Criar “um lugar de amor” para reivindicar aquilo que é humano, num tempo de desumanização, ainda mais acelerada por uma pandemia. Este é o propósito da terceira edição da BoCA, que começa em Lisboa, Almada e Faro, no início de setembro, prolongando-se até 17 de outubro.
Mais do que um festival, neste ano de 2021, a BoCA procura, nas palavras do diretor artístico John Romão, manter “viva a sua missão no apoio a novas linguagens, privilegiando os espaços ‘entre’ – por exemplo, entre o performativo e o visual –, novas comissões a artistas portugueses e estrangeiros, no diálogo trans (por isso, transgénero em todas as suas significações) implementando projetos que propõem uma nova consciência e modelos entre práticas artísticas e sustentabilidade.”
Objetivo a concretizar através de projetos artísticos assinados por dezenas de criadores notáveis que procuram olhar o mundo e questionar narrativas estabelecidas. E, tendo em consideração “uma programação que combina diferentes ritmos de projetos e de relações com artistas e instituições, apoiando-se numa transição de processos de produção e de criação, integrados, plurais e sustentáveis”, a bienal reforça a presença de “projetos de curta duração que reforçam o compromisso artístico e ético com artistas e estruturas de produção, criações que se prolongam no tempo e no espaço por meio de maior compromisso face à curta efemeridade do teatral e do performativo, relações sustentáveis e a longo prazo com artistas e projetos, aprofundamento de reflexões e processos de longa duração que combinam performatividade, visualidade, ativismo e neurociência, um foco na relação direta e representatividade de comunidades locais, artísticas, associativas e de setores diversos, cuja participação ativa é implicada no desenvolvimento criativo de projetos para também iniciar um ecossistema inter-relacional entre arte, sustentabilidade e ciência através do projeto A Defesa da Natureza.”
Este último propósito será desenvolvido naquele que é um projeto a dez anos, o qual, numa primeira etapa, se propõe, até dezembro deste ano, a patrocinar a plantação de sete mil árvores de espécies autóctones, através da vontade de 7.000 artistas/cidadãos. Do ponto de vista artístico, este projeto inclui já nesta edição uma série de ações performativas em espaços naturais das três cidades de acolhimento intitulada Quero Ver as Minhas Montanhas. Com curadoria de Delfim Sardo e Sílvia Gomes, as diversas performances são protagonizadas por artistas como Sara Bichão, Diana Policarpo, Dayana Lucas, Gustavo Sumpta, Gustavo Ciríaco, Musa Paradisiaca e o coletivo Berru.
A programação lisboeta
Como vem sendo habitual, a BoCA não se fixa em Lisboa, e se nas edições anteriores se “descentralizou” a cidades do norte do país, este ano atravessa o Tejo, instala-se em Almada, e ruma a sul, até ao Algarve, à cidade de Faro.

Pela capital, o arranque da bienal começa com a primeira instalação de grande escala de Grada Kilomba, que se estende junto ao rio por 32 metros de comprimento, na Praça do Carvão do MAAT. O Barco/The Boat propõe lançar “uma nova narrativa coletiva nesse mesmo espaço público, construída a partir da história da desumanização, da violência e do genocídio dos povos africanos e indígenas.”
Entretanto, no Museu Nacional de Arte Antiga, a artista alemã Anne Imhof apresenta a vídeo-instalação Untitled (Wave) na Capela das Albertas, local anteriormente habitado apenas por mulheres em reclusão; e no Palácio Pimenta, a rapper Capicua estreia-se enquanto autora de teatro e dirige o ator Tiago Barbosa em A Tralha, “uma dissertação emocional que parte da história de um homem que fica sozinho, nos longos meses de confinamento, rodeado de matéria inerte, entulho e recordações.”
A propósito de estreias no teatro, a BoCA trouxe para Lisboa o consagrado cineasta norte-americano Gus Van Sant, que apresenta, a partir de 23 de setembro, na Sala Garrett do Teatro Nacional D. Maria II, a sua primeira criação de palco com uma equipa artística totalmente portuguesa. Andy é um musical que “reconstrói o passado de um Andy Warhol em início de carreira, através de uma narrativa ficcional construída a partir de factos reais e de memórias, mas também da imaginação.”

Lisboa vai ainda ser “palco” de O Terceiro Reich, uma vídeo-instalação performativa daquele que é um dos maiores nomes do teatro europeu, o italiano Romeo Castellucci (Museu Nacional dos Coches, a 9 e 10 de setembro); da performance/instalação Overlapses, Riddles & Spells, de Andreia Santana (CCB, 9 a 12 de setembro); dos vídeos oníricos da polaca Agnieszka Polska presentes em The New Sun (Reserva da Patriarcal, de 13 de setembro a 17 de outubro) – ela que também estará na Casa da Cerca, em Almada com uma outra instalação vídeo, I Am the Mouth; ou de Passages, projeto nómada do coreógrafo Noé Soulier, que explora a relação entre o movimento dos corpos e dos lugares onde estes inscrevem as suas ações, sendo que, em Lisboa, acontece nas salas do Museu Nacional de Arte Antiga (17 e 18 de setembro), estabelecendo um diálogo entre os bailarinos e os objetos escultóricos.
Outro dos grandes destaques desta BoCA é o projeto assinado pelo cineasta Pedro Costa com os Músicos do Tejo. As Filhas do Fogo junta cinema, música e teatro para contar a saga de três jovens irmãs cabo-verdianas que, chegadas a um porto europeu, depois de mais uma erupção devastadora do vulcão do Fogo, vão deambulando, de mãos dadas, evocando os seus medos secretos através da música e do canto. Este ansiado espetáculo é apresentado no Capitólio, a 17 e 18 de setembro.
Na programação lisboeta refiram-se ainda projetos de duplas como António Poppe e La Familia Gitana, Tânia Carvalho e Matthieu Ehrlacher, Gabriel Ferrandini e Hugo Canoilas, Joana Castro e Maurícia Neves; as performances duracionais de Miles Greenberg ou de Carlos Azeredo Mesquita; e ainda dois filmes inéditos do nova-iorquino Khalik Allah. A programação integral para as três cidades BoCA pode ser consultada aqui.
Entraste em contacto com a música muito cedo. Isso influenciou o teu percurso artístico?
Sempre tive essa queda para a música, mas também para outras áreas. Nunca assumi que poderia viver exclusivamente da música – embora o desejasse – mas, por alguma razão – talvez pelas pessoas que me rodeavam – sempre fui empurrado para outros caminhos, mas que, de alguma forma, funcionavam como alibis para poder continuar a trabalhar na música. Olhando para trás, a música sempre esteve muito presente na minha vida. Lembro-me que ia para aulas e estava sempre a pensar em música e a compor. Creio que sim, que o facto de ter tido contacto muito cedo com o universo musical influenciou esta minha vontade.
Porquê este nome artístico?
Um dia, um amigo meu sugeriu – devido ao meu ar nórdico – o nome Príncipe Sueco. Para além disso, eu tinha um grande fascínio pela lenda do D. Sebastião e por todo o mistério e teorias que a envolvem (de tal forma que comecei a investigar mais sobre esse assunto). Surgiu essa sugestão e acabei por optar por um nome mais simples – Príncipe. Mais tarde comecei a analisar a etimologia da palavra e pareceu-me interessante. ‘Príncipe’ vem da palavra ‘principio’, promessa…
Para além de dares voz às canções que escreves, tocas piano, flauta, trompete, percussões, baixo, entre outros instrumentos. Como é que se consegue gerir tudo isto?
Basicamente com muita persistência. Um deles – o trompete – até aprendi especificamente para este álbum. Tenho curiosidade por muita coisa. Tecnicamente, as músicas têm várias camadas. Penso logo em tudo, nas texturas que gostava que a música tivesse, mas depois vou por camadas: começo pela estrutura, pego no instrumento que acho que faz sentido e vou perceber onde é que ele se encaixa melhor e depois gravo. Depois faço o mesmo com os outros instrumentos, é uma questão de ir gerindo prioridades.
