O espetáculo que estreia a 5 de maio no Teatro Meridional é, assumidamente, uma criação decorrente da pandemia, embora não a aborde diretamente. Teoria da Relatividade nasceu e ganhou forma enquanto objeto artístico entre fevereiro e abril, ou seja, ao longo do período de “segundo” confinamento. E, como nota o encenador Miguel Seabra, “tudo aconteceu surpreendentemente rápido, com o texto escrito de chofre e com a equipa artística e técnica a construir o espetáculo num tão curto espaço de tempo.”

Começou num desafio proposto pelo Teatro Meridional ao dramaturgo Rui Xerez de Sousa, ao qual foram dadas apenas “algumas pistas”. “Queríamos ambiguidade, que não existisse propriamente um protagonista, e que se abordassem temas como o medo, a vulnerabilidade e a exposição a que estamos sujeitos por estes tempos em que parecemos viver cada vez mais no mundo digital”, lembra Seabra.

O autor eborense, participante numa edição do Laboratório de Dramaturgia do Teatro Meridional/Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, respondeu com uma peça metódica, cirúrgica e de uma notável economia narrativa, capaz de, em pouco mais de uma hora, desassossegar e inquietar o espectador, retirando-lhe, cena a cena, o chão de debaixo dos pés.

No cenário idealizado pelo cenógrafo Stéphan Alberto, que o próprio quis “intemporal e neutro, primando pela geometria, para corresponder a uma encenação também ela minimal”, encontramos um casal de meia-idade numa peculiar cena doméstica. Ela é uma escritora de livros infantis (Lígia Roque) e está entusiasmada por redescobrir a sua primeira máquina de escrever; ele, o marido (Alfredo Brito) desconfia da existência de um rato em casa e, perante a presumível presença do intruso invisível, debate-se com o medo de um recontro.

Esta cena, sublinhada pela cumplicidade entre os dois, é subitamente interrompida pela chegada de dois inspetores (Emanuel Arada e Miguel Nunes) mandatados por uma qualquer agência governamental. Em causa está a indignação do primeiro-ministro para com uma adaptação de Pinóquio feita pela escritora. Segundo os dois homens de fato escuro, a obra foi entendida pelas autoridades “da nova democracia” como uma sátira política encapotada e, por isso mesmo, a autora deve retratar-se publicamente.

Perante aquilo que considera uma acusação absurda e um inconcebível abuso de autoridade, a escritora recusa-se determinantemente a fazer qualquer declaração pública. Inicia-se assim um terrível jogo psicológico, com os dois inspetores a dar corpo a um poder omnisciente que tudo sabe, manipula e controla.

Acossado como o rato num labirinto, o casal vê posta em causa toda a sua capacidade de resistência. Ele, tolhido pelo medo e pela chantagem, e ela perante o dilema de abdicar da sua integridade intelectual e artística para salvar a própria vida.

Como refere Miguel Seabra, “esta peça é uma metáfora sobre a censura num tempo em que os limites entre a verdade e a mentira dependem cada vez menos dos factos, e mais de como estes são assimilados, caracterizados e difundidos”, sobretudo nas redes sociais, “onde a nossa exposição pública nos torna cada vez mais vulneráveis aos interesses ocultos do poder.”

Adriana Melo sempre se sentiu impelida a defender as meninas e os meninos que, na escola e fora dela, eram gozados por serem apenas diferentes, fosse por características físicas ou psicológicas.

“Sempre tive esta voz reativa e política de intervir e defender estas crianças que eram olhadas como ‘diferentes’, fosse pela cor da pele ou pela forma do corpo, e de lutar pelos seus direitos, que, afinal, são direitos humanos, por isso nem deveria ser necessário lutar por eles. Era suposto que o respeito pelo outro, a compreensão, o altruísmo e a empatia estivessem intrínsecos na sociedade, mas isso não acontece”, adianta.

Ao longo do seu percurso, Adriana tem vindo a trabalhar com crianças e jovens, e tem observado que ainda há muito a fazer no que respeita à diferença. “Foi assim que percebi que este espetáculo tinha de existir. Não há muitas peças de teatro para infância sobre a diferença que recorra à própria diferença, nomeadamente nos intérpretes”, acrescenta.

É por isso que, em Australopiteco, o elenco é constituído por atores considerados “diferentes” dentro do meio artístico e que, talvez por essa razão, tenham dificuldade em entrar no mercado de trabalho. “Há que contrariar esta forma de estar e de pensar. Nada disso é justo. Não se escolhe o corpo onde se nasce”, conclui a encenadora.

Australopiteco, uma produção da Universo Paralelo, conta com a interpretação de Beatriz Brito, Clara Franco, David Teixeira e Magnum Soares, e estreia dia 6, no Museu da Marioneta.

Como surge o Festival Lisboa 5L e quais os seus objetivos?

O Festival é uma iniciativa de Camara Municipal de Lisboa. Em 2019 foi lançado um concurso público para a direção artística a que concorri, e ganhei. Preparámos a edição de 2020, mas de repente apareceu-nos este vizinho inconveniente chamado Covid e não conseguimos fazer particamente nada, excepto o Dia Mundial da Língua Portuguesa, com um programa para as escolas e bibliotecas chamado A Janela, dedicado à formação de leitores, e a parceria com o IndieLisboa sobre literatura e cinema. Todas as outras actividades passaram para este ano. O evento tem particularidades que o distinguem dos outros festivais portugueses e internacionais. Pretende celebrar as várias dimensões da língua: a própria língua, a literatura, a leitura, o livro e as livrarias. Por isso se chama Lisboa 5LO Lugar de Todas as Letras.

O Festival está subordinado a algum tema geral?

Não. Possivelmente, quando chegarmos ao fim de cinco edições, para não repetirmos tudo, elegeremos um tema ou um autor. Por enquanto optámos pela variedade e não por um tema central.

