As celebrações dos 50 anos dos Ateliês dos Coruchéus, situados em Alvalade, têm início dia 25 deste mês com a inauguração de uma exposição organizada em núcleos – Os Artistas, constituído por painéis junto das entradas dos ateliês; O Lugar, composto por painéis colocados no jardim, e O Edifício, a instalar na biblioteca. Além disso, serão lançados um site e uma monografia e haverá um banco de memórias dos artistas pioneiros.

Diogo Evangelista

Diogo Evangelista é um estreante no complexo dos Coruchéus. O seu trabalho, que reflete sobre o estatuto da imagem e o seu potencial como veículo contracultural, é geralmente influenciado pelo ambiente gerado em estúdio. O artista acredita que o ateliê 36 não será exceção, até porque este espaço tem uma atmosfera única, favorável ao desenvolvimento de novos projetos. A maior vantagem de trabalhar num lugar com estas características está, segundo Diogo, na possibilidade de desenvolver uma rede de trabalho mais profissional que fortalece o conceito de comunidade. O complexo dos Ateliês dos Coruchéus reúne as condições ideais para se tornar num polo cultural forte na cidade de Lisboa e, para isso acontecer, será necessário criar uma sinergia não só entre os artistas que ali trabalham, mas também com outros agentes culturais externos.

Tatiana Macedo

Tatiana Macedo é outra recém-chegada aos Ateliês dos Coruchéus. No número 31 levará a cabo os seus próximos projetos: rever e organizar o seu arquivo, que resulta de anos de captura de fotografias e vídeos, editar as imagens, imprimi-las, colocá-las na parede, no chão e nas mesas, pensar sobre elas e criar relações entre elas. Para a artista vai ser muito importante trabalhar num espaço afastado daquele onde até aqui trabalhava – a sua casa. No ateliê vai poder receber mais pessoas, dialogar com outros artistas que aqui têm espaços, fazer mais studio visits, expor o seu trabalho de uma forma que ainda não tinha feito, pelo menos em Portugal. Tatiana Macedo formou-se em Londres e fez um ano de residência artística em Berlim. A sua obra desenvolve-se entre a fotografia, o cinema, a instalação, o som e as suas formas expandidas.

Laranjeira Santos

Foi-lhe atribuído o ateliê número 2 no ano de abertura do complexo e, desde aí, nunca mais saiu. Aquele espaço, habitado por 50 anos de estudos, desenhos e esculturas, foi onde todo o seu processo artístico começou, numa altura em que dividia o tempo entre o ateliê e o ensino no Liceu Camões. Para Laranjeira Santos, um dos maiores nomes portugueses da escultura contemporânea com um corpo de trabalho que oscila entre o figurativo e o abstrato, os Ateliês dos Coruchéus são uma obra fascinante, que considera fundamental para a arte em Lisboa. Conviver com os outros artistas, trocar impressões e partilhar experiências são a mais valia de um complexo como este. Nos seus primeiros anos como residente, o espaço era palco de festas, exposições coletivas e manifestações de amizade, momentos que o mestre recorda agora com saudade.

Nuno Cera

Nuno Cera ocupa o ateliê 23 do complexo há oito anos. Para o fotógrafo, este espaço é múltiplo: lugar de experiência e de teste de novos trabalhos, de fomento de colaborações artísticas, de leitura, de investigação e de escrita, de edição de vídeo e de fotografias, de arquivo e de organização de exposições. Nuno Cera considera que a existência destes ateliês é fundamental para o trabalho de todos os artistas, não só porque é um espaço dedicado exclusivamente ao trabalho e ao pensamento, mas também pelo facto de estar inserido num complexo, o que permite a partilha de experiências entre artistas. Ali, Nuno Cera tem desenvolvido os seus mais recentes trabalhos de fotografia e vídeo, que exploram as condições espaciais, arquitetónicas e urbanas através de formas ficcionais, poéticas e documentais.

Ana Pérez-Quiroga

É no ateliê 24 que Ana Pérez-Quiroga, artista visual e performer, produz, de há dois anos a esta parte, todas as suas peças, à exceção dos trabalhos mais conceptuais e que não são imediatamente materializáveis. A sua diversificada obra, que vai da fotografia à instalação, passando pelo filme, pelo desenho, pelo têxtil e pela escultura móvel onde brinca com a funcionalidade, centra-se em torno do quotidiano e seu mapeamento, na importância dos objetos comuns e problemáticas de género. Para Ana, a sinergia que se desenvolve num complexo artístico como o dos Coruchéus é uma grande mais valia. Independentemente dos artistas estarem, ou não, muitas vezes uns com os outros, o facto de se sentirem parte de uma comunidade artística gerada à volta de um polo aglutinador é de extrema importância e cria, sobretudo, uma grande massa crítica.

Manuel da Fonseca (Entrevista)

Amália Nas Suas Palavras

Em 1973, Manuel da Fonseca, nome cimeiro do neorrealismo português, poeta e autor dos romances Seara de Vento e Cerromaior, grava horas de conversa com Amália Rodrigues com o objetivo de escrever a sua biografia. O projecto foi abandonado, mas surge finalmente a transcrição inédita dessas gravações. A longa entrevista oscila entra a cumplicidade (quando se aborda a natureza do fado, se evocam as belezas da campina alentejana ou se partilham gostos literários) e a posição defensiva de Amália (sobretudo nas questões de índole política), levando-a a exclamar: “As coisas que este senhor me pergunta!” A publicação dessas conversas constitui, segundo o musicólogo Rui Vieira Nery, uma das contribuições mais inovadoras para a bibliografia amaliana neste ano em que iniciamos as comemorações do centenário do nascimento da artista”. Artista incomparável que traduz desta forma a sua profunda identificação com o povo: “É como quando uma pessoa vai por um caminho e vê uma erva que dá um cheiro que se reconhece. Acho que as pessoas quando me ouvem cantar, veem realmente que sou um produto de cá, sou uma portuguesa e, portanto, faço parte do que no fundo eles são.” Edições Nelson de Matos/Porto Editora

Atlas da Almirante Reis

A avenida Almirante Reis, que homenageia a figura do revolucionário republicano Carlos Cândido dos Reis, é uma das mais extensas artérias da cidade de Lisboa. Caracteriza-se por ser uma das principais vias de ligação entre a cidade da segunda metade do século XX e a Baixa de Lisboa, tratando‑se de uma avenida com características singulares, onde numa única linha de expansão são visíveis as várias épocas do crescimento urbano da capital. Atualmente, é uma das zonas mais multiculturais da capital. Curiosamente, é também uma das menos estudadas. Este estudo pretende colmatar essa lacuna abarcando toda a sua extensão e densidade. O presente atlas, estruturado em quatro partes que se dividem fisicamente por plantas desdobráveis, constitui um recenseamento dos diversos aspectos (urbanos e urbanísticos) desta icónica Avenida, congregando perspectivas históricas e geográficas, dados inéditos, análise arquitectónica e até, olhando mais à frente, uma abordagem projetual. Tinta-da-china


Daniel Defoe

Diário do Ano da Peste

Daniel Defoe escreveu este livro em 1720, mais de meio século após a peste de 1665. A obra surge na sequência do novo afloramento da epidemia em Marselha e do receio de que ela se pudesse voltar espalhar pela Europa e chegar a Inglaterra. João Gaspar Simões, tradutor da obra, na brilhante introdução, afirma que Diário do Ano da Peste é da mesma índole de Robinson Crusoe, obra-prima do autor, fundadora do romance moderno inglês: “Enquanto nesta um homem vencia todas as dificuldades de vida numa ilha deserta (…), na nova obra a própria cidade de Londres é que assumia a posição do náufrago naquela. Como iria Londres triunfar das dificuldades tremendas que o cataclismo provocaria na urbe imensa?” Esta obra que pretendia documentar um acontecimento verdadeiro, e que funciona quase como um manual de sobrevivência, surpreende hoje pelas semelhanças entre as circunstâncias que descreve e a situação de pandemia global que vivemos. Este facto permite a criação de um elo entre o leitor, o protagonista e os seus próximos, impensável antes da pandemia de 2020. PIM! Edições

