Por isso, neste mês de dezembro, a Agenda Cultural de Lisboa foi conhecer o trabalho de seis artistas, das mais variadas áreas, que criam e trabalham especialmente para o público mais difícil do mundo. É que trabalhar para e com miúdos pode ser uma alegria e um desafio, até porque, muitas vezes, eles vêem as coisas através dos olhos que os adultos se esquecem que existem.

Catarina Oliveira e Ana Sofia Santos

Designer e cenógrafa | atriz e produtora

Ana Sofia é atriz e produtora, Catarina tem a seu cargo o design e a cenografia. Juntamente com Noélia Fernandes, responsável pela dramaturgia, e com vários atores profissionais, dão corpo à Cativar, uma associação cultural que cria peças de teatro para a infância. Com enredos originais ou a partir de histórias tradicionais, a Cativar apresenta espetáculos que integram movimento, música e muitos finais felizes, nunca esquecendo o lado educativo e pedagógico. A principal mais-valia da associação, que promete sempre exibições muito divertidas e lúdicas, é a capacidade de, graças à portabilidade e adaptabilidade dos seus cenários, levarem as peças às escolas, nomeadamente a creches e jardins de infância. Os espetáculos da Cativar têm também presença assídua na Fábrica Braço de Prata aos fins de semana e, este mês, apresentam naquele espaço as peças Pinheirinho de Natal (dias 5 e 12, às 11h) e A Loja dos Sonhos de Natal (dias 19 e 26, às 11h). Através de fantoches, personagens dinâmicos e marionetas, os espetáculos da Cativar fazem as delícias de miúdos… e graúdos.

Rodolfo Castro

O pior contador de histórias do mundo

Argentino a viver em Portugal, Rodolfo Castro sempre quis ser o melhor contador de histórias do mundo. E, para ser o melhor, estudou, treinou, trabalhou e… não conseguiu. Então, pensou que se não conseguia ser o melhor, podia ser que conseguisse ser o pior. Estudou, treinou, trabalhou e… conseguiu! “Eu sou o pior contador de histórias do mundo: conto as piores histórias do mundo ao pior público do mundo”, assim se apresenta este habitante do conto. “Esta denominação tem a ver com o registo com que eu trabalho e que está um bocadinho fora do politicamente correto para crianças. São histórias muitas vezes provocadoras, transgressoras, até mesmo cruéis, que têm muito a ver com a minha visão do mundo e que gosto de partilhar com os mais pequenos. E eles alinham, gostam mesmo muito, porque as crianças são muito cruéis.” Rodolfo também escreve e, nos últimos tempos, tem feito ainda trabalhos de ilustração, tendo mesmo já editado alguns livros que começaram por ser histórias orais mas que, devido à sua aceitação, decidiu passar para o papel.

Rui Ferreira “Oliveirinha”

Ator e clown

Define-se como investigador na área do clown, do teatro físico e manipulação de objetos e, durante o seu percurso, já fez vários espetáculos de autoria própria, workshops e formações. Tem também subido a palcos mais específicos, como os contextos hospitalares: “Oliveirinha” é Dr. Palhaço e diretor artístico na Associação Remédios do Riso desde 2014 e,  desdramatizando, leva o riso e a fantasia a crianças hospitalizadas. Homem dos sete ofícios, dirige atualmente o curso de Técnicas Circenses para famílias, no Chapitô, que surgiu a partir da sua vontade de criar oportunidades de envolvimento entre pais e filhos, proporcionando um momento de aprendizagem, mas também de convívio entre famílias. “Trabalhar com crianças é, para mim, uma escolha inata. O percurso do clown está inevitavelmente ligado ao imaginário infantil. Além disso, trabalhar a arte com e para as crianças permite-nos fomentar o papel decisivo da arte na educação social, na gestão sensorial, na construção emocional do  indivíduo. A arte está para as crianças como a água está para as plantas – é uma necessidade inata. E o contacto com elas torna-nos indubitavelmente pessoas melhores, fazendo do mundo também um lugar melhor.”

Severino Moreira

Pai Natal

De barba branca e ar bonacheirão, Severino Moreira veste a pele de Pai Natal há muitos anos, alegrando há já duas décadas aqueles que chegam nesta altura do ano ao Centro Colombo. Severino acredita que personificar o Pai Natal “não pode ser só vestir-se de vermelho. O Pai Natal deve empenhar-se para dar credibilidade à personagem, porque quanto mais credível for, mais corresponde ao sonho e à expectativa das crianças. Lidar com os mais pequenos é lidar com um mundo maravilhoso, onde a surpresa é constante, e eles merecem, seguramente, o melhor de nós.” Infelizmente, Severino não tem só histórias boas para contar e considera importante falar desta realidade: “se vivo momentos de muita satisfação, muita alegria e muito regozijo, também tenho momentos de alguma tristeza, nomeadamente quando me chegam situações de violência familiar.” No entanto, considera que é pelo facto de poder viver esta amálgama de experiências que lhe dá um enorme prazer fazer de Pai Natal. “Cada dia é um dia diferente e ainda que chegue ao fim do dia tantas vezes fatigado, termino-o com a alma cheia.”

Madalena Matoso

Ilustradora

Madalena Matoso é ilustradora. Na maior parte das vezes, de livros. “Sempre tive muito interesse pela relação entre palavras e desenhos. Como se contaminam, mudam, influenciam, questionam, revelam ou escondem por estarem perto uns dos outros. Uma palavra ou uma ideia podem ser ilustradas de muitas formas diferentes. A imagem pode fugir da palavra e esconder-se, pode ser um eco da palavra, pode ser um espelho (deformado ou não), podem caminhar juntas e podem não concordar em tudo.” Madalena gosta de combinações palavras/imagem intrigantes e com algum mistério, como se pode ver no seu mais recente livro, O gnu e o texugo — Cuidado com o vento (texto de Ana Pessoa, edição da Planeta Tangerina), onde há duas histórias que, ao irem pelos ares, ficam todas baralhadas. Os desenhos são iguais em ambas as narrativas, mas, afinal, já não são bem os mesmos. Muitos dos livros que ilustra são para crianças, mas talvez não sejam só para crianças. “Interessa-me a infância por ser um tempo de curiosidade, de experimentação. Ali, está tudo em aberto.”