Óbidos ou Povoa do Varzim são exemplos de cidades que desenvolvem festivais literários de sucesso. Que estratégias vai o 5L promover para envolver uma cidade tão diferente e com a dimensão de Lisboa?

Com programação em vários locais, livrarias, cafés e hotéis literários, restaurantes, praças e ruas, procurando envolver a maior parte da população que se movimenta em Lisboa. Como queríamos fazer um festival voltado para fora, não fechado entre quatro paredes, e a cidade de Lisboa é muito grande, elegemos uma zona geográfica da cidade para cada um dos festivais. A primeira tinha que ser a Baixa/Chiado, mas com um conceito alargado que vai da casa dos Bicos ao Rato e ao Cais do Sodré. Concentrar os eventos numa área limitada faz com que as pessoas se possam deslocar a pé sem necessidade de carro ou de transporte público.

Lisboa e os seus escritores é um dos temas proposto a debate. A cidade continua a seduzir as novas gerações de escritores?

A cidade de Lisboa é sedutora por natureza para escritores e não escritores. Tem uma escala diferente das outras capitais, mais intimista. É também umas das mais bem dotadas de equipamentos ligados ao livro, caso das bibliotecas municipais. Duas das mais antigas livrarias do mundo estão em Lisboa; a Bertrand e a Ferin. Ao preparar o festival fiquei a saber de muitos escritores de outras latitudes que aqui vivem permanentemente ou uma grande parte do ano. A cidade é amiga das artes e da literatura, tornando fácil o contacto com esse universo. Os escritores mais conhecidos de Portugal, incluindo o Nobel da Literatura José Saramago, têm uma associação a Lisboa, e isso faz com que na cidade se possam encontrar referências permanentes aos autores literários do passado e do presente. Tudo isto faz de Lisboa uma cidade procurada por escritores, leitores e por todos os interessados nas áreas da leitura e dos livros.

Nem só de literatura vive o 5L. Quer contextualizar a presença de outras áreas como o cinema, a musica, as exposições e o roteiro performativo?

Nem só de literatura vive o homem, mas a maior parte das outras artes vivem da literatura e foi isso que quisemos mostrar. O cinema, o teatro, a dança e até a pintura. Por isso além de atividades ligadas ao livro impresso, associámos à influência que a palavra tem nas outras artes. Caso do ciclo Cinema e Literatura, de um itinerário teatral nas ruas e praças de Lisboa construído a partir de obras literárias, de percursos literários, e dos concertos que também tem por objetivo salientar a palavra. A programação inclui uma mostra de 45 cartas antigas expostas em muppies ilustradas por vários artistas visuais.

O hábito da leitura adquire-se sobretudo na infância. O festival integra programação dedicada aos mais novos?

Até aos seis, sete ou oito anos todas as crianças têm uma relação muito estreita com o livro em papel. A área do livro que em Portugal mais tem crescido é, justamente, a infantil. Depois dá-se um afastamento do livro e criam-se outros centros de interesse. Penso que temos a obrigação de viciar esses jovens na leitura. Nesse sentido o Festival desenvolve o programa A Janela em torno de 25 livros escolhidos por uma curadoria nossa, propondo leitura, exercícios e interpretação a partir de cada obra. É um projeto que envolve a comunidade de bibliotecas, das escolas, dos professores e alunos.

Carl Einstein

Escultura Negra

“Dificilmente haverá uma arte que o Europeu encare com tanta desconfiança como a arte africana. A sua tendência imediata é  negar o facto de se tratar de uma ‘arte’,  exprimindo a distância que separa estas criações da concepção europeia, com um desprezo que chega a originar uma terminologia depreciativa”. Estas são as frases inaugurais de Escultura Negra, do escritor, historiador de arte, crítico e ativista político Carl Einstein. Publicado pela primeira vez em 1915, é um texto audacioso e fundador na história da arte europeia que produz a primeira análise crítica à escultura africana, libertando-a de todo o etnocentrismo e primitivismo. O livro divide-se em duas partes: uma análise da escultura africana e a reprodução de 94 objetos artísticos.  Consciente do erro de  transpor as categorias estéticas ocidentais para as obras africanas, o autor procura integrar a obra de arte “num devir geral”. A este propósito escreveu Hermann Hesse; “Esforçamo-nos muito para estudar o que separa pessoas, povos e épocas. Tenhamos sempre mais atenção ao que une todas as pessoas. Algo disso é expesso em  Escultura Negra de  Carl Einstein.” Orfeu Negro

Alexandre Koyré

Reflexões Sobre a Mentira

Quando este ensaio de Koyré foi pela primeira vez publicado, no começo de 1943, e numa revista trimestral nova-iorquina, decorria a Segunda Grande Guerra, e o filósofo propunha-se desmascarar o modo de funcionamento da propaganda nos regimes totalitários, com a Alemanha de Hitler por principal alvo. A propaganda é a concretização de uma “conspiração às claras”, segundo Alexandre Koyré, que usa a mentira e quanto mais esta for “grosseira, massiva” e crua, mais as pessoas a quem se dirige acreditarão e seguirão quem lhes lisonjeia “as paixões, os ódios, os medos.” De acordo com a “antropologia totalitária, o homem não se define pelo pensamento, pela razão, pelo juízo, justamente porque, segundo ela, a imensa maioria dos homens está desprovida deles”. A atualidade deste escrito, sucinto e claro, que foi objeto de mais algumas reedições mesmo após a morte do autor, em 1964, vê-se nos focos do totalitarismo um pouco por todo o mundo, cujo “êxito parcial” se traduz na conquista do poder dentro de portas. V.S. Editor   