Há algum que gostes mais de tocar?
Gostava muito de dominar o trompete, mas comecei há pouco tempo. Só aprendi para poder incluir no disco e consegui aprender o suficiente para tocar aquilo que era necessário… A bateria é talvez um instrumento mais livre, mas gosto muito de todos.
E qual é o conceito deste disco? O processo de trabalho foi diferente do primeiro?
Sim, foi diferente. Este disco tem muitos conceitos no seu interior. Não é suposto ser um disco extremamente conceptual. Comecei por uma coisa pequena, que era captar a sensação de que as coisas não são estáticas, estão sempre a mudar à nossa volta. Nós tentamos pôr contornos, mas na verdade as coisas estão todas fundidas e estão constantemente a chegar-se uma à frente, depois outra e depois outra ainda… Eu quis captar essa sensação de diálogo que não tem propriamente um corpo mas, ao mesmo tempo, está dentro de alguma coisa. Parti daí, dessa sensação de que está tudo a mover-se livremente (mas que ao mesmo tem um centro, um lado íntimo que não é fixo nem palpável). À medida que se vai tornando mais real, vai sendo necessário pôr sensações e projeções reais… daí parti para milhares de outros significados. Cada música tem o seu significado distinto.

O disco chama-se Lugares de Memória. Qual é a mensagem por trás deste título?
Estava a passear pelo interior-norte do país e vi uma placa com essa expressão. Pareceu-me um conceito interessante, por isso fui investigar. Descobri que havia ali um conceito histórico moderno, que surgiu nos anos 80 e que basicamente procurava registar os momentos históricos simplesmente simbólicos. Por exemplo, ‘um minuto de silêncio’ é um lugar de memória porque as pessoas habitam-no, estão num espaço físico, e estão a exercer alguma coisa que passa através do tempo. Este conceito pareceu-me que se identificava perfeitamente com a ideia que pretendia pôr em cada música: algo simbólico e universal, mas ao mesmo tempo coabitável e muito pessoal.
Como funciona o teu processo de composição, o que te inspira?
Acontece de formas muito diferentes, não há um método fixo. Raramente surge de forma forçada. Normalmente estou a tocar e surge-me uma ideia, ou vou a andar pela rua e lembro-me de alguma coisa interessante. Parte sempre de algo espontâneo. Às vezes, quando as coisas surgem, não sabemos bem por que razão surgem, ou para onde vão. Quando tenho uma ideia mais concreta do que quero explorar ou transmitir num tema, aí vou ao meu arquivo de ideias e percebo que comecei aquela música sem saber. Pego nessa ideia e tento fundi-la com a canção que estou a criar.
O disco conta com a participação do guitarrista Bernardo Couto. Como surgiu a ideia de ter a guitarra portuguesa neste disco?
Precisava de um elemento que tivesse o máximo de espectro possível, para não ter a presença de muitos instrumentos. Gosto de me reduzir ao essencial e fazer com que as coisas funcionem, gosto desse desafio. Precisava de um som que fosse próximo, mas ao mesmo tempo imprevisível, que deslizasse. A guitarra portuguesa pareceu-me o instrumento mais vivo, com todas estas características… além disso, tem uma sonoridade de que gosto bastante. Tem o seu peso histórico e não tem sido muito utilizada fora desse contexto.
Dia 22 apresentas este disco no Time Out Market. Como vai ser apresentar um disco em plena pandemia?
Vai ser um concerto mais de aquecimento, porque já não toco ao vivo há muito tempo e o espaço também não é propício a um grande concerto porque o som é muito difuso. Vai ser reduzido ao mínimo de elementos possível: piano e viola da terra [instrumento típico dos Açores]. Vamos tentar fazer isto resultar com uma base rítmica atípica, mas ainda estou a pensar nisso. À partida terá este carácter mais minimalista e intimista, mas será intenso na mesma.
Que efeito teve a pandemia no teu trabalho?
Quando a pandemia surgiu, eu tinha tido uns meses muito difíceis, porque estive doente, fui operado e não conseguia cantar. Estava a meio do processo de gravação quando tive este percalço. Nesse sentido foi bom, porque consegui acabar com calma tudo o que me faltava compor. No entanto, sempre que tinha de ir a estúdio era chato porque tornou-se mais difícil marcar e agendar datas, com muitos tempos de espera. É sempre um pouco castrador porque quando queremos criar novas coisas não temos aquela ignição de sair à rua e as coisas acontecerem espontaneamente, tem de ser tudo muito mais calculado, o que afeta automaticamente a criatividade e exige novos caminhos.
Online Distortion/Border Line(s), a mais recente criação da companhia Os Pato Bravo, é um objeto inclassificável, onde a instalação, o vídeo e a música (original de Francisco Barahona) convivem intensamente com o ato performativo, proporcionando uma assinalável liberdade interpretativa ao público. Tal como a sugestiva “distorção” do título, o espetáculo joga com a realidade, do mesmo modo que desafia a perceção oferecida pelos objetos dispostos e as imagens projetadas em três salas da Casa do Capitão, local de acolhimento desta aventura em Lisboa, pouco depois da estreia no Teatro Viriato, a 16 de julho.
Na génese de uma “narrativa não linear” e experimental, que arrisca a cada momento a excentricidade e o insólito, esteve uma residência artística de Pedro Sousa Loureiro na Arménia, em finais de 2019, onde visitou a capital, Erevã, e duas localidades marcadamente rurais, Byurakan e Talin. No país do sul do Cáucaso, Sousa Loureiro experienciou uma curiosa coexistência entre as vivências do passado (as marcas soviéticas são ainda bastante visíveis) e o presente, entre o urbano e a ruralidade. E, com surpresa confessa, tomou contacto com um conjunto de artistas feministas que projetam, através da arte, imagens de futuro.
E é nessa deambulação pelo dia que virá, como numa viagem, que Sousa Loureiro constrói imagens e situações sempre dinâmicas de espetáculo para espetáculo. À experiência arménia, junta o regresso a Portugal e, logo a seguir, todo um conjunto de referências sobre o mundo que mudou com a pandemia. Tudo são ingredientes válidos em Online Distortion/Border Line(s), criação que se parece desdobrar em “três realidades diferentes”, correspondentes a tempos (passado, presente e futuro) e espaços (a Arménia ou essa espécie de não-lugar, ou local imagético que vai sendo combinado no jogo plástico e performativo) em confronto.
Assumido “feminista”, Sousa Loureiro quis ainda evocar a figura e legado da artista norte-americana Cindy Sherman, cuja sua filosofia de autorretratos conceptuais se estende às imagens propostas pelas performers (Joana Cotrim, Marta Barahona Abreu e Susana Blazer) que com ele estão em cena. “A obra dela sempre me fascinou desde os tempos de estudante”, confessa, e é a partir da abordagem visual que a artista faz ao fenómeno da celebridade e às questões de género, que se abordam “os conceitos de feminidade, excentricidade e insólito” que pontuam o espetáculo.
Tudo isto coexiste para convocar o espectador para “a ação teatral e a projeção em tempo real, e as vídeo-instalações que funcionam como premonições de situações que se preparam para acontecer a seguir”. Porque, afinal, entre os artefactos e o que fica, ou não, do passado e do presente, Online Distortion/Border Line(s) é sobre o futuro: críptico, imprevisível e… distorcido.
As fotografias da infância de Joana Pontes, em Angola, país onde viveu até ao seu regresso a Portugal com 13 anos, serviram de ponto de partida para o filme. Ao revisitar estas memórias, quando estava a fazer o Doutoramento em História Contemporânea sobre a Guerra Colonial, “comecei a perceber que estava na altura de olhar para as fotografias de outro modo. É o seguimento de um percurso pessoal. Há uns anos não me teria permitido essa reflexão, agora, que estou muito longe da realidade que expressam, posso olhar para elas com outras ferramentas. Antigamente não conseguia olhar para as fotografias, ficava emocionada… hoje, olho para elas de uma forma mais pacificada.”
