O Último Banho teve como ponto de partida a história real do nascimento, quase milagroso, de um bebé do sexo masculino numa zona pouco povoada e envelhecida de Portugal. A este facto, o realizador aliou a religião ainda muito enraizada nestas localidades. A narrativa segue Josefina que está prestes a fazer os votos perpétuos, mas que tem de retornar à aldeia onde cresceu para o funeral do pai. O regresso a casa relembra-lhe o passado sombrio e leva-a ao reencontro com o jovem sobrinho, abandonado pela mãe, pelo qual é agora responsável. A adolescência do rapaz, a profunda religiosidade, o perigo de pecado e a ameaça do reaparecimento da irmã, são os desafios que tem que enfrentar.
O filme retrata uma realidade angustiante, difícil, esta vivência contrasta com a alegria associada à história real que serviu de ponto de partida (o nascimento de um bebé numa terra envelhecida). Como é que uma coisa levou à outra, qual a ligação?
Quase todos os meus filmes são uma combinação de várias histórias, ou pelo menos de duas histórias maiores que se combinam e entrelaçam. No entanto, a verdadeira génese deste trabalho foi o sentimento de solidão profundo que vivi quando estava em Inglaterra depois de ter terminado o mestrado. Sentia-me muito sozinho, estava desempregado, os meus companheiros de casa tinham as suas vidas e trabalho, os meus amigos estavam longe. A desolação que vivia levou-me a escrever uma história sobre a solidão. Assim nasceu a personagem de Josefina, uma freira que está prestes a fazer os votos perpétuos e que tem de regressar à sua terra natal, local que odeia, e que a remete para um passado traumático, para cuidar do sobrinho que não vê há anos. A personagem vive a angústia de deixar uma vida em que se sente confortável. Depois ocorreu-me uma história muito antiga, que tinha visto no início da adolescência e que me fascinou: o nascimento de um bebé numa terra onde não havia jovens. No entanto, embora este facto verídico sirva de ponto de partida, o filme não é sobre um nascimento singular, isso é algo que já aconteceu, que é anterior à história que estou a contar.
A narrativa decorre no Douro. A escolha do local foi influenciada pelo facto do David ser do Porto, ou teve outra motivação?
Há uma ligação intrínseca ao facto de eu ser do Porto, por outro lado o Douro tem tido uma enorme projeção, tendo inclusive sido classificado pela UNESCO como Património da Humanidade. A paisagem é incrível e quando fiz a repérage [o reconhecimento do local do filme] acordava todos os dias naquele lugar incrível, andava de carro por aquelas estradas de vales esculpidos, o que acabou por confirmar aquilo que eu já sabia inconscientemente: aquela paisagem enaltecia a sensação que eu queria que transparece-se no filme. Uma sensação de melancolia, solidão, de erotismo, de enviesado, de complexo. Visualmente aquela paisagem tem tudo isso. Há um mistério, uma beleza e um apaziguamento que não têm explicação e que traduzem aquilo que pretendo das duas personagens.
Como foi feita a escolha dos atores?
A Anabela era a atriz que já tinha em mente há algum tempo, e foi a primeira pessoa a quem pedi para vir ao casting, ela e a irmã, a Margarida Moreira, que faz de irmã da Josefina, a personagem principal. Em relação ao Martim, nunca pensei encontrar um rapaz como ele, com as características físicas que ele tem. Depois de várias pesquisas conseguimos descobri-lo através da True Sparkle, uma agência em Lisboa. Senti que me tinha saído a lotaria. Depois juntei-o com a Anabela num casting para ver se funcionavam em conjunto e percebi que sim – ali havia intimidade.
Como foi trabalhar com dois atores que estão em fases completamente distintas na carreira (a veterana Anabela Moreira e o estreante Martim Canavarro)?
Antes de começar o filme quis ter uma semana sozinho com os dois. Só lhes entreguei o guião muito tarde, porque queria que eles percebessem certas coisas. Estive uma semana em Santarém; primeiro, três dias com o Martim, e depois a Anabela juntou-se a nós. Houve várias conversas que me ajudaram a compreender as referências que ambos tinham sobre o filme e que permitiram conhecê-los melhor, as vivências que tinham tido, a relação com a religião… Descobri, por exemplo, que o Martim tinha vivido numa aldeia, que adorava desporto, no fundo que era um paralelo da personagem que ia interpretar, mas em versão feliz. A partir daí foi apenas necessário criar uma voz para o paralelo, ou seja para o Alexandre, que é a personagem interpretada pelo Martim.