Charles Dickens

A Vida e as Aventuras de Nicholas Nickleby

Raros foram os autores que condensaram toda uma época na sua obra. Charles Dickens (1812-1870) foi um deles: os seus livros oferecem o melhor retrato ficcionado da era da Revolução Industrial. Aos 12 anos viu o pai preso por dívidas e teve que abandonar a escola e trabalhar numa fábrica de graxa para sapatos como forma de sustentar a família. Este episódio foi determinante para lhe conferir a consciência social de que se revestem os seus escritos com os temas recorrentes do abuso infantil, pobreza, prostituição, desemprego e falta de condições laborais.  No terceiro romance de Dickens, o pai do jovem protagonista, Nicholas Nickleby , morre depois de perder todo o seu dinheiro num investimento ruinoso. Para proteger a mãe e a irmã,  Nicholas aceita um cargo  como assistente do diretor de uma escola. Aí descobre um regime de  crueldade tremenda:  tareias e espancamentos, alimentação  péssima, violência psicológica permanente e fraca qualidade do ensino.  Profunda denúncia das instituições do seu tempo e comovente defesa dos direitos das crianças pelo escritor que Eça de Queirós considerou possuir, como nenhum outro, “o poder de criar figuras vivas”. E-Primatur

José Gardeazabal

Quarentena – Uma História de Amor

As autoridades de saúde impõem uma quarentena a um casal decidido a separar-se, condenando-o a um regime forçado de intimidade no espaço do apartamento onde partilharam a relação.  Quarentena – Uma História de Amor, escrito sobre a forma de diário ao longo de 40 dias, é uma obra inteligente e estimulante, de grande riqueza aforística, que manifesta uma profunda capacidade de análise sobre a vida íntima dentro das quatro paredes de um apartamento e sobre a vida coletiva do “mundo de fora”. Observa minuciosamente a desagregação do casal (“A nossa ralação desapareceu pelo efeito preguiçoso do tempo”) e o estado do mundo sob o efeito da pandemia (“O vírus está em toda  a parte e não se vê, subiu ao patamar exigente de uma religião”). Mas, a obra é também um extraordinário exercício de memória e uma reflexão sobre a necessidade de criação de histórias: “A velha questão da memória. Visitar o passado é um exercício que hesita entre o abandono e a reconstrução. Numa quarentena, a hipótese de reconstrução ganha garras terríveis, ganha sentido. O que aconteceu entra mim e Mariana pode ter sido um fiasco, mas será recordado como uma história de amor. Essa é a força das histórias. Vida, vai-te embora e traz-me uma história.” Companhia das Letras

Luís Rosa

45 Anos de Combate à Corrupção

Num estado de direito a Justiça não se faz na praça pública, em julgamentos populares, mas nos tribunais, assegurando-se aos arguidos todas as garantias de defesa, de acordo com as regras estabelecidas no processo penal. Contudo, a corrupção (pagamento de contrapartidas a um decisor público ou privado para obter benefícios ilegítimos) é considerada como um grande problema nacional que motiva a desconfiança nas instituições e o alheamento eleitoral. A complexidade e lentidão dos processos de corrupção julgados, assim como da restante criminalidade económico-financeira, e a sua mediatização, suscitam a especulação sobre ineficácia da Justiça. Ora, como tem sido combatida a corrupção, de facto, pelo Ministério Público desde Abril de 1974? Este livro procura explicar traduzir e descodificar os mecanismos da administração da justiça para o leitor comum. Narra a história recente do combate à corrupção em Portugal, bem como a respectiva evolução legislativa, através do percurso e dos olhares de cinco procuradores de três gerações diferentes: Euclides Dâmaso, Inês Bonina, João Marques Vidal, Maria José Morgado e Teresa Almeida. Partindo desta abordagem, percorre os principais processos penais por crimes de corrupção nos últimos 45 anos. FFMS

Daniel Blaufuks

Hoje, Nada

“A obra de Daniel Blaufuks releva uma peculiar mistura entre (auto)biografia e análise histórica, viagem e registo diarístico, factografia e ficcionalidade, predisposições de uma atitude artística e meditativa sobre as realidades que habitamos e sobre o passado que as afecta, entre o colectivo e individual. Através da anotação de momentos, espaços e objectos da vida quotidiana, frequentemente submetida à articulação entre o valor histórico e o potencial rememorativo da fotografia, o trabalho de Daniel Blaufuks distingue‑se também por uma persistente reflexão sobre a natureza e o potencial perceptivo da imagem”. Sérgio Mah foi curador da exposição Hoje, Nada de Daniel Blaufuks, que esteve patente na Galeria Pavilhão Branco, entre Setembro e Novembro de 2019, na qual escreveu estas palavras sobre as fotografias e os objectos que davam a ver lugares, coisas, gestos imobilizados. O presente livro bilingue (português/inglês) reúne vistas de exposição e textos de Tobi Maier (director das Galerias Municipais), de Sérgio Mah (curador), do artista plástico Rui Chafes e do escritor João Miguel Fernandes Jorge e evoca exemplarmente “um mundo em suspenso e sem horizonte, onde quase tudo está fora de campo.” Galerias Municipais /EGEAC – Tinta-da-china

Blandina Franco e José Carlos Lollo

Isto é Meu!