Leonor de Almeida

Poesia Reunida

Em 1965, Natália Correia inclui um poema de Leonor de Almeida na Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, escrevendo: “A sua Linguagem exprime calidamente uma visão panerótica do Universo”. Leonor publicou entre 1947 e 1960, quatro livros de poesia saudados por João Gaspar Simões, Alberto de Serpa, Jacinto do Prado Coelho, Artur Portela ou E. M. de Mello e Castro. Depois não publicaria mais nada, eclipsando-se numa aura de mistério, vivendo incógnita em Lisboa onde morre sozinha em dia incerto de maio de 1983. A sua obra, uma das mais singulares da poesia portuguesa do seculo XX, é de difícil filiação: segundo Ana Luísa Amaral, autora do prefácio à presente edição, a poesia de Leonor de Almeida partilha das preocupações neorrealistas, da poética surrealista e do presencismo, em simultâneo de outras tendências como o simbolismo. Sem esquecer o profundo erotismo de muitos dos seus poemas que Natália Correia realçou. Este precioso volume põe termo ao silêncio que se abateu sobre a poeta que queria “multiplicar o Espaço e enchê-lo de Amor / procurar os homens que não tiveram vida / e salvá-los!” Ponto de Fuga

Mia Couto

O Mapeador de Ausências

Um dos ficcionistas mais conhecidos das literaturas de língua portuguesa Mia Couto nasce em Moçambique em 1955 e escreve “pelo prazer de desarrumar a língua”. O seu estilo desenvolve-se num permanente processo de contaminação entre prosa e poesia. Inventor de palavras, recorre aos cruzamentos e à mestiçagem de que o idioma português é alvo em Moçambique para captar “o lado menos visível do mundo”, que o fascinava na infância, procurando estabelecer uma relação profunda entre o homem e a terra. No seu mais recente romance privilegia o tema do regresso ao passado. Diogo Santiago, professor universitário em Maputo, poeta, desloca-se pela primeira vez em muitos anos à sua terra natal, a cidade da Beira, nas vésperas do ciclone que a arrasou em 2019, para receber uma homenagem que os seus concidadãos lhe querem prestar. Diogo recorda sua infância e juventude, quando ainda Moçambique era uma colónia portuguesa; a mãe, toda sentido prático e completamente terra-a-terra, e o pai, amante de poesia, perseguido e preso pela PIDE, relembrando duas viagens que fez com ele ao local de terríveis massacres cometidos pela tropa colonial. Entre os ausentes que evoca, sobressai o régulo Capitine que via uma mulher a voar e que inspira a bela capa de Rui Garrido. Caminho

Pé d’Orelha

Conversas entre Bordalo e Querubim

Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) e Querubim Lapa (1925-2016), dois dos maiores ceramistas portugueses, pertencem a gerações diferentes, porém os seus percursos artísticos apresentam múltiplas conexões. A exposição Pé d’Orelha – Conversas entre Bordalo e Querubim explora as relações entre as obras dos dois artistas através de um roteiro imaginário assente em seis temas: o humor e a sátira; as afinidades; as citações e as heranças; e, finalmente, as confidências e o erotismo. Face ao ilustre antecessor, Querubim Lapa revela as qualidades essenciais da sua extraordinária produção artística no domínio da cerâmica: um profundo entendimento da tradição aliado a um inesgotável ímpeto renovador. O presente catálogo, profusamente ilustrado, e com reveladores textos de João Alpuim Botelho, Rita Gomes Ferrão, Pedro Bebiano Braga e Sofia Nunes, constitui um testemunho eloquente deste magnífico encontro, materializado numa exposição imperdível, patente no Museu Bordalo Pinheiro até ao próximo dia 28 de Fevereiro de 2021. Museu Bordalo Pinheiro

Roxane Marie Galliez & Seng Soun Ratanavanh

Espera, Miyuki

Espera, Miyuki é o primeiro livo de uma trilogia que acompanha uma menina em várias aventuras com o seu avô. No primeiro dia de primavera, Miyuki está impaciente. Tem pressa de ir ao jardim, onde tudo floresce. Tudo menos uma pequena flor, ainda em botão. A menina, ansiosa por despertá-la, parte em busca da água mais pura. O avô diz-lhe: “Espera!”, mas Miyuki só consegue pensar na sua flor que não desabrocha… Com ilustrações delicadas de Seng Soun Ratanavanh, influenciadas pela arte e cultura japonesas, este belíssimo álbum combate a impaciência e convida-nos a parar e a respeitar a valsa lenta de cada momento. O Texto de Roxane Marie Galliez, escritora de livros para a infância, jornalista e investigadora de História das Civilizações, fala-nos com elevado sentido poético da arte de saber esperar. Orfeu Negro

O teu novo disco chama-se Uma Palavra começada por N. Essa palavra remete para o teu nome artístico?

É uma das hipóteses, mas não obrigatoriamente a única. O que mais gosto no título é precisamente o leque de possibilidades que oferece.

O disco saiu em setembro, mas foste lançando vídeos no YouTube a partir de final do ano passado. Por que motivo optaste por ir revelando todo o álbum aos poucos?

Quis que cada uma das músicas tivesse o seu tempo, o seu período dedicado, tentando contrariar a “ditadura” dos singles que por vezes ofuscam o resto do disco.

Passaram quatro anos desde o teu último disco, 00:00:00:00. Não te impões um prazo para lançar discos? Preferes amadurecer as músicas?

Imponho-me prazos, mas não fixos. Há uma altura em que sinto que quero começar a trabalhar um disco novo, mas acabo por lançá-lo apenas quando estou totalmente satisfeito com o resultado, e isso nem sempre demora o mesmo tempo.

O último disco era praticamente todo instrumental, apenas tinha alguns momentos cantados em português. O que te levou a gravar um álbum inteiramente em português?

Precisamente o início da tua pergunta, senti que depois do disco de 2016 era isto que queria fazer.

Que história(s) pretende contar este disco?

Os meus discos contam sempre histórias da minha vida, anseios, dúvidas, receios, coisas boas. Este passa também por aí.

Como sempre, o lado visual deste disco foi pensado ao mínimo detalhe. Para ti a experiência visual é tão importante como a sonora?

Acredito que tudo é importante. Tudo começa na música, mas acredito na coerência entre todos os materiais que acompanham a música. E é verdade que muitas vezes um disco começa a ser ouvido ainda não se pôs a música a tocar.

A tua música parece feita para uma banda sonora e convida à introspeção. É o reflexo da tua maneira de ver o mundo?

Acho que sim, talvez seja intropetivo em demasia às vezes, mas é assim que as coisas me fazem sentido. Musicalmente é também aquilo que mais gosto de fazer.

Nos teus concertos apresentas-te sempre num palco cheio de instrumentos, que manejas com uma habilidade incrível. Não sentes falta do apoio de uma banda?

Não penso nisso. Noiserv surgiu desta forma, com as suas vantagens e desvantagens, mas faz parte.

O concerto de 13 de novembro, no Tivoli, serve de apresentação ao novo disco. Os fãs podem contar com algumas das músicas mais antigas também?

Sim, acredito sempre que um concerto deve conseguir reunir músicas dos vários discos de cada músico, mesmo que o foco seja no novo trabalho.

Muitos artistas consideram que o confinamento foi uma altura bastante inspiradora e propícia a criar. Sentes o mesmo? Que impacto tem tido em ti toda esta experiência?

O que me inspira são as pessoas, as conversas cara-a-cara, os olhos das pessoas… O confinamento tirou-me isso. Criativamente, foi o pior período dos últimos anos. De resto, há que lidar da melhor maneira com o que temos e seguir em frente.

Right as Rain é o teu álbum de estreia a solo. Porque este título?

Há qualquer coisa de melancólico e de tranquilizante na chuva, uma sensação que me pareceu dar um bom enquadramento a este disco. Mas também gostei da multiplicidade de sentidos que esta aliteração simples e bonita contém. É uma expressão idiomática em inglês que significa que as coisas estão perfeitamente bem, mas numa tradução mais literal é talvez interpretado como algo que é certo como a chuva. Gosto dessa confusão de sentidos, de expressões, de linguagens – como se pode perceber pelo próprio disco.

Fizeste parte de bandas como L Mantra ou Nome Comum. Em que altura percebeste que estava na altura de voares sozinha?

Sempre fui pensando nisso num segundo plano, mas como tenho um carácter mais colaborativo e fui tendo vários projetos pelo caminho, nunca senti uma verdadeira urgência em ter esse espaço. E se calhar ainda bem porque aprendi muito com quem estava à minha volta. A partir do momento em que decidi trabalhar exclusivamente na música fui compondo mais e mais. E, então, foi um processo natural de triagem e de organização de canções que estavam a acumular-se na gaveta e – importante – o facto de ter conseguido o Apoio Fonográfico da Fundação GDA, sem o qual não teria gravado este disco.

