Não são todos os anos que uma companhia comemora cinco décadas de atividade e, como não poderia deixar de ser, alguns dos momentos mais esperados deste 38.º Festival de Almada estão associados às comemorações dos 50 anos da Companhia de Teatro de Almada (CTA), organizadora daquele que é o mais importante festival de artes performativas do país.

Em primeiros lugar, pela estreia absoluta de duas novas criações no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada: Hipólito, de Eurípedes, com encenação de um habitual companheiro de percurso, Rogério de Carvalho (2 a 4 de julho); e Um gajo nunca mais é a mesma coisas, escrito e encenado pelo diretor da CTA e do Festival, Rodrigo Francisco (14 a 25 de julho). Em segundo,  por toda uma programação paralela, a qual inclui a exposição comemorativa, concebida por José Manuel Castanheira, e um conjunto de encontros entre personalidades que testemunharam o percurso iniciado com a fundação do Grupo de Campolide, por Joaquim Benite ainda em plena ditadura, e a consolidação da CTA como companhia de referência nacional e internacional, e impulsionadora da afirmação de uma cidade como Almada.

“Omma” é a mais recente criação do coreógrafo Josef Nadj  ©Severine Charrier

 

Ainda perante um tempo terrível para o meio cultural, e sucedendo a uma edição atípica, mas demonstrativa de uma consolidada relação com o seu público, esta 38.ª edição do Festival recupera a dimensão internacional, trazendo ao convívio dos espectadores alguns dos mais relevantes nomes do teatro e da dança – como o do coreógrafo Josef Nadj, com a sua mais recente criação, Omma; ou a de dois atores referenciais do teatro europeu, de regresso ao Festival: Viviane De Muynck (com Molly Bloom, a partir de James Joyce) e François Chattot (protagonista de Amitié, um surpreendente espetáculo de Irène Bonnaud, produzido pelo Festival d’Avignon, que cruza textos de Pier Paolo Pasolini com Eduardo De Filippo).

Como vem sendo habitual, o Festival de Almada estende-se a Lisboa, marcando passagem pelo Teatro Nacional D. Maria II e pelo Centro Cultural de Belém. E, fá-lo com dois protagonistas de peso: a atriz Monica Bellucci e o encenador Ivo van Hove.

Van Hove e Bellucci, inevitáveis ‘cabeças de cartaz’

Quase uma década volvida sobre a sua última passagem por Portugal (Husbands, a partir do filme homónimo de John Cassavetes, em março de 2012, no CCB), o encenador flamengo, e diretor artístico do reputadíssimo Toneelgroep Amsterdam, Ivo van Hove (n. 1958) regressa como inevitável “cabeça de cartaz” desta 38.ª edição do Festival de Almada.

Não é, de facto, de somenos: van Hove é um dos mais relevantes encenadores em atividade e, também, um dos mais disputados, deste e do outro lado do Atlântico, distinguido ao longo dos últimos 40 anos com os mais importantes prémios de teatro, incluindo o Tony, em 2016, pela encenação de A View from the Bridge, de Arthur Miller.

Quem matou o meu pai é a adaptação para palco da última obra do jovem autor francês Édouard Louis (n. 1992), romancista muito apetecível no teatro europeu, que tem vindo, com a chancela de outras grandes companhias e encenadores de relevância (em destaque também, nesta edição do Festival, a produção eslovena de História da Violência, dirigida pelo croata Ivica Buljan, a partir do primeiro romance do autor, em cena, de 2 a 5 de julho, em Almada), a ver as suas histórias sobre homofobia, racismo e desigualdade social serem encenadas nos grandes palcos.

Aqui, o autor parte de um tributo pessoal e íntimo ao pai – um operário envelhecido e doente como resultado de uma vida marcada pelo trabalho árduo, pela privação social e pelo álcool –, para apontar o dedo ao sistema capitalista e à elite política que trai constantemente as expetativas dos mais fracos.

A interpretar o monólogo está o ator neerlandês Hans Kesting, figura de proa do Toneelgroep, que pudemos ver na mais recente passagem da companhia por Lisboa, em 2019, com o extraordinário Ibsen House.

O espetáculo sobre Maria Callas que marca a estreia no teatro da famosa atriz italiana Monica Bellucci 

 

Entretanto, no palco do Grande Auditório do CCB, a heroína é Maria Callas. Mas, o que dizer sobre Callas quando, quem a interpreta é, tão só, Monica Bellucci, a atriz de cinema italiana que se tornou ícone planetário?

Maria Callas – Cartas e Memórias marcou a estreia de Bellucci nos palcos de teatro, em 2019 no Òdeon em Paris. Sob a batuta de Tom Volf, realizador e fotógrafo (sobretudo ligado à moda), a atriz encarnou a diva grega num monólogo escrito pelo próprio Volf, a partir do seu livro homónimo que resume uma longa investigação de sete anos em torno da figura da famosa cantora de ópera. Ao longo do espetáculo, acompanhamos o percurso daquela que foi uma, senão, a maior das sopranos do século XX, desde a infância modesta na Grécia aos últimos dias de solidão que antecederam a morte prematura, em Paris, com apenas 53 anos de idade.

Bellucci entrega-se de corpo e alma a Callas, num espetáculo que revela muitos aspetos até aqui desconhecidos da biografia da cantora que, como bem observa Rodrigo Francisco, “pareceu plasmar-se nas heroínas trágicas que cantou.”

Memórias de África e estreias nacionais

A cada edição, o Festival de Almada nunca se caracteriza por assumir uma temática específica. Contudo, este ano, e como sublinha o diretor artístico do Festival, “não deixa de ser evidente o diálogo encetado por vários dos espetáculos programados a propósito de África e do passado colonial português”. Para além da peça escrita e encenada por Rodrigo Francisco, pelos palcos de Almada vão passar ainda Aurora Negra, de Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema (2 a 5 de julho, na Academia Almadense), e Corpo Suspenso, de Rita Neves e Patrícia Couveiro (9 a 12, no Incrível Almadense).

Quanto às estreias nacionais, e para além das já referidas produções da CTA, Carla Galvão e Sara de Castro apresentam uma das últimas peças de Tennessee Williams, Duas Personagens (7 a 14, no Teatro-Estúdio António Assunção), e a Companhia Nacional de Bailado prossegue o ciclo Planeta Dança, com o capítulo 4 da série criada pela coreografa Sónia Baptista (Academia Almadense, dias 10 e 11).

Na reta final do Festival, de 23 a 25 de julho no Teatro Municipal Joaquim Benite, a “histórica” peça de Alfred de Musset Lorenzaccio, encenada por Rogério de Carvalho numa coprodução do Teatro do Bolhão com o Teatro Nacional de São João, volta aos palcos, depois da estreia em finais de 2020, no Porto. Trata-se da primeira vez que este marco da literatura dramática é encenado em Portugal, o que por si só o torna um dos grandes momentos da temporada artística.

Os bilhetes individuais para os espetáculos encontram-se já à venda, variando entre os 9 e os 50 euros. As Assinaturas, que dão acesso a todos os espetáculos do Festival, têm este ano o custo unitário de 80 euros. Toda a programação pode ser consultada no site oficial da CTA.

Uma das mais premiadas produtoras de espetáculos brasileira, a Fontes Artes, promove em Portugal a Mostra Brasil Teatro Online, através de um microsite alojado na Ticket Live Stage. Uma mostra que procura partilhar com o público cinco criações das mais de mil que no Brasil, e ao longo de mais de um ano, os artistas de teatro produziram para difusão online em contexto da pandemia.

A programação tem como especial atrativo reunir peças protagonizadas por algumas das estrelas femininas mais destacadas do teatro que se faz no Brasil, muitas delas reconhecidas pelos portugueses através de séries e telenovelas exibidas nos canais de televisão.