A parceria editorial brasileira entre a escritora Blandina Franco e o ilustrador José Carlos Lollo rendeu um casamento, um filho e 34 livros. Isto é Meu! é o seu mais recente trabalho editado em Portugal. Trata-se da história de uma menina muito ligada ao seu brinquedo, um ursinho de peluche azul. Às vezes, gostamos muito de uma coisa e não a queremos partilhar. É nossa! Só nossa e de mais ninguém! Mas terá sentido brincar sozinho? Por isso, esta menina vai ter que escolher entre partilhar o seu brinquedo ou não ter com quem brincar. A história é simples e eficaz, as ilustrações rápidas e expressivas e o tema da partilha essencial para ajudar a crescer. Mais tarde, quando for adulta, a menina poderá ler a grande literatura e reaprender com o genial poeta Konstantínos Kaváfis o valor da partilha, no belo verso que reproduz um excerto do crisóbulo de Aleixo Comneno para render preito a sua mãe, a Ilustre Ana Dalássena: “Nunca as frias palavras meu e teu dissemos.” Nuvem de Letras

Uma entrevista à jurista, investigadora e cronista Rita de Carvalho Serra transmitida na rádio despertou na atriz Maria Henrique, conhecida do grande público, sobretudo, pelos seus papéis na comédia, a vontade de se (voltar a) desafiar enquanto artista. Em causa, o livro A Assassina da Roda, lançado em 2020 pela editora Guerra & Paz. “Ao ouvir a história daquela mulher condenada pelo assassinato de 33 crianças, senti uma vibração, quase como um acesso de loucura, e depressa recorri às redes sociais para entrar em contacto com a autora”, conta a atriz.

Foi o início de uma colaboração que está na génese do espetáculo, estreado a 29 de abril no Teatro da Trindade, não muito longe do local onde, a 1 de julho de 1772, padeceu aos olhos do povo da cidade a tenebrosa infanticida. Em palco, na companhia do músico Hugo Aristide, Maria Henrique encarna Luiza de Jesus, revelando episódios da vida de uma mulher e plantando no espectador a dúvida de estar perante “um monstro ou uma vítima” da justiça cruel da época, impiedosa no uso da tortura e da violência.

“Algo que me inquietou nesta história foi perceber como o recurso à tortura levava os processos judiciais a terem, de antemão, um fim determinado”, sublinha Maria Henrique a propósito das sevícias impostas a Luiza de Jesus durante o cárcere. Como lembra o advogado e investigador José António Barreiros, em texto integrante da folha de sala do espetáculo, “a condenação era a de que morresse, mas não sem que antes lhe decepassem as mãos e «atenazada» fosse, o que vale dizer queimada com um ferro em brasa; morte sim, enfim, não pela sufocação de uma corda que a asfixiasse, mas pelo garrote que a isso juntava a lenta perfuração do pescoço.”

No contexto da peça, a dúvida da culpabilidade surge no discurso em off do intendente Pina Manique, que se debate pela averiguação rigorosa dos factos, em contraponto com as “certezas” dos acusadores. Como lembra a atriz, “estamos já no declínio da Inquisição e era imperativo para o clero mostrar publicamente o seu poder.”

No seu ambiente espectral e na “não-linearidade” narrativa, Luiza de Jesus – A Assassina da Roda apresenta-se como um espetáculo de questionamento, em que uma personagem a priori monstruosa, ganha uma perturbadora dimensão humana. “E isso não quer dizer que se procure desculpabilizar seja o que for”, alerta Maria Henrique, lembrando que “as pessoas não são só uma coisa e nem sempre as histórias são tão lineares como aparentam.”

Um debate que, aqui, é o teatro a propor, mesmo que com uma história passada há mais de dois séculos, mas com pertinente atualidade quando os temas da justiça estão, por estes dias, no centro das atenções.

Consegue encontrar algum aspeto positivo nestas quase duas temporadas de paragens prolongadas da CNB?

O primeiro confinamento apanhou-nos a todos de surpresa; de um dia para o outro ficamos confinados às nossas casas, sem acesso ao teatro. O sentimento foi de desorientação, de não acreditar que tudo isso estava de facto a acontecer e, ainda mais angustiante, sem fim determinado. Mas depressa tivemos de nos adaptar. No segundo confinamento, contávamos com a aprendizagem do anterior; mantivemos alguns eixos de atuação, algumas práticas e melhorámos e criámos outras. Aprendemos muito com o primeiro período em que fomos afastados dos estúdios, do palco, da presença do público… Logo de início identificámos dois níveis de trabalho como os nossos grandes focos. Por um lado, uma dimensão interna, de manutenção física do elenco artístico fixo que, numa Companhia Nacional, vive de uma rotina diária de grande exigência; e por outro, uma dimensão externa, de ligação ao público, com quem vínhamos construindo uma relação mais próxima e direta, com resultados muito expressivos no aumento da afluência aos espetáculos e atividades da CNB. Foi sempre muito evidente e presente que não poderíamos descurar estes dois níveis de atenção. Foram períodos complexos, mas em que vimos, por exemplo, potenciados projetos a que já tínhamos dado início e que se centravam numa existência sobretudo digital; os confinamentos vieram sublinhar a sua pertinência e acentuar o seu desenvolvimento. Mostrámos espetáculos, mas também desvendámos curiosidades do trabalho da equipa da CNB, dos bailarinos, partilhámos testemunhos sobre processos criativos de diversas obras e dos seus criadores, mergulhámos no arquivo da Companhia…foi muito interessante perceber como esses projetos ganharam uma outra dimensão e projeção mantendo a ligação a um público que já acompanhava o nosso trabalho e aproximando outro que assim teve oportunidade de o ir descobrindo. Apostámos muito no acesso à CNB por essa via e os resultados foram muito surpreendentes, com muitas mensagens de agradecimento e de motivação por parte de quem nos foi acompanhando.

Considera dar início à constituição de um arquivo de espetáculos filmados para que existam conteúdos para partilhar em momentos como este?

A CNB tem um vasto arquivo, mas que foi sempre pensado como de “consumo, sobretudo, interno”; os espetáculos são desde há muito registados, mas não com a perspetiva de transmissão posterior, mas sim de consulta, como documentos de trabalho. Filmar espetáculos de dança para transmissão não é a mesma coisa; implica outro tipo de recursos técnicos que até ao momento a Companhia não teve. E se, num primeiro momento, disponibilizámos alguns registos de espetáculos como um recurso imediato a partilhar com o público, no segundo confinamento optámos por apostar, como referi antes, noutro tipo de conteúdos, potenciando inclusive outra documentação do próprio arquivo da CNB.