E em relação às cenas de nudez, como foi para um estreante como o jovem Martim Canavarro lidar com essa exposição?
Abordei essa questão precisamente na semana em que estivemos a trabalhar a personagem. Estava preocupado com isso porque era muito importante para o filme ter esse lado visual da nudez, uma vez que é algo que está intrinsecamente ligado à história. Felizmente o Martim aceitou, com leveza, fazê-lo. Foram definidos alguns limites, mas no fim, o próprio Martim disse-me para aproveitar as melhoras cenas, independentemente de haver uma exposição mais explícita.
A sexualidade associada a uma certa transgressão, o desejo oprimido, a dualidade de sentimentos estão presentes neste filme, mas também nos seus trabalhos anteriores. Porque lhe interessa esta dimensão humana?
É o que me move, mas ao mesmo tempo acredito que é o que move o mundo: o desejo. O desejo intelectual e a curiosidade, mas também o desejo sexual, carnal. Somos feitos para ter desejo, é isso que permite a reprodução. Há o desejo, o cio nos animais, depois uma época, segue-se a crise e por fim a continuidade. O desejo e a atração são o motor da nossa continuidade. Instintivamente vou sempre parar a este tema, é algo que me fascina, que me faz questionar. Não o faço racionalmente, é uma coisa que surge de forma instintiva, que está ligada à emoção.
A estranheza instala-se de imediato quando se sabe que este é o primeiro trabalho de um autor e encenador que, até aqui, privilegiou sempre a capacidade plástica e musical das palavras, seja nos espetáculo que dirigiu com os seus próprios textos, seja nos de outros autores (como Martin Crimp ou Copi, por exemplo). Mas, neste insólito Hamster Clown, estamos perante um “Ricardo Neves-Neves”… sem texto.
“Na verdade, já andava há algum tempo com a vontade de trabalhar um espetáculo que assentasse, sobretudo, no lado plástico”, confidencia. Até que ao ver alguns vídeos e fotografias do performer e clown Rui Paixão, “que não conhecia pessoalmente”, Neves-Neves percebeu ter encontrado o parceiro perfeito para uma aventura onde “a transfiguração do corpo e do rosto” assumisse o protagonismo para contar “uma história sem palavras.”
Estamos, portanto, no campo do teatro físico onde, como explica Rui Paixão, “a escrita é radicalmente diferente”. “Aqui, as imagens é que são as palavras, o que leva quem vê a poder ampliar vários significados”, explicita, lembrando que Hamster Clown se situa “num território de grande liberdade conceptual e interpretativa, que permite pôr em cena todas as ideias possíveis e imaginadas.”
É essa liberdade que permite ao espetáculo assimilar incontáveis referências, que percorrem o non sense e o absurdo, tão caros ao teatro de Neves-Neves, e toda uma panóplia de citações plásticas e sonoras, algumas mais explícitas e assumidas que outras, que vão do universo retrofuturista a Lady Gaga, passando por uma multiplicidade de menções que incluem a estética drag (Juno Birch, RuPaul), a leitura quotidiana da pop art (Norman Rockwell), a K-Pop, o cinema de terror (o ulular da coruja ou a luta com um polvo) ou até a escultura renascentista e a pintura de Hyeronimous Bosch.
E tudo começou, como explica Rui Paixão, com a ideia proposta por Neves-Neves de “um hamster que vive dentro da gaiola e consegue escapar”. É a partir da fuga que começa o espetáculo. Através de um “longo e experimental” processo de trabalho, a dupla de criadores desenhou um personagem que assume formas distintas, que o levam do hámster que quer ser humano, ou vice-versa, à figura andrógina ou ao monstro alienígena – notáveis trabalhos de caracterização de Cristovão Neto e de figurinos de Rafaela Mapril.
O que se torna simultaneamente estranho e fascinante em Hamster Clown é a inexistência de limites temporais ou espaciais que possam impedir a fluência da imaginação – previamente, a dos artistas; posteriormente, a nossa enquanto espectadores. A partir do momento em que aquela figura antropomórfica sai da gaiola, começa a aventura de, nós mesmos, sermos colocados permanentemente “fora da caixa”.
Hamster Clown estreia a 23 de junho no São Luiz Teatro Municipal, onde permanecerá em cena até 4 de julho, seguindo depois para Loulé (16 a 18 de julho), Ovar (30 de julho), Odivelas (15 a 17 de outubro), Braga e Ílhavo (em datas a anunciar).
