O teu último disco, 2019: Rumo ao Eclipse saiu em outubro de 2020, em plena pandemia. Que histórias conta este disco?
As minhas músicas não contam histórias. São fotografias. Não sou nada bom a contar histórias, não há nenhum enredo nas minhas canções. É quase como se fossem fotografias a momentos pausados. Fora as canções de amor, que são típicas de qualquer era da Humanidade, elas são fotografias a determinadas tensões que já se sentiam em 2019 e que ficaram ainda mais óbvias em 2020 e em 2021.
As tuas letras são quase encriptadas, difíceis de decifrar. É propositado?
Hoje em dia a música pop está demasiado óbvia e muito pouco exigente. Aprendi a escrever com os artistas que sempre ouvi, quer internacionais, quer a ouvir muito fado ou a ler escritores portugueses, e aprendi a poesia nesse sentido, ou seja, que não é suposto as coisas serem literais. Não é suposto estares a contar o que se passa na tua vida e as pessoas irem ouvir porque querem saber o que aconteceu entre ti e a tua namorada e de que forma estás a lidar com isso. A minha escrita tem sempre um gatilho real e depois há outras coisas que acrescento, algumas até premonitórias e que acontecem mesmo, e outras coisas que escondo, que acho que são muito mais bonitas ditas dessa maneira. Acho que é feio ser-se muito literal. É possível ser-se literal de uma maneira bonita, mas tem de ser feito de uma forma muito inocente. Os brasileiros conseguem fazer isso na bossa nova, encontrar essa simplicidade e essa inocência. O Carlos Tê também faz isso, quando diz que “um sargo assa no braseiro”. São uns pormenores muito literais, mas não se sabe muito bem o que acontece no resto da história. A maneira como escrevo é produto dos professores que tive.
O que também permite que cada um interprete à sua maneira…
Faz com que a música resista ao tempo. Se a ouvires hoje ela diz-te uma coisa, e se a ouvires daqui a uns anos ela diz outra coisa…
O disco conta com várias participações especiais, entre elas Mariza, Cláudia Pascoal ou Ivo Canelas. Como surgiram estes nomes?
Em relação à Mariza, eu precisava de uma voz que soubesse dizer “está tudo bem” de uma maneira potente, ou seja, uma voz que sabemos que pode dar muito mais do que está ali a dar. Acho isso muito engraçado. Hoje em dia, por causa da quantidade de concursos de talentos, está muito na moda a ideia de que se deve dar tudo. Acho muito bonito ver uma interpretação de um artista e perceber que ele consegue dar muito mais, mas que a canção não pede isso. Eu queria uma voz como a da Mariza, que é girante e que pode dar muito mais, mas que ficasse ali num registo grave a dizer que vai ficar tudo bem. A ideia era essa, passar a serenidade de quem tem um talento muito grande dentro de si. Em relação ao Ivo Canelas, precisava de um melhor amigo para uma personagem que surgiu durante a gravação deste álbum, e achei que ele tinha veneno suficiente para ser o melhor amigo venenoso deste alter-ego [risos]. A Cláudia Pascoal usei-a como coro, como usei também a Mariana Norton. Elas tinham cantado comigo no último Coliseu que fiz e encaixaram tão bem que, quando precisei de duas vozes femininas, chamei-as e ficou muito bonito. O Fred Ferreira [baterista] também participou, entra em todos os meus álbuns. Quando preciso de uma bateria mais rock, ele é imbatível.
Como foi lançar um disco neste contexto?
Foi um bocadinho duro. O álbum era para ter saído em março ou abril de 2020. Achei piada à ideia do disco se chamar 2019: Rumo ao Eclipse, mas tive de esperar uns meses para o lançar. Mal nós sabíamos que ainda ia haver outro confinamento. Acabámos por lançá-lo em novembro, a tournée de lançamento foi adiada duas ou três vezes até que desistimos, e só conseguimos fazê-la depois do fim do segundo confinamento. É muito estranho ter na mão um álbum que é novo, mas que já tem um ano e que ainda tocámos muito pouco ao vivo. Temos de ser criativos e arranjar novas maneiras de o promover. E tentar perceber que outras músicas conseguimos ir lançando para dizer que o álbum ainda é relativamente novo. O concerto ao vivo está a ser ultra emotivo de tocar. Está muito forte, acho que as pessoas estão a gostar muito, mesmo em termos cenográficos.
Voltar a pisar o palco foi como sair de uma longa ressaca?
Com o Tiago na Toca acabei por trabalhar mais durante o confinamento do que antes. Todas as semanas tinha de dar concertos, e tinha de ensaiar imenso. Como sou um bocadinho perfecionista queria sempre fazer versões complicadas, por isso trabalhei muito durante o confinamento, e acabei por não sentir tanto essa falta. Ficava muito mais nervoso antes dos lives do que antes de qualquer concerto, até porque era eu que tratava de tudo, incluindo da parte técnica. Nos concertos estou mais descansado porque estou a tocar com a minha banda, tenho uma equipa por trás, as coisas estão ensaiadas, está tudo oleado. Foi um alívio voltar à estrada, voltar a ver pessoas. Lembro-me que, no primeiro concerto que demos, ainda a 50%, as pessoas estavam mesmo muito felizes. Isso foi muito importante para nós, músicos, e ajudou a que fossemos dando concertos cada vez melhores. As pessoas estavam a precisar muito de ouvir música alto, de sentir a música no corpo. Via-se que estavam mais sensíveis, foi muito bom.

Sentes que essa forma de interagir através dos lives do Instagram foi mais terapêutico para ti ou para o público?
Acho que foi muito terapêutico para mim. Nem sei o que estaria a fazer, embora saiba que não ia conseguir estar parado. Se calhar ia gravar outro disco ou concentrar-me num projeto meio instrumental. Mas, sem dúvida que foi muito terapêutico. Foi um desafio muito interessante, cansativo, por vezes. Houve alturas em que me apetecia parar um bocadinho, mas fui recebendo mensagens muito bonitas. Comecei a perceber que realmente fazia companhia a muitas pessoas e acho que foram poucos os lives que mantiveram aquela média de mil/duas mil pessoas (sem contar com o do Bruno Nogueira), mas a certa altura sentia uma certa responsabilidade por ter de fazer aquilo todas as semanas e para poder gerar dinheiro para a minha equipa que estava sem trabalho, e senti esse amor de volta, não só do público, mas também da minha equipa. Foi uma ideia pequenina que acabou por resultar muito bem.
Em termos criativos, que efeito teve a pandemia no teu trabalho?