Ensaio © Hugo David

Que efeitos tiveram estas interrupções tão prolongadas sobre o planeamento dos espetáculos a apresentar?

No meu caso particular, tendo eu assumido as funções de diretora artística da CNB em setembro de 2018, vi as duas temporadas seguintes interrompidas e um pouco desvirtuadas em relação ao projeto que tinha desenhado, e aos objetivos que projetava atingir para a Companhia neste mandato. Mas a verdade é que, no momento em que a primeira interrupção foi anunciada o meu primeiro pensamento foi para os bailarinos. Um bailarino de uma companhia como esta é equivalente a um atleta de alta competição na exigência e necessidade de um treino e atividade diários; não lhe é natural estar parado, isolado, circunscrito a um espaço pequeno onde o corpo não se possa expandir. E embora no segundo confinamento tenham sido melhoradas substancialmente as condições proporcionadas aos bailarinos, a falta de ensaios, o estar longe do estúdio e dos seus pares, implica necessariamente com a sua manutenção e condição físicas. E isso, interfere consequentemente no modo como se organiza a programação pois esta tem que ser consciente do tempo de recuperação que estas paragens implicam. Por outro lado, a programação assenta num calendário no qual cada projeto está pensado para um determinado momento que antecede e sucede um outro projeto. Ao adiarmos um ou vários espetáculos, como foi o caso, estamos a fragilizar essa estrutura original que tínhamos criado ao mesmo tempo que é necessário gerir vários fatores para que o possamos voltar a calendarizar. No caso da CNB, conseguimos, juntamente com os artistas, encontrar novas datas para todos os espetáculos que já tínhamos contratados e assim manter e honrar os compromissos.

O palco da CNB em Lisboa será sempre, exclusivamente, o Teatro Camões, ou considera que a Companhia se poderá vir a apresentar em outras salas da capital?

O Teatro Camões é a casa da Companhia Nacional de Bailado, e é aí que a sua equipa trabalha diariamente ensaiando e preparando tecnicamente os seus espetáculos. Naturalmente é aí que se apresenta com mais regularidade, mas isso não significa exclusividade. A história da Companhia conta com apresentações noutras salas de Lisboa ao longo dos tempos (como é o caso do Teatro Municipal de São Luiz, o Centro Cultural de Belém e o Teatro Nacional de São Carlos), e continuará certamente a contar. Há colaborações a ser desenhadas para as quais se procuram sinergias e lógicas de programação que resultam de interesses e vontades comuns.

A que critérios obedece a calendarização de audições para a entrada de novos bailarinos?

As audições acontecem mediante a necessidade, e possibilidade, de contratar novos bailarinos para o elenco, mas habitualmente acontecem no período entre fevereiro e maio de modo a poder preparar-se a temporada seguinte.

Ensaio © Hugo David

Já tomou medidas da sua inteira responsabilidade depois de ter assumido a direção da CNB?

Ao assumir funções enquanto diretora artística da CNB, em setembro de 2018, assumi também de imediato todas as responsabilidades que me competem. E havendo, a nível de programação um conjunto de obras já agendadas pela anterior direção artística, comprometi-me desde logo a levar avante esses projetos tentando, por exemplo nalguns casos, e em total diálogo com os artistas, encontrar os contextos de apresentação, o momento na temporada, que me pareciam mais adequados. Programar é também cuidar, é criar o espaço e o tempo certos para valorizar as obras, os seus criadores e os bailarinos. Desde setembro de 2019 a programação, embora interrompida por dois confinamentos, é da minha responsabilidade. Naturalmente o trabalho de diretora artística da CNB não se encerra na programação de espetáculos; do meu ponto de vista a missão da Companhia completa-se no desenvolvimento de outras atividades complementares que é preciso desenvolver mais como masterclasses, conversas, exposições, edições. Mas também nas parcerias que cria e que ajudam a expandir o seu potencial. São muitas dimensões. E por isso, ainda na primeira temporada dei início a projetos criados por mim e que, de algum modo, começaram a dar sinais sobre a amplitude de programação que tinha imaginado para a Companhia; dediquei muita atenção ao modo como a CNB comunicava e se relacionava com o público, à imagem que passava, e analisei as ferramentas que utilizava para, com a equipa, investir num refrescar dessa imagem acompanhado por uma oferta ao público de conteúdos que se completem e melhorem a sua experiência junto da Companhia. E claro, há um trabalho diário que é preciso estruturar e que tem a ver com a gestão do elenco artístico, com a organização das aulas diárias dos bailarinos, com os professores convidados que as lecionam; há um trabalho de fundo que se prende com o trabalho de apoio à manutenção física, à prevenção e recuperação de lesões. Existem também questões estruturais que é preciso cuidar, que precisam de um grande investimento, como é o caso das promoções e do desenvolvimento das carreiras dos bailarinos. A CNB tem um conjunto de bailarinos incríveis, versáteis, com uma energia jovem, de grande qualidade e, desde que assumi funções, que acredito no potencial da Companhia para ocupar um lugar de maior destaque a nível nacional e internacional.

O que pode antecipar sobre a programação da nova temporada?

Temos ainda alguns espetáculos, que estavam previstos inicialmente para 2020, que serão apresentados na próxima temporada, mas que, esperamos, sejam os últimos reagendamentos. Continuaremos a apostar numa programação que dê corpo à história da dança, à sua memória olhando para o passado através de obras de repertório, mas também às suas expectativas construindo futuro com novas criações. Embora a programação esteja ainda em construção posso desvendar que contaremos com a nova criação de um novo bailado clássico.