Paulo Cordeiro

Músico e professor

Paulo Cordeiro integra o projeto Música para Bebés, organizado pelo Conservatório de Música de Sintra e que leva sessões de música às Bibliotecas Municipais de Lisboa, ao Museu de Lisboa e não só. Recorrendo a canções, com ou sem palavras, a melodias e a padrões rítmicos, estas aulas e sessões pontuais com pais e bebés promovem um ambiente musical diverso e uma experiência de partilha em família e contribuem para o desenvolvimento de capacidades musicais, em paralelo com a aquisição das primeiras palavras e frases. “É na primeira infância e infância, no fundo até aos cinco anos, que privilegiadamente se estabelecem as bases do nosso vocabulário musical, daí que a frequência de aulas regulares de música para bebés assuma um papel muito importante no desenvolvimento de competências que são intrínsecas em cada um de nós, mas que precisam de ser estimuladas desde tenra idade”. Aliás, como diz o ditado, é de pequenino que se torce o pepino!

Nomeiem algo que a Madeira tenha de muito especial e que gostariam de trazer para Lisboa.

Bruno Santos: A ilha, arrancada pela raiz, e encostada aqui à minha casa, no centro da cidade de Lisboa. Para purificar e banhar a confusão em que se tornou esta cidade.

André Santos: A noção de tempo. Na ilha, o tempo corre mais lento. O Sol põe-se mais tarde. Parece que dá tempo para tudo.

Se só pudessem ser recordados por uma música, qual seria?

BS: A flor do amor (tema dedicado/inspirado pela minha filha Rosa e gravado no volume 3 dos Manos).

AS: Avô João – dedicado ao nosso avô paterno. Foi um dos primeiros temas que compus para o meu primeiro disco, Ponto de Partida.

De todos os duetos ou participações que têm feito, qual foi o mais marcante?

BS: Um com a Rita Redshoes (mãe da minha filha), porque foi na Madeira, foi o primeiro dueto que fizemos, e duas semanas depois soubemos que vinha a Rosa a caminho.

AS: Num dos concertos de MUTRAMA, onde peguei num punhado de recolhas da tradição madeirense e criei arranjos, convidei a senhora Fátima, do grupo folclórico da Camacha, a cantar uma canção em duo com a Maria João. Ensaiei com as duas separadamente e quando, finalmente, se encontraram em palco… foi uma brutalidade. Acho que ninguém conseguiu conter a emoção.

Há algum músico ou cantor português com quem gostassem de trabalhar?

BS: Há uns anos teria, eventualmente, esse sonho ou expectativa. Hoje não penso assim. Gosto de trabalhar com músicos com os quais me identifico. Muitas vezes, a expectativa de colaborar com alguém sai gorada quando finalmente acontece e é muito alimentada. Às vezes, por razões pessoais, outras vezes, por razões profissionais. É deixar acontecer naturalmente e em função do que nos vai apetecendo e acontecendo.

AS: Gostava muito de trabalhar com o Fausto, o Sérgio Godinho ou o Vitorino. Três cantautores que admiro muito e gostava de aprender um pouco mais com eles, além do que já aprendi com os seus discos.

Muitos artistas consideram que o confinamento foi uma altura inspiradora. Que impacto tem tido em vocês toda esta experiência?

BS: Financeiramente e do ponto de vista das atuações ao vivo, foi mau, mas deu para pensar em coisas novas. Algumas aconteceram porque sim e outras aconteceram porque havia tempo para pensar e imaginar o que fazer com este tempo em pausa. No meu caso, descobri um cozinheiro com talento, principalmente no campo da pastelaria.

AS: Inspiradora não sei se terá sido, foi uma paragem abrupta que nos obrigou a pensar. Havia tempo de sobra para aquelas coisas para as quais julgamos nunca ter tempo. Eu compus pouco no confinamento, mas recuperei uma rotina diária da prática da guitarra, que estava há algum tempo perdida ou desorganizada. E que, entretanto, voltou a perder-se…

O disco pode ser encomendado através das redes sociais dos Mano a Mano ou do email manoamanosantos@gmail.com

 

Como surgiu a ideia de lançar um disco de Natal?

BS: É uma boa história. O Dr. José Carlos Martins, distinto gastroenterologista madeirense e baterista há muitos anos numa banda chamada Sweet Lovers, desafiou-nos para um concerto de homenagem aos Beatles. Disse que imaginava facilmente o nosso som em grande parte dos temas. Fez sentido o convite e aceitámos com muito gosto (mais um concerto adiado pelo vírus). Um dia, ligou-me a pedir para ir ter com ele porque estava em Lisboa. Fomos lanchar e conversar sobre técnicas inovadoras não invasivas (na medicina, claro) e pelo meio falámos sobre o que tocar no tal concerto. Quando nos despedimos, ele perguntou-me: “porque não fazem um disco de Natal? Agarrar em clássicos e adaptar ao vosso som, com os cordofones, guitarras. Não há discos nesse formato, com duas guitarras e com a vossa sonoridade”. Passei a noite a pensar naquilo. No dia seguinte, convenci o André a 75%. Contactei o Teatro Baltazar Dias, no Funchal e acharam a ideia maravilhosa. Liguei ao André e ficou decidido.

O disco inclui versões de clássicos natalícios. Houve algum que tenha sido mais difícil de trabalhar?

BS: Houve dois ou três, mas como o disco vem sem os nomes dos temas, para que as pessoas possam ir descobrindo ou redescobrindo os clássicos e menos clássicos, não posso desvendar quais!

AS: A ideia do disco é esse desembrulhar das prendas, neste caso, de canções, uma a uma, intrigando quem ouve com o que aí vem, por isso decidimos não pôr o nome das faixas em parte nenhuma. Houve uma ou outra em que o parto foi mais difícil, outras em que o parto foi 100% natural.