Em termos criativos, penso que não teve grande impacto. Também tinha acabado de gravar um disco, e quando isso acontece entro sempre numa fase em que não componho nem quero escrever absolutamente nada. Respeito muito essa fase de absorção. Ouço discos, vejo peças de teatro, viajo… se houve coisa que me fez falta foi fazer uma viagem a seguir a ter gravado o disco. É sempre uma parte de libertação para mim a seguir a lançar um disco. Faz-me bem viajar sozinho durante um mês, fez-me falta essa terapia. Quando pudemos sair, fui para os Açores. Se calhar se não fosse o Tiago na Toca, ia acabar por fazer alguma coisa inevitavelmente, mas essa criatividade foi toda canalizada para os lives. Todas as semanas tinha de arranjar três ou quatro versões originais de artistas que, muitas vezes, não eram fáceis de trabalhar.
Por muito paradoxal que pareça, achas que a pandemia veio provar que as novas tecnologias podem aproximar as pessoas?
Foi uma surpresa para mim perceber esta ponte que existia entre mim e o público através do Instagram. Não tenho grande jeito para as redes sociais e, de repente, consegui arranjar uma forma natural de, estando longe, estar perto das pessoas. De criar um espaço de interação, quase como se fosse um cenário. No entanto, é muito diferente de estar com alguém presencialmente, nunca será a mesma coisa. O mundo abriu-se muito mais para este tipo de comunicação virtual, acho que nos tornou um bocadinho mais preguiçosos [risos]. É um bocado o reflexo do que as redes sociais fazem. Esta maneira de ouvir música em shuffle, de repente os discos desapareceram, ouvimos música em streaming, não se paga absolutamente nada pela música que é feita… acho que isso fez com que a música ficasse bastante mais vazia. As pessoas não têm paciência para ouvir, para tirar mais de uma música, para dar mais tempo a uma música. Passados 15/20 segundos já tem de haver um refrão ultra catchy. Estas pontes tornaram-nos mais preguiçosos.
Participaste no disco Tozé Brito (de) Novo. Que tipo de emoção te provoca fazer versões de músicas de outros?
Só emprestei a voz, a versão foi feita pelo Benjamim, que é o produtor juntamente com o João Correia. Confio muito no gosto do Benjamim, gosto muito do trabalho dele. Acho que o importante, quando se fazem versões, é ter um respeito grande pela música que se está a cantar. É preciso perceber em que é que se pode mexer e em que é que nunca se pode mexer. Tenho ouvido algumas versões que parecem outras músicas, são mais fruto da vaidade do artista, de mostrar que se é muito original. Mudam-se as notas, muda-se a linha vocal e a certa altura é uma música completamente diferente, só a letra é que se mantém. Isso faz-me uma confusão gigante. Tem sempre que haver um respeito gigante pela versão original. Dou valor à melodia, à letra, às notas essenciais. É tentar jogar um bocadinho com isso sem estragar.
Acaba por dar mais trabalho do que compor uma música de raiz?
Isso acho que não porque a fórmula da música já está resolvida, só tens de a mostrar de outra maneira.
Passa-te pela cabeça gravar um disco inspirado na pandemia?
Acho que este 2019: Rumo ao Eclipse foi um bocadinho premonitório, já fala bastante disso. As coisas que escrevo são reflexo do mundo à minha volta, daquilo que me toca e que me inquieta. Nunca escolho um tema para um álbum. As coisas vão surgindo naturalmente. Aliás, quando estava a gravar este disco não sabia que título lhe ia dar. De repente percebi que ele falava daquele ano em específico, de uma crise de valores que se estava a tornar cada vez mais aguda e que tem vindo a aumentar nos últimos tempos. Acho que a Humanidade está a passar uma fase um bocadinho estranha e agressiva. Há muita consciência do que se está a passar, a reação a isso é que tarda, parece estar difícil de acontecer.
O concerto no Coliseu será em formato 360º, o que dá ainda um ar mais intimista. Isso é possível com tantas pessoas presentes?
Vai ser a primeira vez que vou atuar completamente sozinho no Coliseu, por isso vou tentar tornar o concerto o mais interessante possível. Ainda estou a tentar perceber de que maneira é que se consegue passar essa intimidade do Tiago na Toca para aquele espaço em termos cenográficos. Estando no meio da sala, vou ter de me virar para todos os lados, pelo que ainda estou a tentar entender como faço esse jogo. Mas, vai ter certamente um ambiente muito giro, muito intimista e muito especial.
Para além do citado Rilke, nesta seleção podemos encontrar Guy de Maupassant, David Mourão-Ferreira, José Saramago, Sophia de Mello Breyner Andresen, Alexandre Nobre Pais, Charles Dickens, Truman Capote, um conjunto de histórias escolhidas por Vasco Graça Moura e a arte da pintora Paula Rego.
Rainer Maria Rilke
A Vida de Maria
Publicado em 1913, Vida de Maria constitui um ciclo completo sobre a figura da Virgem Maria. A sequência dos poemas segue uma cronologia que acompanha os seus momentos mais significativos, orientada pelas representações plásticas de dois manuais da arte do leste europeu: o Manual de Pintura do monge pintor Dionísio do Monte Athos e o Paterikon do Mosteiro da Caverna de Kiev, sobre a pintura de ícones. A Bíblia e a Legenda aurea de Jacobus de Voragine constituem as fontes principais do texto. Tal como nas Elegias de Duíno, Rilke opera uma síntese poética do seu diálogo com formas de arte tanto ocidentais, como orientais. Portugália Editora
Guy de Maupassant
Dois Contos
Os contos Uma Consoada e Noite de Natal, de autoria de um dos maiores expoentes do género, Guy de Maupassant, pertencem ao volume Intitulado Mademoiselle Fifi, publicado em 1882. O primeiro apresenta um tema manifestamente macabro e o segundo surge repleto de humor. Deliciosas pequenas narrativas, bem representativas do espírito do autor, tal como José Saramago, tradutor e prefaciador destes contos, o definiu: ”truculento, capaz de escárnio, destruidor de conformações sociais e morais.” Relógio D’Água
Paula Rego
Ciclo da Vida da Virgem Maria – Capela do Palácio de Belém
O sagrado e o profano
Paula Rego foi convidada, em 2002, a criar um ciclo de oito quadros alusivo à vida da Virgem Maria destinado a ocupar a antiga capela de Nossa Senhora de Belém, na residência oficial do Presidente da Republica. A pintora opera, com este surpreendente conjunto, uma extraordinária síntese entre o sagrado e o profano, entre o bíblico ou o mítico e o quotidiano. Esta magnífica publicação ajuda-nos a entender melhor o verdadeiro significado deste notável ciclo de pinturas: um diálogo complexo e inspirado entre o património cultural de que somos herdeiros e as vivências de Paula Rego enquanto mulher e artista. Museu da Presidência da Republica
David Mourão-Ferreira
Cancioneiro de Natal