Trabalhas em sonoplastia para espetáculos e compões bandas sonoras para filmes. Essa experiência inspira, de alguma forma, as tuas canções?

Sim, sem dúvida. A canção Limbo que está no disco e que canto com a Sara Carinhas é exemplo disso. Compus este tema para a equipa que trabalhou comigo no espetáculo Limbo (encenado pela Sara), como presente no dia da nossa estreia. E obviamente aborda temáticas que estávamos a trabalhar no espetáculo. Mas há vários tipos de contaminação, não só ao nível de conteúdo mas da forma também. No trabalho de sonoplastia normalmente utilizo um vocabulário sonoro mais vasto, o que por sua vez influencia a forma como componho e penso os arranjos para cada canção. Especialmente porque também gosto de gravar e misturar em casa. Mas parece-me inevitável essa confluência, sendo que faz tudo parte do mesmo campo sonoro, quer se trate de música, palavra, ruído ou silêncio.

Este disco inclui colaborações variadas, com personalidades de áreas artísticas muito diferentes, como Francisca Cortesão, Miguel Bonneville, MOMO. ou Sara Carinhas, entre outros. Por que motivo decidiste convidar tantas pessoas para o teu disco de estreia?

São pessoas com as quais fui trabalhando e que admiro. Mas também porque me interessa muito a combinação de diferentes mundos. Precisava de refrescar este álbum e a minha visão sobre ele, que já o andava a cozinhar em lume brando há bastante tempo. É um exercício que te obriga a ganhar alguma distância e a escutar as tuas próprias canções de outra maneira. Esse espaço de encontro ajudou-me a repensar e a produzir este disco com alguma novidade e frescura, o que é difícil de manter nestes processos longos, como o de fazer um disco.

O álbum é uma mistura de rock, folk, morna, samba, cantado em português, inglês e crioulo. Com tantas sonoridades é difícil manter o foco?

Quis fazer um objeto propositadamente caleidoscópico, com diferentes vozes, cores, ritmos, mas também como desafio para uma escuta mais plural e abrangente. Penso que apesar das diferentes formas de expressão existe uma linguagem, uma linhagem comum. Mas o foco do disco talvez passe por um sentido de viagem, uma toada mais livre que se passeia por diferentes paisagens.

Durante o confinamento gravaste ‘No Jardim com’, uma série de duetos disponibilizados no teu canal de YouTube. Como surgiu esta ideia?

Foi depois daqueles primeiros meses em quarentena em que nos entregámos aos lives, aos diretos e aos festivais online, e a dada altura dei conta de tudo o que estava a perder no meio disso. Às tantas estávamos a trabalhar sozinhos a partir de casa, a fazer de técnicos de som e de imagem, a criar e a interpretar em directo para o mundo – tudo gratuitamente. Foi isso que me moveu: tentar recuperar algum sentido de normalidade na nossa profissão e procurar o reencontro com outros intérpretes e com uma equipa técnica – dentro das medidas de segurança na altura impostas.

Muitos artistas aproveitaram a quarentena para compor. Consideras que este período tão atípico foi particularmente inspirador?

Inspirador sim, mas não necessariamente fácil. As circunstâncias eram até bastante propícias, em termos de tempo para introspeção, mas o confinamento não foi propriamente libertador. Houve alturas de euforia ou se calhar de fúria artística e outras de niilismo absoluto. Foi bastante violento, uma montanha-russa que ainda estamos a viver. A quarentena fez gritar a minha necessidade de fazer música, mas nem sempre senti o foco necessário e a vontade aguçada para concretizar as ideias. Ou seja, muito rascunho para ainda trabalhar.

Foi também durante a quarentena que surgiram As Rainhas do Autoengano (com Natalia Green e Zoe Dorey). Como definirias este projeto?

É um projeto bastante improvável, para começar. Conhecemo-nos num jantar mesmo antes da quarentena e no fim dessa noite sobrámos as três e começamos logo a compor juntas. Foi tudo demasiado imediato, mesmo apesar das nossas diferenças. Durante a quarentena fomos fazendo mais canções e alimentando este trio transatlântico de três mulheres cantautoras e multi-instrumentistas, com um som, diria, despretensioso e leve e num formato acústico e intimista.

Vais dividir o palco do São Luiz com alguns dos convidados do teu disco?

Sim, para se fazer a merecida festa no dia 7 de novembro, às 18h30. Não poderão estar todos, todos os convidados do disco mas terei comigo, para além da minha banda, com o David Santos no contrabaixo, o Manuel Dordio na guitarra elétrica e o Nuno Morão na bateria, a participação especial de: Ana Luísa Valdeira (violino), Bernardo Palmeirim (voz e guitarra), Giulia Gallina (concertina), Gonçalo Castro (baixo eléctrico), Inês Pimenta (voz), João Teotónio (voz e guitarra), Miguel Bonneville (voz) e Sara Carinhas (voz).

Qual é o vosso projeto para o Doclisboa?

No final do festival passado, quando assumimos a direção, terminámos o nosso discurso com a vontade “de imaginar futuros juntos”. As possibilidades de futuro nesse momento são um pouco diferentes das que agora se apresentam, dado o contexto atual em que o festival acontece e a imprevisibilidade do que aí vem. Contudo, a nossa missão e prioridades continuam a ser as mesmas: um festival que defende a pluralidade do cinema, que promove o pensamento crítico e que constantemente levanta questões sobre o mundo que o rodeia. O Doclisboa não defende apenas filmes perfeitos, queremos construir um programa com filmes que enfrentem as suas próprias fragilidades, de cineastas que repensem a sua prática para chegar às pessoas, lugares ou assuntos que nos mostram. Queremos construir o festival em constante diálogo entre o passado e o presente, utilizando a visibilidade que um formato de festival traz. Queremos também que o festival reflita sobre as potencialidades do cinema, no seu futuro e nas suas evoluções. Acima de tudo, é importante criarmos um lugar aberto, com desejo de dar a conhecer, de partilha e de crescimento.

A realidade que se vive condicionou a realização do festival? De que formas?

Esta crise afetou-nos profundamente, e durante os meses da quarentena reservámos algum tempo para nos reorganizarmos e refletirmos sobre as nossas prioridades, o que é importante para o festival, qual o seu papel e qual o caminho a seguir. Acreditamos que um festival serve também a comunidade na qual se insere, as salas, o público, os profissionais do cinema e que deve ter o respeito máximo pelos filmes que apresenta. Nesse sentido, nunca foi uma opção tornar o Doclisboa num evento totalmente online. Para nós é importante sublinhar que o cinema é uma experiência coletiva e que os festivais de cinema servem exatamente como plataforma para esse encontro. Num período em que tudo abrandou, adaptámos também o ritmo do festival e estendemos a programação ao longo de seis meses, dando assim ao público oportunidade para ver todos os filmes do festival e abrindo espaço para mais debates, atividades paralelas e outros momentos coletivos de discussão e pensamento. Na prática, mantivemos as salas habituais e adicionámos outros espaços da EGEAC onde iremos realizar algumas atividades simultâneas. O número de filmes exibido será o mesmo e manteremos a pluralidade de temas, abordagens e linguagens que sempre apresentámos. Todos os eventos relativos à indústria migraram para o formato online.

O cinema da Geórgia é homenageado com uma retrospetiva. Porquê a escolha deste país e que obras destacam?

Esta retrospetiva partiu de um desejo e de um desafio. Queríamos trabalhar cinematografias menos conhecidas em Portugal e, num encontro com o Georgian National Film Center, falaram-nos sobre o projeto monumental que têm em mãos de recuperar e restaurar filmes seminais da cinematografia georgiana. Desafiaram-nos a pensar num programa a partir desses filmes e decidimos então desenhar um mapa mais alargado do cinema deste país. A Geórgia tem uma relação bastante antiga e rica com o cinema. Mesmo antes de se tornar parte da União Soviética, o cinema georgiano já estava bem estabelecido e, nos 70 anos seguintes, prosperou com realizadores que exploraram linguagens e técnicas inovadoras. No entanto, as convulsões políticas que explodiram com o final da União Soviética, afetaram profundamente a produção de filmes. No início dos anos 2000, um conjunto de realizadores e produtores, aliado a um governo interessado em reavivar a indústria, deu um novo fôlego ao cinema georgiano. São estas mutações que acompanhamos ao longo da retrospetiva, desde os anos 20 até à atualidade, com filmes de realizadores incontornáveis como Mikhail Kalatozov, Serguei Paradjanov ou Lana Gogoberidze. E descobrindo novas cinematografias com outros mais jovens, como Mariam Khatchvani ou Salome Jashi. Vão ser 10 dias de viagem pelo cinema georgiano na Cinemateca Portuguesa, em que destacamos Magdana’s Lurja (1956), de Rezo Chkheidze, Tengiz Abuladze, um filme belíssimo sobre a inocência da infância e o sistema feudal. Ou, por exemplo, Dede (2017) de Mariam Khatchvani, sobre o conflito entre tradição e modernidade no contexto dos papéis de género.