Dia Mundial da Dança na CNB. [ver programa]

Antes de mais, a pergunta que se impõe: como é trabalhar maioritariamente para o público mais novo? É preciso algum cuidado especial?

É preciso, antes de tudo, não o infantilizar. Digo muitas vezes que os livros/objetos ditos para crianças/jovens não são só para adultos. São, na verdade, os únicos objetos artísticos que são para todos. Se um livro ou um espetáculo não for bom para um adulto, for simplista ou estereotipado, também não o vamos oferecer a uma criança, pois não? Para mim é importante que os livros ou o espetáculo abram portas: que gerem perguntas, a descoberta de uma palavra nova, de uma referência a uma obra de arte, etc. Se esses objetos não acabarem quando se fecha a contracapa ou se sai do teatro, tanto melhor. Simultaneamente, desenhar e escrever para crianças (ou para todos) é, a meu ver, um processo de síntese: de eliminação do acessório, de redução ao fundamental. Não só porque o leitor ou espetador é mais selvagem e observa o objeto artístico a partir de um lugar de maior essência, mas também de maior liberdade. E ao ser sintética abro espaço à interpretação e à criatividade do leitor/espetador. É, por isso também, a criação de um lugar permeável, não prescritivo e que nasce, geralmente, das emoções.

Basta folhear os seus livros para perceber que usa muitas técnicas de ilustração diferentes. Qual a sua preferida e porquê?

Gosto mais de materiais riscadores: lápis, marcadores, lápis de cera. Prefiro o traço ao pincel, em geral, e quando uso tintas normalmente é para criar texturas dentro de formas definidas a tesoura (como no Vazio, por exemplo) ou a x-ato (como no livro O Meu Avô).

Qual a maior fonte de inspiração para o seu trabalho?

Outros objetos artísticos e outros autores. Normalmente, as interpretações da realidade ou as ficções inspiram-me mais do que a realidade. Normalmente, mas há exceções. O Impossível, por exemplo, é uma história verídica.

O que mudou no seu trabalho – e em si – com a atribuição do prémio da Feira de Bolonha em 2014?

Na verdade não sei. Se me deu mais confiança no meu trabalho e mais reconhecimento foi durante um período alargado. No livro que publiquei imediatamente depois (A Sereia e os Gigantes) senti muito medo de falhar, mais do que antes. Agora sinto que o métier é mais fácil, não tem tantos segredos e não é quase exclusivamente resultado da intuição. Mas se isso acabaria por surgir naturalmente com o tempo, nunca saberei.

Impossível, Orfeu Negro, 2018

 

Este mês, volta a apresentar no LU.CA o espetáculo Impossível, baseado num dos seus livros. Como descreve este livro?

O Impossível é um livro de não-ficção que conta, como se fosse uma narrativa de ficção, a história do Universo, desde o Big Bang até ao aparecimento do Homem. Por ser uma história muito improvável e fruto de um evento singular, de um desvio ou rutura com o pré-existente, não é muito diferente de outras histórias que já inventei (penso no Greve ou no Achimpa, por exemplo). Talvez por isso me tenha atraído tanto a ideia de tentar explicá-la. Embora seja astrofísica, é astrofísica para crianças e por isso serve-se de algumas metáforas e brincadeiras para que os factos científicos pareçam (ainda) mais divertidos.

Como se deu o salto das páginas para o palco?

Na verdade, o salto foi ao contrário. Primeiro, fui convidada a criar o espetáculo e mais tarde fiz a adaptação do Impossível para livro. Há poucas diferenças entre os dois objetos em termos de texto e figuração, mas são muito distintos nas cores e nos materiais que escolhi para ilustrar cada um. Acima de tudo, porque a técnica de projeção que utilizo no espetáculo implicou que trabalhasse com transparências e com figuras passíveis de serem recortadas (cada elemento das ilustrações é um objeto que entra e sai do plano de projeção). As formas são por isso mais planas e geométricas, sem texturas ou modelação nas ilustrações do Impossível de palco. No livro, por outro lado, falta a quarta dimensão, falta a música, a voz da Madalena, a relação que nós os três – eu, a Madalena e o Kent – estabelecemos no espaço cénico. E isso foi, de certa forma, colmatado com a utilização de formas, composições e cores mais livres, mais exuberantes, até mais rítmicas. O texto do livro também tem outra duração: podemos ficar o tempo que quisermos numa página do livro. Já em palco, o tempo é outro: a mesma frase que está escrita no livro é dita num período limitado. E essa diferença também teve de ser tida em conta na transposição do espetáculo para o formato do livro.

O que se pode esperar deste espetáculo?

Trinta minutos de astrofísica com recurso a crocodilos, aparas de lápis, uma lupa gigante e um jingle sobre o Big Bang, lá pelo meio. Espero que seja divertido antes de ser instrutivo. Aliás, espero que seja muitas coisas antes de ser instrutivo: intrigante, questionador, cómico. Se as crianças saírem do teatro contentes, a saber que existem partículas, a missão está cumprida.

Agora a pergunta ingrata: de todos os livros que escreveu e ilustrou, qual o seu preferido?

O Impossível, claro.

Que outro autor gostaria particularmente de ilustrar?

O Julio Cortázar. Gostava até de adaptar uma história dele para cinema de animação.

Se pensarmos nos grandes filmes que colocaram o cinema a olhar para o teatro (e que, afinal, não serão assim tantos), Opening Night é, seguramente, um dos títulos incontornáveis. O filme de John Cassavetes não só é um dos melhores do realizador que marcou o cinema independente americano desde finais dos anos 1950, como aquele em que a sua musa Gena Rowlands terá, porventura, criado uma das mais impressionantes personagens femininas da história do cinema. Logo, de antemão, é assinalável o desafio que Martim Pedroso – e, consequentemente, Dalila Carmo, interpretando o papel que Rowlands imortalizou – assume ao propor a adaptação para palco desta obra-prima de 1977.