Iniciado em 1960, e que o autor considerava uma “obra “aberta” ou “em suspenso”, Cancioneiro de Natal foi finamente concluído com um poema de 1995, Som de Natal. Nesta coletânea de poemas, escritos entre 1960 e 1986, David Mourão-Ferreira evoca as memórias de infância, a figura inspiradora de Jesus e o mistério do nascimento, propõe uma ideia de despojamento e partilha e constata, com ironia, como o mundo dos homens se afastou do espírito do Natal. Perspetiva, por fim, um tempo sem tempo que se eterniza depois da morte: “Um tempo em que o Nada retome a cor do Infinito.” Assírio & Alvim
Sophia de Mello Breyner Andresen
Noite de Natal
Joana não tem irmãos e brinca sozinha. Um dia, conhece Manuel, “todo vestido de remendos”, e convida-o a visitar o seu magnífico jardim. Na noite de Natal, lembra-se do amigo, pobre e sem presentes. Guiada por uma estrela, atravessa a floresta e leva-lhe o que recebeu. Celebrado conto infantil sobre o tema da amizade e da partilha e sobre o verdeiro significado do Natal, foi sucessivamente ilustrado por Maria Keil, José Escada, Júlio Resende, e Jorge Nesbit. Porto Editora
José Saramago
O Evangelho Segundo Jesus Cristo
Poucos livros fraturaram tanto a sociedade portuguesa como O Evangelho Segundo Jesus Cristo (1991). Os sectores católicos consideraram-no blasfemo; a Associação Portuguesa de Escritores atribui-lhe o Grande Premio de Romance e Novela. O governo, num ato de censura, riscou o livro da lista de candidatos ao Prémio Literário Europeu. Zangado, o escritor partiu para Lanzarote. Em 1998, recebeu o Prémio Nobel de Literatura. Polémicas passadas, o romance permanece como um dos melhores do autor e, das suas páginas, ressalta um Cristo da mais profunda humanidade. Porto Editora
Charles Dickens
Um Cântico de Natal
William Thackeray comentou (com um ponta de inveja?) que os livros de Charles Dickens eram escritos para um público de adultos com mentalidade de crianças. Dickens agradeceu a observação e declarou: “Precisamente. Escrevo para a espécie humana”. Nenhuma das obras do autor parece corresponder melhor a esta premissa do que Um Cântico de Natal. A história do Sr. Scrooge, um homem avarento que abomina a época natalícia, transformado pela vista de três espíritos, tornou-se um dos maiores clássicos de Natal, amado por sucessivas gerações de leitores de todas as idades. Clube do Autor
Truman Capote
Um Natal
Profundamente diferente do estilo objetivo e documental de A Sangue Frio, a mais famosa narrativa de Truman Capote, o conto Um Natal é um texto poético, intimista e de cariz autobiográfico. Um rapazinho, filho de pais divorciados, entregue aos cuidados de uma velha prima numa pequena cidade do Alabama, evoca a experiência de um Natal que se viu obrigado a passar com o pai, que mal conhece, em Nova Orleães. Uma comovente narrativa sobre um desencontro afectivo e o fim das ilusões de infância. ASA
Alexandre Nobre Pais
O Presépio em Portugal
O historiador Alexandre Nobre Pais, Mestre em Presépios Portugueses de Barro do Século XVIII, reúne, num belíssimo álbum profusamente ilustrado, alguns dos mais importantes presépios nacionais, incluindo de diferentes coleções particulares. Os Presépios de Barro reúnem duas das principais áreas artísticas de interesse do autor: a escultura e a faiança. Neste documento raro da bibliografia portuguesa fique a conhecer algumas representações inesperadas nestes tradicionais conjuntos de arte sacra como a Guerra de Tróia, cenas de caçadas, jogos de cartas ou uma fila de cegos. Caleidoscópio
Vasco Graça Moura e outros
Gloria in Excelsis – As Mais Belas Histórias Portuguesas de Natal
Vasco Graça Moura escreveu num poema evocativo do Natal: “na mais pobre semente a intensa dança / de tempo adulto e tempo de criança”. Neste volume seleciona mais de 40 histórias natalícias de autoria dos grandes clássicos portugueses dos séculos XIX e XX. Textos de Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Fialho de Almeida, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, José Régio, Vitorino Nemésio, Miguel Torga, Alves Redol, Sophia de Mello Breyner, Jorge de Sena, José Saramago, Natália Nunes, Maria Ondina Braga, Isabel da Nóbrega e José Eduardo Agualusa, entre muitos outros. Quetzal
Segundo o programador Nuno Sena “há vários anos que a Cinemateca tinha a intenção de organizar um extenso ciclo sobre a obra de um dos mais relevantes – e porventura menos conhecidos – cineastas americanos, cuja prolífica obra (com cerca de 1600 títulos) atravessa cinco décadas da história dessa cinematografia, desde o tempo dos pioneiros até ao final do período clássico.”
Inicialmente programada para 2020 “acabou por ser adiada pela pandemia, mas é finalmente apresentada, preenchendo talvez a maior lacuna da história da programação da Cinemateca, já que nunca tínhamos dedicado um programa com alguma extensão a este enorme cineasta.”

Allan Dwan nasceu no Canadá em 1885. Ainda jovem muda-se com a família para os Estado Unidos, onde se formou em engenharia elétrica. Quando trabalhava numa empresa do ramo como especialista de iluminação, entrou em contacto com a Essanay Film Manufacturing Company. Foi nesse estúdio cinematográfico que começou a colaborar, clandestinamente, como escritor, acabando por ingressar na empresa, que cedo o promoveu a editor. Estava criada a base para uma surpreendente e longa carreira no cinema que terminou apenas em 1958, com a rodagem de The Most Dangerous Man Alive, estreado em 1961. Allan Dwan faleceu vinte anos após a estreia do seu último filme, na Califórnia.

A maior parte dos filmes realizados por Dwan datam de 1911, ano em que começou a dirigir a partir de uma bobina, ao ritmo de três filmes por semana. Era o início do cinema, onde tudo estava ainda por inventar, o que contribuiu para que Dwan fosse um dos pioneiros da indústria cinematográfica americana. Foi com ele que nasceu o dolly shot – usou um automóvel em movimento para filmar o passeio do ator William H. Crane, em David Harum (1915). A sua capacidade inventiva era extraordinária e num trabalho que fez para o realizador D.W. Griffith, colocou pela primeira vez as câmaras a “pairar” sobre os gigantescos cenários de Intolerance (1916).
Cineasta imaginativo, pragmático e elegante fez um percurso que passou pelo período pré-clássico e por todo o classicismo americano, atravessando várias décadas onde trabalhou os diferentes géneros: musical, filme de guerra, melodrama, noir, western, comédia.

A primeira parte da retrospetiva, já em dezembro, abre com a curta-metragem Mother of The Ranch, obra do ano inicial de Dwan como realizador e o título mais antigo apresentado no ciclo. De seguida é exibido o seu derradeiro trabalho The Most Dangerous Man Alive (1961), uma história de ficção científica que o produtor Benedict Bogeaus, com quem Dwan colaborou nos últimos anos da sua obra, planeara como episódio-piloto para uma série televisiva de baixo budget.
Destaque também para Sands of Iwo Jima (1949), excelente filme de guerra onde o tom documental de Dwan imprimi um enorme realismo. Aqui, John Wayne protagoniza o tradicional papel do sargento duro, tendo recebido a primeira nomeação para o Óscar.