O Trabalho está em foco nesta edição, com um ciclo que exibe mais de 20 filmes. Qual o objetivo deste programa?

O ciclo sobre as representações do Trabalho no cinema divide-se em dois momentos: um foco sobre visões contemporâneas de questões atuais, como as alterações sociais do último século, o desemprego, a precariedade e a liberalização, a ter lugar no Cinema São Jorge; e um segundo momento que se debruça sobre problemáticas do passado, exibido online na plataforma dafilms.com. Fazemos assim uma ponte entre as lutas de ontem e de hoje, questionando o próprio conceito do trabalho e como este foi evoluindo ao longo do tempo. Olhamos para movimentos grevistas em Reprise (1996) de Hervé Le Roux, a luta pelos direitos dos profissionais do sexo em Les Prostituées de Lyon Parlent (1975) de Carole Roussopoulos ou a modernização de trabalhos tradicionais, em Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha. Há ainda uma série de debates que acontecerão online, de forma a poder incluir participantes de diferentes contextos e territórios.

Que outros momentos destacam no programa?

Destacamos também os filmes que abrem e fecham o festival. Em outubro, o Doclisboa arranca com Nheengatu de José Barahona. Numa viagem pelas margens do Alto Rio Negro, Amazonas, Barahona procura as comunidades que ainda falam Nheengatu, uma mistura do tupi, português e outras línguas indígenas. Esta língua, imposta pelos colonizadores, moldou a paisagem e os povos daquela região e, através do confronto atual entre dois mundos, levantam-se questões importantes sobre antigos e novos colonialismos, tradição e futuro. Em março, fechamos o festival com Paris Calligrammes, de Ulrike Ottinger. Um filme-memória, no qual Ottinger revisita os seus inícios enquanto artista visual e os caminhos intelectual e emocional que a levaram, mais tarde, ao cinema.

“O Doclisboa não defende apenas filmes perfeitos, queremos construir um programa com filmes que enfrentem as suas próprias fragilidades, de cineastas que repensem a sua prática para chegar às pessoas, lugares ou assuntos que nos mostram.”

 

Em 2019 foi criado o Nebulae, um espaço dedicado à indústria cinematográfica. Qual a sua importância e como será desenvolvido nesta edição?

Um festival de cinema, para além de ser um lugar onde ver filmes, é também um lugar de encontros. Ao longo das várias edições realizadoras, produtores, distribuidores e programadores encontravam-se nos vários espaços do festival e daí surgiam ligações, projetos, ideias. Em 2019, estruturámos esses encontros num mapa de relações que é o Nebulae. Conversas, masterclasses, workshops, laboratórios de desenvolvimento de projetos e outras atividades dedicadas a unir os profissionais de cinema. Em 2020, sentimos que é ainda mais importante juntar esforços e estabelecer sinergias. Este ano, dadas as dificuldades de movimentação entre países, decidimos apostar em organizar as atividades em plataformas online. Embora o contato humano seja insubstituível, acreditamos que o mais importante agora é dar o máximo possível de ferramentas e apoio à indústria para que os filmes possam continuar o seu circuito e os projetos o seu progresso. Tornando esta crise numa oportunidade, usaremos as ferramentas online para ligar pessoas que, de outra forma, poderiam nunca ter os meios para viajar e participar nestas atividades.

Mantêm-se as sessões e atividades para os mais novos?

Acreditamos que o cinema documental é capaz de potenciar uma cidadania mais crítica, informada, aberta e respeitadora da diferença. Com base nisso, o festival recebe o Projeto Educativo da Apordoc e, a partir da programação, organizamos sessões, debates e oficinas para várias idades. Este ano, voltamos a organizar várias atividades para os mais novos. De 22 de outubro a 1 de novembro, temos as sessões DocEscolas, pensadas para estudantes dos diversos graus de ensino. Ao longo dos vários momentos do festival serão organizadas oficinas Docs 4 Kids, promovendo a aproximação do documentário às crianças e aos jovens. O cinema sofreu bastante com a conjuntura atual.

A internet e a televisão permitiram durante este período que o cinema chegasse ao público. Parece-vos irreversível a perda de público na sala de cinema e também nos festivais, uma vez que parte da programação destes acontece online?

É importante refletir sobre as relações que as salas de cinema e os festivais estabelecem com os filmes e com as comunidades onde se inserem. As salas e os festivais são espaços de encontro e de criação, de ligações entre os filmes, o público e profissionais do cinema. Vão sempre ocupar um papel de extrema importância para o próprio avanço do cinema enquanto expressão artística, indústria e como vetor social. O período de quarentena tornou mais óbvios certos meios de distribuição e o acesso alternativo a filmes, mas a relação que as salas e os festivais têm com o público não se alterou. As duas formas de ver filmes podem coexistir, oferecendo oportunidades diferentes não só para o público mas também para os profissionais do cinema. Mais do que colocar em oposição direta a distribuição online e a distribuição física, importa pensar como é que o cinema, que é uma forma de expressão artística que se faz e se vive coletivamente, irá mudar? A arte sempre se adaptou a diferentes paradigmas e construiu novas formas de representar o mundo, mas temos de estar atentos às condições em que trabalham os profissionais do cinema e lutar por políticas culturais justas que garantam o seu futuro.

 

Programação em: https://doclisboa.org/2020/

A personalidade artística de Amália não tem paralelo no panorama cultural português do século XX: a beleza e qualidade da voz, a arte de dizer e a capacidade de relação expressiva com o texto, a ligação com os grandes poetas, a colaboração com Alain Oulman, a importância do traje e das jóias na iconografia pessoal (doravante para sempre associada ao fado), a presença nas artes plásticas como referência identitária nacional.

Em pleno Estado Novo, período que reservava às mulheres o espaço doméstico, Amália pegou no fado com suprema ousadia, despojou-o das normas bairristas de carácter castiço, trouxe-lhe os poetas eruditos e os novos compositores, deu-lhe glória internacional, libertando-o das audiências restritas das casas de fado e promovendo-o nos grandes palcos do mundo. Simultaneamente, fixou para sempre, no imaginário coletivo, a figura icónica da fadista com a sua pose hierática e os seus famosos longos vestidos pretos, levando o crítico do jornal francês Le Fígaro a declarar, em 1960: “a impossível rosa negra só pode ser Amália Rodrigues”. Segundo o musicólogo Rui Vieira Nery, “a sua obra e o seu legado profundamente ousados e desbravadores de caminhos foram a matriz para muito do que de novo ocorreu na musica portuguesa, até praticamente aos nossos dias”.

Novos lançamentos

Manuel Alegre

As Sílabas de Amália

Há mais de meio século, Manuel Alegre, exilado político em Argel, recebeu uma carta enviada de Paris: Alain Oulman musicara Trova do Vento que Passa e pedia-lhe autorização para ser gravada por Amália Rodrigues. O autor de Praça da Canção respondeu dizendo da sua “alegria e honra em ser musicado por ele e cantado por Amália” e admirou a coragem da fadista “em cantar um poeta proibido”. Esta seria primeira colaboração entre o poeta, o músico e a intérprete que se estenderia a outros três belíssimos fados: Meu Amor É Marinheiro, Abril e As Facas. Para o poeta, Amália “dava outra dimensão a cada verso e fazia da língua portuguesa uma música inconfundível”. Neste volume, Manuel Alegre reúne os poemas de sua autoria que a fadista cantou, os que sobre ela escreveu e aqueles que “exprimem uma visão do fado que em grande parte fiquei a dever a Alain Oulman e a Amália Rodrigues”. Um tocante tributo de um grande poeta ao Centenário de Amália porque, como escreve sobre a genial cantora, “tu mais que tu és todos nós.” Dom Quixote