“A Árvore” de Silvia Gomez

 

Irene Ravache é a protagonista de Alma Despejada, texto de Andréa Bassit dirigido por Elias Andreato. Neste monólogo, a ilustre atriz brasileira interpreta o fantasma de uma mulher que regressa, por uma última vez, à casa onde morava.

Em A Árvore, Alessandra Negrini encarna uma mulher que enfrenta um estranho e complexo processo de metamorfose, assistindo à transformação do seu corpo num ente vegetal. Escrito por Silvia Gomez, uma das mais aclamadas e traduzidas autoras brasileiras da atualidade, o espetáculo tem encenação de Ester Laccava e direção de vídeo de João Wainer.

As atrizes Débora Falabella e Yara de Novaes protagonizam duas das propostas da Mostra: Neste Mundo Louco Nesta Noite Brilhante e Contrações. A primeira é um dos mais recentes textos de Silvia Gomez, estreado pouco antes da pandemia em São Paulo, aqui numa produção do Grupo 3 de Teatro, com direção de Gabriel Fontes Paiva. Quanto a Contrações, trata-se de uma peça assinada pelo britânico Mike Bartlett que aborda, com muito humor, as difíceis relações entre o mundo do trabalho e a vida privada.

A Mostra inclui ainda Galileu e eu. A arte da dúvida, espetáculo inspirado em Leben des Galilei de Bertolt Brecht, aqui segundo a visão da atriz Denise Fraga, que volta a interpretar o cientista renascentista, depois de o ter feito em 2015, numa premiada produção dirigida por Cibele Forjaz. O espetáculo é coassinado por José Maria e Luiz Villaça.

Para o diretor artístico da Fontes Artes, Gabriel Fontes Paiva,  esta Mostra é demonstrativa da vitalidade do novo teatro brasileiro, mesmo durante a crise sanitária global. “O resultado foi muito criativo e interessante”, sublinha, ressalvando que o que agora se dá a ver é “algo difícil de classificar nas divisões atuais, mas tem sido denominado como híbrido ou espetáculo online.”

A Mostra Brasil Teatro Online está disponível em formato on demand, ou seja, com bilhetes virtuais (entre 8,50 e 6,50 euros) sempre disponíveis para o público poder aceder na data e no horário mais conveniente, até 27 de julho.

Mário Dionísio

Passageiro Clandestino

“Toda a gente traz consigo um passageiro clandestino, sempre agarrado à mala suspeita onde transporta o mais perigoso dos materiais: milhares de sentimentos, de ideias, de simples frases, de gostos, de impertinências, de abdicações, de cóleras, de saudades, de esperanças, que a sociedade não reconhece”. Passageiro Clandestino, até agora inédito, escrito intermitentemente entre 1950 e 1989, é o primeiro volume do diário de Mário Dionísio que cobre o período de 1950 a 1957. O autor foi o poeta lírico do Novo Cancioneiro, de Memória dum Pintor Desconhecido e Terceira Idade. De intensa atividade pedagógica e estética (A Paleta e o Mundo), escreveu também belíssimos contos, em O Dia Cinzento e Monólogo a Duas Vozes, e foi autor de um romance ímpar na nossa ficção: Não Há Morte nem Princípio. Sobre o presente texto que não pretende ser” literatura”, com todas as páginas “mal escritas”, Mário Dionísio escreve: Quero ver-me ao espelho despenteado e sem gravata, de tal modo me surpreendo quando me encontro, na rua, por acaso, no vidro de uma montra ou no espelho de um estabelecimento”. Edição acompanhada por um tomo de Notas, da autoria de Eduarda Dionísio. Casa da Achada – Centro Mário Dionísio

Maurice Leblanc

Arséne Lupin – Gentleman Ladrão

Coletânea de nove contos, inicialmente publicados na revista Je sais tout em julho de 1905, resultou de um convite do seu editor, que procurava uma alternativa às narrativas policiais de Sherlock Holmes criadas por Arthur Conan Doyle. A obra trouxe abordagem diferente ao género da literatura policial promovendo um gatuno como herói, em vez do habitual detetive. Porém, Arséne Lupin não é um gatuno qualquer: é um gentleman fantasista de monóculo e cartola, um diletante que trabalha por gosto e por vocação, mas também para se divertir. Mestre dos mil disfarces, “muda de personalidade como quem muda de camisa”. “Porque haveria eu de ter uma aparência definida? Os meus atos já me definem bastante”, declara o herói. O sucesso global da série da Netflix motiva a reedição, em português, das aventuras desta personagem icónica que pela sua versatilidade, inventiva e humor, que vem apaixonando gerações sucessivas de leitores. Quando se introduz na mansão do barão Schormann, deixa um cartão com a seguinte inscrição: “Arséne Lupin, gentleman ladrão, voltará quando os móveis forem autênticos”. Uma delícia! Relógio D’Água

Victor Correia

Deus e o Coronavírus

Primo Levi escreveu em Se Isto É um Homem: “existe Auschwitz, logo não existe Deus”. Em plena pandemia de COVID 19, com mais de 3 milhões de vítimas mortais, que podemos dizer acerca do silêncio de Deus? Num mundo largamente dessacralizado, a questão de Deus, contrariamente ao que aconteceu nas epidemias do passado, não se assumiu como central no debate em trono do coronavírus. Ainda assim, este livro singular promove uma reflexão sobre a forma como as religiões do judaísmo, do cristianismo e do islamismo encararam a pandemia e as polémicas por elas criadas, com enfoque especial no cristianismo. Analisa a recusa do encerramento dos templos, a tese de que a pandemia foi um castigo de Deus, a rejeição religiosa das vacinas, o charlatanismo religioso e as superstições, a ineficácia das orações contra o coronavírus, a relação dos medos e das teorias da conspiração sobre o coronavírus com a atitude religiosa. Finalmente coloca um problema essencial: como encontrar um sentido para a vida durante a pandemia? Esse sentido é Deus? Guerra & Paz

Safo

Poemas e Fragmentos

Safo, a “Décima Musa” como lhe chamou Platão, nasceu numa família aristocrática, na ilha de Lesbos, em meados do século VII a.C. Viveu quase sempre em Mitilene, capital da ilha, rodeada de raparigas, numa comunidade que cultivava a poesia, a dança e o canto, vedada a homens, e que tinha Afrodite como deusa tutelar. Os seus poemas de amor dirigem-se frontalmente a mulheres e traduzem a experiência intima e avassaladora da paixão aliada a uma profunda comunhão com a natureza, numa linguagem de plena naturalidade alheia a qualquer ênfase ou excesso. Da sua obra original, lamentavelmente destruída pelos cristãos nos séculos IV e VI, sob acusação de imoral, chegaram aos nossos dias uma ode completa – a invocação a Afrodite – e cerca de duzentos fragmentos. Estas recriações de Eugénio de Andrade, que sentia por Safo uma das suas “fascinações mais antigas”, foram feitas, nas palavras do poeta: “em duas ou três semanas febris, como se de criação pessoal se tratasse, e nunca outro trabalho me deu prazer semelhante”. Uma belíssima homenagem â autora dos versos imortais: “Amo o esplendor. Para mim o desejo / é um sol magnificente e a beleza / coube-me em herança.” Assírio & Alvim