Durante o doutoramento, Joana Pontes questionou o porquê de existir tão pouca coisa escrita sobre a fotografia da guerra colonial. Essas perguntas levaram-na ao encontro com dois investigadores, Filipa Lowndes Vicente e Miguel Bandeira Jerónimo. Foi o início do documentário Visões do Império. Para a realizadora era importante “tirar do espaço estrito da academia, investigações que dizem respeito ao espaço público e que no espaço público podem contribuir para uma discussão mais fomentada e menos opinativa. Achei que fazermos o documentário era uma forma de tornar mais clara esta discussão”, sublinha.
O filme, uma viagem coletiva ao passado colonial através de uma seleção de fotografias do império português, captadas desde os finais do século XIX até à Revolução de Abril de 1974, desvenda os locais onde hoje se adquirem fotografias e postais realizados no contexto colonial, assim como os arquivos onde se guardam as milhares de fotografias relacionadas com o passado imperial português. Uma viagem que nos faz refletir sobre os problemas éticos associados ao uso destas imagens e que ajuda a relançar um debate essencial que não tem tido o protagonismo necessário.
“Estávamos muito próximo do acontecimento e não somos particularmente bons a lidar com a memória. Como houve uma mudança de regime brusca, não foi possível incorporar estes acontecimentos de uma forma mais factual, mais histórica, mais refletida”, esclarece a realizadora. “Muitas das pessoas que procuram informação sobre o tema são ex-combatentes que não querem que se esqueça o sacrifício que fizeram pela pátria, tentam reconstituir o passado e que se fale do assunto independentemente do julgamento que daí advém.”

A exposição, já patente no Padrão dos Descobrimentos, e o livro/catálogo (que será lançado em setembro) surgem como um complemento ao documentário e permitem uma outra forma de difusão do tema. “No fundo a exposição tem outras fronteiras, inclui textos de pessoas que dão opiniões e pontos de vista sobre as fotografias, tem uma organização diferente da do filme, transmitindo uma perspetiva pessoal, uma espécie de itinerário de investigação”. São estes textos que guiam o visitante pelos oito núcleos da mostra, onde se incluem imagens captadas nas antigas colónias em tempos e momentos muito diversos: da ciência ao trabalho, passando pelos hábitos, usos e costumes culturais. O percurso termina com uma instalação de Romaric Tisserand.

Tanto a exposição como o filme permitem-nos perceber como uma imagem nem sempre “vale por mil palavras.” Os postais com imagens de África e de africanos ganham uma dimensão completamente diferente quando se leem as mensagens escritas por aqueles que os enviavam para Portugal. Joana Pontes confirma este facto “quando lemos aquilo que se escreve sobre elas”. Nas imagens enviadas de Portugal para a ONU, e que “pretendiam ajudar a fazer uma espécie de contra discurso, compreendemos um contexto que não nos é acessível se só olharmos para a fotografia. A fotografia é uma imagem, mas tem que ser compreendida num contexto de produção e de classificação, o que neste caso é muito perturbador.”
Outro facto inquietante revelado no filme diz respeito à ausência de imagens que expressassem o sofrimento do povo africano ou a forma desumana como eram tratados. Mesmo depois de uma maior democratização na utilização da câmara fotográfica, as fotografias veiculadas traduziam “uma visão branca” de tempos felizes e prósperos. Sobre esta questão Joana Pontes cita a escritora Dulce Maria Cardoso, “concordo quando ela diz que a nossa vida pessoal não pode servir de amostra da vida coletiva. Neste discurso das colónias, e sinto isso mesmo em relação a alguns elementos da minha família, há muito quem justifique não fizemos mal nenhum, trabalhámos, levámos os filhos à escola… Isso são as histórias pessoais, como há a história dos brancos pobres que foram enviados para as colónias no final dos anos 50, que chegaram pobres, viveram pobres e saíram de lá pobres.”
Independentemente da experiência de cada um “a narrativa individual não nos pode fazer esquecer, nem permitir não analisar, o que foi a grande história dos impérios, que levou ao sofrimento, ao trabalho forçado, à violência e ao profundo desrespeito pelas populações locais. Achamos que a nossa narrativa pessoal é prova da bondade das coisas onde estivemos inseridos, mas não é. Acho que hoje, uma outra geração, que está de fora da cronologia dos acontecimentos mais dolorosos, talvez consiga olhar para isto de outra maneira. Percebemos que embora a nossa vida tenha sido feliz em Angola não é paginável com a vida de milhões de pessoas que viveram numa profunda infelicidade e desrespeito. Porque é essa a natureza dos impérios e o seu objetivo: ocupar e explorar os recursos.”
Solo nasceu imediatamente como um projeto com forte pendor autobiográfico?
Inicialmente não pensei em inserir elementos autobiográficos. Comecei por partir de um texto de Laura Mulvey, Perspectives on Cinema, que se debruça sobre o lugar da mulher no cinema, sobre a imagem e a beleza feminina e aquilo que a autora denominou de male gaze, ou seja, o olhar masculino sobre a mulher, sempre predominante no cinema ao longo do tempo – embora pontualmente tenham surgido visões femininas, mas quase sempre periféricas e pontuais. Quando comecei esta pesquisa estava muito influenciada ainda por um espetáculo anterior que tinha feito sobre John Berger [Ways of Looking, estreado no Teatro Nacional D. Maria II, em 2017], onde me debruçava sobre o modo como se manipula e dirige o olhar do espectador. Essas referências levaram-me a pensar um espetáculo sobre a imagem da mulher no teatro e no cinema. E a isso, juntou-se a vontade de misturar o espetáculo de teatro “sem intermediário” com o espetáculo de teatro que usa a câmara como um segundo olhar, o que permite ao espectador ter acesso a dois planos ou olhares diferentes.
E como é que a autobiografia entra no projeto?
Quando comecei a escrever percebi ser impossível não me colocar no texto. Achei mesmo que seria desonesto da minha parte estar a refletir sobre o que é isto de estar em palco, de ser uma mulher, de haver uma ideia de beleza que nos constrange ou nos coloca em “caixas”, e não falar da minha experiência. Com muita dificuldade, comecei a abordar assuntos que foram decisivos na maneira como eu mesma construí uma ideia de mulher e de atriz. Sobretudo de atriz, e de como isso se relaciona com a mulher que está no palco, que está lá para ser vista e provocar sentimentos, emoções ou desejo. No fundo, esta pesquisa levou-me a compreender como certas formas de estar são incutidas desde muito cedo, e depois se prolongam ao longo do percurso académico e profissional. Ao falar sobre tudo isto na primeira pessoa tinha, necessariamente, de falar da minha vida.
Ao trabalhar sobre matéria autobiográfica, o/a artista procede necessariamente a um exercício de autoconhecimento?
Sim, é inevitável. Quando se começam a abordar estes temas, abre-se um baú sem fundo. Em primeiro lugar, sinto que nos estamos a colocar muito em causa; depois, é forçoso debatermo-nos com o dilema de dizer ou não determinadas coisas no teatro, naquela que é a imensa dúvida de saber, ou perceber, se é aquele o lugar certo. Vivi muita angústia ao expor determinados assuntos, sem saber se o devia ou não fazer. Mas também percebi que, toda essa angústia, provinha do facto de ser a primeira vez que o estava a fazer com um espetáculo. Há, ao longo do processo, um caminho de autoconhecimento que nos leva a lugares dolorosos e que muitas vezes nem sequer imaginamos.
O que foi mais difícil colocares no espetáculo?
Não sei se terá sido o mais difícil mas, quando estava a escrever sobre o amor e sobre uma ideia de par romântico, tive necessariamente de falar de como foi o meu despertar amoroso, e de como isso foi doloroso na adolescência. Decidi abordar o assunto porque reconhecia o quanto terá sido decisivo e determinante na minha vida, já que, na altura, passei por muitos constrangimentos e dificuldades, dado que versa a minha homossexualidade. Com alguma surpresa, acabei por deparar-me com coisas que julgava estarem mais pacificadas, ou até resolvidas.