Miguel Carvalho

Amália – Ditadura e Revolução

Extraordinária investigação jornalística de Miguel Carvalho, analisa a forma como a figura de Amália Rodrigues atravessou grande parte do século XX português sobrevivendo à admiração por Salazar, ajudando os presos políticos, cantando poetas proibidos, financiando clandestinamente a oposição e o PCP e como resistiu aos boatos que a pretendiam silenciar após o 25 de Abril. Paralelamente, traça uma biografia da “grande cantora do português fundamental”, nas palavras de Virgílio Ferreira, personalidade contraditória movida pela inquietação que “detestava as lógicas partidárias ou as sebentas do sectarismo, mas apreciava seres humanos apegados às convicções, mesmo que as combatesse”. E revela como lidou com as invejas mesquinhas dos colegas, num meio artístico formado em parte pelos “capachinhos dos oportunistas políticos” e por “figuras charmosas com voz de linho e pés de barro”. Obra monumental dedicada ao futuro e a todos os que habitam o coração indomável de Amália, “mesmo aqueles que ainda não a descobriram por infelicidade, distracção ou preconceito.” Dom Quixote

Amália Nas Suas Palavras

Entrevista inédita a Manuel da Fonseca

“O que eu adivinho em você, e o que você me disse, não têm comparação, porque disse muito pouco. Vai ser difícil fazer o livro. Você quase não deu nada, fugiu sempre…” Assim se queixava o escritor Manuel da Fonseca, nome cimeiro do neorrealismo português, poeta e autor dos romances Seara de Vento e Cerromaior, quando em 1973 gravou quase dez horas de conversa com Amália Rodrigues com o objetivo de escrever a sua biografia. O projecto foi abandonado, mas surge finalmente a transcrição inédita destas gravações. A longa entrevista oscila entra a cumplicidade (quando se aborda a natureza do fado, se evocam as belezas da campina alentejana ou se partilham gostos literários) e a posição defensiva de Amália (sobretudo nas questões de índole politica), levando-a a exclamar: “As coisas que este senhor me pergunta!” A publicação destas conversas constitui, segundo o musicólogo Rui Vieira Nery, uma das contribuições mais inovadoras para a bibliografia amaliana neste ano em que iniciamos as comemorações do centenário do nascimento da artista”. Artista incomparável que traduz desta forma a sua profunda identificação com o povo: “É como quando uma pessoa vai por um caminho e vê uma erva que dá um cheiro que se reconhece. Acho que as pessoas quando me ouvem cantar, vêem realmente que sou um produto de cá, sou uma portuguesa e, portanto, faço parte do que no fundo eles são.” Edições Nelson de Matos/Porto Editora

Carminho & Tiago Albuquerque

Amália, Já Sei Quem És

Amália, Já sei quem, biografia escrita pela fadista Carminho em homenagem a Amália Rodrigues, por ocasião do 100º aniversário de nascimento da grande diva do fado, é um livro destinado aos mais pequenos. A obra escrita em sextilhas -uma das formas poéticas próprias daquele estilo musical tradicional -conta uma história de vida fascinante e está repleto de pequenos tesouros e pormenores pouco conhecidos do grande público. Com esta biografia infantil, publicada em parceria com o Museu do Fado/EGEAC, Carminho espera despertar nas crianças a admiração que ela própria sente por aquela que acabou aclamada como “a voz de Portugal”. As ilustrações de Tiago Albuquerque prometem levar os pequenos leitores aos principais lugares que marcaram a vida de Amália, que começou a cantar quando era pequena e ainda hoje, passados quase 21 anos da sua morte, continua a inspirar muitos cantores pelo mundo fora. Nuvem de Letras

 

Os “Clássicos”

Vítor Pavão dos Santos

Amália – Uma Biografia

“Rainha do fado”, “sumo-sacerdotisa do culto do amor”, “deusa mundial da música”, “impossível rosa negra”, “tragédia clássica esculpida na Terra”, “infanta majestosa e flexível” ou “alma de Portugal” são algumas das referências da crítica internacional a Amália Rodrigues que podem ser lidas nas páginas deste livro. Esta biografia da grande diva do fado – a melhor e mais completa – teve origem nas longas conversas havidas com o seu amigo Vítor Pavão dos Santos, fundador e ex-director do Museu Nacional do Teatro. Um singular registo de 1987, agora actualizado e aumentado, incluindo novas fotografias e um capítulo de discografia. Escrito no discurso directo, capta admiravelmente não só a graça espontânea e a inteligência generosa de Amália, mas também o seu lado mais triste, proporcionando a cada leitor a sensação de que é o destinatário privilegiado deste extraordinário relato. Relato fascinante da vida e da carreira da artista incomparável que, através do canto, “chamou a si o fardo do sofrimento, exprimindo a coragem de o suportar que existe em todos nós.” Presença

Vítor Pavão dos Santos

O Fado da Tua Voz

No ano de 1950, Amália cantou pala primeira vez um poema de Pedro Homem de Melo no admirável fado Fria Claridade. A cantora teve receio da reação do poeta, mas este sentiu uma grande comoção ao ver-se transmitido de forma tão vibrante e agradeceu-lhe por ter “feito subir a sua poesia até ao povo”. A relação de Amália com os grandes poetas estendeu-se a David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, José Carlos Ary dos Santos, Manuel Alegre, e muitos outros, mudando definitivamente a história não só do fado, mas da música popular portuguesa. Nos anos 60, Amália decide em conjunto com o compositor Alain Oulman, cantar “contra ventos e marés” o maior de todos os poetas de língua portuguesa, Luís de Camões. Entretanto, a cantora havia já timidamente escrito o poema para um dos temas icónicos do fado, Estranha Forma de Vida, mas foi só na última década da sua carreira que se dedicou a cantar a sua própria poesia, criando verdadeiros momentos de antologia: Lágrima, Grito, Lavava no Rio, Lavava. Vítor Pavão dos Santos reúne uma antologia dos poetas e dos poemas em língua portuguesa que, ao longo da carreira, Amália interpretou. A obra tem uma recolha de mais de 300 poemas e de 100 poetas que são apresentados na sua relação com a fadista e enriquecidos com a contextualização no mundo do seu tempo. Bertrand

Fernando Dacosta

Amália – A Ressureição

Amália foi, para além da intérprete genial que o mundo aclamou, uma figura dotada de uma prodigiosa inteligência instintiva. Foi essa tremenda acuidade que a fez vaticinar: “depois de eu morrer, o Fado vai ressurgir com esplendor, numa espécie de ressurreição”. É inútil esconder que o atual esplendor do fado não existiria sem o legado da cantora (“o futuro que nos deixou sem darmos por ele”), ao qual a nova geração tudo deve. Como declarou o poeta Manuel Alegre, se o fado é Património Imaterial “isso deve -se exclusivamente a Amália”. Este livro, belíssima evocação da vida da artista, narrando encontros, evocando memórias e revelando episódios menos conhecidos, capta com rigor e vibrante espontaneidade uma personalidade profunda e contraditória, movida pela inquietação. É uma obra necessária, porque como escreve Fernando Dacosta: “A morte dos mitos significa a morte da memória, da cultura, do pensamento, daí a necessidade de os ressuscitarmos ciclicamente.” Casa das Letras

Tiago Baptista

Ver Amália

Na evocação de Amália Rodrigues, muito se fala e escreve sobre o fenómeno global da sua personalidade artística, Um pouco esquecida fica a sua passagem pelo cinema. Amália interpretou sete filmes entre 1947 e 1965, quase todos enormes sucessos de bilheteira. Tiago Baptista, conservador do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento da Cinemateca Portuguesa, salienta a importância do cinema no processo de construção da figura pública de Amália, reconduzindo a sua persona cinematográfica à combinação dos seguintes atributos: espontaneidade (equilíbrio entre a naturalidade do estilo de interpretação e a codificação das convenções performativas que fariam a originalidade da sua imagem); solenidade (a encarnação de estereótipos culturais como o fatalismo português, funcionando como símbolo não só do Fado mas do próprio país); intemporalidade (relação com as origens míticas do fado, sem renunciar a ser relevante no seu próprio tempo). Escreve o autor: “Os filmes (…) são uma janela aberta para o próprio processo de construção da figura publica de Amália Rodrigues, Por outras palavras,  os filmes deixam-nos ver de que forma Amália Rodrigues, a mulher, a actriz, se transformou em ‘Amália’, a vedeta, a diva, ou, para usar um termo mais cinematográfico, a estrela.” Tinta-da-China

Disponibilizada pela Câmara Municipal de Lisboa, esta plataforma tem por missão apoiar a criação artística, através da divulgação, num único suporte, das residências artísticas que têm lugar em Lisboa, permitindo obter informações sobre as organizações, públicas e privadas, que promovem residências artísticas e as oportunidades que estas organizações disponibilizam.