Lançou, recentemente, o disco Zeca, onde homenageia a obra de Zeca Afonso. Era um desejo antigo gravar este disco de tributo?
De certa forma sim, porque a música do Zeca está presente na minha vida desde a infância. O projeto estava lá de forma inconsciente, até que, há dois anos, num almoço com amigos onde estava o Fausto, estávamos a falar sobre o Zeca, e o Fausto lançou-me este desafio. Perguntou-me porque é que eu não gravava um disco dedicado à obra do Zeca. Aquilo serviu como uma espécie de catalisador, e foi a partir daí que a ideia ganhou forma.
Foi difícil fazer a seleção das músicas?
Não posso dizer que tenha sido difícil. Eu queria gravar melodias fortes. As músicas do Zeca não são muito complexas nem muito estruturadas, vivem muito da força das palavras e da força das melodias. Como, neste caso, eu não iria trabalhar sobre as palavras, tive de escolher aquelas melodias que são mais emblemáticas.
Como disse, as músicas de Zeca Afonso vivem muito das letras. Foi um desafio reinterpretar alguns dos seus maiores clássicos?
As melodias são tão fortes que sobrevivem às palavras. Por outro lado, tive a preocupação de produzir temas que “guitarristicamente” fossem interessantes. Havia esse fator, de querer tornar as músicas o mais complexas possível, dentro da elegância das suas composições, das suas melodias. Tornar estas versões objetos guitarrísticos complexos.
Este disco pode, de alguma forma, ter aberto a porta a outros discos de homenagem a cantautores portugueses?
Como instrumentista que sou, estou sempre interessado em transpor a música para a minha guitarra, mesmo quando se trata de música de outros artistas. Claro que já pensei “porque não?” Um dia, quem sabe, fazer versões instrumentais (muito personalizadas, é claro) do Fausto ou do Sérgio Godinho ou de outros autores portugueses contemporâneos. Pessoas que tiveram um peso enorme na música portuguesa.
A pandemia afastou os músicos dos palcos. Como viveu este período?
Passei os últimos 15 anos em perfeita loucura de viagens e de tournées. A pandemia trouxe uma mudança radical à minha vida. Vi-me na contingência de ficar em casa e descobri os pequenos prazeres de não andar sempre a viajar, sempre a fazer concertos e a dormir mal, cada noite num hotel, a perder milhares de horas em aeroportos… pode parecer um pouco egoísta dizer isto, mas, de certa forma, esta paragem forçada não foi nada má. Claro que a pandemia foi terrível para os profissionais da cultura, que ficaram sem trabalho e cujo rendimento desapareceu, mas as nossas vidas são feitas também disto. Não sei se vamos conseguir tirar alguma lição daqui… Já tive mais fé na nossa capacidade de aprender com os erros, mas cá estamos, prontos para seguir em frente.

Está muito ansioso por atuar na Culturgest?
Desde que o último desconfinamento começou, já regressei aos palcos para dar alguns concertos. Tinha uma tremenda saudade, claro. Nós, músicos – instrumentistas e cantores -fomos feitos para estar em cima de um palco, para podermos mostrar o nosso trabalho.
Neste concerto, para além de tocar temas do último álbum, vai também tocar versões de músicas de Carlos Paredes e Armandinho, bem como originais seus. Sente maior responsabilidade em mostrar os seus originais ou as versões que faz de outros músicos?
Sinto sempre mais responsabilidade ao interpretar a música de outros, nomeadamente do Zeca, que é um autor tão conhecido e que desperta tanta paixão em todos nós. Não me sinto nem intimidado nem pressionado, para mim é um prazer subir a um palco e tocar estas canções do Zeca na minha guitarra.
Estará acompanhado pelo percussionista José Salgueiro. É mais fácil subir ao palco com alguém cujo trabalho se admira?
Sinto enorme prazer em tocar a solo porque a guitarra é um instrumento que permite isso, é um pequeno mundo harmónico, uma pequena orquestra [risos], mas também tenho o maior prazer em fazer concertos com outros músicos, nomeadamente com o José Salgueiro, meu grande companheiro de há muitos anos. Respeitamo-nos muito, cada um tem o seu espaço a ouvir o outro. Conseguimos trabalhar o silêncio também, que é uma coisa fundamental.
É considerado uma das maiores referências da guitarra em Portugal. De que forma encara esse título?
