que foi demolido e substituído por uma barracão ocupado por uma tipografia. Tenho fotografias do edifício agora, mas é tão feio, e nada tem nada a ver com o edifício original, que não merece sequer figurar no nosso livro. De qualquer modo, também vivia a 15 minutos a pé (menos de bicicleta ou de motorizada) da Avenida da Liberdade, onde estavam o São Jorge, o Tivoli, o Condes, o Odéon, entre outros (e, mais tarde, a Cinemateca Portuguesa); e também muito perto do Europa e do Paris em Campo de Ourique. Mais uma razão para dizer que Campolide fica perto de tudo, e por isso não se compreende porque sempre foi apenas um bairro popular sem o status de outros bairros de Lisboa. Um bairro um pouco esquecido, lembro-me que quando dizia que morava em Campolide, era quase como viver num ‘bairro de índios’.
O Jorge Lima Alves nasceu no ex-Congo Belga e viveu em França. Reside em Campolide desde 2005. Que vivências lhe proporciona o bairro que não tenha experienciado nos outros locais onde viveu?
JLA: Tive várias casas em Portugal, nomeadamente em Algés e em Benfica, mas tanto num local como no outro não podia verdadeiramente andar a pé, uma das minhas atividades preferidas. Estava sempre muito dependente dos transportes públicos, pois quase tudo o que me interessava ficava longe da minha residência. Em Campolide posso ir a pé à Gulbenkian, ao Corte Inglês, ao Parque Eduardo VII, às Amoreiras ou a Campo de Ourique, tudo locais onde não me canso de ir. Quase nem sinto a falta do Metro, que é uma das lacunas mais graves desta zona da cidade.
O Jorge é autor, entre outros, de livros de viagens. Em seu entender o que tem Campolide para oferecer ao visitante (nacional ou estrangeiro) que não viva no bairro?
JLA: Uma das razões que nos leva a viajar é a curiosidade, a necessidade de conhecer outras realidades. O que eu sugiro a quem queira conhecer Campolide é que deambule pelo bairro como se estivesse numa cidade estrangeira. Todas as coisas ganham interesse quando nos interessamos por elas. Quem por aqui passeie com os olhos bem abertos, encontrará muito mais do que imagina: as surpresas são constantes e as recompensas mais que muitas.
Como surgiu a vossa paixão comum pela fotografia?
JVM: Falo por mim: sou neto de um dos primeiros ardinas de Campolide e daí nasceu a minha paixão pela leitura e pelas imagens e pelo jornalismo. Trabalhei com o Jorge Lima Alves no Expresso, com quem aprendi muito sobre jornalismo e imagens. Ou seja, como trabalhar com as imagens no contexto de um jornal ou revista, como destacar um artigo ou fazer uma boa capa, por exemplo! Quando tinha 23 anos fiz o Curso de Fotografia do IPF e o resultado é um conjunto de fotografias que só agora vou ter oportunidade de mostrar na exposição Aqui Lisboa: Anos 80, que inaugura no dia 30, no Arquivo Municipal de Lisboa – Fotográfico. Ao longo da minha vida profissional, sobretudo de crítico e jornalista de cinema, tenho uma quantidade enorme de fotografias e reportagens de viagens, espetáculos, festivais de cinema, rodagens de filmes, atores, fotografias de rua que parecem cinema, enfim, um gigantesco portfólio que estou aos poucos a tentar organizar em paralelo com a minha atividade profissional. Digamos que, além das câmaras fotográficas, analógicas e digitais, de que sou colecionador, a câmara de um bom smartphone veio facilitar-me também essa obsessiva relação como o olhar, a fotografia e o cinema.
JLA: Comecei a tirar fotos quando me ofereceram uma máquina fotográfica. Depois, pouco a pouco, comecei a perceber que olhar para o mundo através de uma lente me permitia vê-lo melhor. Para se ser bom fotógrafo é prestar ao mundo a atenção que ele merece. Por exemplo: todas as casas de Campolide têm uma história que aflora na sua fachada. Uma casa é como um rosto, cada uma tem a sua personalidade. Todas, sem exceção, têm pormenores únicos. E depois há as pessoas que, em Campolide, como em qualquer outro lado são fascinantes se repararmos verdadeiramente nelas. No modo como se vestem, como falam, como se deslocam, como comunicam.