Ainda em dezembro, de salientar Manhandled, obra feminista, que conta, para além de Douglas Fairbanks, com outra vedeta do apogeu do cinema mudo, Gloria Swanson; e Driftwood, filme do pós-guerra, período em que o cineasta passou a trabalhar quase exclusivamente para produtores independentes e pequenos estúdios de “série B”, onde dirige a muito jovem Natalie Wood.

Para janeiro Nuno Sena destaca “três das obras máximas de Dwan, feitas em períodos muito distintos da sua filmografia e que são prova do seu talento e à vontade em géneros tão diferentes: ainda do período mudo, Robin Hood, um fabuloso filme de aventuras com o lendário Douglas Fairbanks como protagonista, Silver Lode, um trepidante western que merece figurar entre os maiores filmes deste género; e Slightly Scarltet, um film noir (a cores) de uma modernidade surpreendente que mostra que mesmo quase até ao final da carreira Dwan foi capaz de renovar o seu cinema.”

Por fim, é importante referir que a organização deste ciclo contou com a colaboração de diversas entidades estrangeiras, com destaque para os arquivos americanos, nomeadamente a George Eastman House, a Library of Congress e a UCLA. Sem a sua ajuda não teria sido possível revelar ao público a obra única de um realizador que esteve esquecido, mas que nos últimos anos tem vindo a ser valorizado por várias gerações de críticos e historiadores.
A retrospetiva é acompanhada por uma pequena edição dedicada ao cineasta, a primeira de uma nova coleção da Cinemateca Portuguesa, de cadernos de apoio a ciclos de autores estrangeiros ou temas do cinema internacional.
Programação completa aqui
José Gardeazabal
Viver feliz Lá Fora
No passado mês de março, José Gardeazabal publicou Quarentena – Uma História de Amor sobre um casal decidido a separar-se, condenando pela pandemia a um regime forçado de intimidade, analisando a sua vivência dentro das quatro paredes de um apartamento e a vida coletiva do “mundo de fora”. O tema da pandemia regressa na sua mais recente obra, um volume poético em cinco líricas (“anunciam-se óbitos em dominó”, “respiramos com medo de respirar”, “somos todos iguais / ninguém queria esta igualdade”). Também aqui explora o contraste entre “dentro” (a humanidade do lado de dentro/ de pé/ encostada a uma porta”), e “fora” (“vou lá fora viver um bocadinho / que aqui faz muito calor / vou a uma parte bonita da Suíça”). Paralelamente, reflete sobre o estado do mundo (“como uma ilha temos naufrágios por todo o lado), o presente (“a nossa civilização parada como Pompeia”) e o futuro (“o futuro a olhar para trás / e a sussurrar-nos / vês? nada”), o mito da eternidade (“a eternidade é uma fábula / só os bichos sobrevivem”) ou a fé na humanidade (“a fé na natureza humana inspirou guilhotinas / mas essa não é razão para não acreditar / acreditemos sem cabeça / alimentemos a fé de baixo”). Relógio D’Água
Henrik Brandão Jönsson
Viagem pelos Sete Pecados da Colonização Portuguesa
Henrik Brandão Jönsson, jornalista, correspondente sueco na América Latina, que vive há 20 anos no Brasil, propõe-se dividir o mundo lusófono de acordo com os sete pecados capitais: “Em Goa, as drogas e a gula tinham uma posição segura. Em Macau, o dinheiro e a avareza dominavam. Na ilha paradisíaca de Timor-Leste, a soberba florescia e a na sensual Moçambique vivia-se a luxúria. Na temperamental Angola crescia a ira e no Brasil espalhava-se a preguiça. Entretanto, a pátria portuguesa sente a inveja de tudo o que criou no exterior mas não conseguiu conquistar em casa”. Num livro de leitura compulsiva, o autor alia os seus vastos conhecimentos da história colonial portuguesa às suas experiências pessoais nestes territórios e, através de vários episódios reveladores, tenta encontrar um fio condutor que, além da língua, ligue os países lusófonos caracterizando, justamente, aquilo que distingue a lusofonia. Uma obra fascinante que nos dá a ver o reverso da nossa identidade: a forma como os “outros” – ex-colonizados, emigrantes e estrangeiros – percecionam o nosso passado colonial e o momento presente. Objectiva
Mário de Carvalho
De Maneira que é Claro
“Ainda hoje utilizo fórmulas breves que dispensam longos parágrafos, e associo palavras de acordo com os étimos, quer para descortinar, quer para criar sentidos. Também certas construções de frase me incomodam, perturbando uma cadência que trago no ouvido desde então”. Desta forma, Mário de Carvalho sustenta a necessidade do regresso do latim ao ensino secundário. Nestes textos breves com um limite de palavras que o autor se impôs, escritos “ao correr da pena”, surgem muitos outros temas que a memória quis abordar: a infância em Lisboa, as férias, o Liceu Camões, as amizades, o despertar da consciência politica, a faculdade, os movimentos associativos, a prisão ou o exílio. Contudo, estes textos tão evocativos não devem ser entendidos apenas como um profícuo exercício de memória, pois como confessa o autor: “Oxalá nos encontremos caro leitor. No fundo, no fundo – mesmo disfarçando -, é a si que eu busco”. E o encontro é perfeito porque, através da arte do escritor, estas vivências pessoais assumem ressonâncias coletivas. Porto Editora
Ray Bradbury
Crónicas Marcianas
A influência de Ray Bradbury (1920-2012) no universo da ficção científica, como qual é quase sempre identificado, foi profunda. Contudo, o autor transcende o género. A Morte É um Acto Solitário, por exemplo, é um belo romance policial inteiramente dominado pelo peso do passado. Crónicas Marcianas é, a par de Fahrenheit 451, a sua obra mais famosa. Ambas têm por tema o futuro da humanidade, numa perspetiva mais ou menos distópica. O livro é constituído por uma série de pequenas narrativas ordenadas cronologicamente que têm por tema a chegada do Homem a Marte, a sua conquista e colonização do planeta. Um impressivo relato sobre a natureza contraditória do Homem: o seu rasgo heroico e a sua tendência destruidora (“Nós os Homens da terra possuímos um talento especial para arruinar coisas grandes e belas”). Uma obra que adquire profundas repercussões, traçando um paralelo com a trágica história da colonização do continente americano. Por isso, escreve Ray Bradbury nestas Crónicas Marcianas: “A História jamais perdoará a Cortês.” Cavalo de Ferro
Guia de Arquitetura de Lisboa 1948-2021