António Mega Ferreira

Desamigados

A origem deste livro remonta a um episódio anedótico. Um amigo do autor recebeu um comentário desagradável e rasteiro nas redes socias e com o indicador direito premiu uma tecla e exclamou: “Pronto! Já o desamiguei!” De facto, hoje em dia, com as redes sociais, “desamigar” tornou‑se um verbo banal e um ato instintivo, rápido e eficaz. Contudo, para falar verdadeiramente de desamizade, que implica refletir sobre a amizade, há que ir além do digital. António Mega Ferreira recupera a história de 11 amizades famosas e que acabaram mal, de César e Bruto a García Márquez e Vargas Llosa, passando por Wagner e Nietzsche, Freud e Jung ou Sartre e Camus. Como escreve o autor no prefácio à presente obra: “Em qualquer caso, não basta carregar no botão: o desamigamento é um processo doloroso, por muito definitivo que seja, e deixa fatalmente marcas em cada um dos antigos amigos”. São os graus de dor e complexidade que se escondem atrás da rutura real destes afetos que Mega Ferreira procura analisar. Tinta-da-china

Helen Pluckrose e James Lindsay

Teorias Cínicas

A escritora e conferencista Helen Pluckrose juntou-se ao matemático James Lindsay, fundador do New Discourses (espaço online para os politicamente desalojados), na concretização deste Teorias Cínicas, guia para a interpretação da linguagem e dos costumes dos teóricos da Justiça Social, movimento que tem origem no pós-modernismo e que visa desconstruir as “metanarrativas” que constituem a tradição do pensamento humano: a religião, a ciência, e o liberalismo filosófico (democracia, direitos humanos universais, liberdade de expressão). Segundo os autores, “A ideia pós-moderna de conhecimento nega que a verdade objetiva ou o conhecimento sejam aquilo que corresponde à realidade tal como determinado pelas evidências”. Os novos teóricos que recolheram elementos do pós-modernismo para aplicação num punhado de teorias (pós-colonial, queer e crítica de raça), afirmam o seu combate para desconstruir a injustiça social, algo que os dois autores de Teorias Cínicas reputam de um trabalho que procura minudências de linguagem que visam tresler propositadamente. Guerra & Paz

Guerra Junqueiro

O Fato Novo do Sultão e outros contos

No alargado contexto da sua intervenção poética, cultural social e política, Guerra Junqueiro tomou posição sobre questões de pedagogia. Acérrimo partidário da alfabetização, defendeu uma escola de contornos lúdicos e libertários para a criança, apoiada em novas metodologias de educação que excluíssem toda a violência institucionalizada. Os contos presentes nesta compilação são retirados da obra Contos para a Infância, publicada em 1877, por Guerra Junqueiro. Apesar de não serem da sua autoria, mas sim adaptações de histórias tradicionais, neles estão patentes as preocupações pedagógicas, sociais e culturais deste autor. Os valores subjacentes — a bondade, a justiça, a solidariedade, a honestidade, a gratidão, entre outros — são transmitidos de forma simples e construtiva. As ilustrações de Elias Gato, expressivas xilogravuras a branco e negro, formam o complemento ideal destas histórias que têm acompanhado o crescimento de tantas gerações de leitores. Fábula

Há três anos abraçou a direção artística do único teatro municipal do país exclusivamente dedicado aos mais jovens. Como está a ser esta experiência?

Está a ser muito gratificante. Gosto do que faço e sempre me diverti a programar, a pesquisar novos enunciados e a procurar respostas nas criações artísticas, em particular dirigidas às crianças e aos jovens. Passar da programação para a direção artística de um teatro trouxe espaço para pensar no teatro como um todo orgânico e articulado entre diferentes objetos de programação, agilizou os processos e as tomadas de decisão e permitiu construir respostas para estes públicos de uma forma mais ágil e em permanente atenção ao aqui e agora, como aliás, pudemos experimentar nos últimos meses. Temos recebido muitas palavras de incentivo vindas de pais, professores e artistas. Por um lado, é satisfatório e deixa-nos a sorrir, por outro, relembra-nos a nossa responsabilidade.

Quais têm sido os maiores desafios com que se tem vindo a deparar?

Abrimos o LU.CA há três anos e, durante o último ano, estivemos a viver um tempo pouco usual. Tínhamos um programa montado para um espaço físico e tivemos de o remontar para um espaço virtual, repensando todo o programa, desenhando-o à medida das características deste novo contexto. Foi um desafio totalmente novo. Curiosamente, foi também esta mudança que nos ajudou a ultrapassar um dos grandes desafios que se colocam a um novo equipamento cultural: darmo-nos a conhecer para além do espetro previsível. Uma programação específica para online fez-nos chegar a pessoas de diferentes faixas etárias, distribuídas de norte a sul do país e ilhas. Foi um público totalmente inesperado e novo que teve contacto com o programa do LU.CA, o que nos levanta novas questões, como o que fazer para manter estas relações. Penso que, num futuro próximo, teremos uma série de novos desafios.

Qual é a sua maior preocupação aquando da escolha dos objetos artísticos a apresentar no Teatro?

A relevância, o valor artístico e o ajuste dos conteúdos ao público alvo do LU.CA. Procuro programar artistas que querem falar com as crianças ou para elas e que fazem pesquisas nesse sentido, favorecendo a construção de experiências novas e, de certa forma, marcantes. Penso que só assim é possível criar uma memória positiva nas crianças e nos jovens, favorável a novos e repetidos encontros com as artes.

Até agora, conseguiu concretizar todas as ideias que tinha para o LU.CA?

Ainda não, mas tenho um bloco de notas a que chamo Ideólogo onde junto as ideias que se vão cruzando comigo. Algumas ainda não se concretizaram, outras transformaram-se e estes tempos mais recentes obrigaram-nos, de certo modo, a mudar de ideias. Além disso, o contexto está sempre a trazer novos inputs e, por isso, quando o contexto muda nada fica como antes.

O que gostaria muito de levar ao palco do LU.CA e ainda não conseguiu?

É uma resposta quase sem fim…. Primeiro, os projetos que ficaram adiados no último ano.

Qual é, para si, o papel que a Cultura tem na formação pessoal dos mais novos?

A Cultura cria o contexto, molda as experiências e influencia o desenvolvimento das crianças. É responsável, em grande parte, pela forma como crescem e evoluem, como interagem com o mundo e se relacionam com o que está à sua volta. Aqui, a relação com as artes é fundamental para garantir um crescimento completo e rico. No entanto, não é possível quantificar com rigor o impacto que as artes e as propostas culturais suscitam na formação individual de cada criança, mas sabemos como é importante a familiarização com a Arte e a Cultura, não só pela sua interpretação e compreensão, mas porque alarga o sentido de liberdade e propõe múltiplos olhares ampliando a sua leitura.

Porquê o nome artístico Moullinex?

Sempre gostei muito de house francês, daquela chamada fase french touch, onde se incluem bandas como os Daftpunk ou os Air. Quando comecei a assinar temas de músicas de dança precisava de um nome. Tinha acabado de samplar o som de uma picadora numa música, e achei que seria boa ideia chamar-me Moullinex, por causa dessa ideia de misturar eletrónica francesa. Em minha defesa, ninguém me leva completamente a sério e acho que isso é bom.

Requiem for Empathy é um álbum carregado de melancolia e introspeção…

Acho que sempre tive estas tonalidades presentes em mim, mas não tinha a segurança ou a coragem de as expor no meu trabalho. Como comecei a fazer música de dança muito celebratória e exuberante, sempre fui muito resistente a explorar este lado, mas achei que estava na altura de o fazer. Não se identificava muito com o que tinha feito antes, então fiz essa procura interior de perceber se fazia sentido este disco ser assinado como Moullinex. Achei que, se sempre tinha sido honesto comigo próprio e com a música que faço, tinha também que o ser com este disco.

Este disco é a prova de que a melancolia também se dança?