Há também uma composição original de cada um. O que vos inspirou?

BS: No meu caso, foi o Pai Natal!

AS: E no meu, a vontade de desejar um “Bom Natal” a todos!

Dia 17 de dezembro, apresentam o disco no Teatro Villaret, com lotação mais reduzida que o habitual. Como vai ser este concerto?

BS: Se acontecer, lindo, como todos os concertos dos Manos [risos].

AS: Se estivermos todos reunidos no dia 17 de dezembro, às 20 e 30, será, só por si, um milagre ao nível do nascimento do menino Jesus. A partir daí, será memorável.

Um desejo de Natal?

BS: O que todos desejamos: uma vacina para esta peste que se abateu sobre todos nós.

AS: Que o Pai Natal traga uma imunidade milagrosa. E que o tempo estique e o Sol se ponha mais tarde.

Em que altura da sua vida percebeu que queria ser mágico?

Todos os dias continuo a escolher este caminho que me diverte, realiza e permite fazer o que mais gosto. Tudo começou como hobbie e, no final da minha carreira académica e início de vida profissional, acabaria por ocupar todo o meu tempo. Momento em que a necessidade de escolha era imperiosa para pôr fim à vida dupla que começava a tomar a ganhar proporções difíceis de manter…

Foi o mágico mais novo a receber o Devant Award, o mais prestigiante prémio de magia do mundo. Que importância têm os prémios na sua vida?

São sempre excelentes surpresas, sobretudo por serem distinções para as quais não se pode concorrer… São uma consequência direta do nosso trabalho, chegam-nos de surpresa e sempre as recebi com grande humildade. Porém, a sua importância reporta-se sempre ao que fizemos no passado. Gosto de interpretá-las como incentivos e responsabilização para o futuro, procurando que sirvam como fasquias pessoais, na esperança de ser melhor amanhã do que fui ontem.

O que é mais importante: uma boa crítica ou um público feliz?

Indiscutivelmente, um público feliz. É para ele que eu trabalho. É o aspeto mais importante da minha atividade. Sem público não há magia, só ilusões. As críticas são sempre o exteriorizar de uma opinião pessoal que podemos respeitar mais ou menos. Acima de tudo, respeito enormemente as críticas da equipa que me acompanha há décadas e que sabe, como ninguém, perceber o que podemos coletivamente melhorar.

Como reage aos comentários das pessoas que criticam os seus truques?

Adoro! Independentemente de serem mais ou menos agradáveis e, por vezes, surpreendentes, são excelentes ferramentas de crescimento. Dão-me a conhecer mais sobre o meu trabalho… É como uma análise SWOT que nos dá a conhecer forças, fraquezas, oportunidades e “ameaças”.

Já conseguiu converter alguém que dizia não gostar de magia?

Muitas vezes, no final dos meus espetáculos, há sempre alguém que partilha que esteve ali contrariado… Que foi a reboque dos pais, dos filhos, do namorado ou de um amigo, e que adorou! Só não gosta de magia quem nunca viu ao vivo um espetáculo de magia. Na verdade, quando alguém me diz que não gosta de magia costumo perguntar que espetáculos já viu. Habitualmente a resposta é um silêncio pensativo que culmina com “pois… acho que nunca vi…”.

O confinamento tem sido uma altura inspiradora para criar truques?

Criar com a minha equipa tem sido a grande salvação do abismo. Temo-nos mantido ocupados e criativos. Graças a isso julgo ainda não ter perdido a minha sanidade mental… O espetáculo #CONECTADOS é o claro exemplo do abraçar das contingências transformando-as em oportunidades criativas. Jamais teríamos criado um conceito tão original e surpreendente se não fosse todo o pesadelo por que estamos a passar.

“Sem público não há magia, só ilusões.”

 

Como vê o estado da magia em Portugal?

Muito bem! Há toda uma nova geração que se apaixona diariamente e que traz sangue novo e vitalidade. Fico muito feliz!

Já trabalhou com grandes nomes internacionais. Há alguém com quem lhe falte trabalhar?

Falta sempre alguém… Ou mesmo renovar desafios com aqueles com quem fomos construindo cumplicidades.

Há algum truque que ande a imaginar há anos, mas a que ainda não conseguiu dar forma?

Existem vários nesse estado. A maioria do público que segue o meu trabalho está longe de imaginar que todos os dias, de segunda a sexta, das 9 às 18, trabalhamos no Estúdio33. É um constante turbilhão entre ambição e humildade, ideias que surpreendem e projetos falhados que só funcionavam no nosso desejo.

Quando assiste a um espetáculo de magia de um colega seu, consegue sempre adivinhar como são feitos os truques?

Desde cedo que adotei uma técnica… ver duas vezes! Uma como espectador, outra como profissional. E isso não é só válido para espetáculos de magia… faço o mesmo com musicais, peças de teatro, etc. É a minha tentativa de combater a deformação profissional e tentar resgatar a frescura que caracteriza um “espectador normal”.

Em dezembro, regressa ao Tivoli para o espetáculo #CONECTADOS, que, para além das pessoas presentes, inclui também interação com o público em casa. Agora mais do que nunca, a tecnologia é um aliado precioso?

O digital está há muito nas nossas vidas. A pandemia deu-lhe uma primazia nunca antes vista. Neste espetáculo, levamos o digital ao limite da conectividade, no sentido de que a magia aconteça no palco, na plateia e em casa daqueles que os espectadores presentes convidarem para participar remotamente. Até hologramas vamos ter…

Por que motivo devem as pessoas assistir a este espetáculo?

Três razões: porque depois de nove meses de jejum é importante que as famílias assistam a espetáculos e experienciem cultura ao vivo, sem ser através de um ecrã de computador ou televisão; porque #aculturaésegura e nenhum serviço noticioso até hoje reportou nenhuma cadeia de contágio que tenha tido origem numa sala de espetáculos, e porque a minha equipa e eu preparámos com muito amor e empenho aquele que será provavelmente o nosso melhor espetáculo de sempre.