Não atribuo a menor importância a isso. Cada músico é o que é, e essa ideia de ser um dos melhores não me diz rigorosamente nada. Cada músico tem a sua história, vive a música da sua forma e com a sua intensidade. Claro que gosto de ter o respeito dos meus pares e do público, mas a única coisa que quero é poder continuar a fazer música.
Depois das devidas apresentações em palco de Zeca, há projetos para breve?
Estou sempre a pensar em coisas novas. Aliás, não só estou a pensar, como estou a trabalhar nelas há bastante tempo. 2021 é o ano de regresso aos palcos e de voltar a respirar. 2022 será um ano para gravar música nova.
Quer deixar uma sugestão cultural aos leitores da Agenda?
Vou deixar uma sugestão literária, um livro do fantástico José Augusto França, grande historiador de arte e grande olisipógrafo. Chama-se Lisboa – História Física e Moral e é uma resenha histórica e artística da cidade de Lisboa desde o tempo dos fenícios até ao sec. XXI. É uma obra completa a todos os níveis, uma delícia de ler.
Não são todos os anos que uma companhia comemora cinco décadas de atividade e, como não poderia deixar de ser, alguns dos momentos mais esperados deste 38.º Festival de Almada estão associados às comemorações dos 50 anos da Companhia de Teatro de Almada (CTA), organizadora daquele que é o mais importante festival de artes performativas do país.
Em primeiros lugar, pela estreia absoluta de duas novas criações no Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada: Hipólito, de Eurípedes, com encenação de um habitual companheiro de percurso, Rogério de Carvalho (2 a 4 de julho); e Um gajo nunca mais é a mesma coisas, escrito e encenado pelo diretor da CTA e do Festival, Rodrigo Francisco (14 a 25 de julho). Em segundo, por toda uma programação paralela, a qual inclui a exposição comemorativa, concebida por José Manuel Castanheira, e um conjunto de encontros entre personalidades que testemunharam o percurso iniciado com a fundação do Grupo de Campolide, por Joaquim Benite ainda em plena ditadura, e a consolidação da CTA como companhia de referência nacional e internacional, e impulsionadora da afirmação de uma cidade como Almada.

Ainda perante um tempo terrível para o meio cultural, e sucedendo a uma edição atípica, mas demonstrativa de uma consolidada relação com o seu público, esta 38.ª edição do Festival recupera a dimensão internacional, trazendo ao convívio dos espectadores alguns dos mais relevantes nomes do teatro e da dança – como o do coreógrafo Josef Nadj, com a sua mais recente criação, Omma; ou a de dois atores referenciais do teatro europeu, de regresso ao Festival: Viviane De Muynck (com Molly Bloom, a partir de James Joyce) e François Chattot (protagonista de Amitié, um surpreendente espetáculo de Irène Bonnaud, produzido pelo Festival d’Avignon, que cruza textos de Pier Paolo Pasolini com Eduardo De Filippo).
Como vem sendo habitual, o Festival de Almada estende-se a Lisboa, marcando passagem pelo Teatro Nacional D. Maria II e pelo Centro Cultural de Belém. E, fá-lo com dois protagonistas de peso: a atriz Monica Bellucci e o encenador Ivo van Hove.
Van Hove e Bellucci, inevitáveis ‘cabeças de cartaz’
Quase uma década volvida sobre a sua última passagem por Portugal (Husbands, a partir do filme homónimo de John Cassavetes, em março de 2012, no CCB), o encenador flamengo, e diretor artístico do reputadíssimo Toneelgroep Amsterdam, Ivo van Hove (n. 1958) regressa como inevitável “cabeça de cartaz” desta 38.ª edição do Festival de Almada.
Não é, de facto, de somenos: van Hove é um dos mais relevantes encenadores em atividade e, também, um dos mais disputados, deste e do outro lado do Atlântico, distinguido ao longo dos últimos 40 anos com os mais importantes prémios de teatro, incluindo o Tony, em 2016, pela encenação de A View from the Bridge, de Arthur Miller.
Quem matou o meu pai é a adaptação para palco da última obra do jovem autor francês Édouard Louis (n. 1992), romancista muito apetecível no teatro europeu, que tem vindo, com a chancela de outras grandes companhias e encenadores de relevância (em destaque também, nesta edição do Festival, a produção eslovena de História da Violência, dirigida pelo croata Ivica Buljan, a partir do primeiro romance do autor, em cena, de 2 a 5 de julho, em Almada), a ver as suas histórias sobre homofobia, racismo e desigualdade social serem encenadas nos grandes palcos.