Essa prova já foi mais do que dada no passado por imensos músicos. Começando pelo Art Russell, e por tanta gente que canta canções tristes que são muito dançáveis. Há um disco de funk dos anos 70, Dance your troubles away, que ilustra muito bem esta ideia da pista de dança como um lugar de escape e de libertação dos nossos males do dia-a-dia. Mas sim, este é o meu disco mais terapêutico nesse sentido.

Este álbum explora o conceito de empatia. De onde vem essa curiosidade?

Sempre me interessou usar a minha música e o meu trabalho como plataforma para aprender coisas novas. Antigamente, fazia investigação em astronomia e neurologia e essa parte de mim esteve desativada durante muito tempo. Por ter tido tempo livre voltei a mergulhar nesse mundo e voltei a ligar-me a pessoas que vivem essa multidisciplinariedade da mesma forma que eu. Encontrava muitos paralelos entre o que estava a fazer musicalmente e a forma como alguns cientistas olham para a interação humana na pista de dança, por exemplo, e voltei a ligar-me a essa parte de mim.

Enquanto dj, o que te diz a experiência sobre a empatia que se gera nas pistas de dança?

A coisa mais bonita de ser dj é o facto de não ser uma experiência unidirecional como um concerto. No concerto, cria-se um ciclo de feedback, mas num dj set isso ainda é mais acentuado. Os djs são apenas uma componente de tudo o que está a acontecer e a energia do público leva-nos para determinado caminho, não trazemos um alinhamento pré-definido. É como contar uma história. Vamos percebendo a reação do público e percebemos se temos de ser mais dramáticos ou mais exuberantes. Esse loop de feedback interessa-me muito. A experiência partilhada – seja de um concerto ou de um dj set – é uma sensação muito forte. Nos melhores concertos sentimos que fazemos parte de algo maior do que nós. A mim, que sou muito racional e nada dado a metafísica, fascina-me esse sentimento. Olho para ele com uma lente o mais analítica possível. Tenho amigos cientistas que olham para isto da mesma forma, e interessa-me discuti-lo. Quando gostamos tanto de uma coisa passa a ser um bocadinho a nossa fixação.

O título do disco – Requiem for Empathy – resume essa ideia?

Resume, e também é um desafio porque requiem é uma missa fúnebre. É um desafio pensarmos se a empatia, no seu conceito lato, não é algo que se está a perder, e de que forma é que isso nos impacta. Qual é a nossa reação ao nos apercebermos disso? Escolhi este título em 2019, ainda sem saber o que aí vinha. De repente, este título tornou-se ainda mais óbvio. Hesitei em lançar o disco por causa disso mesmo: de ainda precisarmos, coletivamente, de atravessar esta experiência, chegar a algum lado (embora ainda não tenhamos saído dela, já se avista um horizonte). Achei que o disco não podia sair até se ver esse horizonte.

“Sempre me interessou usar a minha música e o meu trabalho como plataforma para aprender coisas novas”

Este disco conta com várias colaborações: Sara Tavares, Selma Uamusse ou Afonso Cabral. Porquê estes nomes?

Todos os cantores que participaram neste disco têm uma relação muito particular com a sua voz, no sentido em que parece nada esforçada, parece uma voz natural, muito honesta, muito pouco treinada. Para ser um cantor assim, é preciso muito mais trabalho do que para parecer um cantor formal e com muita técnica. Adoro isso num vocalista. Alguém que é capaz de atingir cumes e vales enormes, mas que também abraça as suas fragilidades, e eu sentia que precisava de criar este contraste entre uma parede distópica, artificial, um bocadinho hostil, dos sintetizadores e máquinas de ritmo, contraposto com elementos humanos como estas vozes. Achei que precisava de caminhar um bocadinho este contraste neste disco. Tive a sorte de ter convidado estas pessoas e de elas aceitarem porque foram as minhas primeiras escolhas. Em relação à Selma e à Sara terem cantado, respetivamente, em changana e crioulo cabo-verdiano, tem a ver com a questão da expressão ser mais direta ainda. Parece que estamos a mergulhar dentro da personalidade da pessoa, por estar a cantar na sua língua materna, ou na língua que mais corresponde à sua cultura identitária. Para mim, isso foi especialmente bonito. Com o changana, mesmo não entendendo as palavras, a emoção da Selma passa para quem ouve, e isso fascina-me.

De que forma foi feita essa colaboração?

Ambas pensavam que eu queria que a música fosse em inglês, mas senti logo, quando começámos a fazer experiências, que era importante fazê-lo na língua que elas quisessem. Para mim é importante que seja efetivamente uma colaboração muito participativa e não um featuring (em que há um instrumental pronto que se manda ao vocalista). Achei importante que fosse uma contribuição musical maior do que essa. Perco sempre uma oportunidade de ter uma música melhor se assim não for.

Com a pandemia, o universo digital modificou a forma como as pessoas se relacionam. As relações humanas alteraram-se para sempre?

Veio, sem dúvida, alterar a forma como as pessoas se relacionam. A quantidade de ligações multiplicou-se, a sua qualidade é que está em causa. Basta ver as estatísticas dos problemas de saúde mental associados ao isolamento. Os números dizem-nos que estamos a atravessar uma fase de profunda separação, apesar dos zooms constantes e de todas as experiências digitais que tentam substituir a vida real. Estamos todos fartos desse placebo, o que me deixa contente, porque ficou evidente que há uma parte real e tangível da nossa existência enquanto indivíduos que é necessária para nós, e que penso que nunca se irá perder.

O confinamento foi uma altura propícia à criação?

Em termos de música não. Foi, efetivamente, uma montanha-russa de emoções. De um dia para o outro o meu estado de espírito mudava completamente. Não fiz quase música nenhuma. Fiz um tema, Luz, que depois decidi incluir no disco. O disco ficou fechado uma semana antes do primeiro estado de emergência. Em termos criativos, foi-me muito difícil compor. Imagino sempre um espaço físico, mesmo que seja fantasioso, mas o tapete foi-nos tirado debaixo dos pés. Não havia pistas de dança, não conseguia imaginar a minha música a ser tocada e por isso tornou-se muito difícil criar. Canalizei um bocadinho os meus esforços para áreas nas quais não estava tão confortável, como os mundos mais visuais. Aprendi imensas técnicas visuais e de 3D, precisamente por serem coisas mais abstratas do que a minha música, e refugiei-me nisso. Mesmo em termos de consumo de entretenimento e de literatura, era tudo muito ficcional, imaginado, sci-fi, o mais desligado da realidade possível.

Em junho dá-se o tão antecipado regresso aos palcos. O que esperas deste reencontro com o público?

O diálogo entre o que faço no estúdio, nos dj sets e no palco com a banda é muito importante para mim. As coisas contaminam-se muito umas às outras e ter um disco pronto sem o poder materializar e mostrar às pessoas não é fácil… a melhor forma de o mostrar é mesmo frente a frente. Tem sido muito difícil, porque temos estado com a vida em suspenso. Estamos muito ansiosos por poder mostrar este disco ao vivo. É como se tivéssemos estado do lado de cá da janela a ver as músicas saírem, mas nós não podemos ir com elas para a rua, por isso sim, a vontade é muito grande.

Houve algum disco que te tenha marcado particularmente nos últimos tempos?

O meu disco favorito deste ano é Promises, de Floating Points, com Pharoah Sanders e The London Simphony Orchestra. É um encontro entre músicos que eu admiro muito: o Sam Shepherd (conhecido como Floating Points) e o Pharoah Sanders, que é um saxofonista incrível. Estas duas sensibilidades juntam-se num disco que tem de ser ouvido do início ao fim, como uma experiência contínua. É um bálsamo nesta altura em que precisamos de coisas que nos transportem para outros lugares. Não podia recomendá-lo mais.