É presença assídua na televisão nacional há anos, e nunca passa muito tempo sem ter um espetáculo novo. Parar é morrer?

Absolutamente. Quando a pandemia caiu sobre nós, a minha equipa e eu íamos iniciar uma digressão que, durante 23 semanas, passaria por outras tantas grandes cidades europeias. Fizemos a estreia na República Checa, em Praga, e, a seguir, viemos para casa. No início fiquei apático como todos, revoltado e em negação na esperança de que tudo não passasse de um pesadelo. Não passou e ficámos sem reação. A dada altura, numa revista inglesa, li um artigo cujo título era Sink or Swim. As três palavras da expressão Afundar ou Nadar foram para mim uma verdadeira epifania. Percebi que são essas as duas possibilidades de escolha que temos ao nosso dispor. Não temos sequer direito a perguntar por quanto tempo teremos que nadar, ou que distância, ou se a água está quente ou fria… a alternativa a nadar é escolher afundar.

Obras completas de Luís Vaz de Camões

III Volume – Teatro

Filodemo, comédia de Luís de Camões, põe em cena as peripécias de dois irmãos gémeos, Filodemo e Florimena, que se apaixonam por personagens situadas fora da sua condição social. Para além de outras temáticas, a obra expressa a ideia que o amor é uma força superior, capaz de suplantar os desníveis sociais e as condições desiguais, estabelecendo, deste modo, uma nova ordem que altera os fundamentos em que a sociedade assenta. Esta noção, cara ao autor, está igualmente presente nas suas outras duas obras dramatúrgicas: Auto Chamado dos Enfatriões e Comédia D’El-Rei Seleuco. O presente volume inteiramente dedicado ao teatro camoniano, depois de um primeiro consagrado à Épica e às Cartas e de um segundo que contém a Lírica completa, cumpre o objectivo de oferecer ao leitor de língua portuguesa a obra integral do maior vulto das letras lusas. A edição, preparada por Maria Vitalina Leal de Matos, especialista na obra de Luís de Camões, inclui introduções a cada um dos géneros da sua obra, uma biografia do poeta, uma introdução geral e notas que contextualizam o autor e a época. E-Primatur

Luís de Freitas Branco

Beethoven. Vida e Personalidade

Luís de Freitas Branco (1890-1955), um dos mais relevantes nomes da música portuguesa, foi mestre de alguns dos maiores compositores nacionais do século XX. Da sua obra literária fazem parte dois títulos dedicados a Beethoven, A Vida de Beethoven (1943) e A Personalidade de Beethoven (1947), agora reunidos num volume pela Editorial Caminho. Os textos foram originalmente publicados na Biblioteca Cosmos sob direcção de Bento de Jesus Caraça. No início dos anos 30, Luís de Freitas Branco havia escrito uma longa biografia de Richard Wagner, porém para o projecto educativo e editorial de Bento de Jesus Caraça optou por se dedicar a Beethoven privilegiando a aura humanista e liberal que o compositor de Bona podia incarnar em plena Segunda Guerra Mundial e no seu imediato rescaldo. Considerando Beethoven “o mais profundo e poderoso criador musical de todos os tempos”, escreve: “(…) ele é, para músicos e não músicos, um guia e um modelo numa época como a presente, de crise das mais profundas raízes morais da humanidade.” Caminho

Italo Calvino

Orlando Furioso

O tempo é o de Carlos Magno e a acção descreve as lutas entre os infiéis e os paladinos do rei dos Francos, mais tarde imperador. Paris encontra-se assediada pelas tropas do rei sarraceno Agramante. Uma pergunta decisiva acorre aos espíritos de todos os cristãos que se preparam para a batalha final: onde está Orlando, o mais famoso herói da cristandade? Enlouquecido pelo amor que dedica à formosa Angélica, tornou-se um perigo para homens e natureza, destruindo tudo à sua passagem. Orlando Furioso, começado a escrever por Ludovico Ariosto em 1504 (e ao longo de 30 anos), é um dos grandes poemas do Renascimento. Na presente edição, a obra é contada por Italo Calvino, com partes selecionadas do poema original, que assim manifesta o seu entusiamo por este grandioso épico da literatura universal, influência maior para obras como o Dom Quixote de la Mancha de Cervantes. Calvino convida o leitor contemporâneo a descobrir um poeta que representa o mundo “como um espectáculo multicolor e multiforme para ser contemplado com irónica sabedoria.” Com ilustrações de Gustave Doré. Cavalo de Ferro

Pedro Sena-Lino

De Quase Nada a Quase Rei

Sebastião José de Carvalho e Melo é o nome do político que reformou a educação, o sistema fiscal e a Lisboa pós-terramoto, mas também do homem que, tendo escapado a uma tentativa de assassinato, a transformou num atentado à vida do próprio rei e se vingou nos Távoras e dizimou os jesuítas. Esta biografia dá conta da misteriosa forma como, no início da sua vida pública, aquele que viria a ser conhecido como Marquês de Pombal vê conjugar-se um improvável conjunto de fatores que permitem a um lavrador forçado a nascer de socalcos e xisto, a um homem sem experiência relevante, uma impressionante escalada social e política, da Real Academia das Ciências, passando pelas embaixadas em Londres e Viena, até chegar à liderança do governo da nação. Com base numa exaustiva pesquisa e na leitura rigorosa das cartas escritas e recebidas pelo Marquês de Pombal, Pedro Sena-Lino apresenta-nos o biografado através da voz do próprio. Assente em provas documentais, e apenas se permitindo uma via dedutiva quando os testemunhos se mostram menos abundantes, este livro demonstra como a relação de um líder consigo mesmo pode ter transformado medos próprios em fantasmas nacionais, muitos deles ainda presentes e atuantes nos dias de hoje. Contraponto