Como é que se encontra um ponto de equilíbrio entre aquilo que se expõe e aquilo que não se quer ou deve mesmo expor?
Como disse, num primeiro momento, para tornar compreensível e palpável aquilo que pretendia transmitir, percebi ser impossível retirar-me do texto. Em segundo, compreendi que a relação a estabelecer com quem me ia ver passava por uma exposição que não teria necessariamente de mostrar aquilo que é muitíssimo privado, mas que necessitaria de um grau de exposição suficientemente elevado para se perceber que aquela sou eu sem grandes capas. No fundo, aquilo que exponho, julgo ser o bastante para estabelecer essa relação com o público.
Algo profundamente inquietante em Solo é termos a perceção de que aquilo que é tão íntimo e pessoal pode ser, simultaneamente, tão universal…
Curiosamente, quanto mais pessoal mais universal. Ao mesmo tempo que se percebe que cada um de nós tem uma imensa especificidade, também vamos reconhecendo que, afinal, somos todos muito parecidos, e isso é maravilhoso. Todos nós sofremos por amor, todos nós vivemos paixões arrebatadoras, todos nós queremos ser aceites e ser amados, todos nós sonhamos, falhamos…
E é político também.
É, de facto, muito interessante irmos percebendo como o pessoal pode ser efetivamente político. Nós achamos muitas vezes que a política se faz apenas nos corredores do poder, mas nós, nas mais pequenas coisas, através das nossas vivências, da nossa relação com os outros, somos agentes da polis. São, no fundo, as pequenas coisas que influenciam as grandes.
Enquanto artista, este é o espetáculo mais arriscado que criaste?
Penso muitas vezes sobre se ao me expor tanto virei a encontrar margens para me proteger. Mas esta é a inevitabilidade da arte. A arte é, muitas vezes, um exercício de sacrifício pessoal, e até de ruína, no sentido em que se convive com o erro e o falhanço. Mas, neste caso, estou consciente de que só arriscando esse erro e assumindo a vulnerabilidade de me expor é que poderia abordar estes temas.
Devido à crise sanitária e aos confinamentos que suspenderam a atividade cultural, a estreia de Solo foi várias vezes adiada. Como é que os sucessivos reagendamentos influenciaram o resultado final?
Independentemente de saber sempre que o espetáculo iria acontecer (devo essa certeza ao permanente esforço do TBA), confesso que foi muito violento, sobretudo por ser uma criação que me é tão próxima. Imagina estares a pensar que só dali a um ano o vais estrear: será que faz sentido para mim; será que estou capaz de me expor? O certo é que durante muito deste tempo deixei o texto de lado, voltando a ele pontualmente. E quando isso acontecia percebia que aqui ou ali não estava a ser completamente honesta.
E a honestidade é determinante no espetáculo…
Claro que sim. Cada vez que voltava ao texto tinha um olhar mais exigente e mais consciente do que estava a acontecer à minha volta. Ou seja, pensei: vivemos um momento em que há tanto distanciamento, em que estamos todos enfiado em casa, e eu vou pôr-me num palco em algum momento para dizer o quê? Se vou falar sobre estes temas, não posso estar com meios-termos, tem de ser com toda a sinceridade. O estar isolada criou a urgência de criar pontes com quem me está a ver, isto é, de sair de um lugar um bocadinho teórico e mais intelectual, e passar a um lugar de maior emoção, e com isso de maior exposição. Lembro mesmo de ter alertado o Francisco Frazão [diretor do TBA] para o facto de, muito provavelmente, o espetáculo já não ir ser o mesmo. E, realmente, não é. Mas, eu gosto mais do objeto que tenho hoje em mãos [risos].

Queria voltar à questão da autobiografia, para lembrar como nos últimos anos se verificou uma tendência crescente para vermos mulheres levarem aos palcos espetáculos de caráter autobiográfico. Há uma urgência para isso acontecer?
Há, decerto, a perceção de existirem muitas narrativas no feminino que ficaram por contar. Aliás, há livros a sair de autoras que foram esquecidas ou menosprezadas, e até estão atualmente patentes uma série de exposições que revelam mulheres que tiveram um papel relevante na arte ou na sociedade. Neste momento, finalmente, há espaço e uma atenção coletiva crescente para valorizar as liberdades individuais e a diferença ou, para usar uma palavra que me parece mais ajustada, a especificidade de cada pessoa. Toda esta amálgama de possibilidades de ser e estar, de nos sentirmos bem com a nossa identidade e de a exprimirmos parece ser mais valorizada, embora, em paralelo, surjam discursos em sentido contrário. Mas, acho que é aí que entra a urgência de mais mulheres exporem as suas narrativas, de abordarem temas que as afetam, como a violência doméstica, o assédio sexual, as desigualdades salariais, etc. E depois há ainda as questões da identidade de género que, somadas, formam todo um conjunto de narrativas muito importantes, e que enriquecem bastante a nossa possibilidade de compreensão do mundo.
E porque é que te parece haver tão poucos homens a, digamos, encetar o seu contributo artístico neste campo?
A causa poderia estar no facto de ter sido o olhar masculino a pautar a criação artística até aos nossos dias. Mas, creio que a verdadeira razão passa por muitos homens ainda sentirem não ser este o lugar para falarem com vulnerabilidade das suas histórias e vivências, à semelhança daquilo que muitas mulheres artistas estão a fazer.
Curiosamente, muitos dos temas abordados em Solo tiveram também uma intensa exposição mediática desde o início da pandemia, não só os relacionados com os direitos das mulheres, mas também os das comunidades LGTBIQ+, ou até o debate em torno da urgência da linguagem neutra e inclusiva. O facto destes temas terem estado tantas vezes em agenda desde março do ano passado influenciou-te de algum modo?
Não sinto que o tenham feito, embora reconheça a necessidade de ter de assumir uma ainda maior responsabilidade. São coisas muito sérias, mas a arte é também uma coisa muito séria, embora creia que possamos falar de qualquer tema, mesmo que seja a brincar – lembro, por exemplo, O Eterno Debate [peça de Teresa Coutinho estreada em 2020, que deu sequência a um projeto para televisão disponível na RTP Play]. Mas, em relação a este espetáculo, reconheço sobretudo a responsabilidade que é estar a inscrever no palco aquele discurso, aquelas imagens, aqueles códigos, sem deixar de tornar claras algumas questões. Se elas serão ou não bem compreendidas, já é outra história, até porque Solo tem também elementos ficcionados, tem a nostalgia, tem o lirismo… Não pretendo de modo algum que o espetáculo se confine num discurso panfletário.
O que gostavas, no final do espetáculo, que o público levasse consigo?
Como qualquer criação artística, gostaria que pudesse reverberar, que pudesse inquietar – aliás, a inquietação interessa-me especialmente, bem mais do que saber se as pessoas gostam ou não. O sonho de qualquer criador é que a criação não passe ao lado de ninguém. Para ser muito sincera, a minha maior ambição é que, amando ou odiando, pensem nele.
Não é à toa que Lisboa é uma das cidades mais badaladas da Europa (pandemia à parte, já que o turismo anda pelas ruas da amargura por todo o lado). O clima fantástico, a luz inigualável, a gastronomia sem comparação e até a hospitalidade dos alfacinhas, são fatores que apaixonam quem nos visita. Lisboa é uma cidade multicultural de grande riqueza histórica, mas é também uma cidade moderna, que se reinventa e abraça a novidade. Aqui há fado, mas também há música eletrónica. Aqui coabitam o novo e o velho, a tradição e a modernidade. Depois de mais de um ano de pandemia e de economia estagnada, há todo um setor que se reinventa.