O desafio partiu, precisamente, da atriz Dalila Carmo que, como conta o encenador com simpatia, “passa a vida a desafiar-me para novos projetos”. Apesar de recordar o filme de um “provável visionamento, há muitos anos, na Cinemateca”, Pedroso levantou algumas reticências quanto à possibilidade de levar Noite de Estreia para o palco. “Quando o revi, fiquei com a sensação de que era impossível”, confessa. Contudo, o processo começou a ganhar forma, primeiro com a paixão contagiante da atriz pelo filme e pela personagem de Myrtle Gordon, depois com o próprio encenador a partir à descoberta de formas que permitiriam superar as barreiras que separam cinema e teatro, duas linguagens tão próximas e, simultaneamente, tão distantes.

Parte dessas barreiras acabaram por ser superadas através do recurso ao vídeo, em vários segmentos de filme realizados por Ruben do Valle, que não só permitem encaixar as peças na narrativa, como prestar o devido tributo a um grande filme dirigido por um cineasta de exceção, que se distinguiu, sobretudo, no modo como filmava e dirigia os atores. Mas a exigência de levar à cena Noite de Estreia encontraria ainda uma outra contrariedade que passou pela obrigatoriedade da adaptação ser fiel ao script original de Cassavetes. Como sublinha Martim Pedroso, “isso impossibilitou a hipótese de reescrever algumas cenas, o que tornou ainda mais complexo o trabalho de encenação.”

“Uma peça feminista”

Noite de Estreia apresenta-se como uma arrebatadora elegia sobre o envelhecimento e a morte, tendo como epicentro uma atriz de sucesso, Myrtle Gordon, confrontada com a construção de uma personagem numa peça em que lhe pedem que assuma o envelhecimento no qual ela não quer nem se pretende rever. No final de um dos ensaios (no filme é uma preview), uma jovem fã é colhida mortalmente por um automóvel à saída do teatro, acontecimento que perturba a já de si periclitante existência de Myrtle, cada vez mais assolada pela dependência do álcool e pelo vício de “estar a pé toda a noite”.

A atriz começa então a projetar a memória de juventude no fantasma de Laura (Margarida Bakker), a jovem que perdeu a vida de um modo tão trágico, deixando-se arrastar numa espiral de questionamento sobre si mesma enquanto mulher e artista que, embora amplamente consagrada e amada pelo público, nunca deixou de estar remetida às convenções estabelecidas pelos estereótipos da sociedade patriarcal.

Como salienta o encenador, “Myrtle é uma mulher cansada da sociedade que diz que a atriz tem de levar estalos em cena, farta de ter de representar o papel de mulher que não é o dela, nem o que ela acha ser o de nenhuma mulher dos tempos de hoje. Farta de a confrontarem com a idade, com o não ser mãe ou com o facto de os seus relacionamentos terem falhado todos. Portanto, se o filme é assumidamente feminista, a peça não poderia deixar de o ser. E essa é uma das muitas camadas que pretendo salientar no espetáculo.”

Essa revolta de Myrtle é então lançada contra o objeto artístico que lhe querem impor. A Segunda Mulher, título da peça que a atriz ensaia, curiosamente escrita por uma mulher, a conservadora Sarah Goode (Maria José Paschoal), “é demonstrativa do machismo endémico” contra o qual Myrtle se propõe lutar e, entre o desespero e a razão, resta-lhe “pôr o seu teatro de pernas para o ar.”

Noite de Estreia conta ainda com interpretações em palco de João Reis, Heitor Lourenço, João Araújo, Marta Félix e Sabri Lucas, e em vídeo de Inês Santos Caramuchande, Isabél Zuaa, Madalena Brandão, Mauro Herminio e Noah Santos Caramuchande. O espetáculo está em cena até 6 de junho.

O facto de ser bilingue atrapalha-o na sua escrita?

Curiosamente até me ajuda em relação aos livros para crianças. Descobri algo que não fazia originalmente, mas que agora gosto de fazer: escrevo uma primeira versão em português e depois faço uma versão inglesa que é traduzida, mas à qual acrescento elementos que depois vão surgindo na minha cabeça. Isto é engraçado porque depois transfiro o que gosto da versão inglesa para a versão portuguesa, e mais coisas surgem, mais personagens inesperadas…

Então é como se escrevesse o livro três vezes…

Escrevo-o muitas vezes. Cada versão, inglesa e portuguesa, influencia a outra, que, por sua vez, influencia a versão final. Para mim é uma mais-valia ter esse debate/conversa/diálogo entre a versão inglesa e a portuguesa. Para mim é uma vantagem.

Como está a viver a fase atual que o mundo atravessa? Sentiu-se, de alguma forma, inspirado para escrever, ou o confinamento teve o efeito contrário em si?

Há fases diferentes do confinamento. Nos primeiros meses de confinamento do ano passado (março, abril) todos ficámos perturbados, mas, em relação à minha escrita, o meu horário mudou bastante. Antigamente, eu escrevia sempre de manhã, que é quando estou mais alerta, mais vivo, mais dinâmico. Pelas nove horas, logo a seguir ao pequeno-almoço, já estava sentado em frente ao computador a escrever. Com a Covid’19 e todo o stress e a desorientação, eu precisava de algumas horas da manhã para não fazer nada… Tomar o pequeno almoço, ver televisão, ler, ouvir música, fazer um passeio… Só da parte da tarde é que começava a escrever, o que é completamente diferente. Agora, estou numa fase em que às vezes escrevo de manhã, outras vezes da parte da tarde. Não há um horário fixo, o que também para mim é novo, mas estou a aprender, como muita gente, a, pouco a pouco, não me pressionar, não criar mais stress na minha vida, porque já temos stress suficiente.