O Guia de Arquitetura de Lisboa 1948-2013, que se encontrava esgotado, levou os editores a uma reflexão sobre a sua importância e a sua atualização, ultrapassado que ficou perante uma intensa construção na segunda década do século XXI e o acentuado crescimento da atividade turística na cidade e sua região. Assim, surge a segunda edição, revista e atualizada até ao ano de 2021. Seguindo o modelo da primeira edição, divide a cidade em 19 zonas específicas, delimitadas pela geografia, planeamento e fatores históricos que as congregam como tal. Às obras selecionadas para cada zona, aquando da primeira edição, juntam-se cerca de 50 novas entradas, construídas desde essa data até aos dias de hoje, e que espelham novos desafios e ideias a diferentes escalas para a capital. Esta escolha reflete a obra de Arquitetura na sua máxima variedade, desde os espaços exteriores aos interiores, dos espaços públicos aos privados. Para cada exemplo oferecido é fornecida uma informação base e um pequeno texto explicativo/crítico que facilita ao leitor a compreensão da obra. A+A Books
Ana Cássia Rebelo
Babilónia
Na capa do livro a imagem estilizada do Centro Comercial Babilónia, um dos shoppings mais antigos de Portugal, situado na Amadora. O livro de Cássia Rebelo não tem marcos toponímicos precisos, mas para quem viva em Portugal, e sobretudo os que tenham idade aproximada à da autora (n. 1972), apanharão algumas descrições de tipos físicos, ou citações culturais, e até mesmo impressões de uma vivência que sugere suburbanidade, que ajudam a pintar o quadro geral de relativa desolação que está em fundo nestas pequenas narrativas que não ultrapassam as três páginas. Mas o sentido de “babilónia” é mais amplo, e o livro sugere que o mesmo se refira às diferentes vozes de todas as protagonistas que se chamam invariavelmente Aninhas (como a escritora, Ana Cássia Rebelo). O jogo entre autobiografia e ficção é sugestivo; algumas destas Aninhas têm comportamentos que desafiam o conceito de escândalo, e nisso o livro parece procurar um sentido de rebelião que liberte estas mulheres dos condicionalismos do quotidiano. A literatura como reduto de liberdade que só conhece os limites da imaginação. Bookbuilders
Albert Hourani
História dos Povos Árabes
Albert Hourani (1915-1993) deixou uma obra considerável formada por mais de uma centena de ensaios e vários livros inovadores que culminaram na História dos Povos Árabes, publicada em 1991. Nas três décadas seguintes, a história dos árabes foi marcada por acontecimentos que nem ele poderia ter previsto, como os atentados de 11 de Setembro, a invasão americana do Iraque ou o fenómeno da “Primavera Árabe”. A presente edição surge, assim, atualizada por Malise Ruthven, académico, escritor e jornalista anglo-irlandês especializado em estudos religiosos, nomeadamente islâmicos, história cultural e extremismos religiosos, com uma vasta bibliografia publicada sobre o tema. Esta obra monumental tem por objeto a história das regiões de língua árabe do mundo islâmico, desde a ascensão do islão até meados da segunda década do século XX. A obra produz uma síntese magistral das estruturas sociais, económicas e culturais do mundo islâmico, bem como da forma como este evoluiu e se desenvolveu. Como escreve Malise Ruthven: “Os especialistas admirarão este livro pela profundidade da sua erudição, e o leitor comum por tornar tão acessível a história dos árabes.” Bookbuilders
Benji Davies
Floco de neve
Benji Davies, autor, ilustrador e realizador de animação, vive em Londres e estreou-se na literatura para crianças em 2014, com o livro A Baleia, pelo qual recebeu em 2014 o Prémio Oscar’s First Book. Os seus livros falam-nos de amizade, do amor pela natureza e da busca do nosso lugar especial no mundo. É um autor publicado internacionalmente e apreciado pelos leitores de todo o mundo. Floco de neve é uma das suas obras mais recentes, datada de 2020. Bem alto, nas nuvens, nasce um minúsculo floco de neve. Fofo, cristalino e branco, ele saltita e rodopia dentro da nuvem até que começa a cair… Este livro conta a história de uma menina, Noelle, e de um pequeno floco de neve – ambos ansiando por algo e em busca do seu lugar especial no mundo. Floco de neve é uma narrativa de Natal sobre a magia dos encontros inesperados, brilhantemente contada e ilustrada por Benji Davies, singular criador de álbuns ilustrados. Orfeu Negro
Esperança é o sucessor de Vem (2017). Qual é a mensagem deste novo disco?
Este disco tem um conceito e um tom muito natural e calmo. Embora tenha canções mais intensas, é o retrato de uma nova maneira de conduzir as coisas. Tenho tentado levar as coisas de uma forma mais natural e tranquila e penso que este álbum reflete isso.
O título pretende ser uma mensagem para os tempos que vivemos?
Na verdade, o álbum ficou pronto no final de 2019 e era suposto ser lançado entre janeiro e fevereiro de 2020. Entretanto surgiu a pandemia e lançar o álbum deixou de fazer sentido, ainda mais com o título que tinha, Felicidade. É um disco muito solar, mesmo a capa original, dourada, não fazia sentido tendo em conta as circunstâncias. Passei o confinamento dedicada à rotina possível, enfrentando as perdas e a gerir uma criança, e percebi que não era a altura de lançar o disco. Depois de um ano e tal, decidi voltar a pensar sobre isso e percebi que o álbum já não era o que tinha pensado originalmente. Já tinha mudado, mesmo sem ter sido lançado. Senti que tinha uma energia muito forte de esperança–que acaba por ser uma energia irmã da felicidade – e que estava mais de acordo com o momento que estamos a viver. Dar-lhe este nome evoca e intensifica ainda mais o seu significado. Também se alterou a capa, é azul – cor da calma e também cor da vida, do mar, do céu…
O confinamento serviu para escrever novas canções?
Tenho uma criança pequena, que me consumia grande parte do tempo, e foi muito complexo ter de lidar com a rotina da escola online. Depois também tive de ir ao Brasil para lidar com algumas perdas de amigos e familiares. Foi um ano muito difícil, não houve tempo para compor, mas acho que a composição vai nascendo dentro da minha cabeça. O ato de compor é colher. Mesmo que eu não esteja a compor, a minha cabeça está. As plantinhas vão nascendo, e quando preciso tirar alguma coisa eu vejo o que é que tem lá dentro [risos].
O disco tem participação de Preta Gil (Deixa Menina) e Nelson Motta (Barcelona). Como surgiram estas parcerias?
Nunca tinha convidado ninguém para participar num disco meu. Desta vez, numa conversa com o Marcelo [Camelo –músico e marido de Mallu] comentei que, sempre que canto esta música [Deixa Menina], na minha cabeça é a Preta Gil que a canta. Admiro-a há muitos anos enquanto mulher, cantora e artista, e ouvia sempre a voz dela na minha cabeça a cantar esta canção. Então ele sugeriu que a convidasse para cantar comigo, nunca me tinha ocorrido tal coisa [risos]!Ela aceitou logo, fiquei toda orgulhosa. Depois, no estúdio, quando estava a gravar Barcelona, sobrou um momento instrumental. Imaginei logo o Nelson a narrar qualquer coisa daquele jeito muito particular dele. Desta vez, já tinha aprendido que é possível pedir à pessoa para colaborar [risos]. Curiosamente, quando lhe mandei mensagem a fazer o convite, ele respondeu a dizer que estava em Lisboa. Foi ao estúdio e fizemos o dueto, foi ótimo.