Casa do Capitão
casa-capitao.com
O Hub Criativo do Beato é uma arca que guarda vários tesouros. Um deles é a Casa do Capitão, inaugurada em agosto de 2020. Este ano, as portas abriram em maio e, fazendo jus ao conceito de espaço pop up, manter-se-ão abertas até outubro. De quarta a domingo, é possível usufruir de uma programação para todos os gostos e idades. Os eventos decorrem na Casa ou no terraço, com exposições, concertos, oficinas, DJ sets e leituras. Os mais pequenos não foram esquecidos, havendo regularmente oficinas para frequentar em família. Para o cardápio estar completo os petiscos não podiam faltar, fruto de uma parceria com A Praça Hub (conceito de cozinha que privilegia ingredientes de pequenos produtores regionais) e ainda com a produtora de cerveja The Browers Company.
Novo Negócio
zedosbois.org/novo-negocio
O Negócio surgiu em 2005 como um espaço dedicado à criação e experimentação em residência. Durante 13 anos de fervilhante atividade, recebeu 126 residências de criação e apresentou 180 peças de teatro e dança. Em 2018, a especulação imobiliária que se abateu sobre a capital obrigou à procura de uma nova localização. Após um hiato de dois anos (e de intensa busca pelo espaço com as características ideais), o Negócio voltou a abrir portas em Marvila, um local da cidade onde há muita atividade cultural a efervescer. Para além das artes performativas, o Novo Negócio recebe concertos regularmente, numa linha que o atual programador de música, Marcos Silva, considera ser “marginal e experimental”.
Valsa
valsa.pt
Em 2018, a Penha de França viu nascer um novo espaço multidisciplinar de convívio cultural que rapidamente conquistou público. Com programação regular, a Valsa assume-se como um laboratório para artistas das mais diversas áreas (música, artes plásticas, dança, teatro, poesia), que testam e experimentam novos projetos e formatos. Na maioria das vezes, esses encontros dão-se em forma de espetáculo, mas também há saraus, DJ sets, encontros, improvisos, cursos livres ou feiras. Claro que os petiscos são obrigatórios, com grande destaque para o projeto Pizzandante, que promove a ideia de que uma boa pizza tem o poder de juntar pessoas e criar lugares de encontro e troca de vivências. Também não podiam faltar livros, seja para ler enquanto bebe café, ou mesmo para comprar.
PENHA SCO –Arte Cooperativa
penhasco.online
A PENHA SCO é uma cooperativa de produção e difusão artística da Penha de França, que abriu portas em 2018 numa extinta fábrica de têxteis. Segundo uma das cooperadoras, Julia Salem, “o objetivo sempre foi pensar a arte não só no âmbito da arte contemporânea, mas num âmbito expandido. Uma arte que trabalha com formação de público, com políticas de convívio, arte comunitária ou arte social”. Existem ciclos de programação trimestral, que são desenhados pelo corpo de cooperadores e que abrangem música, artes performativas e artes visuais. O espaço tem quatro ateliês de criação (mais vocacionados para artes visuais e vídeo), uma blackbox (para ensaios e apresentações) e uma galeria. É, acima de tudo, um espaço multidisciplinar: “não há muitos espaços que programem música, artes performativas, artes visuais e que, para além disso, ainda façam um trabalho com a população local”, tal como o projeto RE_INTEGRARTE, que trabalha com crianças e idosos da zona.
Harbour Music Shelter
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Em agosto de 2019, abria portas o Harbour Music Shelter, um clube noturno no Cais do Sodré. O projeto surgiu quando três amigos – que já trabalhavam na área da realização de eventos – decidiram promover um negócio em conjunto. A ideia era abrir um espaço de música eletrónica, que fosse um prolongamento dos bares e uma alternativa às discotecas da zona, funcionando entre as quatro e as dez da manhã. Este ano, o Harbour Music Shelter ganhou uma nova varanda com vista para o rio, para que se possa usufruir da música com toda a segurança. Frequentado sobretudo por amantes de música eletrónica, o Harbour tem muito mais para oferecer. Aqui há muitos petiscos e cocktails para provar enquanto usufrui de um DJ set a olhar para o Tejo. Todos os dias há um novo DJ para conhecer, com enfoque especial em artistas nacionais, que viram os seus rendimentos drasticamente reduzidos com a pandemia.

Brotéria
broteria.org
Monsantos Open Air
monsantosopenair.pt
A música e a religião fizeram parte da tua infância. Isso influenciou a tua identidade artística?
Tanto o meu lado materno como paterno eram muito ligados à religião. Uns evangélicos-protestantes e outros católicos. O meu acesso à arte foi através da religião, que me deu uma formação mais consolidada de teatro, música e canto coral. Embora fosse obrigado a ir à igreja, acabava por gostar de todas as atividades artísticas e daquele universo ficcional (ou não, dependendo da fé de cada um), que começou a fazer parte da minha formação. A minha família tem um lado pagão e um lado religioso e foi por aí que o meu trajeto artístico se começou a desenvolver.
A tua vida artística começou muito cedo. Aos 9 anos participaste na peça O Flautista de La Fontaine. A partir desse momento percebeste que querias viver da arte?
Sempre soube que queria viver da arte. A decisão de seguir esse caminho sempre foi uma coisa muito natural. Tenho vários amigos que se sentem perdidos porque não sabem o que fazer da vida e eu não faço ideia o que isso é. Sempre soube o que queria fazer e sempre tive a sorte de, quer na escola, quer na igreja, ter papéis de grande responsabilidade e destaque.
Como surgiu a paixão pelo fado?
A minha mãe é da Mouraria, era fadista e bailarina. Curiosamente, não cresci com ela. Embora tenha tido muito mais contacto com o meu pai, sou muito mais parecido com a minha mãe. Os meus avós gostavam muito de fado e eu estava sempre a perguntar-lhes histórias. É um bocadinho cliché dizer que o fado nos escolhe, e acho que não escolhe só os fadistas, mas todos os personagens que orbitam esse universo. Acho que, no meu caso, foi isso que aconteceu, como acontece com a maioria das pessoas que dedicam a sua vida ao fado. É uma coisa que não se sabe bem como acontece, mas sem a qual não se consegue viver. Não consigo viver afastado do fado. Tenho momentos em que estou mais dedicado à criação de peças de dança, mas no fim do dia vou sempre ouvir os meus fados.
Para além de fadista, és coreógrafo, bailarino e performer. Como se gerem todas estas facetas?
Comecei no Chapitô, que dá uma abertura muito grande para todas as artes: teatro, dança, artes circenses, teatro de rua… Todas estas vertentes enriqueceram o meu caminho matriz, que é o fado. Sempre pensei que teria de optar entre a dança e o fado, até que surgiu o fado batido, que é o espetáculo que estou a desenvolver agora, que resgata as danças extintas do fado. É meu desejo que o fado volte a ser “batido” nas casas de fado, e que volte a ter um vocabulário coreográfico associado. É muito difícil gerir tudo, mas é isso que me enriquece enquanto identidade artística. A dança contemporânea e a performance olham para o futuro, enquanto o fado está completamente enraizado no passado. É uma grande responsabilidade poder expandir esta forma de expressão artística, que é muito mais velha que eu e que já existia muito antes de eu nascer.

O fado batido é um conceito que poucos conhecem…
É talvez o tema mais desconhecido e obscuro do fado, que carece de uma investigação a sério. O flamenco, o samba ou o tango têm uma dança associada. O fado também tinha, chamava-se fado batido. Era uma dança muito erótica e lasciva, baseada num sapateado energético e em palmas. Fala-se muito da influência do fandango e do lundum (dança afro-brasileira). Os primeiros documentos sobre a origem do fado remetem para o Rio de Janeiro, quando a Corte foge para o Brasil. O fado nasce nesta altura enquanto dança, e de repente desaparece. É isto que dizem os principais livros de história do fado, embora não expliquem o porquê do seu desaparecimento súbito. Esta peça que levo ao CCB assenta nessa investigação. Não seria honesto dizer que vou recriar a dança porque isso não é possível. Será uma reinterpretação com alguma liberdade (com base em imagens e textos) e um novo vocabulário para que se possa bater o fado, daí o nome Bate Fado e não fado batido.
De onde veio esse desejo de recriar o fado batido?