A LAAR permite a submissão de candidaturas para residência, e dá a conhecer, numa primeira fase, os artistas selecionados em programas de intercâmbio artístico promovidos, ou copromovidos, pela Câmara Municipal de Lisboa.

Atento ao dinamismo que se regista na cidade de Lisboa, com a crescente oferta e procura do modo “residência” como forma de criação e experimentação artística, o município, através do pelouro da Cultura, pretende corresponder ao compromisso assumido junto das organizações promotoras de residências artísticas, através da criação desta plataforma, para apoio e incentivo ao desenvolvimento das Artes.

A LAAR está disponível aqui.

Ivan Krastev

O Futuro por Contar

Ivan Krastev, politólogo, investigador do Instituto de Ciências Humanas de Viena, analisa a calamidade da COVID-19 como fenómeno novo, fundamentalmente diferente das três anteriores crises: o terrorismo, a crise financeira e a crise dos refugiados. O presente ensaio centra-se numa série de paradoxos revelados pela crise pandémica e investiga o impacto que esta terá sobre a globalização, a cooperação internacional e a coesão nacional, o avento de novos autoritarismos e o futuro do projecto europeu. Segundo Krastev, estamos a viver em simultâneo todos os pesadelos das distopias mais populares, um fenómeno de intersecção entre o Admirável Mundo Novo, A Historia de uma Serva e O Deus das Moscas. E não esquece o Ensaio Sobre a Cegueira: “Saramago não considera que as epidemias transformam a sociedade; a seu ver, elas desvendam a verdade sobre essa sociedade. Se ele tiver razão, é importante compreendermos o que vimos quando presos nos nossos lares”. Uma obra estimulante para ler no momento em que mundo parece mergulhar “numa floresta sombria, pois que se perdera o caminho a direito” como escreveu Dante n’ A Divina Comédia.

Objectiva

Ruben A.

A Torre de Barbela

Em 2020, celebra-se o centenário do nascimento de Ruben A., autor singular com uma escrita caracterizada pelo recurso a estimulantes jogos de linguagem, desconstrução dos eixos narrativos tradicionais, subversão cronológica dos eventos passados e pela crítica irónica a uma certa forma de ser português. Sobre o desaparecimento prematuro de Ruben A. aos 55 anos, escreveu a sua prima Sophia de Mello Breyner Andresen: “que tenhas morrido é ainda uma notícia desencontrada e longínqua e não a entendo bem”. O romance A Torre de Barbela, retrato psicológico do país desde a sua fundação, publicado em 1964, foi distinguido com o prémio Ricardo Malheiros, da Academia de Ciências de Lisboa. Tem por tema uma antiga torre de vigia, tão antiga quanto o nascimento da nação lusitana, a única torre triangular de toda a Península, que se ergue na margem esquerda do rio Lima. Nos dias que correm, é um velho monumento, memória do Portugal inventado pelas fantasias do caseiro-guia. O que a centena de turistas enganados não sabe é que, após o horário de visita, os antigos Barbelas, vindos de oito séculos diferentes, ressuscitam e habitam os seus arredores.

Livros do Brasil

Ondjaki

Livro do Deslembramento

Ondjaki evoca o universo da infância com o mesmo deslumbramento com que descreve a caixa de chocolates que serve de tema a um belíssimo capítulo deste seu mais recente romance. As peripécias da infância são narradas sob o mesmo olhar de encantamento com que reproduz as cores, os cheiros, os brilhos e os sabores dos bombons daquela “caixa quase de magia”. Como na magnífica canção Come raggio di sol, do compositor veneziano do período barroco, António Caldara, a infância é luminosa, um raio de sol que ilumina a superfície do mar. Porém, na profundidade do oceano, a escuridão esconde uma tormenta que se agiganta. Também neste romance uma dura realidade se impõe: a chegada da guerra civil a Luanda, uma experiência que todos querem “deslembrar”. Este livro, tão bonito e tocante, confirma o universo da infância como o grande tema da obra de Ondjaki. Para o escritor, apesar das carências do dia a dia e das provações da guerra, a memória da infância é, afinal, como os bombons franceses, “uma coisa do outro mundo”, “de um outro mundo que fica ainda mais em cima que as alturas do tal paraíso”.

Caminho

Miguel Carvalho

Amália – Ditadura e Revolução

Extraordinária investigação jornalística de Miguel Carvalho, analisa a forma como a figura de Amália Rodrigues atravessou grande parte do século XX português sobrevivendo à admiração por Salazar, ajudando os presos políticos, cantando poetas proibidos, financiando clandestinamente a oposição e o PCP e como resistiu aos boatos que a pretendiam silenciar após o 25 de Abril. Paralelamente, traça uma biografia da “grande cantora do português fundamental”, nas palavras de Virgílio Ferreira, personalidade contraditória movida pela inquietação que “detestava as lógicas partidárias ou as sebentas do sectarismo, mas apreciava seres humanos apegados às convicções, mesmo que as combatesse”. E revela como lidou com as invejas mesquinhas dos colegas, num meio artístico formado em parte pelos “capachinhos dos oportunistas políticos” e por “figuras charmosas com voz de linho e pés de barro”. Obra monumental dedicada ao futuro e a todos os que habitam o coração indomável de Amália, “mesmo aqueles que ainda não a descobriram por infelicidade, distracção ou preconceito”.

Dom Quixote

Paulo Marques da Silva

Fernando Namora Caricaturista

Fernando Namora (1919/1989), licenciado em medicina pela Universidade de Coimbra em 1942, exerce a sua profissão de aldeia em aldeia, nas regiões da Beira Baixa e do Alentejo, antes de se instalar em Lisboa como médico assistente do Instituto Português de Oncologia. Esta experiência inspiraria alguns dos seus romances mais famosos como Retalhos da Vida de um Médico ou Domingo à Tarde. O escritor, dotado de uma profunda capacidade de análise psicológica a par de uma grande sensibilidade da linguagem poética, contribuiu para o amadurecimento estético do neo-realismo e aproximou-se do existencialismo. Entre as várias formas de expressão artística que utilizou, a  caricatura constitui a faceta menos conhecida do grande público. A presente obra cinge-se, exclusivamente, às caricaturas académicas, entre os anos lectivos de 1936/37 e de 1941/42, período temporal que reflete a duração do seu próprio curso universitário. Conjuntamente com esta colecção de 181 caricaturas, que aqui se reúnem, apresenta um texto de enquadramento que corresponde a uma introdução à temática: algumas considerações sobre a caricatura; breves notas sobre a sua história em Portugal; o impacto da ação da censura sobre esta arte; a “relação” de Fernando Namora com as suas caricaturas, procurando aqui vislumbrar a ambiência da época, quer política, quer artística, mas considerando igualmente as particularidades do seu percurso de vida.

Câmara Municipal de Condeixa

Maria Antónia Fiadeiro

Artistas, Artesãs, Pioneiras

Livro singular de Maria Antónia Fiadeiro, pioneira do jornalismo pós-25 de Abril e dos estudos femininos em Portugal, permite compreender o papel da mulher na história recente do país através de quase cem conversas com personalidades da arte e da cultura nacional – Ana Salazar, Maria Mendes, Hélia Correia, Maria Antónia Palla, Paula Rego ou Lídia Jorge -, com artesãs – Etelvina Faria dos Santos, bordadeira, ou Irene Mourão, carpinteira – e com mulheres dedicadas às áreas há pouco tempo abertas à participação feminina – Cândida Alves, a primeira carteira em Portugal, ou Maria Arsénia, jardineira pública. Entrevistas realizadas entre 1982 e 2008 e publicadas originalmente em meios de comunicação da imprensa escrita como o Jornal de Letras Artes e Ideias, o Diário de Notícias, o Diário de Lisboa e as revistas Máxima e Casa & Decoração. Trata-se de uma recolha de vozes, que compõem um retrato íntimo, sensível e profundo da vida doméstica, social e profissional da mulher na sociedade portuguesa no fim do século XX e inícios do século XXI, com um valor histórico inestimável.