Abriu-se uma porta para futuras colaborações?
Sem dúvida, achei divertidíssimo!

Deixa Menina fala sobre a sua filha. A maternidade alterou a sua forma de compor?
A presença de um filho muda completamente a nossa vida, passamos a ter outras prioridades. Por mais cansaço que sinta, também tenho mais energia e quero sempre mais do mundo e mais de mim. Ela é uma motivação muito grande. Dá-me referências que depois ficam nas canções, há uma série de vivências que surgem pela presença dela. Acho também que existe um tom mais alegre e construtivo. Faço o melhor por ser uma boa mãe e isso repercute-se positivamente noutras áreas da minha vida. Tê-la na minha vida fez com que a composição ficasse mais alegre, positiva, construtiva e dançante. A minha vida melhorou com ela, por isso as minhas músicas ficaram melhores.
O disco tem também canções em espanhol e inglês. De onde vem essa preferência?
Quando era criança, já adorava cantar e gostava muito de Johnny Cash e Bob Dylan. Aprendi as músicas e cantava para os adultos e reparei que, quando cantava em inglês, ficavam muito mais impressionados. Nas férias, quando tocava na rua, também percebi que as pessoas me davam muitas moedas se eu cantasse em inglês. Então comecei a cantar e a compor em inglês… Quando comecei a tocar profissionalmente fi-lo em português, para poder comunicar melhor com o público. O espanhol acho muito elegante, então comecei a cantar em espanhol só para ser chique [risos].
De que forma Lisboa influencia a sua musicalidade?
Lisboa é uma cidade muito cosmopolita. No Cais do Sodré, por exemplo, há escolas de design, o Mercado da Ribeira, restaurantes… tudo isso são referências que vêm de vários lugares do mundo. As pessoas vestem-se de forma inovadora, dizem coisas interessantes, há sempre música nova para descobrir. Estas novas referências influenciam totalmente as minhas ideias. O meu dia-a-dia é muito dinâmico aqui. Como vivo no centro da cidade, reclamo do movimento, mas gosto dele, e isso influencia a minha música. Gosto muito da calma, mas acho que prefiro o movimento.
Existe uma forte comunidade musical brasileira em Lisboa. Isso ajuda a matar as saudades do Brasil?
Sem dúvida. Tenho uma amiga que tem um bar na Voz do Operário, o Samambaia. Ir lá é como viajar até ao Brasil em cinco minutos. Há música brasileira, samba, forró, pão de queijo… há muita vida cultural brasileira em Lisboa, o que também me faz sentir em casa.
A saudade dos palcos é muita?
Quando dei o primeiro concerto da tournée, em Guimarães, a sensação que tive quando comecei a cantar foi de descontrolo. Nestes momentos a entrega tem de ser superior ao trabalho que faço no dia-a-dia. Tem de ser uma entrega emocional e intelectual. Nesse concerto, senti que havia uma força que não controlava. Como se eu estivesse ao serviço de uma entidade maior.
Já há material para um futuro disco?
Tenho muitas ideias para o próximo álbum, estou doida para começar. Neste momento estou muito ocupada com a tournée, por isso não me consigo dedicar já a esse projeto, mas assim que as coisas acalmarem, talvez no início do ano que vem eu consiga começar a compor e – quem sabe -lá para meio do ano que vem começo a gravar.
A vontade da experimentação, do assumir do risco e de “nem sequer ter propriamente medo de falhar” sentem-se a cada momento de Arena, segunda criação do coletivo Outro, dirigido por João Leão e Sílvio Vieira, este último autor do espetáculo. Explicar o que por ali se passa, sobretudo quando a dita arena fica numa velha oficina de automóveis situada no coração de um dos bairros residenciais da freguesia de Arroios, seria como desvendar parte do mistério que rodeia esta aventura cénica, onde nada é previsível nem descura o efeito da surpresa.
Contudo, e sem com isso apontar um caminho, podemos revelar a existência de seis criaturas que se movem como uma unidade orgânica (a que o autor chamou Jan), embora cada um desempenhe um papel no coletivo. Rotineiramente, empreendem uma movimentação ritual, até que um dia, esta vai ser abalada quando, de dentro de água (literalmente), sai uma personagem alienígena em fato de astronauta.
Na génese de Arena esteve a premissa de que seria um espetáculo de teatro sem palavra dita. “Quando há dois anos, ainda antes da pandemia, começámos a trabalhar no projeto pensou-se que o pilar seria a tradução de música em cena teatral. Como o coreógrafo que traduz em gestos a música, aqui, o objetivo era traduzi-la em teatralidade, ou seja, em imagens, situações, personagens”, explica Sílvio Vieira.
Ao longo do processo criativo, foi precisamente a partir da música que os atores improvisaram, nascendo o essencial das situações de Arena. Mas, ao contrário do programado, algo essencial aconteceu: o espetáculo não iria acontecer na black box de um palco convencional, mas sim numa garagem. “Quando aqui chegámos, pedi aos atores para olharem para o espaço, escolher um canto e tentarem explorá-lo”, recorda o autor, sublinhando como a arquitetura desta antiga oficina abandonada, no 21A da Rua Carlos José Barreiros, “entrou na própria dramaturgia do espetáculo, sendo impossível transportar o que aqui sucede para outro local.”
Sem impor uma linha narrativa ou, como frisa o autor, “qualquer conceito político e ideológico”, Arena revela-se um objeto artístico de plena liberdade, “onde aquilo que se valorizou é a experimentação e a procura do belo, ou uma certa poesia. Como o dipositivo é aberto, qualquer espectador poderá fazer a leitura que entender. E isso é algo que me agrada num espetáculo”, lembra Vieira.
Esta aventura cénica que concilia com grande engenho e irreverência movimento, som, luz e todo um imaginário reivindicado do cinema mudo e dos grandes nomes da comédia, como Charlie Chaplin, Buster Keaton ou Harold Lloyd, é protagonizado pelos jovens atores Anabela Ribeiro, André Cabral, Catarina Rabaça, Inês Realista, Miguel Galamba, Miguel Ponte e Pedro Peças. No percurso da associação cultural Outro, nascida em 2018, Arena é o sucessor de As árvores deixam morrer os ramos mais bonitos, espetáculo escrito também por Sílvio Vieira, estreado em 2020, no Festival Temps d’Images.
David Greig, profícuo autor escocês, está longe de ser um nome estranho aos Artistas Unidos que o acompanham atentamente desde o início do século. Para a generalidade dos espectadores, Greig é recordado por ser autor de um dos grandes sucessos da companhia dirigida por Jorge Silva Melo: Cantigas de uma noite de verão, peça encenada por Franzisca Aarflot em 2010, no Teatro da Trindade, precisamente com Pedro Carraca no papel do protagonista masculino.