Um dia escrevi uma música a que chamei Fado Batido. Depois, já fora de horas, fui a uma casa de fados onde estava a Matilde Cid a cantar o Fado das Horas. Nesse momento tive uma visão de um homem vestido de campino a dançar em círculo, enquanto sapateava. Foi a partir daí que o projeto nasceu. Tem sido um caminho incrível. Ainda só fizemos três apresentações, mas as reações são sempre de espanto. No mínimo, estamos a dar a conhecer ao mundo que o fado já teve uma dança que se extinguiu e que ninguém sabe porquê. Não se sabe porque houve este apagão da memória coletiva, e não foi assim há tanto tempo. Até 1910 ainda se encontram documentos do fado dançado. Se o fado tem 200 anos, metade da vida dele foi dançada.
O teu disco de estreia chama-se São Jorge. O nome está relacionado com a freguesia onde nasceste (São Jorge de Arroios)?
São Jorge sempre foi um santo que me intrigou muito, mas há aqui vários fatores: nasci em São Jorge de Arroios, o Chapitô é ao lado do Castelo de São Jorge, São Jorge é um santo muito importante na formação de Portugal enquanto santo protetor de D. Afonso Henriques… fascina-me esta ideia do santo guerreiro que é, em si, um antagonismo. Uma vez fiz uma cerimónia em que estava a cantar a música de São Jorge e uma parte da letra diz “e o golpe do destino, esse eu sinto, mas não caio”. Isto intrigou-me muito nesse momento, e foi aí que dei nome ao álbum. Acho que foi um bocadinho esquecido e substituído pelo Santo António, e isso intriga-me. Como é que se passa de um santo montado num dragão para um santo estático com o menino ao colo? Esta ideia do guerreiro rendido a lutar é uma imagem muito próxima dos fadistas. O fado é um ritual e fala de muitos assuntos que muita gente não gosta, como a morte ou o machismo. Põe o dedo na ferida, o que para mim é uma espécie de catarse.
A produção musical ficou a cargo de Jorge Fernando. Como surgiu esta parceria?
Esse é outro grande motivo pelo qual o álbum se chama São Jorge. Conheci o Jorge na primeira casa de fados onde cantei, a Casa de Linhares. Foi a primeira pessoa que me ouviu a cantar fado em público. Desde aí fomo-nos sempre cruzando, sempre houve uma ligação e uma identificação. Se não fosse o Jorge, a sonoridade deste disco seria completamente diferente. Acho que ninguém me consegue ler tão bem. Eu levava-lhe uma melodia e uma letra e o que ele me propunha às vezes nada tinha nada a ver com a ideia que eu tinha, mas surpreendia-me sempre pela positiva. Acho que ele é um génio a trabalhar. Para mim, é a personagem viva mais transversal do fado. Começou como guitarrista da Amália e tornou-se num dos maiores compositores de fado. É um privilégio ele ter participado nos meus primeiros passos como cantautor e fadista. Ter ao meu lado um São Jorge destes foi uma experiência muito forte.
Quem são as tuas maiores referências no universo do fado?
Amália Rodrigues. Lá vou eu para o cliché [risos]… Mas também o Carlos do Carmo ou a Fernanda Maria. Em relação a nomes mais atuais, adoro a Sara Correia ou o Ricardo Ribeiro.
Bernardo Santareno
Teatro I
O médico e escritor António Martinho do Rosário (com o pseudónimo literário de Bernardo Santareno) integrou em 1957, a equipa de médicos da frota bacalhoeira portuguesa, primeiro no arrastão David Melgueiro, depois no navio-motor de pesca à linha Senhora do Mar e, por fim, no navio-hospital Gil Eannes. Experiência que serviria de material para Nos Mares do Fim do Mundo, obra singular, misto de diário, livro de viagens, reportagem, narrativa poética e aventura, e para O Lugre ou A Promessa, duas peças fundamentais do maior dramaturgo português do século XX. Para além desses dois títulos, complementam o primeiro volume dedicado ao teatro de Santareno, as seguintes peças: O Bailarino, A Excomungada, O Crime da Aldeia Velha e António Marinheiro (O Édipo de Alfama), textos que o consagram como poeta de teatro. Escreve Ana Paula Medeiros na introdução à presente edição: “Poeta da sombra lutando com a luz, procurando o seu destino e sua força. Poeta da vida como mistério, que, indizível, toca o eu e o outro e os empurra para a redenção na palavra e no silêncio, na transfusão libertadora que é o teatro para Bernardo Santareno.” E-Primatur
Luísa Costa Gomes
Afastar-se
Numa dos contos deste livro que dá titulo à coletânea, Luísa Costa Gomes relembra-nos que o poeta Lord Byron foi o fundador da natação competitiva em mar aberto. Completada a travessia do Helesponto, Byron escreveu à mãe: Tenho mais orgulho nesta proeza do que em qualquer outra glória, poética, política ou retórica”. Giulia, a jovem protagonista da narrativa, revê-se nas proezas do poeta que “desde criança se lançava a charcos, lagos, rios, canais, estreitos e a toda a água que se lhe atravessasse no caminho”. Luísa Costa Gomes colecionou ao longo de mais de cinco anos contos que de uma maneira ou de outra tem a água como tema central ou inspiração. “Ela está sempre presente, doce, clorada, salgada, mais larga ou mais discreta, no oceano aberto onde se experimenta o abandono e a sobrevivência, no duche redentor que muda em narrativa irónica uma experiência de quase morte, na saliva que prepara a cinza, na piscina adorada que é meio de transmutação alquímica”. 13 belíssimos contos onde “na vida da água que nos faz sonhar [só de olhar] reconhecemos a nossa própria sobrevida.” Dom Quixote
Marc Jimenez
A Querela da Arte Contemporânea
As vanguardas do século XX parecem ter inviabilizado as convencionais categorias estéticas e o grande público reage frequentemente com alguma perplexidade, e até aversão, perante obras que não compreende. Marc Jimenez, filósofo e germanista, professor de Estética na Universidade de Paris I, procura responder a uma questão essencial: como julgar a qualidade artística de objetos e de práticas quando já não existem critérios nem normas de referência? Esta obra traz a lume o controverso tema da “decadência da arte”, identificando os debates e polémicas que opõem defensores e detratores da criação artística contemporânea. A questão que se levanta, segundo o autor, já não é tanto a dos limites estabelecidos para a criação, mas a da inadequação dos conceitos tradicionais — arte, obra, artista, etc. — a realidades que aparentemente já não lhes correspondem. O verdadeiro interesse destas querelas vai depender, de acordo com Marc Jimenez, “da vontade que os diferentes atores do mundo da arte ocidental revelem para se oporem a que a criação artística se reduza a ser apenas o eco fiel do que a sociedade espera dela.” Orfeu Negro
Julian Barnes
O Homem do Casaco Vermelho
No mês de Julho de 1885, chegam a Inglaterra três franceses que, como escreveria mais tarde Henry James, seu companheiro durante dois dias, “ansiavam por ver o esteticismo londrino”. Eram eles: o Príncipe Edmond de Polignac, o Conde Robert de Montesquiou- Fesensac e Samuel Pozzi, plebeu, médico da melhor sociedade, ginecologista pioneiro, que alguns anos antes, fora retratado numa das mais brilhantes telas de John Singer Sargent, em casa, com um impressivo roupão escarlate (o homem do casaco vermelho). Este livro inclassificável é, em parte romance, em parte biografia dos três amigos e, por fim, um veemente retrato da Belle Époque através das suas figuras modelares. Época cosmopolita repleta de glamour, com um clima cultural e artístico marcado por um profundo hedonismo, mas que revela também um lado negro, “um tempo de neurose, mesmo de ansiedade nacional histérica, carregado de instabilidade politica, crises e escândalos”, sem esquecer as intensas manifestações de racismo (o célebre “caso Dreyfus”). Simultaneamente, detém-se num dos tipos característicos desta era, o dandy, “aquele que persegue a perfeição do gosto.” Quetzal