Edições Caixa Alta

Olga Tokarczuk

Alma Perdida

Era uma vez um homem que vivia constantemente com pressa, sempre de um lado para o outro. Comia, dormia, andava, trabalhava e até jogava ténis, mas tinha dentro de si uma sensação estranha. Certo dia, sentiu dificuldade em respirar e deixou de saber quem era. Tinha-se esquecido do que preenchia o seu coração; tinha perdido a sua alma. A Alma Perdida é um delicado objeto literário com texto de Olga Tokarczuk, vencedora do Prémio Nobel de Literatura e do Booker Prize, e ilustrações de Joanna Concejo, galardoada artista polaca, que faz uma reflexão profunda e comovente sobre a capacidade de viver em paz consigo próprio, permanecer paciente e atento ao mundo que o rodeia. Neste livro, a espera, a paciência e a atenção são exploradas através de ilustrações que transmitem um sentimento de paz e de meditação, onde Joana Concejo representa a melancolia e a alegria evocadas pela memória através de linhas finas e desenhos minuciosos. A Alma Perdida, premiado com a Menção Especial Bologna Ragazzi Award 2018, é o primeiro livro de Olga Tokarczuk dirigido a crianças e jovens.

Fàbula

Quando teve pela primeira vez contacto com o livro O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, sentiu de imediato que esta história daria um filme?

Qualquer um dos romances de Saramago poderia ser matéria apetecível para um filme. Mas O Ano da Morte de Ricardo Reis era o guião perfeito para falar de muitas das inquietações que o ano de 2019 trazia aos habitantes desta terra. Não havia ainda a pandemia invisível que hoje nos atinge, mas estavam outras a crescer: populismo, esboços de fascismo, ditadores, etc. O outro, o diferente começa a ser o inimigo que se deve desprezar, e até destruir. 1936, que Saramago descreveu como ninguém, é o ano do anúncio das catástrofes. Mussolini e os seus camisas negras erguem o fascismo e incendeiam Adis Abeba; Hitler e os camisas castanhas começam a engolir os países vizinhos na caminhada para a morte e o caos; aqui ao lado, a carnificina da falange vestida de azul na terrível guerra civil de Espanha. E em Portugal a consolidação do Estado Novo, o verde como a cor da Legião e da Mocidade Portuguesa, esmagando a liberdade e o pensamento.

Apesar de tantos anos de diferença continuam a existir muitos pontos em comum com os dias de hoje…

Parece que os humanos não aprenderam nada com os erros do passado, surgem agora os Trumps, Bolsonaros, Le Pens, Orbans, Erdogans, Putins, Lipins e tantos e tantos, ávidos de poder e servidores da ganância dos ricos e poderosos, trazendo com eles de novo o Mal que leva à subserviência, à miséria, à escravidão. E outras inquietações: os algoritmos que controlam, o individualismo implacável, o Nós transformado em apenas Eu, o pensamento a desaparecer, o consumo como existência. E o abandono da leitura e do saber partilhado. A vertigem que leva ao esquecimento. “A minha pátria é a língua portuguesa” escreveu um dia Pessoa (Bernardo Soares) no Livro do Desassossego. O texto elogiava, como mestre, o Padre António Vieira. E Saramago também escreveu, unindo-se ao poeta, que a língua portuguesa nunca se tinha elevado tão alto como nos textos do célebre padre jesuíta. Assim se encontravam, Saramago e Pessoa, cada um com escritas e oralidades diversas. Às vezes os textos bem escritos ainda crescem quando lidos em voz alta: Música. Assim o Teatro e o Cinema. Uma última inquietação: o Cinema de que eu faço parte há várias décadas. A degradação, o triunfo do entretenimento, do consumo das imagens e dos sons, o triunfo do movimento sobre o tempo. O cinema repito, não é o que se passa nem quando se passa, é como se filma. Luzes e sombras, seres humanos aflitos. Mostrar, ver e ouvir, fazer perguntas, as respostas pertencem aos espectadores, livres de escolher.

Fernando Pessoa tem inspirado a sua obra. Neste filme, a Fernando Pessoa junta-se o escritor genial que é José Saramago. Que dificuldades ou desafios se encontram ao realizar uma obra que tem por base estes dois grandes nomes da literatura portuguesa?

É difícil, sim. “Mas se fosse fácil estavam cá outros”, assim me ensinou um fuzileiro naval, meu amigo. Respeitar os textos, escolher, ligar sem trair. Cinema não é literatura, mas pode usá-la como matéria, como usa o teatro, a música, a arquitectura, a pintura, etc., que são artes mais nobres. Como vampiros, roubamos para construir outra coisa, tentando que as intenções artísticas se sobreponham ao negócio, esse pecado original desta “falsa” sétima arte. Pessoa e Saramago são um “luxo” português.

Podemos dizer que este é também um filme sobre a morte e o esquecimento. E que pretende de alguma forma refletir sobre a necessidade que a criatura tem de se libertar do seu criador?

Uma das invenções geniais de Saramago, a ideia dos nove meses que um morto ainda pode vaguear aí (antes de ser esquecido) para compensar os nove meses que se perdem na barriga materna. Outras invenções são a competição entre o criador (cínico) e a criatura que dele se quer libertar, ou a paixão entre dois homens, tornados físicos, palpáveis. Física da metafísica. Uma relação perturbada por duas belas mulheres e, como num western em que ao pôr-do-sol eles se afastam, aqui num nascer de dia, eles também partem abraçados, para um outro mundo porque neste, de cores cinzentas, já não conseguem viver. Ficam-nos os textos como dádiva gloriosa.

Porquê filmar a preto e branco?

A felicidade pode ser a capacidade de nos adaptarmos às circunstâncias. Como filmar em 2019, nesta Lisboa colorida de semáforos e antenas e lojas, o ano de 1936? Escolher bem, enquadrar com cuidado, fazer chover onde estava o sol, utilizar o Hotel Astória em Coimbra, como justo Hotel Bragança, no centro de Lisboa, Fátima no Campo de Tiro de Alcochete, mas muita Lisboa, “meu lar” e lar do meu filme.

A escolha dos atores foi uma escolha intuitiva ou um processo racional?

Racional, racional. Se olharem para as últimas fotografias de Fernando Pessoa em 1935, com 47 anos vêm um homem velho, inchado, diferente do ícone mas quase igual a Luís Lima Barreto que, com a excelência da representação, transporta com ele a ironia do texto. Ricardo Reis “viveu” no Brasil 16 anos. Um amigo meu, que viveu um ano no Brasil, veio a falar brasileiro. E depois, acima de tudo, Chico Diaz é um actor de génio. Fez um Ricardo Reis perfeito. E a beleza da Victoria Guerra e da Catarina Wallenstein, as suas excelentes qualidades de atrizes, o modo como a luz nelas se reflecte e incendeia o ecrã, são escolhas justas para Marcenda e Lídia.

Que significado atribui à figuração de Pilar del Rio no filme?

Através dela, a presença de Saramago, no meu filme. É um agradecimento.

Uma parte considerável do seu trabalho baseia-se em grandes obras literárias. É caso para concluirmos que é um cineasta especializado em adaptações literárias?

Eu não sou um especialista. Eu sou um apaixonado pelos grandes e inigualáveis textos portugueses. E afirmando-os, luto contra o esquecimento.

 

 

Em entrevista, o premiado romancista, cronista e argumentista fala sobre o jornalista que foi e que, ocasionalmente, ainda é, e de como uma peça de teatro, que rouba o título ao jornal, consegue mostrar tanto sobre o estado atual do jornalismo e as condições precárias de quem o faz, revelando ao mesmo tempo tanto daquilo que somos, jornalistas ou não.

Apesar de a considerar uma comédia, a peça Última Hora parece ser um réquiem ao jornalismo…

Um réquiem esperançoso, apesar de tudo. Várias pessoas leram a peça e concordam que é uma comédia; outras, que não é só uma comédia, e até houve quem achasse que não é de todo uma comédia. Eu continuo a considerar que é uma comédia no sentido lato do género. É para fazer rir embora, comigo, fazer rir é fazer pensar.

Mas o riso é, muitas vezes, amargo.

Acredito que o humor não é aligeirar, é aprofundar. Claro que, apesar de ter pensado nela como um corpo de comédia, quem escreve uma peça sobre jornalismo tendo sido jornalista, e ainda mantendo alguns trabalhos jornalísticos, não pode deixar de ter uma nota de desespero, de nostalgia e de realismo.

Essa nostalgia não a torna sedenta de um tempo que já não existe?