No topo da Praça David Leandro da Silva, o edifício oitocentista, que foi outrora sede da empresa vinícola José Domingos Barreiros Lda., continua a manter a intemporal elegância, com toda a sua agradável simbiose de elementos clássicos e barrocos, que o tornam dos mais belos e icónicos do bairro lisboeta. Antes de entrar em obras de reconversão para habitações de luxo, os atuais proprietários, em parceria com a promotora de arte contemporânea Movart, sediada em Angola, abrem aos artistas e ao público os cinco pisos do imóvel, inaugurando o projeto MAD – Marvilla Art District.

Como refere Janire Bilbao, diretora da Movart, a exposição New Era for Humanity pretende ser o início de “uma ligação consistente que se pretende criar com este e outros espaços” de uma zona da cidade que, paulatinamente, foi substituindo aquela que foi a sua vocação maioritariamente industrial, pela locação de projetos artísticos e criativos que a veem tornando numa das mais vibrantes da capital.

Em busca do maior ecletismo e diversidade, a mostra reúne, nas palavras da curadora Negarra A. Kudumu, “uma assinalável variedade de expressões plásticas como a pintura, a fotografia, o filme, o têxtil, a escultura e a instalação”. Igualmente dispares são os temas abordados pelos artistas, que percorrem desde as temáticas intemporais na história da arte às inquietações mais atuais, que se prendem com os constrangimentos às liberdades, as migrações e, claro, a pandemia.

E a propósito da crise sanitária global dos últimos meses, considera a curadora que esta exposição, ao “recordar-nos onde estávamos” e também muito do que vivemos durante a pandemia, apresenta-se como “um exercício ativo de construção de comunidade, que nos recorda das ideias e práticas criativas que temporariamente tivemos de suspender, mas que agora estamos prontos para retomar.”

Daí o título, com tanto de celebrativo, New Era for Humanity, e o olhar proposto pelos trabalhos exibidos, assinados por Abraão Vicente, Agar Domingas, Alan Louis, Alain Richard, Alina de Oliveira, Ana Silva, Àsikò, Binelde Hyrcan, Bruno Cattani, Colectivo Boanda, Ihosvanny, Jordi Busch com o escritor angolano Ondjaki, Kwame Sousa, Lino Damião, Lola Keyezua, Lucano, Mário Macilau, Miguel Petchkovsky, Miguel Rodrigues, Mónica de Miranda, Mumpasi Meso, Nelo Teixeira, Rebecca Fontaine-Wolf, Rita GT, Sizwe Sibisi, Thina Dube e Thó Simões.

Com inauguração agendada para 27 de maio, a exposição pode ser visitada de segunda a sexta-feira, entre as 14 e as 18h30, e aos fins de semana, entre as 10 e as 14 horas. A entrada é gratuita.

Quando soubeste que querias ser músico?

Na verdade, sinto que, na minha família, fui o último a aceitar isso. Desde cedo, os meus pais acharam que eu era muito musical e que tinha algum jeito. Gostava de música, mas não estava na minha ideia tornar isso uma coisa séria. Na adolescência escolhi a área de desporto, mas tive uns contratempos a nível físico. Houve algumas lesões e sofri um acidente. Posteriormente a isto, comprei uma guitarra, comecei a tocar meio na brincadeira e passado algum tempo a coisa começou a ganhar uma dimensão maior. A partir daí comecei a estudar música. Primeiro num universo clássico, depois estudei jazz no Hot Clube. Foi aí que as coisas começaram a ficar sérias, e que comecei a viver profissionalmente da música.

A tua música concentra vários estilos e sonoridades. Dirias que és uma verdadeira mistura de influências?

Acho que é uma mistura de coisas, sim. Sou um português made in África, o que fez com que tivesse o privilégio de ser criado num ambiente de mescla cultural. Os alicerces da minha vivência estavam associados à cultura portuguesa, mas também à cultura da África lusófona. Nunca tive um alter-ego musical. A minha música é um reflexo daquilo que sou enquanto pessoa e das minhas vivências. Sendo esse processo muito autêntico em mim, ao nível das influências todas essas coisas estavam lá também, e não fazia sentido não estarem na minha música porque fazem parte de mim.

Participaste em projetos como Luiz e a Lata e tocaste em bares. Foi uma escola importante?

Sem dúvida. As escolas de música são, porventura, um fator importante na formação de um músico, até porque o saber não ocupa lugar e, quando estás em determinada área profissional, é importante ter as melhores valências possíveis em relação a essa mesma área. Agora, o palco também traz muitas outras coisas que a escola não traz, acho que acaba por ser um complemento. Tive a sorte de poder ter os dois mundos: durante o dia estudava música e passava as noites a tocar em bares. Tive projetos de vários estilos musicais, desde projetos lusófonos, música portuguesa, brasileira, funk, soul, reggae… acabei por deambular um bocadinho por vários estilos musicais e todos eles acabaram por me ensinar muito e trazer muita riqueza àquilo que faço.

Como é o teu processo criativo?

50% de inspiração e 50% de transpiração [risos]. Às vezes inspiro-me nas coisas mais mundanas e triviais. Pode ser a leitura de um livro, o visionamento de um documentário, uma história que me contaram… há muitos inputs que me dão vontade de escrever. Funciono um bocado por camadas: quando estou em processo criativo estou literalmente em processo criativo, e não quero focar-me noutras coisas. Quando sinto que já tenho um leque de temas que dá para começar a trabalhar, então termino esse processo criativo aí e passo para outro que é quase comparável a estar na cozinha a temperar a comida. A produção, para mim, é um bocadinho isso. Quando estou no processo de produção, de um modo geral não estou a compor. Vou fazendo as coisas um bocadinho por etapas e concentro-me muito em cada uma delas.

“A minha música é um reflexo daquilo que sou enquanto pessoa”

 

Em dezembro lançaste o EP Só.Tão. É um trocadilho com o local de casa onde escreveste os singles?

Sempre gostei de trabalhar em equipa, e os meus discos anteriores – fosse a solo ou com Luiz e a Lata – tiveram muitas colaborações, não só a nível autoral, mas também participações de músicos a tocar. Desta vez, devido à contingência da pandemia, o facto de ter um pequeno sótão em casa, onde tenho um estúdio, acabou por me levar a este percurso que terminou no Só.Tão, e acabei por, pela primeira vez, fazer tudo completamente sozinho: compor, tocar, captar som, misturar. Foi um trabalho que me fez viajar, muito interessante e importante para mim. Obviamente que continuo com muita vontade de trabalhar em equipa, mas foi a forma que encontrei para continuar, de algum modo, a fazer música e a estar ligado ao processo criativo. Enchi-me de coragem e avancei para algo que nunca antes tinha acontecido, e que resultou neste novo EP.

Conseguiste, portanto, aproveitar o tempo do confinamento para criar?

Num primeiro momento passei bastante mal. Tenho dois filhos pequenos, a minha filha mais nova nasceu pouco tempo antes tudo isto ter começado. De repente, estarmos quatro pessoas num apartamento, a minha mulher em teletrabalho, eu praticamente todo o dia a tomar conta dos miúdos… nos primeiros momentos foi bastante duro. Senti que precisava de reagir, e este Só.Tão acabou por ser uma tábua de salvação. Sentia que não me podia deixar ir abaixo, tive de arregaçar as mangas e trabalhar para continuar a compor, embora de um modo mais solitário.

No EP abordas um tema muito presente nas nossas vidas, e especialmente na das gerações mais novas: a importância da internet e das redes sociais. Achas que isto nos afasta cada vez mais, em vez de nos aproximar?