José Silva Carvalho
A Ermida Que Há Dentro Deste Lugar de Carnide
Esta obra centra-se na história de um edifício demolido há mais de 160 anos e a sua importância no contexto de Carnide. Segundo o seu autor, o arquiteto José Silva Carvalho, terá sido porventura a construção da Ermida de Carnide e do seu antigo rocio, a estar na base da formação e continuada existência deste núcleo nos subúrbios da antiga Lisboa. Para além da história da Ermida, o autor debruça-se sobre o seu espólio, bem como sobre alguns outros edifícios circundantes como o pequeno hospital/gafaria e o suposto antigo paço. Outros usos existentes neste rossio, designadamente os ligados à taberna ao vinho e à festa, contribuíram para as dinâmicas que durante séculos se desenvolveram na envolvente da ermida e do seu pequeno cemitério. Trata-se de um exercício de reflexão que pretende contribuir para o conhecimento do núcleo antigo de Carnide, particularmente na área do património edificado, tendo a Ermida do espírito Santo como referência principal de análise. Ed. Caleidoscópio
Paulo Dentinho
Sair da Estrada
“Livro de descobertas”, como lhe chamou Mário Zambujal, composto por 13 histórias que se leem de um fôlego, com uma escrita rápida, direta e eficaz, própria do jornalismo, Paulo Dentinho revela os acontecimentos que testemunhou a partir dos bastidores das reportagens. Enviado especial, repórter de guerra, correspondente em Maputo, Díli e Paris, entrevistou personalidades de relevo internacional como Ytzhak Rabin, Muammar Kadhafi, Emmanuel Macron ou Lula da Silva, entre outras. Mas foi sobretudo na reportagem que se destacou. Das ruas mais modestas aos palácios reais e presidenciais, cruzou-se com histórias simples de gente anónima e com as dos grandes decisores políticos do mundo contemporâneo. Testemunhou dor, morte, revolta e resignação. E conta neste livro o que viu. São reportagens “com pessoas reais lá dentro”, como escreve Teresa de Sousa no prefácio à presente edição: “Cada história tem pessoas de carne e osso, que estiveram lá, que vivem lá, que sofrem as consequências ou alimentam as esperanças. (…) É a partir dessas histórias que nos leva de novo às notícias de que já nem nos lembramos. (…) Para que a memória mão se apague e as tragédias não sejam esquecidas.” Caminho
Alan Hollinghurst
A Biblioteca da Piscina
Alan Hollinghurst, romancista inglês nascido em 1954, alcança o Booker Prize de 2004 e a fama internacional com a A Linha da Beleza, retrato impiedoso da plutocracia da era Thatcher e dos seus efeitos sociomorais, e uma fina análise da complexidade das relações humanas numa época marcada pelo aparecimento da SIDA. A Biblioteca da Piscina (1988), a sua primeira obra, centra-se igualmente num relacionamento homossexual. Durante um engate numa casa de banho pública, um jovem salva a vida de um homem muito mais velho, um Lord suficientemente colunável para aparecer nos diários de Evelyn Waugh. O aristocrata encarrega o jovem de escrever a sua biografia e entrega-lhe os diários em que confiou os pormenores da sua vida, valioso documento sobre o universo e a cultura gay inglesas. Mas este romance é muito mais do que isso. Os livros de Hollinghurst constituem, invariavelmente, uma experiência estética inesquecível: o romancista escreve com requintada erudição sobre pintura, arquitetura, design, decoração e antiguidades, música e literatura. Toda a sua obra remete para uma certa tradição literária inglesa: A Linha da Beleza para Henry James; A Biblioteca da Piscina para E. M. Forster. Dom Quixote
João Palma e Rodrigo de Matos
Sem Rei, Nem Roque
Todos sabemos que “cair no conto do vigário” significa sermos enganados ou burlados, mas a origem desta expressão popular é bem menos conhecida. Também o significado de expressões como “uma questão de lana-caprina”, “encanar a perna à rã”, “dar com os burros na água”, “vai para o maneta!”, “rés-vés Campo de Ourique” ou “fazer uma vaquinha”, se perde no tempo. Sem Rei, Nem Roque tem como autores João Palma, que entre 1990 e 2006 foi jornalista do Público e que, em simultâneo, escreveu diversas peças, em especial na área do desporto (atletismo, corridas de estrada), bem como pequenas crónicas e artigos ocasionais, e Rodrigo de Matos, cartunista do semanário Expresso, com o qual colabora desde 2006, assinando atualmente a coluna Capital de Risco no caderno “Economia”. Juntos embarcaram nesta viagem às origens das expressões populares mais usadas pelos portugueses. Um livro útil para miúdos e graúdos, com ilustrações divertidas, que conta tudo “tintim por tintim”, que não é “de borla”, mas também não “custa os olhos da cara.” Oficina do Livro
Os pilares da Ponte Vasco da Gama, campos de basquetebol, empenas de prédios, atravessamentos pedonais e muros de comboio vão receber intervenções de diversos artistas, alguns em estreia em Portugal, outros consagrados. Durante nove dias, é possível assistir a workshops ou visitar, a pé e de bicicleta, os novos trabalhos que prometem dar ainda mais vida àquela zona da capital. E, porque todas as intervenções de arte urbana têm um autor, damos a conhecer a cara de quem dá corpo e forma a esta arte.

Odeith
(Portugal)
www.odeith.com
Conhecido mundialmente pelo efeito tridimensional que dá às suas composições artísticas através do recurso à ilusão de ótica, Odeith marca presença dupla neste festival. Na Gare do Oriente, apresenta a exposição Obliquity, onde, pela primeira vez, se vão poder ver algumas peças anamórficas como as que costuma fazer em espaços abandonados e que normalmente só são vistas na internet ou nas redes sociais. Só quem consegue encontrar uma fábrica abandonada onde eu tenha pintado é que consegue ver a obra ao vivo, diz. A exposição tem um bocadinho de tudo: insetos, carros, umas caveirinhas de animais…. Haverá sinalização no chão, onde as pessoas terão de se situar para conseguirem ver a tridimensionalidade da peça. Convém que levem telemóvel, porque a maior parte dos efeitos só são vistos com uma câmara, acrescenta.
Para além desta mostra, Odeith também vai intervencionar um pilar da Ponte Vasco da Gama. A palavra Lisboa será ali pintada com um estilo tridimensional, sem chocar muito, simulando a presença de umas letras de pedra na ponte”, conclui.
Thiago Mazza
(Brasil)
www.thiagomazza.com.br
A minha especialidade é pintar plantas, esclarece Thiago Mazza, considerado um grande expoente do muralismo contemporâneo brasileiro e conhecido no cenário da arte urbana contemporânea pelo seu domínio na representação da fauna e da flora.
Atualmente, o seu tema de estudo são as plantas tropicais mas, para a sua intervenção no Passeio do Báltico, a primeira em Portugal, optou por trabalhar a partir das plantas daqui. A minha composição para este festival vai ser um pouco diferente, já que costumo trabalhar plantas com uma estrutura exuberante e folhagem densa. Mas aqui vou ampliar muito as flores que apanhei já em Portugal, como a papoila e a alcachofra selvagem, e vou mostrar que elas são muito mais que uns pontinhos roxos, amarelos ou vermelhos que passam despercebidos no campo. A minha intenção é que as pessoas valorizem a flora nativa e que vejam como são bonitas as flores que crescem espontaneamente num campo, num lote vago ou até num quintal abandonado”, explica o artista brasileiro.

Tomáš Junker aka PAUSEr
(República Checa)
www.instagram.com/pausrr
PAUSEr é um dos quatro nomes que formam o grupo Visegrado, coletivo de artistas da Polónia, República Checa, Hungria e Eslováquia que nasceu por ocasião do 30.º aniversário do grupo Visegrado (V4) e no âmbito da presidência polaca do V4 (julho de 2020 – junho de 2021).