Rafael Bordalo Pinheiro

No Lazareto

“Ao pousar o pé no torraõ natal, no momento de estender o braço à imagem querida da pátria, em vez de ser apertado pelos braços amigos, fui apertado pelos guardas de saúde e metido no Lazareto”. Em 1879, após o encerramento do jornal O Besouro, Rafael Bordalo Pinheiro regressa do Brasil. Quando chega a Lisboa é obrigado a ficar em quarentena no Lazareto, um edifício situado em Porto Brandão, na margem sul do Tejo, que era isolado e se destinava a acolher e a desinfetar pessoas e objetos que vinham de lugares ameaçados por epidemias ou doenças contagiosas. Durante o período em que ali permaneceu devido ao perigo de propagação da febre-amarela, o artista fez a obra No Lazareto de Lisboa, publicada em 1881. Nesta publicação, profusamente ilustrada com os seus desenhos, recorda com saudade peripécias no Brasil, a viagem de barco, a sua Lisboa e regista, com humor, os dias de penitência no edifício do Lazareto. Passados 140 anos, em plena pandemia COVID 19, o livro não perdeu a graça, mas ganhou atualidade. Museu Bordallo Pinheiro/ PIM! Edições

Desmond Morris

Poses. Linguagem Corporal na Arte

No livro Manwatching (1977), Desmond Moris introduziu o tema da linguagem corporal e revelou o muito que podemos aprender ao estudarmos as acções humanas em vez de nos limitarmos a ouvir as palavras. Certo dia, o autor e Francis Bacon, ao examinarem atentamente A mulher que Chora de Picasso, iniciaram uma discussão acerca das expressões faciais na arte que o fez compreender como a questão da linguagem corporal era relevante para o pintor. Quando Bacon morreu, verificou-se que tinha um exemplar de Manwatching no quarto. A presente obra explora, justamente, a importância da linguagem corporal humana na arte. Qual a sua função social? Que emoções revela? Toda a gente entende um punho fechado ou um aperto de mão, mas outras acções encontram-se enraizadas numa fase particular da história ou numa cultura local com regras especiais de conduta. Por isso, este livro é, simultaneamente, um estudo de linguagem corporal humana, uma história cultural de costumes socias e um levantamento de estilos artísticos em mudança, que cobre uma vasta gama de criatividade, das estatuetas pré-históricas, artefactos romanos e frescos renascentistas, até à arte contemporânea e ao graffiti. Bizâncio

Edgar P. Jacobs

O Raio “U”

Edgar P. Jacobs (1904/1987), autor de banda desenhada belga, foi um dos fundadores do movimento europeu de BD criando a série Blake & Mortimer. O Raio “U”, é o seu primeiro álbum gráfico, datado de 1943. Escrito em plena II Guerra Mundial, é uma obra de ficção científica que tem lugar num planeta concebido à imagem da Terra, traçando um paralelo com a realidade histórica da época. Duas das suas nações, Norlândia e Austrádia, estão em conflito. Marduk, um cientista norlandês inventa uma nova arma, o Raio “U”, mas necessita do minério uradio para que ela funcione. Organiza então uma expedição ao interior do planeta para extrair o minério. Ele e a sua equipa vivem uma série de arriscadas aventuras, confrontando-se com vorazes animais pré-históricos, descobrindo uma cidade lacustre habitada por gigantescos homens-macacos e uma civilização reminiscente dos aztecas. Obtido o minério, a obra termina com uma advertência a favor da sua justa utilização: “Cuidado! Aquele que possuir a ‘Pedra de Vida e de Morte’ torna-se num Deus temível!” Aviso ignorado por aqueles que terminaram o conflito mundial com os horrores de Hiroshima e Nagasaki. Asa

Christian Robinson

Outro

Com uma narrativa reminiscente de Alice No País das Maravilhas, a história deste livro passa-se quase inteiramente no outro lado do espelho. No fundo, trata-se de encontrar uma outra perspectiva, de descobrir um outro mundo e de conhecer um outro eu. Esta obra mágica e sem palavras, Melhor Livro Infantil Ilustrado 2019 | New York Times e New York Public Library, promove uma insólita e colorida viagem ao outro lado do espelho, um lugar só de crianças, de brincadeiras e de passeios fora de horas. O seu autor, Christian Robinson, dedica-se à ilustração e ao cinema de animação. Recebeu, em 2016, a Menção Honrosa da Medalha Caldecott, com o livro Last Stop on Market Street. Tem ilustrado diversos livros para crianças e recebido vários prémios. Colaborou com o programa Rua Sésamo e com os estúdios de animação Pixar, como realizador de animação. Orfeu Negro

Há um profundo trabalho de depuração no longo texto de William Shakespeare nesta nova versão de Ricardo III, dirigida por Marco Medeiros, que parte da tradução e do trabalho de dramaturgia de Maria João da Rocha Afonso, falecida em maio deste ano. Esse depurar intensifica o caráter quase insano da peça, que acompanha a estratégia letal de Ricardo para tomar o poder e, posteriormente, os efeitos dessa ascensão violenta e sanguinária no seu curto reinado.

Tal como no original de Shakespeare, tudo se ergue em torno da figura desse temível personagem que, nas palavras do encenador, “só pensa no poder em si, no seu uso e abuso”. Mas Ricardo surge aqui, na composição que Diogo Infante faz dele, como “um ser andrógino, um excluído que, guiado pela ambição desmedida, procura a sua identidade e o seu ser na aplicação da violência.” Será como levar à letra aquele desabafo da personagem quando diz “Ricardo ama Ricardo”, nada mais interessando.

Num cenário austero e frio, Ricardo move-se como um ser enjeitado, uma espécie de personagem de comic, que arquiteta a sua ascensão ao poder recorrendo a todos os meios, manipulando, ferindo, violando e matando quem lhe surge no caminho. Não existem contemplações nem pejos de misericórdia que o demovam de erguer a coroa, que “nem sequer lhe cabe na cabeça”, como é sublinhado na cena da sua coroação.