Agora, Carraca passa para o papel de encenador e leva à cena uma peça de 2006 que há muito o seduzia, mas que uma impressão errada foi tendendo a adiar. “Quando nos Livrinhos de Teatro publicámos o texto das Cantigas, e lhe associámos outras peças do David Greig, estava lá este Lua Amarela mas, na altura, o Jorge [Silva Melo] e eu ficámos com a sensação de que era uma peça muito juvenil. Um engano.”
Embora os protagonistas da peça sejam dois jovens adolescentes em fuga, Greig não se limita a construir uma viagem iniciática de procura do amor e do mundo. Antes, o autor conta uma história de juventude perdida por circunstâncias sociais e emocionais que se relacionam com a vida nos subúrbios, a desintegração familiar e a falta de perspetivas de futuro. Ou, citando o encenador, Lua Amarela “é uma espécie de Bonnie e Clyde moderno, mas um Bonnie e Clyde não por opção, mas por consequência.”
Lee, ou Macho Lee como prefere que o tratem, é um jovem problemático, referenciado pela segurança social e pela polícia, que vive com a mãe e o padrasto. Leila, ou Silenciosa Leila como é conhecida na escola, é uma boa aluna, de origem muçulmana, que esconde um segredo: às sextas a noite, dirige-se a uma loja de conveniência para ler revistas sobre celebridades enquanto se automutila.
Será numa dessas noites que o caminho dos dois se cruza, e perante o homicídio acidental do padrasto, Lee arrasta voluntariamente Leila da cidade para as highlands, onde procura reencontrar o pai que, por razão idêntica, também um dia fugiu, virando costas à cidade. O papel de Leila na vida do rapaz acaba por ir, como sublinha Carraca, “para além do amor que ambos descobrem”. Leila, com os seus silêncios, dores secretas e uma misteriosa delicadeza, faz com que ele se aperceba “de que, realmente, pode tomar a vida nas suas mãos”, não tendo de seguir um destino que à partida parecia traçado – o de replicar a vida do pai.
Com particular engenho, Greig constrói a road trip destes dois corações feridos usando como dispositivo a narração, recurso que tantas vezes é uma espécie de batota, ou um modo de atalhar as dificuldades do drama. Mas, em Lua Amarela, é esse uso que imprime uma tocante carga dramática ao texto, e que levou, por alturas da estreia americana da peça, o crítico Charles Isherwood, do New York Times, a falar numa “corrida impetuosa, quase incessantemente sussurrada nos nossos ouvidos.”
Lua Amarela, ou A Balada de Leila e Lee, conta, para além dos jovens atores Gonçalo Norton e Rita Rocha Silva nos papéis principais, com interpretações de Inês Pereira e de Paulo Pinto, que regressa em grande forma, mais de uma década depois, ao trabalho com os Artistas Unidos.
Os Diabo na Cruz separaram-se em 2019. Quando surgiu a vontade de formar uma nova banda?
Sérgio Pires (SP): Percebemos isso no último ano de Diabo. O Jorge [Cruz] já não pôde fazer os últimos concertos, fizemos a última tournée sem ele. A reação das pessoas e a química em palco mostraram-nos que, se calhar, devíamos continuar a fazer música juntos em vez de cada um seguir o seu caminho. Para além da amizade que nos une, tínhamos uma relação em palco cimentada em dez anos de estrada. Em SAL somos três ex-Diabo na Cruz. Na altura, ainda pensámos ir todos, mas com a pandemia tivemos de rearranjar a banda e acabámos por ficar três. Juntou-se o Dani, que já trabalhava connosco na estrada, e o Vicente Santos.
A sonoridade é parecida com o que já faziam em Diabo na Cruz. É um tipo de música que se enraizou no vosso ADN?
João Pinheiro (JP): Nunca pensámos em fazer uma coisa radicalmente diferente, nem igual. A formação da banda é diferente, por isso os dois projetos nunca poderiam ser iguais. Mas foi dali que SAL surgiu, não foi de outra banda e isso, por si só, já é parte do ADN.
SP: À medida que a música for sendo conhecida vai ser mais fácil perceber o universo de SAL, que é diferente do universo de Diabo na Cruz, que foi uma banda de personalidade muito forte que marcou uma época na música portuguesa. Naturalmente que há semelhanças, porque a raiz é a mesma. Não houve nenhuma intenção de seguir um caminho semelhante, foi um caminho natural, do ponto de vista da composição e da criatividade.
Como foi começar uma banda em circunstâncias tão atípicas?
JP: Na verdade, a idealização do projeto ocorreu antes da pandemia. Gravámos as primeiras músicas antes do primeiro confinamento ser decretado, mas o calendário que tínhamos previsto acabou por não se concretizar. Nessa altura, em março de 2020, estávamos com uma certa pressa de gravar um single, mas acabámos por não o fazer. Foram dois anos praticamente nulos de trabalho, mas acho que, de certa forma, até deu jeito, deu-nos tempo para fazer as coisas com calma.
SP: Para todos que trabalham na área da Cultura foram (e ainda estão a ser) tempos muito difíceis, mas não deixa de ser engraçado olhar para trás e pensar que estávamos cheios de pressa para lançar música e de repente fomos todos para casa e a música só saiu quase dois anos depois. Esse tempo que nos foi imposto acabou por servir como uma espécie de refúgio. Um músico fechado em casa sem poder dar concertos acaba por pegar nos instrumentos e fazer música. Isso acabou por amadurecer o nosso som, fez-nos estar mais preparados e ter mais repertório. Claro que gostávamos de já estar a lançar um segundo disco, mas cada coisa tem o seu tempo.
O primeiro single, Passo Forte, simboliza os vossos primeiros passos?
JP: A letra fala sobre isso, sobre a coragem de sair de uma banda com a dimensão de Diabo na Cruz e darmos o nosso próprio passo, o mais convicto e seguro possível, sem medos. A Lília Esteves acompanhou o último ano de Diabo na Cruz e esta passagem para os SAL e fez a primeira letra, que serviu de mote para o Sérgio começar a tirar da cartola montes de letras e uma criatividade que nós não conhecíamos (e se calhar nem ele).
SP: Quer a energia da canção, quer a letra, abriram espaço para acreditarmos que era possível. É normal ter receios, sobretudo depois de dez anos de banda, que era uma parte importante das nossas vidas. Pusemos muita coisa em causa, é como uma relação que termina. Junta-se isto à pandemia, à falta de concertos, e de repente as dúvidas vêm ao de cima. Esta canção serviu de alavanca.

Porquê SAL?
JP: Tínhamos uma lista inicial de nomes, que, a dada altura, passou a ter mais de cem. Quantos mais acrescentávamos, mais baralhados ficávamos. A certa altura, o Carlos Guerreiro, dos Gaiteiros de Lisboa, que sempre demonstrou um grande interesse por este projeto, também se envolveu na questão do nome. Um dia, ao telefone, perguntou-me: “E se for SAL?”. O nome foi para a lista e, de repente, tínhamos o primeiro videoclipe feito, as músicas todas gravadas e ainda sem nome para a banda. Às tantas, o Sérgio lembrou-se da sugestão do Carlos Guerreiro e todos concordámos.