Aqui, o autor parte de um tributo pessoal e íntimo ao pai – um operário envelhecido e doente como resultado de uma vida marcada pelo trabalho árduo, pela privação social e pelo álcool –, para apontar o dedo ao sistema capitalista e à elite política que trai constantemente as expetativas dos mais fracos.
A interpretar o monólogo está o ator neerlandês Hans Kesting, figura de proa do Toneelgroep, que pudemos ver na mais recente passagem da companhia por Lisboa, em 2019, com o extraordinário Ibsen House.

Entretanto, no palco do Grande Auditório do CCB, a heroína é Maria Callas. Mas, o que dizer sobre Callas quando, quem a interpreta é, tão só, Monica Bellucci, a atriz de cinema italiana que se tornou ícone planetário?
Maria Callas – Cartas e Memórias marcou a estreia de Bellucci nos palcos de teatro, em 2019 no Òdeon em Paris. Sob a batuta de Tom Volf, realizador e fotógrafo (sobretudo ligado à moda), a atriz encarnou a diva grega num monólogo escrito pelo próprio Volf, a partir do seu livro homónimo que resume uma longa investigação de sete anos em torno da figura da famosa cantora de ópera. Ao longo do espetáculo, acompanhamos o percurso daquela que foi uma, senão, a maior das sopranos do século XX, desde a infância modesta na Grécia aos últimos dias de solidão que antecederam a morte prematura, em Paris, com apenas 53 anos de idade.
Bellucci entrega-se de corpo e alma a Callas, num espetáculo que revela muitos aspetos até aqui desconhecidos da biografia da cantora que, como bem observa Rodrigo Francisco, “pareceu plasmar-se nas heroínas trágicas que cantou.”
Memórias de África e estreias nacionais
A cada edição, o Festival de Almada nunca se caracteriza por assumir uma temática específica. Contudo, este ano, e como sublinha o diretor artístico do Festival, “não deixa de ser evidente o diálogo encetado por vários dos espetáculos programados a propósito de África e do passado colonial português”. Para além da peça escrita e encenada por Rodrigo Francisco, pelos palcos de Almada vão passar ainda Aurora Negra, de Cleo Diára, Isabél Zuaa e Nádia Yracema (2 a 5 de julho, na Academia Almadense), e Corpo Suspenso, de Rita Neves e Patrícia Couveiro (9 a 12, no Incrível Almadense).
Quanto às estreias nacionais, e para além das já referidas produções da CTA, Carla Galvão e Sara de Castro apresentam uma das últimas peças de Tennessee Williams, Duas Personagens (7 a 14, no Teatro-Estúdio António Assunção), e a Companhia Nacional de Bailado prossegue o ciclo Planeta Dança, com o capítulo 4 da série criada pela coreografa Sónia Baptista (Academia Almadense, dias 10 e 11).
Na reta final do Festival, de 23 a 25 de julho no Teatro Municipal Joaquim Benite, a “histórica” peça de Alfred de Musset Lorenzaccio, encenada por Rogério de Carvalho numa coprodução do Teatro do Bolhão com o Teatro Nacional de São João, volta aos palcos, depois da estreia em finais de 2020, no Porto. Trata-se da primeira vez que este marco da literatura dramática é encenado em Portugal, o que por si só o torna um dos grandes momentos da temporada artística.
Os bilhetes individuais para os espetáculos encontram-se já à venda, variando entre os 9 e os 50 euros. As Assinaturas, que dão acesso a todos os espetáculos do Festival, têm este ano o custo unitário de 80 euros. Toda a programação pode ser consultada no site oficial da CTA.
Uma das mais premiadas produtoras de espetáculos brasileira, a Fontes Artes, promove em Portugal a Mostra Brasil Teatro Online, através de um microsite alojado na Ticket Live Stage. Uma mostra que procura partilhar com o público cinco criações das mais de mil que no Brasil, e ao longo de mais de um ano, os artistas de teatro produziram para difusão online em contexto da pandemia.
A programação tem como especial atrativo reunir peças protagonizadas por algumas das estrelas femininas mais destacadas do teatro que se faz no Brasil, muitas delas reconhecidas pelos portugueses através de séries e telenovelas exibidas nos canais de televisão.