Através de citações de cultura pop muito acentuadas, Medeiros reforça a intemporalidade do texto de Shakespeare, como se colocasse a história de Ricardo III no aqui e no agora, neste mundo de pandemia que parece terra fértil para que brotem tiranos. Não é somente a composição que Infante faz do vilão, é o soar do tema de Billie Eilish Bad Guy, as armas de fogo que disparam ou o recurso a técnicas mais do cinema do que do teatro (como os flashes a descortinar as vontades ainda mais sombrias de Ricardo) que proporcionam um inquietante desconforto de tempo presente.

Ricardo III estreia a 26 de novembro, na Sala Carmen Dolores do Teatro da Trindade INATEL, e conta ainda no elenco com Gabriela Barros, Virgílio Castelo, João Vicente, Sílvia Filipe, Guilherme Filipe, Romeu Vala, Diogo Martins, João Jesus, Brandão de Mello, Constança Carvalho, Inês Loureiro e Joana Antunes. O espetáculo está em cena até final de janeiro do próximo ano.

O que é o Fair Saturday?

Fair Saturday é um festival para todo o tipo de artistas, espaços e organizações culturais.  É uma iniciativa cultural positiva, inclusiva, sem fins lucrativos que acontece no último sábado de novembro. Artistas e organizações culturais de todo o mundo reúnem-se num festival participativo, cujos objetivos principais são estabelecer pontes entre comunidades e regiões através da arte e da cultura, assim como apoiar os setores culturais e sociais locais, contribuindo para posicioná-los no lugar predominante que merecem. O festival acontece em Lisboa desde 2019, graças à parceria com a Câmara Municipal de Lisboa, sendo que a cidade é a primeira capital europeia a integrar a rede internacional de cidades Fair Saturday.

Como participar?

Todos os artistas, profissionais e amadores, podem participar tanto presencialmente como online. Cada artista que organiza um evento poderá escolher livremente o formato em que o irá apresentar. Para participar é necessário registar-se (app.fairsaturday.org), organizar um evento online/offline no dia do Fair Saturday em Lisboa ou adicionar ao programa do festival um evento já planeado para esse dia e, finalmente, consultar o site e contato através do e-mail lisboa@fairsaturday.org.

Quais as expetativas para esta edição em Lisboa?

Trabalhamos intensamente para nos adaptarmos aos tempos complexos em que vivemos da forma mais ágil possível. A nossa missão continua a ser trabalhar com paixão e empenho, com o objectivo de promover o sucesso dos/as artistas. Apesar das dificuldades que atravessamos devido à Covid, o programa da edição 2020 está a ganhar corpo graças aos mais de 100 artistas lisboetas que confirmaram o seu interesse em participar e aos espaços culturais da cidade que nos abrem as suas portas para receber os concertos, espectáculos, workshops, e exposições para todos os públicos. No dia 28 de novembro de 2020, iremos celebrar mais de 45 eventos culturais em mais de 25 espaços culturais, localizados em 15 freguesias espalhadas pela cidade de Lisboa. É emocionante sentir que tanto os/as artistas de Lisboa, as organizações culturais, os colectivos artísticos e os espaços culturais da cidade com os quais temos contacto, apesar das duras circunstâncias actuais, demonstram uma vontade clara de colaborar e caminhar junto/as para continuar a avançar e assim fortalecer o nosso setor por meio do trabalho em rede e da consciência coletiva de continuar a lutar pela arte e pela cultura como pilares essenciais da nossa sociedade. Esperamos-vos!

 

Devido aos constrangimentos decorrentes da crise sanitária, a programação foi agendada para as plataformas digitais. Mais informações em  https://festival.fairsaturday.org/pt-pt

Santarém, 19 de novembro de 1920. Nasce António Martinho do Rosário. Depois do percurso escolar na cidade natal, parte para Lisboa para cursar Medicina, estudos que concluiria em Coimbra, cidade onde se especializa em Psiquiatria, em 1954. Nesse ano lança o seu primeiro livro de poesia, Morte na Raiz, com o pseudónimo que haveria de o imortalizar nas letras portuguesas: Bernardo Santareno. Porém, será em 1957, com A Promessa, peça teatral em três atos (levada a cena pelo Teatro Experimental do Porto nesse mesmo ano, e que depressa a censura tratou de proibir), que o nome de Bernardo Santareno começa a figurar entre os mais ilustres dramaturgos do teatro português.

Caracterizada por aquilo que o historiador José Correia de Souto considerou “uma bela imaginação dialogal e cénica”, a dramaturgia de Santareno, profundamente inspirada pela corrente neorrealista e alicerçada numa constante tensão trágica tributária do teatro de Federico Garcia Lorca, revela-se na reivindicação feroz do direito à diferença e do respeito pela liberdade e a dignidade humana face a toda e qualquer forma de opressão ou discriminação, seja ela de índole política, racial, económica ou sexual.

Entre as suas grandes obras figuram O Crime da Aldeia Velha (1959), António Marinheiro ou o Édipo de Alfama (1960), O Pecado de João Agonia (1961), O Judeu (1966) ou Português, Escritor, Quarenta e Cinco Anos de Idade (1974).

Profundamente ativo politicamente, tanto antes como depois do 25 de Abril, Santareno chegou a integrar a Assembleia Municipal de Lisboa. Morreu em Lisboa, em agosto de 1980, deixando por publicar O Punho, peça rara que, a propósito do centenário do nascimento, é levada a cena pela Escola de Mulheres.

Celebrar Santareno na despedida de Fernanda Lapa

Espaço cénico e figurinos, equipa artística e técnica foram definidos por Fernanda Lapa (1943-2020) antes de morrer. O objetivo era levar a cena pela companhia que fundou há 25 anos, a Escola de Mulheres, a último texto da autoria de Bernardo Santareno, O Punho.

Marta Lapa e Ruy Malheiro, atuais diretores artísticos da companhia, honraram a vontade e todo o trabalho já executado pela encenadora. Assim, no dia em que Santareno faria 100 anos, no Clube Estefânia estreia-se esta peça de resistência, política e feroz, que se manteve inédita até 1987, e que raramente pisou os palcos.