SP: Quando estamos perdidos no meio de tantas hipóteses, questionamo-nos se foi a escolha certa, mas à medida que o tempo vai passando, vamos percebendo que sim. Conseguimos encontrar muitas ligações à nossa música e àquilo que fazemos.
O Sérgio assumiu o papel de vocalista. Foi difícil passar a ser o frontman?
SP: Isso remonta ainda ao tempo de Diabo na Cruz. Quando o Jorge saiu, ficámos na dúvida sobre o que fazer: se cancelávamos os concertos ou se continuávamos sem ele. Um dia, estávamos a fazer um brainstorming sobre as nossas hipóteses, e o nosso agente, José Morais, sugeriu que eu assumisse esse papel, uma vez que estava mais habituado a estar na linha da frente, no palco. Como músico, estou habituado a fazer muitos papéis diferentes. A digressão foi ótima, fomos felizes em cima do palco e as pessoas gostaram dos concertos e não se sentiram defraudadas, o que já foi uma grande vitória. Saltando para SAL, acho que acabou por ser uma transição natural dessa energia que veio de trás. Não sou detentor de uma grande voz, mas sempre participei nos coros, e estou a tentar cantar melhor. Apesar de ser tímido socialmente, o palco é um sítio onde me sinto extremamente confortável.
Os Diabo na Cruz criaram um vínculo muito forte com os fãs. Continuam a seguir-vos?
JP: Já temos um grupo de fãs [risos]. Uma das coisas que fez com que os nossos receios caíssem por terra, foi saber que tínhamos aquela malta amiga, que já vinha de Diabo na Cruz. Por exemplo, o Miguel Farrusco, que criou o grupo de fãs de SAL, envia-nos mel e garrafas de moscatel, é incrível! É muito bom saber que estavam à nossa espera.
SP: Diabo na Cruz tinha fãs muito leais e presentes, que iam aos concertos todos. Esta generosidade e gentileza das pessoas já é, por si só, um bálsamo que nos dá força. Saber que há um grupo de pessoas que não nos deixa cair, é quase como uma rede de proteção. São os primeiros concertos, estamos a começar, mas sabemos que, se correr mal, eles vão estar ali para nos amparar. Têm sido de uma generosidade incrível, estamos muito gratos.
O tema que fecha o disco, Não sou da Paz, conta com participação do Carlão. Como se lembraram dele?
JP: Essa é, talvez, a canção mais assertiva e interventiva do disco. Achámos que umas palavras, numa onda mais hip hop, podiam servir a canção. O Sérgio, que é amigo do Carlão, lembrou-se de o convidar a participar e passado uns dias ele enviou-nos a parte dele, que é o que está no disco.
SP: Quando fiz essa canção já tinha uma ideia mais ou menos definida do que gostava que a canção fosse. Já achávamos que seria a canção que fecha o disco, quase como que a embrulhar o presente. Sempre gostei de rap e da cultura hip hop e quando acabei de escrever a letra senti que faltava ali qualquer coisa mais assertiva. A voz do Carlão fazia todo o sentido ali. Ele acaba por embrulhar o poema, que foi escrito por ele, e depois a canção despede-se instrumentalmente. Ficou impecável, não se mexeu em nada. Era o desfecho que tínhamos pensado para este primeiro disco.
Em novembro apresentam o disco de estreia no Maria Matos. As saudades do palco são muitas?
SP: Será o primeiro concerto pós-lançamento do disco, portanto à partida as pessoas já irão conhecer as canções um bocadinho melhor. O disco é muito honesto e temos estado assim também no palco, despidos emocionalmente, com força para entregar as canções às pessoas. Neste concerto vamos tentar ser um bocadinho mais racionais. Estamos nesse momento de pegar nas canções e descobrir como as adaptar para um espetáculo indoor. Vamos também ter uma surpresa ou outra, que ainda não podemos revelar. Será um concerto de uma banda de rock crua, honesta e direta, mas com algumas nuances, nas quais estamos a trabalhar.
Festejar um aniversário é quase sempre um ritual de celebração da vida. Reunir familiares e amigos, cortar o bolo ou brindar à vida do aniversariante, fazem parte desta tão nossa tradição festiva associada à passagem do tempo. Ora, é precisamente para uma festa de aniversário do Teatro Meia Volta e Depois à Esquerda Quando Eu Disser, que a Casa do Capitão abre portas diariamente, até 20 de novembro, por volta das 19h30.
Por lá estarão as personagens-anfitriãs de Alfredo Martins, Anabela Almeida, Cláudia Gaiolas, Luís Godinho e Sara Duarte prometendo a boa disposição que se exige à ocasião. Porém, não se surpreenda se a dado momento cada um deles o convidar a entrar num quarto ou numa sala mais recôndita da casa. Há, certamente, uma história para contar à margem da festa, e talvez esteja longe de ser tão festiva quanto o esperado num espetáculo que, afinal, se intitula Joyeux Anniversaire.
Descortinada parte da surpresa, talvez já tenha percebido que o espetáculo está longe de transbordar felicidade. É verdade que tudo começa e acaba numa festa, mas no recato do local onde se dança ou rebentam pinhatas, existem personagens que procuram lidar com o avanço dos anos, com os corações quebrados pela solidão ou com os sonhos nunca cumpridos nesses tempos que já não voltam. Em comum, este é o dia dos seus aniversários e, muitas vezes, como já nos ensinou tanta poesia, isso só pode mesmo ser trágico.
Aproveitando as particularidades arquitetónicas de um primeiro andar na Casa do Capitão, em Joyeux Anniversaire, o Teatro Meia Volta apanha a boleia da festa de aniversário e procura uma reflexão sobre a vida e o tempo, a partir de cinco monólogos escritos pelo artista plástico e poeta André Tecedeiro, concebidos especificamente para cada um dos atores do coletivo.
Ali mesmo ao lado da sala onde se faz a festa, em cada uma das cinco salas de cinco cores diferentes, cada uma das cinco personagens despoja-se perante uma plateia reduzidíssima (são três espectadores em cada sala, de um total de…15). E, muito provavelmente, quando no final anfitriões e convidados se reúnem para a fotografia de grupo, talvez se conclua que nunca uma festa de aniversário foi tão melancólica.
A Formiga Atómica cria peças de teatro, maioritariamente destinadas a um público mais jovem. Foi o que sempre quis fazer ou surgiu naturalmente?
Sentem que há necessidade de ter algum cuidado especial quando escrevem ou encenam para este tipo de público?
Em novembro, apresentam no Lu.Ca o espetáculo O Estado do Mundo (Quando acordas), que aborda o tema das alterações climáticas e de até que ponto os nossos pequenos gestos podem causar grandes impactos. Como surgiu esta ideia?