Já tive várias opiniões e ideias à volta dessa questão. Nasci numa era completamente analógica e a certa altura tudo virou digital e altamente globalizado. Está tudo à distância de um clique, com o melhor e o pior que daí advenha. Se, por um lado, hoje em dia é muito fácil ter conteúdos e chegar às pessoas, por outro, acho que cada vez mais há excesso de informação. A questão dos likes está altamente valorizada e passou a valer mais do que os próprios conteúdos que cada pessoa ou artista apresenta. Deixou de haver uma espécie de meritocracia. Antigamente, quando queríamos gravar um disco, íamos à editora, apresentávamos as canções e a editora ou gostava ou não. Hoje em dia, se alguém tem 500 mil seguidores, já nem interessa o que é que essa pessoa faz. As coisas estão um bocadinho perversas a esse nível. Custa-me um bocadinho lidar com isto e a canção Likes por amor acaba por falar sobre isso. Prefiro trocar um like por um concerto meu, algo verdadeiramente genuíno que não esteja naquela espécie de bolha que são as redes sociais, onde toda a gente tem uma cara, mas onde é fácil as pessoas esconderem-se atrás do ecrã.

Há um investimento no lado visual das canções…

Tive a sorte de, há uns anos, ter começado a trabalhar com um músico que também domina esta área do audiovisual. Temos sido grandes parceiros. Chama-se Gus Liberdade, foi com ele que fui ao Festival da Canção de 2020. Para além de ser músico, está ligado ao audiovisual. O facto de ele tocar comigo, de termos proximidade e de ele conhecer bem a minha música, ajudou a que fossemos construindo uma estética visual. Os três vídeos deste EP (e o da música que levámos ao Festival o ano passado, Dói-me o País) foram feitos pelo Gus, daí haver esta homogeneidade neste trabalho.

No final do mês, atuas no Som no Coreto, ao ar livre. Estás ansioso por poder tocar novamente para as pessoas?

Felizmente, tenho vários concertos agendados para os próximos meses. Quero muito acreditar que o pior já passou e que a estrada vai voltar para muitos de nós, músicos, que tanto precisamos de voltar a trabalhar e estar com o público. Preciso do palco como de oxigénio. Estes meses foram asfixiantes, mas espero que o pior já tenha passado.

Um concerto imperdível para ver nos próximos tempos?

O baterista que toca comigo há muitos anos e que é como um irmão para mim, o Ivo Costa, é também o baterista de um projeto incrível que se chama Bateu Matou. O grupo vai apresentar o disco de estreia no Lux [dias 27 e 28 de maio] e acho que vai ser um concerto imperdível. O álbum tem uma grande energia e em cima do palco vai ter mais ainda.

Quase 20 anos separam uma peça da outra. Top Girls, texto de 1982, amplamente premiado e dos que mais contribuíram para consagrar Caryl Churchill (n. 1938) como uma das maiores dramaturgas do teatro inglês. Distante (Far Away no original), escrito em 2000, fazendo ressoar o pessimismo que a autora descortinava já sobre este novo milénio, e que pode ser testemunhado numa peça mais recente, e atualmente em cena no Teatro Aberto, Só eu escapei (2016).

São peças distintas ou, como diz Cristina Carvalhal que agora dirige Top Girls, “uma é mais realista e concreta; a outra, Distante, mais abstrata”. Contudo, ambas partilham a singular capacidade da autora em combinar a experimentação dramatúrgica com o compromisso social e político, algo que torna a sua obra, sobretudo pela heterogeneidade, capaz de uma acutilância rara no olhar que propõe sobre o mundo que nos rodeia. E isto, independentemente de uma peça ter como pano de fundo o triunfo do capitalismo selvagem nos anos de Thatcher (Top Girls), e outra se passar num tempo incerto, perante um cenário de guerra total (Distante).

Nuno Pinheiro, Tânia Alves e Inês Dias em “Distante” ©Francisco Levita/ CML_ACL

 

Como enfatiza o especialista em Teatro britânico Peter Buse, parte da dramaturgia de Churchill encontra o drama na “frustração do desejo”, desejo esse “nem sempre erótico”, mas “quase sempre político”. E as vitimas dessa frustração são “os oprimidos e, numa grande parte das vezes, as mulheres”, ou seja, quem “o ordenamento social e político patriarcal está pouco disposto a acomodar.”

Esse acaba por ser o drama de Marlene, a protagonista de Top Girls. Ela é uma mulher que orientou tudo para ser bem-sucedida na carreira, sacrificando valores maiores e vida pessoal para ser “acomodada”. Ou seja, Marlene apresenta-se como o exemplo da mulher que conquistou o poder mas perdeu a alma, rendendo-se a um sistema implacável, onde não sendo agente de mudança se torna parte do problema. No fundo, e à semelhança da então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher (diretamente visada no texto original da peça), esta protagonista é uma “patriarca” no feminino.

Através de um enredo não linear e episódico, Churchill constrói um “clássico” notabilizado pela extraordinária e fantasiosa cena do restaurante em Londres, onde Marlene comemora a sua promoção a um cargo de chefia na agência de empregos onde trabalha (a “Top Girls” do título). Aí, ao jantar, este modelo feminino de sucesso reúne-se com mulheres de várias épocas, as quais a história, enquanto produto da visão patriarcal, tratou praticamente de omitir. Elas são Isabella Bird, uma viajante e escritora inglesa do século XIX; a Papisa Joana, que no século IX chefiou, disfarçada de homem, a Igreja Católica; Gret, a líder de um exército de mulheres que terá, segundo o folclore flamengo, saqueado o Inferno, estando celebrizada numa famosa pintura de Pieter Breughel; Nijo, que no século XIII foi educada para ser concubina do imperador do Japão, tornando-se, após incontáveis tormentas, monja budista; e Griselda, uma pobre camponesa tornada personagem central num dos contos do Decameron de Boccaccio.

Sandra Faleiro e Beatriz Brás em “Top Girls” ©Humberto Mouco/ CML_ACL

 

Metodicamente, os dramas pessoais destas mulheres permitem a Churchill apresentar os temas que se vão cruzando no mundo que rodeia Marlene, do local de trabalho à intimidade familiar. E, ao falar desta “mulher de sucesso” segundo os ditames da sociedade capitalista, Churchill não só evidencia o seu olhar crítico sobre a desigualdade, como o contrasta com as causas, atribuíveis não só ao género, mas também à raça e à origem social.

Por isso, Cristina Carvalhal lembra que Top Girls, embora seja habitualmente apontada como uma peça feminista, é sobretudo, tal como Churchill sempre fez questão de considerar, “uma peça sobre o poder e de como o seu exercício define a condição da mulher”. Algo que, sendo indissociável do teatro de Caryl Churchill, foi também do da encenadora que dirigiu pela primeira vez este texto em teatros portugueses – Fernanda Lapa, em 1993, no Teatro Aberto. Aliás, é a essa feminista convicta, também ela tão implicada na transformação política e social, que Cristina Carvalhal (atriz nesse espetáculo) dedica o “seu” Top Girls, uma peça tão urgente hoje, como tem sido desde há décadas.

A distopia mais negra

Caryll Churchill assumiu sempre que o seu teatro não serve para dar respostas, antes colocar questões, como se essa fosse a melhor forma de interpelar o poder. Em Top Girls, a autora aponta o dedo a uma sociedade em desumanização crescente, competitiva ou, como refere Cristina Carvalhal, “uma sociedade desprovida de humanismo” que nos pode encaminhar para um tempo cada vez mais negro e sombrio.

Essa sociedade futura, despojada de valores, profundamente mecanizada, encontra-se plasmada em Distante, peça curta, com apenas quatro personagens e passada num mundo em que homens, animais e elementos da natureza se encontram numa guerra sem fim.