Convidados para o festival através das embaixadas de cada um dos países, PAUSEr (República Checa), Fat Heat (Hungria), RCLS (dupla da Eslováquia) e Mikołaj Rejs (Polónia), unem-se para criar um mural na Avenida de Pádua. O conceito inicial era compor uma peça sob o tema da sustentabilidade e ecologia. uma vez que cada artista tem o seu próprio estilo, e por isso era difícil fazer uma peça única, decidimos fazer composições separadas e uni-las através do background e da fusão das cores e do tema, avança o artista checo. Na minha obra em específico, tento juntar o velho e o novo, o presente e o futuro, combinando temáticas tradicionais de Portugal e da República Checa, conclui.

Jacqueline de Montaigne
(Portugal)
www.jacquelinedemontaigne.com
Pintora e muralista, Jacqueline de Montaigne é uma autodidata que só em 2018 decidiu enveredar pela carreira artística a tempo inteiro. Recorrendo à arte figurativa dramática, infundida na natureza, a sua obra encontra-se representada tanto em coleções internacionais privadas como públicas e na proeminente cena da arte urbana em Portugal.
A sua intervenção artística no muro da linha do comboio no Passeio do Báltico é um lembrete de que a nossa própria existência é condicionada pela nossa capacidade coletiva de proteger a fauna e a flora e encontrar um equilíbrio para coexistir com e dentro do nosso mundo natural. O meu mural mostra duas figuras espelhadas frente a frente – uma humana, a outra composta pela fauna e flora local (magnólia, verdilhão e arctia vilica). A figura humana tem a fauna e a flora correspondentes tatuadas no seu corpo como uma ode à natureza. As duas figuras são ligadas por um círculo de cobre criado a partir de uma folha de cobre real, que simboliza a continuidade, acrescenta a artista anglo-portuguesa.

Los Pepes
(Portugal)
www.instagram.com/lospepesstudio
Los Pepes Studio é uma dupla de artistas composta por Meggie Prata e Francisco Leal que realizam a sua intervenção no Casal dos Machados. Ligados às artes plásticas e ao design, têm vindo a desenvolver um corpo de trabalho geométrico, cheio de padrões e com alguns elementos antropomórficos.
Para o espaço da Rua Padre Joaquim Alves Correia, e sob o tema da multiculturalidade, propõem-se representar todas as pessoas, independentemente da sua raça ou da sua história de vida. Focando-se no crescimento pessoal, recorrem às plantas, seres que precisam de cuidados como todos nós. Também representamos muita geometria, que é a nossa linguagem, e porque gostamos de associar os sentimentos à lógica. No centro da composição podem encontrar-se smiles, que acabam por ser uma representação de pessoas sem raça, sem nenhuma cultura associada, sem religião. Representar determinada cultura é sempre redutor, por isso optámos por representar toda a gente. E a partir desses smiles do centro, a composição cresce para fora, mostrando que não somos todos iguais e que cada um cresce e evolui de formas diferentes, concluem.

Juan José Surace
(Argentina)
www.instagram.com/juanjosurace
O consagrado artista argentino Juan José Surace foi um dos vencedores do open call artista Muro Lx_21 e estreia-se agora em Portugal com a intervenção String Quartet, uma obra que fala de integração através da cultura, nomeadamente da música. Este lugar de encontro, diálogo e compreensão entre culturas mostra cinco animais de cinco continentes diferentes a tocarem um instrumento tradicional de cada região, revela. A ideia do mural, que tomará conta de uma empena de um edifício no Casal dos Machados, é mostrar que a música requer uma coordenação que fomenta o diálogo e o entendimento entre culturas. O meu desenho, por ser realista, aborda a questão da possível união e integração através da arte que, lamentavelmente, parece ser o único ponto de entendimento entre os povos, conclui.
A viver em Barcelona desde 1998, Juan José Surace começou a dedicar-se às intervenções em espaço público e ao muralismo em 2017. Os seus murais podem ser vistos em Espanha, Argentina, Itália, EUA, França e, a partir de agora, em Portugal.

André Silva aka Trafic
(Portugal)
www.andretrafic.com
Um dos pilares da Ponte Vasco da Gama está a cargo de André Trafic, artista urbano português cuja linguagem emerge, atualmente, entre murais, azulejos e esculturas. Para a sua composição, inspirou-se no conceito de flow, que marca muito a cultura urbana. Desde o flow de um rapper a rimar, de um b-boy ou b-girl a dançar, até ao flow de umas letras em graffiti, existem movimentos e ritmos que nos criam ressonâncias e provocam sentimentos maiores que nós e que são tão pessoais e únicos que se tornam difíceis de explicar. Tentei então interpretar estes movimentos e sentimentos abstratos para formar uma imagem que transmita um sentimento crescente de união, cumplicidade e respeito como forma de homenagem a toda esta cultura urbana vibrante, diversa e audaz, afirma.
Cada trabalho de André Trafic – que desde pequeno seguiu as pisadas do seu pai, ceramista, descobrindo anos mais tarde o poder de expressão artística do graffiti – é inspirado nas dinâmicas da existência humana, quer em relações interpessoais, quer na nossa relação com a natureza e com o espaço que nos rodeia.
No passado dia 9 de junho, o Museu de Lisboa-Palácio Pimenta apresentou ao público, pela primeira vez, a nova exposição de longa duração. A renovação do conteúdo museográfico era uma necessidade há muito sentida, como nos explicou Paulo Almeida Fernandes, um dos curadores responsáveis por esta operação. “A exposição anterior datava de 1979 e tinha sofrido apenas algumas renovações pontuais. Estava desatualizada em alguns conteúdos, sobretudo face ao crescente conhecimento arqueológico que temos sobre Lisboa, e também precisava de uma atualização museográfica.”
A nova exposição continua a ter como missão contar a história de Lisboa, mas foi enriquecida com novas incorporações, muitas delas resultantes das descobertas arqueológicas das últimas décadas, bem como com uma nova maneira de agregar e expor toda a informação entretanto recolhida. Aliás, leva a designação de Longa Duração e não de Permanente, justamente porque se pretende que seja periodicamente renovada e enriquecida com peças e conteúdos interpretativos.
Tem como título genérico Viagem ao Interior da Cidade, porque, segundo o curador, “Lisboa é uma cidade de dimensões urbanísticas sobrepostas, uma agregação, sobreposição e subtração, de muitos tempos históricos que nos antecederam.”
O percurso expositivo encontra-se agora dividido em três núcleos essenciais. O primeiro é dedicado à história de Lisboa, com uma linha cronológica que se inicia na pré-história e que se estende até às vésperas do Terramoto de 1755. A este núcleo foi acrescentada uma área inteiramente nova, dedicada aos Registos de Santos em azulejo, oriundos da grande coleção do acervo do Museu. O segundo núcleo, igualmente novo, chama-se Lisboa Cidade Cerâmica e aborda a importância que Lisboa teve como cidade produtora e consumidora de cerâmica. O terceiro é dedicado ao próprio edifício que alberga o museu, enquanto símbolo patrimonial de uma vivência aristocrática da capital, a partir do século XVIII.
Há ainda salas para exposições e projetos especiais temporários. Para Paulo Almeida Fernandes, o modo como os conteúdos são expostos é uma das características mais salientes do novo projeto. “A iluminação criteriosa e os conteúdos interativos dão às peças outros níveis de leitura. É uma forma de explicar como essas peças funcionavam no tempo e no espaço em que foram geradas”, sublinha.
A famosa maqueta de Lisboa pré-terramoto, peça icónica do museu, foi uma das que mais beneficiou com a aplicação de novas tecnologias de interatividade, passando a integrar vários níveis de informação em vídeo e 3D, incluindo projeções de geolocalização. “Houve um grande aproveitamento do projeto de 2010 de digitalização e de associação de conteúdos multimédia à grande maqueta de Lisboa. Pretendemos ampliar esses conteúdos, permitindo-nos explorar mais sobre as Lisboas que precederam a atual e de que muitas vezes não temos perceção.”
A equipa curatorial desta exposição de longa duração incluiu também António Miranda, Margarida Almeida Bastos, Fernando M. Peixoto Lopes e Lídia Fernandes.
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