Em O Punho, volta-se ao Alentejo dos anos quentes da Reforma Agrária, e acompanha-se o arrebatador conflito entre D. Mafalda, a “senhora rica, dona de quase tudo”, e Maria do Sacramento, a resignada e fiel criada, que o rumo da história promoverá a protagonista. O espetáculo, em cena até 20 de dezembro, tem interpretações de Maria d’Aires, Margarida Cardeal, André Levy, Marta Lapa, Vítor Alves da Silva, André Leitão, Hugo Nicholson e Ruy Malheiro, e música de Janita Salomé.

Em paralelo, o Clube Estefânia acolhe uma exposição bibliográfica dedicada ao autor (a partir de 19 de novembro); dois colóquios, um com amigos de Santareno, como Sinde Filipe, Françoise Ariel e Luís Lucas (28 de novembro, 16h), outro com Nuno Carinhas e Isabel Medina, a propósito da produção do espetáculo da Escola de Mulheres BernardoBernarda (5 de dezembro, 16h); e ainda a exibição do documentário de Luís Filipe Costa para a RTP Bernardo Santareno Português Escritor Médico (21 de novembro, 16h).

Aviso: devido aos constrangimentos decorrentes da crise sanitária, a programação referida está sujeita a alterações.

Elsa Tabori teria 55 anos naquele dia de verão de 44, “um ano extraordinário de colheitas para a Morte”, como o caracteriza o seu Filho logo no início da peça. É ele o narrador deste conto dramático que acompanha 14 horas da vida de uma mulher. Em causa, um episódio real tão inacreditável que parece ficção.

A Coragem da Minha Mãe é “a resposta subversiva” do dramaturgo e encenador George Tabori à Mãe Coragem, do seu mentor e inspirador Bertolt Brecht. E, como repara Jorge Silva Melo que agora leva o texto a cena, não seria descabido chamar-lhe “a lata da minha mãe”, dada a quase inverosímil forma como a senhora Tabori escapou a Auschwitz, tendo lá estado por umas horas, e conseguido acabar a noite na sua Budapeste natal, a jogar rommé em casa da irmã.

Na génese da peça está um manuscrito de Elsa Tabori, escrito a seguir à guerra, após o filho George a ter desafiado a registar a história da sua vida. Ao que consta, o documento dedicava umas quantas páginas à surpreendente fuga da mulher à morte certa, no tenebroso verão de 1944. Após a morte de Elsa, em 1963, George Tabori escreveu um conto baseado nesse episódio de coragem, de desespero e de particular fortuna. Anos mais tarde, A Coragem da Minha Mãe deu origem a uma peça radiofónica, até chegar ao palco em 1979, protagonizada na estreia por Hanna Schygulla.

A peça tem, como verifica Silva Melo, “qualquer coisa a lembrar os gags dos filmes mudos”, usando a narrativa para “denunciar o mal mas, ao mesmo tempo, convocar o riso”. Tabori parte da autoridade de vítima para o fazer, ele que haveria de dedicar ao tabu em torno do Holocausto outras “paródias”, como a comédia negra Mein Kampf, que rouba o título diretamente a Hitler, e é, talvez, a sua mais famosa e polémica peça.

Silva Melo justifica a subversividade do autor na abordagem de um tema tão delicado, e ainda hoje fraturante (sobretudo na sociedade alemã), com o olhar para “o malévolo como qualquer coisa de tão absurdo e grotesco que deixou de ser verossímil para a vítima.”

Com elementos narrativos muito acentuados, A Coragem da Minha Mãe funciona como  jogo da memória – a do Filho, que conta a história, intercalada pela da Mãe, que aponta, contradiz ou corrige factos e pormenores –, onde o faz de conta do teatro se esgrime com a autenticidade da história contada.

Essa tensão sublinha-se na encenação que, para além do Filho (Pedro Carraca) e da Mãe (António Terrinha), apenas coloca em cena uma outra personagem: o oficial nazi (Hélder Braz) que, entre o risível e o absurdo, se torna determinante para a boa fortuna de Elsa. Todas as outras personagens surgem em off. São “vozes da memória” (as de Carla Bolito, Américo Silva, António Simão, João Meireles, Nuno Gonçalo Rodrigues, Pedro Caeiro, Tiago Matias e do próprio Jorge Silva Melo) surgidas para acentuar esse “gosto de Tabori em conceber a personagem como uma estátua inacabada.”

O espetáculo tem estreia marcada para 18 de novembro, no Teatro da Politécnica, mantendo-se em cena até 19 de dezembro, com récitas de terça a sexta às 19 horas, e ao sábado, com dupla sessão, às 16 e 19 horas.

Atenção: Devido à crise sanitária, as récitas marcadas para os sábados foram suspensas.

Que evolução se deu nas funções que antes tinham no festival e as responsabilidades agora assumidas?

Carla Nobre de Sousa (CNS) –Trabalhei na edição de 2016 como coordenadora de produção, e em seguida integrei a equipa permanente do Alkantara. Na edição de 2018 fui assistente do anterior director artístico, o Thomas Walgrave. Foi o ano em que o David entrou e quando o Thomas saiu assumimos juntos a direção artística.
David Cabecinha (DC) – No meu caso comecei a colaborar com o Alkantara em 2018, edição que acompanhei, no fundo para me preparar para assumir com a Carla a direção artística.

A programação desta edição é inteiramente do vosso critério?

CNS – O último festival foi em maio de 2018, já passou algum tempo. O festival até acontecia de dois em dois anos, a partir de 2020 vai passar a acontecer anualmente. Fomos nós que começámos a programar do zero, sim.

Convosco na direcção artística, o Alkantara será predominantemente um festival de dança?

DC – Não é essa a nossa intenção. Neste momento julgo que existirão mais projetos que podem ser identificados como dança, ou que surgem de práticas relacionadas com a dança, mas temos estado à procura de experiências ou de projetos de artes performativas que não sejam necessariamente entendidos como dança ou como teatro.