©Humberto Mouco/ CML-ACL

Na terra dos animais falantes é o seu mais recente livro para crianças. De onde surgiu a inspiração para esta história?

Comecei a escrever sobre um jovem no Algarve, com os pais, e surgiu logo o facto de ele ter perdido a sua grande amiga, a cadela Miss Marble. A partir daqui percebi que queria escrever um livro sobre esse trauma [de perder um animal de estimação], e de como é que este jovem, com ajuda dos pais e de outras pessoas, pode ultrapassar esse trauma e continuar a sua vida. Não sei porquê, mas gosto sempre de usar magia nos meus livros para crianças, gosto sempre de falar de animais porque os jovens conseguem formar uma relação afetiva e duradoura com os seus animais. Isso é uma vantagem para qualquer escritor de livros para crianças, porque podemos aproveitar essa capacidade infantil para captar a atenção e as emoções dos jovens. Foi um processo que começou primeiro com a morte da Miss Marble, e depois de perceber que eram precisamente os animais que iam ajudar a personagem principal.

Qual é o maior desafio em escrever para crianças?

Usar uma linguagem poética, muito visual, muito colorida… Há duas coisas importantes. Primeiro: temos de ser muito honestos. Eu podia ter escrito um livro mentiroso e dizer que bastam uns beijinhos dos pais para o rapaz recuperar e conseguir ultrapassar esta dificuldade. Isso é uma fantasia. Eu sei, porque perdi uma cadela quando tinha 10 anos e não foram os beijinhos da minha mãe que curaram essa minha tristeza. Não lhes podemos mentir. Temos que dizer frontalmente que sim, a morte é difícil, é muito difícil enfrentar a morte de um ente querido, mas consegue-se. Honestidade primeiro, e, em segundo, não podemos escrever uma coisa maçuda. Cada parágrafo tem de ter elementos que despertem a imaginação das crianças. A última coisa que queremos com uma criança de 5, 7, 10 anos, é dar-lhe uma lição de moral. Temos de captar a atenção e a imaginação da criança.

As crianças são os leitores mais difíceis de agradar?

Na minha perspetiva não. Antes da pandemia, eu fazia muitas sessões nas escolas com crianças entre os 5 e os 10 anos e eles adoram histórias. Adoram falar com os escritores, fazer perguntas. As professoras dizem-me que as crianças adoram ler, adoram ouvir histórias. Só quando atingem a adolescência, aos 12/13 anos, é que começam a perder esse hábito. As crianças fazem perguntas maravilhosas. A melhor pergunta que já me fizeram foi numa sessão em Fafe há uns três ou quatro anos, um rapaz com uns sete anos perguntou-me: “quantos livros é que o senhor ainda não escreveu?” É espetacular, é budista. Adorei a pergunta. Gosto muito de fazer sessões com crianças.

O que está a ler neste momento?

Curiosamente, estou um livro que é meio ficção científica, mas muito realista (não é aquele tipo de ficção científica que fala sobre outros planetas e seres com três cabeças…). Decorre no nosso planeta, com figuras realistas e foi escrito por um grande escritor de ficção realista e ficção científica, que se chama John Wyndham. Escreveu vários livros excelentes. Este chama-se Chocky, e é sobre um jovem de 12 anos que tem um amigo invisível, imaginário, como muitas crianças têm. Só que este amigo em particular talvez não seja tão imaginário assim, porque acrescenta elementos e conversas que uma criança de 12 anos não tem. Estou na fase de saber o que é esse tal amigo invisível.

Qual é o autor português de que mais gosta?

Miguel Torga. Gosto muito dos contos dele – concisos e poderosos. Tive o prazer de conversar com ele por telefone, em 1992 ou 1993. Queria traduzir um conto dele para um número especial de uma revista literária americana que eu estava a organizar. Pedi para ele me indicar qual conto que gostaria de ver traduzido. Indicou-me Vicente, de Os Bichos, sobre o corvo que sai da Arca de Noé.  Disse-me que tinha, para ele, mais significado do que os outros contos.

Passados 25 anos, a Quinta Pedagógica dos Olivais é a casa de mais de cem animais, muitos deles de raças portuguesas, e de inúmeras espécies de plantas, espalhadas pela horta e pomar. Ali há burros, porcos, vacas, um cavalo, ovelhas, cabras, coelhos, galinhas, patos, cisnes, gansos e outras aves. Há também árvores de fruto, ervas aromáticas, legumes e outras plantas e um relvado que convida a muitas brincadeiras. E, como qualquer quinta que se preze, tem espantalhos espalhados por todo o lado!

Durante estes anos, a Quinta Pedagógica dos Olivais tem promovido atividades de carácter cultural, educativo e pedagógico junto de famílias e de escolas. Sempre com a promoção da ruralidade em mente, a Quinta proporciona experiências que vão desde os vários afazeres da lavoura, pecuária e cozinha tradicional (queijaria, padaria e doçaria), às hortas pedagógicas, contacto com os animais e ainda diversas atividades relacionadas com as festas e acontecimentos que marcam o calendário rural, como a apanha da azeitona, a desfolhada ou o Dia da Espiga.

Como parte das celebrações, a Quinta vai inaugurar, no dia do aniversário, 16 de abril, um Mural de Partilhas, que vai refletir, através de fotografias e testemunhos, as experiências vividas por várias gerações naquele espaço. Será também inaugurado o Alojamento Local para Insetos, uma estrutura em ferro preenchida com materiais naturais e reciclados (cortiça, pinhas, folhas, ramos de árvores, etc.) que servirá como abrigo para criação de um refúgio de polinizadores e outros animais.

Durante o mês de abril, será ainda disponibilizado uma nova versão do site da Quinta Pedagógica.
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