Não. O trabalho que faço neste, ou noutros campos da ficção, é uma espécie de amálgama cronológica em que as personagens, também de acordo com os pensamentos que têm, vivem vários tempos ao mesmo tempo. Como, na verdade, todos vivemos. E a cada pensamento corresponde uma ação. Aqui, as personagens aparentam estar paradas naquela espécie de museu de imprensa. Mas não – elas estão a reagir ao mundo, às mudanças, à invasão de outras linguagens e outras maneiras de pensar (mesmo que estranhas ao jornalismo) para tentar sobreviver. Nesse aspeto, é um grito de vida.

Reconhece haver, apesar de tudo o que acontece na peça, uma visão romântica da vida nos jornais?

Há aqui ainda o jornalismo dos tempos heróicos, em que até era possível fumar dentro da redação ou ter uma garrafa de whiskey para dar combustível ao texto [riso]. Eu passei por isso tudo. Assisti e vivi. No fundo, procurei fazer tudo dentro desta peça. Ao mesmo tempo quero que as pessoas sejam surpreendidas. Gostaria que o público, no final do espetáculo, sentisse o mesmo que o imperador russo ao intervalo de O Inspetor geral do grande Gogol, e dissesse: “ele está a falar de nós”. Ou seja, pretendi obter um retrato de Portugal, de uma época (que é larga) e de uma sociedade.

E o jornal é aqui um microcosmos?

Não só da portuguesa e dos jornais portugueses. Ao contar alguns dos truques sujos que são usados por alguns que usam o jornalismo no sentido que Kant dava ao “mal radical”, ou seja, pessoas que usam os outros em proveito próprio, fazendo tudo o que é possível para se beneficiarem a si através de outrem, estou a falar do jornalismo, e não só, de cá ou de qualquer outra parte do mundo. Acho que a peça pode ser facilmente compreendida em qualquer lugar, tanto hoje como daqui a uns anos. E embora sendo uma peça escrita por mim, espero que fale por muitos.

Estas personagens podem ser facilmente reconhecíveis por quem tenha passado pela redação de um jornal. Inspirou-se em pessoas concretas?

Curiosamente, e sem qualquer tipo de misticismo, acontecem coisas na vida que têm muitas vezes relação com o trabalho que estou a desenvolver. Este livro foi para a gráfica [Última Hora está publicada em livro numa edição da Tinta da China, com lançamento marcado para a data de estreia da peça] no dia da morte do Vicente Jorge Silva, que foi um dos meus mestres, meu diretor no Público, embora o diretor deste jornal não seja o Vicente. Estas personagens são uma mistura de muitas pessoas com quem me cruzei, têm muito de mim, de amigos, dos que estão, dos que já morreram e até mesmo dos que hão-de vir. Acho que consegui, e os atores reconhecem isso, que cada uma delas tenha densidade, tenha contradições, e que isso as torne reconhecíveis.

Há um retrato feroz daquilo em que os jornais e, consequentemente, o jornalismo se tem tornado, essa tendência para a tabloidização…

Hoje é tramado ser jornalista. Somos olhados de lado, parecemos estar sempre sob suspeita de estar a entrar pelo caminho que este jornal da peça está a tomar. Experiencio isso quando vou a tribunal [o autor assina uma crónica intitulada Levante-se o réu no Jornal de Notícias] e puxo do cartão de jornalista para falar com alguém. Mas eu acredito no bom gosto, e ainda acredito no jornalismo.

“As pessoas desabituaram-se de comprar jornais, de pagar pela informação. Assim, não pode haver imprensa livre.”

 

O Rui tem trabalhado regularmente para teatro, lembrando a coautoria de textos para Casal da Treta ou Zé Manel Taxista, ou a dramaturgia de António e Maria [peça do Teatro Meridional, a partir de textos de António Lobo Antunes]. Mas este é um trabalho diferente. Como foi o processo de escrita?

Partiu de um desafio do Teatro Nacional D. Maria II, do seu diretor, o Tiago Rodrigues, que, por sinal, é filho de outro dos meus mestres no jornalismo [Rogério Rodrigues], em inícios de 2017. Depois, concorri a uma bolsa de criação literária em Berlim e para lá fui escrever uma peça sobre jornalismo sem saber ainda o quê. Visitei bem a cidade, tive a noção que subsiste do Muro, fui a alguns jornais e, durante esse período, desenvolvi uma parte importante da história. Aliás, Berlim está muito presente e há um episódio delicioso, que não quero revelar, mas que está na peça. Posteriormente, já por cá, dediquei-me a este trabalho, que foi duro, abdicando mesmo de outros para aqui concentrar o meu esforço.

Nessa passagem por Berlim, na visita a jornais, encontrou um cenário semelhante ao que se passa em Portugal?

A crise na imprensa escrita é geral, eles vendem menos, mas são ainda assim na ordem do milhão de exemplares. Mas, essa estada coincidiu com um período muito interessante. A imprensa alemã estava, em articulação com a União Europeia, a organizar-se de modo a que, se não queremos uma sociedade dizimada pela desinformação, pelas fake news, pelos populismos (que por lá são uma enorme preocupação), é preciso agir. E a ação passou por chamar “à pedra” as grandes plataformas, como a Google e as redes sociais, que andavam a pilhar o trabalho de quem escreve nos jornais. Havia forte mobilização e um debate acesso sobre o assunto.

Por cá, à devida escala, esse debate também foi feito.

Mas muito tardiamente. Eles estavam a tentar mudar mentalidades, enquanto aqui havia jornalistas que publicavam de manhã no papel ou no digital e à tarde já estavam a divulgar, à borla, o artigo no Facebook. Considero, em primeiro, uma deslealdade para com quem está a pagar; em segundo, é uma forma de alimentar quem não lhes dá nada, ou seja, as redes sociais que vendem publicidade com o trabalho dos outros. Adicionando isto a outros problemas, as pessoas desabituaram-se de comprar jornais, de pagar pela informação. E assim, não pode haver imprensa livre.

Tudo isso e muito mais está em Última Hora, uma peça com ambição, muitas didascálias, muitos pormenores e descrição de ambiente, algo até em contraciclo com o que se vai fazendo na dramaturgia contemporânea…

Quis que a peça tivesse “atos” com “c” [riso, aponta para uma cópia da prova da capa do livro onde se lê Última Hora – Peça em três actos]. Ainda pensei escrevê-la em cinco atos, à Shakespeare (desculpe, mas é uma referência), embora, infelizmente, não dominar a técnica porque é muito complicado perceber quando as coisas devem acontecer ou quando chega o tempo de mudar tudo. Portanto, fui pelos tradicionais três atos e, mesmo assim, é uma peça longa, mas moderna. E quis que estivesse lá tudo: a sala de redação, o bar onde vão os jornalistas, o passeio junto ao Tejo…

E que houvesse muitas personagens.

Sim. Uma redação é um organismo vivo, com muita gente. [pausa] Bem, agora nem tanto devido à pandemia (tem graça que o Miguel Guilherme, que faz o papel do diretor, esteve no Público para sentir o pulsar da redação e acabou por não ver o que realmente é aquele bulício).

Para além de atores consagrados, como o Miguel Guilherme, a Maria Rueff e os atores do Nacional, o elenco conta com muitos jovens. Está satisfeito?

Muito. São todos fabulosos. O Miguel e a Maria vão estrear-se, por fim, no palco da Sala Garrett. E há aqui algo muito curioso que é termos estagiários de teatro a fazer de estagiários de jornalistas. Interessante, num mundo em que as pessoas perderam a perspetiva de terem um emprego duradouro que permita pensar no futuro, numa família… O jornalismo, particularmente, perdeu isso, tal como, calculo, o teatro e tantas outras profissões. A peça é também sobre isso.

Para concluir, a dado momento, o diretor do jornal tem um desabafo, que cito: “eu meti-me nesta vida desgraçada, nesta fábrica de divórcios, nesta máquina de trinchar filhos às postas, neste hospital de malucos, neste alambique de bagaço, neste tanque de nicotina e alcatrão, neste camião cisterna de tinta tóxica em defesa de um bem maior: a Liberdade! E a Democracia!” Este ainda é o bem que o jornalismo defende?

Lá está. Os meus heróis na peça, com todos os seus defeitos, têm um fundo bom, embora muitas vezes estejam confrontados com a sobrevivência. É por acreditar que a liberdade e, já agora, o amor, são o principal, que a peça nunca poderá ser um réquiem ao jornalismo. Apesar desta fase híbrida em que vivemos, o jornalismo não pode acabar e encontrará um caminho. Como nos dizia o Vicente [Jorge Silva] e os seus discípulos quando entrei no Público: “você não está a escrever para o diretor ou para o chefe, está a escrever para o leitor”. Esse é o compromisso.

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