As vossas sensibilidades e escolhas enquanto programadores assemelham-se ou complementam-se?

CNS – Isso é uma relação que estamos a construir também. A pergunta é complexa. Não nos conhecíamos bem quando começámos a trabalhar juntos. É a primeira vez que estou a fazer programação, e o David já tinha alguma experiência anterior. Estamos a construir os nossos interesses para o Alkantara em conjunto.

DC – Ao longo do caminho, até chegar a esta programação que apresentámos ontem [13 de outubro], fomos discutindo as propostas e percebendo como é que elas se articulavam, o porquê de escolhermos um projeto em detrimento de outro, e fomos percebendo que visão pretendíamos dar com esses projetos, com os que ficaram e com outros que íamos vendo e discutindo.

Qual a importância da presença de artistas internacionais na identidade do festival?

DC – A presença de artistas internacionais é um dos pilares da identidade do festival. Este festival existe, como o conhecemos, por trazer aos palcos de Lisboa e promover esse encontro, dos artistas internacionais e dos artistas locais, ou que trabalham a partir de Portugal. Trazermos artistas internacionais serve para podermos abrir horizontes ou cruzar práticas entre pessoas de diferentes proveniências, contextos, e sensibilidades, e perceber o que nos pode enriquecer enquanto pessoas, comunidade artística, e sociedade.

Existe vontade de levar o Alkantara a outras cidades do país, ou manter-se-á exclusivamente em Lisboa?

CNS – O Alkantara é um festival de Lisboa.

No jardim de uma casa, todas as tardes, Lena (Maria Emília Correia), Viviane (Lídia Franco) e Célia (Catarina Avelar), três vizinhas, amigas de largos anos, reúnem-se para beber chá e laranjada. Na pacatez que as rodeia, conversam sobre assuntos do quotidiano, sobre os seus percursos de vida, sobre os tempos que mudam, revelando medos e desejos, anseios e agruras, mas também esperança e alegria, como quando brincam como se voltassem ao tempo de escola e dançam canções dos Beatles como se tivessem, de novo dentro delas, o sopro da juventude.

A elas, junta-se a enigmática nova vizinha, Regina (Márcia Breia) que, como uma sibila, vai anunciando ao espectador visões do fim dos tempos.

Como confidencia Maria Emília Correia, “há algo de muito críptico nesta peça”, onde a bolha harmoniosa do jardim em que convivem as quatro mulheres surge violentamente sacudida pelas visões apocalípticas sobre o futuro do planeta e da humanidade, anunciadas pela personagem de Márcia Breia. “Estas mulheres podem ser os quatro cavaleiros do apocalipse, uma representação simbólica da peste, da fome, da guerra e da morte”, sublinha a atriz.

O próprio título da peça, Só eu escapei, provém de uma passagem bíblica do profético Livro de Job (“só eu escapei para trazer a notícia”). Incumbência que cabe a Regina, a mulher que entra naquele círculo de amigas, envolvendo-se, embora mantendo simultaneamente a distância, “e que se levanta da mesa de chá para sacudir a plateia.”

Uma peça “profética”

“Há qualquer coisa de profético”, afirma o encenador João Lourenço, lembrando que a estreia estava programada para maio e que, devido à pandemia, só agora será possível levá-la ao palco. E lembra: “Caryl Churchill escreveu-a em 2016, ainda antes de Trump e Bolsonaro chegarem ao poder, antes de tomarmos consciência de que o planeta está verdadeiramente em perigo, e tão distantes de imaginarmos que um vírus iria alterar as nossas vidas. Tudo isso está na peça.”

Este adiamento, no contexto em que ocorreu, “acabou por ser importante para que adquiríssemos, eu e as atrizes, um pensamento político coletivo, baseado em tudo o que nos rodeia devido a uma evolução que deixou de ter em consideração a dimensão humana e a necessidade de respeitar a natureza”, sublinha o encenador.

Quatro atrizes que são “a história viva do teatro português do século XX aos nossos dias”

“Nunca estive tão tranquilo antes de uma estreia, ou não soubesse que em palco estão quatro atrizes que sabem muito bem o que têm a fazer e são capazes de lidar com qualquer adversidade. Elas são a história viva do teatro português do século XX aos nossos dias”, sublinha João Lourenço, não escondendo a felicidade e a gratidão de juntar no mesmo espetáculo Márcia Breia, Lídia Franco, Catarina Avelar e Maria Emília Correia.

Com carreiras tão díspares e diferenciadas, o encenador lembra cada uma delas: “a Lídia, que começou como bailarina, fez teatro, filmes e televisão; a Maria Emília, atriz, grande, grande encenadora; a Márcia, com todo o percurso da Cornucópia; e a Catarina, que marcou toda uma época no Teatro Nacional. Que privilégio tê-las aqui a trabalhar comigo.”

João Lourenço lembra ainda a importância de serem mulheres, já que o teatro português tem a particularidade de ser “um bastião das mulheres”. “Quando comecei a trabalhar”, recorda, “a grande mulher do teatro era Amélia Rey Colaço, que ironicamente seria ‘um Salazar de saias’, no sentido em que era poderosa e mandava. Quando fui para o Trindade, era a Eunice [Muñoz] e a Carmen [Dolores]… As mulheres são quem verdadeiramente marca a história do teatro português.”

A juntar à importância de ver estas enormes atrizes em cena, o encenador frisa ainda “o empenho e a coragem” de cada uma delas em dar corpo a estas quatro mulheres “irónicas, engraçadas, inteligentes e intrigantes” que Caryl Churchill criou. Tendo em consideração a idade, fazem parte do denominado grupo de risco. “Em nenhum lugar do mundo a peça está a ser feita, precisamente por isso. Mas, a “resiliência e a vontade destas atrizes” venceu o medo e, a partir de 7 de novembro, de quarta a domingo, no Teatro Aberto, sobe o pano e acontece espetáculo.

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