Dirigida por Teresa Coutinho, a peça é constituída por três quadros mergulhados numa ambiguidade perturbadora. “É um texto brilhante, difícil, onde estamos sempre à procura de saber o que move as personagens e a questionar-nos o que é o bem e o mal, a verdade e a mentira, o certo e o errado”, sublinha a encenadora.

Uma vez mais, o tema é o poder, através da institucionalização do “medo que um governo impõe sobre os seus cidadãos”. Sabemos que existe conflito sem solução, descortina-se uma limpeza étnica e todo o quotidiano é marcado pela brutalidade.

Nuno Pinheiro em “Distante”  ©Francisco Levita/CML-ACL

 

Distante dispõe-se como um puzzle. Num primeiro quadro, uma jovem, Joan, interpela a tia sobre os gritos que escutou lá fora e que a fizeram assistir a uma cena de violência e opressão entre o seu tio e um grupo de homens, presumíveis prisioneiros. O segundo, passa-se numa fábrica de chapéus destinados ao desfile público de execução de prisioneiros, e ali encontramos Joan, agora uma mulher, e aquele que será o seu futuro noivo. No quadro final, o casal regressa à casa da tia de Joan e sabe-se que o mundo está mergulhado numa guerra total, onde se formaram blocos beligerantes de homens e animais, uns contra os outros, e se percebe que o futuro deixou de ser uma possibilidade.

Entre um realismo temperado de fantasia e a mais negra das distopias, a partir de 20 de maio e até princípio de junho, Top Girls e Distante mostram duas faces do teatro daquela que é uma das grandes autoras do nosso tempo.

Os museólogos Clara Frayão Camacho e Fernando António Baptista Pereira e a investigadora Ana Carvalho responderam ao desafio da Agenda Cultural de Lisboa com três textos inéditos sobre o tema.

Clara Frayão Camacho

Museóloga, coordenadora do Grupo de Projeto Museus no Futuro

Estamos habituados a ligar os museus ao passado e ao presente, mas podem também constituir-se como laboratório de estudo e perspectivação do futuro. Foi isso que fizemos no Grupo de Projeto Museus no Futuro formado em meados de 2019, que coordenei ao longo de um ano e meio, e que culminou num relatório com 50 recomendações para os museus palácios e monumentos do ministério da cultura. A análise demográfica do pais, o retomar do turismo, as questões da sustentabilidade, da participação e da transformação digital, levam-me a traçar algumas ideias sobre a perspectiva dos museus do futuro. A primeira é que a pandemia nos alertou para questões sanitárias de bem-estar físico e mental que devemos seguir. Será que essas questões vão ter repercussões a médio prazo na arquitectura dos museus, no equacionar dos espaços de acolhimento, do trabalho dos serviços educativos, do manuseio de equipamento interactivo? No que respeita à participação, é cada vez mais notório que fatias significativas da população gostam não só de ver e comtemplar as obras de arte, mas também de agir e participar em programa em que sejam ouvidas, seja através de co-curadoria de exposições temporárias, seja na participação de grupos consultivos, ou até em situações de governança participativa que estão a ser experimentadas nalguns museus do mundo. O museu tem que ser uma casa para todos e pensar sobretudo naqueles que não vêm ao museu se quer ser relevante para a sociedade e não apenas para parte dela. Os cidadãos com literacia digital cada vez mais elevada vão exigir formas mais interactivas de atuação dos museus. No futuro perspectiva-se uma complementaridade entre o físico e o online, nunca o desaparecimento da experiência presencial, essencial para fruir e dialogar com os bens culturais. Também nas questões da sustentabilidade os museus devem ter um papel significativo, seja pedagógico, através de exposições, de reflexão e investigação, seja pelo seu próprio exemplo, em termos de arquitectura, de planeamento de espaços ao ar livre, de estacionamento de bicicletas e práticas sustentáveis. Finalmente, o trabalho em rede é definitivamente a grande tendência organizacional do futuro. Quer do ponto de vista formal, com a renovação da própria rede portuguesa de museus, quer no trabalho no terreno com as várias redes de museus já existentes, quer com directrizes políticas a nível nacional e municipal, com grande envolvimento da sociedade.

Fernando António Baptista Pereira

Presidente da Faculdade de Belas Artes de Lisboa

A transição digital nos museus é um dos imperativos desta década. Digitalizar os acervos e colocá-los online, mas também a documentação alusiva a esses acervos ou seja muitas exposições, catálogos, estudos de mestrado, de doutoramento, etc. Tarefa que necessita de equipas vocacionadas para este fim. O outro lado desta revolução é para mim, a possibilidade de criar no museu um espaço Wi-Fi livre para se poderem inserir as aplicações necessárias para se realizar uma visita com o próprio telemóvel, não com os audioguias tradicionais. Os visitantes têm como grandes rivais do museu o seu próprio telemóvel que os atrai para a leitura de coisas exteriores ao museu. Por isso, é importante que o museu entre no telemóvel do visitante através de uma aplicação que lhe presta informações sobre a obra que está a ver, pois mediante o sistema de beacons consegue localizar a presença das pessoas no museu, podendo mesmo propor jogos sobre a obra em causa e, até, sugerir a visita à medida do gosto individual. Se conseguirmos fazer isto, os museus ultrapassam o fim da era das massas que a pandemia ditou. Importa realizar exposições virtuais e eventos online que possam atrair visitantes espalhados ao longo do ano e não concentrados nos meses de verão e, sobretudo, tornar o dispositivo móvel da pessoa como o seu grande aliado na visita ao museu que permite guardar as informações e levar o museu para casa, revisitando-o. Estas são as duas questões fundamentais da transição digital. Acrescentaria ainda uma questão estratégica para o desenvolvimento do país: a constituição de grandes reservas patrimoniais espalhadas regionalmente associadas a laboratórios de conservação e restauro. Não só se empregariam imensos jovens formados nesses domínios, como se encontravam reservas em condições para albergar o património arqueológico, que é imenso, algum do património etnográfico, que está a sair do país para enriquecer coleções lá fora e parte do património artístico que os seus detentores não podem conservar devidamente. Mantendo um registo de propriedade, as reservas seriam os locais onde as peças estariam guardadas e disponíveis para exposições temporárias. Os centros de conservação e restauro associados a essas reservas, os sítios onde essas obras iam sendo estudadas, tratadas e salvaguardadas.

Ana Carvalho

Investigadora da Universidade de Évora

A questão dos museus do futuro não é nova, mas tem-nos inquietado particularmente no último ano. O que é possível fazer para que os museus enfrentem melhor os desafios da sociedade? Esses desafios são múltiplos, porém o que me parece mais evidente é o digital pela forma como se tornou, com as portas dos museus fechadas, no recurso a um espaço imprescindível. Na verdade, já antes da pandemia muitos museus trabalhavam o espaço digital, trazendo novos conteúdos e diversificando os seus públicos. Participei no projeto internacional MU.SA que abordava a forma como os museus podem responder aos desafios da sociedade digital. A crise pandémica evidenciou que de uma forma geral os museus não estão preparados para esse passo. Não conseguem construir uma estratégia que use o digital como forma de beneficiar a sua missão. Sinto, neste momento, que existe um enorme apetite para voltarmos à experiência física, um cansaço do digital. Os museus têm agora a oportunidade de voltar a garantir essas experiências únicas e autênticas no espaço físico. Mas, a ideia do digital não vai desparecer. É como se houvesse uma expansão do trabalho dos museus e é preciso capacitá-los para essa tarefa. Em Portugal , nos museus nacionais, as equipas são pequenas e envelhecidas, com poucos recursos, algumas com poucas competências na área digital e infra-estruturas obsoletas. A ideia de “fazer cada vez mais, com menos recursos” não é possível para um trabalho de comunidade e de continuidade nos museus. Existe uma necessidade de maior cooperação com outras entidades para transferência de conhecimentos, um investimento nas tecnologias de informação, a possibilidade de criar projetos piloto, a promoção do acesso através do investimento na digitalização dos acervos. E, mais do que digitalizar, pensar que histórias se podem contar a partir dessas coleções digitais. Isto implica o reconhecimento das fragilidades e políticas públicas assertivas. Os museus portugueses têm subsistido a crises constantes. Esta é mais uma, mas sem precedentes e que vai trazer um conjunto de reproduções a vários níveis. Os museus, que já se encontravam numa situação frágil, se não virem estas questões encaradas com cuidado, dificilmente poderão desempenhar funções relevantes.