Porque consideram Campolide um “bairro fotogénico”?
JVM: Em parte isso está explicado numa destas respostas acima, mas, em síntese, Campolide é um bairro de contrastes a todos os níveis, entre o baixo, o alto, o antigo e o moderno, entre o velho e o novo. São estes contrastes que são revelados nas nossas fotografias, curiosamente num formato quadrado que bem poderia ser o velho 6X6.
Campolide mudou muito nos últimos anos. Houve algo que se tenha perdido e de que sintam saudades? O que falta ainda mudar?
JVM: Mudou muito, sim, e para melhor também, em certos aspetos! Obviamente o que vou dizer não está nas fotografias, porque foram tiradas numa altura muito excecional. Mas uma das coisas que noto é uma população envelhecida e, sobretudo, que faltam crianças no bairro, falta um bom jardim arborizado. Lembro-me que no passeio largo em frente à casa dos meus pais, na Calçada dos Mestres, e nas ruas do Bairro da Calçada dos Mestres, havia sempre muitos miúdos a brincar, a jogarem à bola ou a andarem de bicicleta, com eu e o meu irmão. Agora não se vê ninguém! A Calçada dos Mestres, por exemplo, era uma rua muito movimentada e com muito comércio tradicional, como o Vieira Mendes Alfaiate, o meu pai, as mercearias, os cafés, as drogarias, as lavandaria. Agora, a rua está deserta e a maioria das lojas fecharam. Enfim, acho que se perdeu um bocadinho essa cultura de bairro, o bairro envelheceu. Mas está mais bonito, principalmente o Alto de Campolide, com o quiosque e o regresso dos elétricos 24. Confesso que não sei exatamente o que é preciso mudar para melhorar! Pode ser, pelo menos, que o livro e as fotografias deem notoriedade a Campolide e isso atraia pessoas. Aliás, parece-me que estão a fazer-se novos e modernos empreendimentos imobiliários, e que isso arraste também a cultura e a peculiaridade e a sensação de proximidade e vizinhança que traz o comércio de bairro. Sei que é injusto, mas tenho sempre a forte tentação de comparar com Campo de Ourique, onde vivo desde que sai de Campolide.
JLA: Nos 15 anos em que aqui vivo, não se perdeu nada de essencial, a não ser talvez as agências bancárias Por isso, como disse um famoso poeta, do que tenho mais saudades é do futuro. Campolide merecia mais do que tem tido até agora. É um bairro cheio de potencialidades, porque há ainda muita coisa a fazer aqui. Neste momento, estão a construir-se vários condomínios de luxo e sei que os novos habitantes do bairro vão mostrar-se mais exigentes dos que já cá estão. E isso enche-me de otimismo.
Se vos pedissem para recomendar, de forma sucinta, este livro a um potencial leitor, como o fariam?
JVM: Não se trata de um livro de leitura, portanto não tem potenciais leitores! Tem potenciais visualizadores ou observadores, que também são importantes e pontos de partida para outras viagens pelo bairro. I Love Campolide é um álbum de fotos artísticas, é um livro no qual a fotografia contribui significativamente para o objetivo geral, que é dar uma visão do bairro de Campolide para a memória futura. Um álbum de fotos obviamente está relacionado com as memórias, mas também pode ser usado como um livro de mesa ou objeto de estudo dessa malha urbana e populacional. Para mim, e creio que também para o Jorge, é uma declaração de amor a Campolide, a ‘minha terra’ e a ‘terra onde ele vive”.
JLA: Se gostam de Campolide, este livro é indispensável. Se querem ter uma boa ideia de como é o bairro, espreitem o livro, creio que ele apanha bem a sua “essência”. Ou a sua “alma”, se preferirem. Este livro destina-se ainda a todos os que gostam genuinamente de fotografia e de objetos bonitos.
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