[os autores escrevem de acordo com a antiga ortografia]

Como surgiu a ideia de fazer um filme sobre a vinda dos camaradas do norte para as cooperativas portuguesas e a “revolução sexual e de costumes” que daí surgiu?

O primeiro contacto que tive com estes relatos sobre a intimidade e a sexualidade foi através dos diários que o José e a Eduarda, que eram um casal na época, escreveram a partir da sua vivência. Eles eram portugueses exilados na Alemanha e vieram para Portugal como alfabetizadores nas cooperativas da Azambuja. A partir daí comecei a ligar esta informação a outras histórias que fui ouvindo, algumas inclusive em debates depois de ter feito o filme Linha Vermelha (2012). Uma dessas histórias foi-me contada por uma alemã que estava na plateia do Museu de História Alemã, em Berlim, onde fiz uma apresentação. Ela explicou-me como as mulheres da cooperativa Torre Bela a receberam: numa assembleia, as mulheres decidiram que todas as estrangeiras tinham que sair da cooperativa ao fim de semana, para que os homens portugueses não cedessem à tentação, com exceção desta alemã e de uma amiga, que elas acreditavam serem um casal. Fui ligando todas estas histórias, porque me interessava fazer um filme que tocasse numa revolução que não era só da esfera política e institucional, mas também do corpo, da relação com os outros, da relação homem/mulher.

Porquê filmar as pessoas reais que viveram todas estas histórias e que no filme assumem terem a idade que tinham em 1975?

Tive dúvidas sobre como fazer o filme com toda a informação que tinha. Não sabia se ia filmar as histórias diretamente com atores, ou fazer leituras dos textos que tinha descoberto, havia várias hipóteses. Então surgiu esta ideia de utilizar as pessoas que viveram nas cooperativas e que estas assumissem no filme ter 18, 20 ou 30 e tal anos, quando de facto a sua idade ronda os 60 ou 70 anos. Quis brincar com essa ideia de um faz de conta.

Como chegou às pessoas que são as personagens do filme, como conseguiu encontrá-las ao fim de tantos anos?

Encontrei-as através de pistas que me foram sendo dadas, por uns e por outros. Através de almoços em Manique do Intendente (freguesia do concelho da Azambuja) onde um dos atores do filme, que foi um grande facilitador, me colocou em contacto com outras pessoas. Mas passou também, por exemplo, por ir à junta de freguesia de Aveiras perguntar se ainda ali viviam pessoas dessa época. Aí obtive outros contactos. Desta forma fui criando uma rede.

Os intervenientes, voltaram a reviver, no filme, o que passaram há mais de 40 anos. Como foi para eles serem confrontados com esses tempos do passado?

Foi sobretudo divertido. Propor àquelas pessoas que assumissem terem a idade da época, era à partida uma premissa que convidava ao jogo, a um jogo lúdico. Ao revisitarem os espaços onde filmei – alguns deles tinham sido ocupados, outros não – as suas memórias eram espicaçadas. Um bom exemplo disso é a cena no lavadouro, onde as mulheres conversam sobre as suas primeiras experiências sexuais e sobre o casamento. O facto de estarem ali em ação, em contacto com algo que era habitual naquela altura, fê-las rememorarem. Levou-as a utilizar um vocabulário que é muito interessante, mas também uma gestualidade e uma maneira de contar as coisas muito irónica, já com uma certa distância em relação aos acontecimentos, ao mesmo tempo com um gosto por estarem a lembrar. Para muitas das pessoas, nomeadamente os portugueses regressados do exílio, aquele período foi muito celebratório, apesar de turbulento e com tensões, a memória que têm é muito festiva. Foi uma libertação toda aquela experiência que viveram em 1975.

Estas pessoas não são atores. Que tipo de indicações ou de trabalho é necessário para, enquanto realizador, conseguir que correspondam às expetativas?

Só uma cena teve indicações. Os textos eram estudados no momento, os atores não decoraram nada. Isto tem uma grande vantagem, não ficaram agarrados a um texto que tinham de dizer e eram eles que reinventavam as situações dramáticas que lhes eram dadas. Fizemos algumas sessões preparatórias, com a atriz Sofia Cabrita, onde lhes eram apresentadas situações para improvisarem e a partir daí fomos vendo o perfil de cada um e do que eram capazes. Foi muito interessante porque se percebeu que, quer nas palavras que usavam, quer na gestualidade, havia uma grande frescura. Regressavam àquele tempo com grande vivacidade, sem uma mecanicidade. Os atores tinham poder para dramatizar as situações, era esse o objetivo e não a reconstituição de uma vivência.

Não deixa de ser irónico e surpreendente que, passados quase 50 anos, continuemos a discutir as mesmas questões. As diferenças entre mulheres e homens a nível laboral, salarial e familiar continuam a ser enormes. Não deveríamos estar hoje muito mais à frente?

Acho que a Revolução e aquele período prometiam muito mais do que aquilo que aconteceu. Os estrangeiros que vieram para as cooperativas traziam muitas coisas e o horizonte utópico era muito mais largo. O que acabou por acontecer foi que voltámos todos para as nossas casinhas… Claro que houve um grande salto, mas continuam a existir ainda ideias preconcebidas muito enraizadas. Há uma coisa muito engraçada que a Eduarda, uma das alfabetizadoras que veio da Alemanha diz: “Nós lutámos muito naquela altura pelas bibliotecas, pelo livro, pela palavra, e passado pouco tempo estávamos a ver as pessoas a assistir à novela em vez de irem à biblioteca. Foi uma deceção, aquilo que os tempos prometiam e em que acabaram por resultar.”

É importante para si manter a memória viva daquilo que se passou no país? É também com esse intuito que tem vindo a abordar a temática da opressão e do 25 de Abril na sua obra?

Sim, é muito prazeroso ver num grupo de atores esta viagem festiva e celebratória. Como disse anteriormente, houve um horizonte que não se cumpriu, uma linha de esperança que não chegámos a atingir. Nesse sentido é interessante retornar a esse período e reapresentá-lo às pessoas. O 25 de Abril é quase sempre abordado do ponto de vista político e institucional e dá-se pouca atenção a este lado dos comportamentos, da intimidade e à promessa que existia de um homem e de uma mulher novos. A Revolução não passava só pela substituição de um governo ou de um regime, mas também pela mudança daquilo que era pequeno, doméstico, “lá de casa”. Abordo esta questão de uma maneira sensorial, não há entrevistas no filme, mas sim pessoas em ação. Desta forma invoco um lado emocional que me interessava explorar, uma experiência de revivência e não um relato factual.

Perante a situação pandémica que vivemos e os custos que tem tido para o cinema, é quase uma revolução, ou um ato de coragem, estrear um filme nestas circunstâncias. Prazer, camaradas! estava previsto estrear em 2019, porque não adiou ainda mais a sua estreia?

Estávamos mesmo desejosos de mostrar e partilhar o filme, apesar de toda a incerteza.

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