Irene Ravache é a protagonista de Alma Despejada, texto de Andréa Bassit dirigido por Elias Andreato. Neste monólogo, a ilustre atriz brasileira interpreta o fantasma de uma mulher que regressa, por uma última vez, à casa onde morava.
Em A Árvore, Alessandra Negrini encarna uma mulher que enfrenta um estranho e complexo processo de metamorfose, assistindo à transformação do seu corpo num ente vegetal. Escrito por Silvia Gomez, uma das mais aclamadas e traduzidas autoras brasileiras da atualidade, o espetáculo tem encenação de Ester Laccava e direção de vídeo de João Wainer.
As atrizes Débora Falabella e Yara de Novaes protagonizam duas das propostas da Mostra: Neste Mundo Louco Nesta Noite Brilhante e Contrações. A primeira é um dos mais recentes textos de Silvia Gomez, estreado pouco antes da pandemia em São Paulo, aqui numa produção do Grupo 3 de Teatro, com direção de Gabriel Fontes Paiva. Quanto a Contrações, trata-se de uma peça assinada pelo britânico Mike Bartlett que aborda, com muito humor, as difíceis relações entre o mundo do trabalho e a vida privada.
A Mostra inclui ainda Galileu e eu. A arte da dúvida, espetáculo inspirado em Leben des Galilei de Bertolt Brecht, aqui segundo a visão da atriz Denise Fraga, que volta a interpretar o cientista renascentista, depois de o ter feito em 2015, numa premiada produção dirigida por Cibele Forjaz. O espetáculo é coassinado por José Maria e Luiz Villaça.
Para o diretor artístico da Fontes Artes, Gabriel Fontes Paiva, esta Mostra é demonstrativa da vitalidade do novo teatro brasileiro, mesmo durante a crise sanitária global. “O resultado foi muito criativo e interessante”, sublinha, ressalvando que o que agora se dá a ver é “algo difícil de classificar nas divisões atuais, mas tem sido denominado como híbrido ou espetáculo online.”
A Mostra Brasil Teatro Online está disponível em formato on demand, ou seja, com bilhetes virtuais (entre 8,50 e 6,50 euros) sempre disponíveis para o público poder aceder na data e no horário mais conveniente, até 27 de julho.
Mário Dionísio
Passageiro Clandestino
“Toda a gente traz consigo um passageiro clandestino, sempre agarrado à mala suspeita onde transporta o mais perigoso dos materiais: milhares de sentimentos, de ideias, de simples frases, de gostos, de impertinências, de abdicações, de cóleras, de saudades, de esperanças, que a sociedade não reconhece”. Passageiro Clandestino, até agora inédito, escrito intermitentemente entre 1950 e 1989, é o primeiro volume do diário de Mário Dionísio que cobre o período de 1950 a 1957. O autor foi o poeta lírico do Novo Cancioneiro, de Memória dum Pintor Desconhecido e Terceira Idade. De intensa atividade pedagógica e estética (A Paleta e o Mundo), escreveu também belíssimos contos, em O Dia Cinzento e Monólogo a Duas Vozes, e foi autor de um romance ímpar na nossa ficção: Não Há Morte nem Princípio. Sobre o presente texto que não pretende ser” literatura”, com todas as páginas “mal escritas”, Mário Dionísio escreve: Quero ver-me ao espelho despenteado e sem gravata, de tal modo me surpreendo quando me encontro, na rua, por acaso, no vidro de uma montra ou no espelho de um estabelecimento”. Edição acompanhada por um tomo de Notas, da autoria de Eduarda Dionísio. Casa da Achada – Centro Mário Dionísio
Maurice Leblanc
Arséne Lupin – Gentleman Ladrão
Coletânea de nove contos, inicialmente publicados na revista Je sais tout em julho de 1905, resultou de um convite do seu editor, que procurava uma alternativa às narrativas policiais de Sherlock Holmes criadas por Arthur Conan Doyle. A obra trouxe abordagem diferente ao género da literatura policial promovendo um gatuno como herói, em vez do habitual detetive. Porém, Arséne Lupin não é um gatuno qualquer: é um gentleman fantasista de monóculo e cartola, um diletante que trabalha por gosto e por vocação, mas também para se divertir. Mestre dos mil disfarces, “muda de personalidade como quem muda de camisa”. “Porque haveria eu de ter uma aparência definida? Os meus atos já me definem bastante”, declara o herói. O sucesso global da série da Netflix motiva a reedição, em português, das aventuras desta personagem icónica que pela sua versatilidade, inventiva e humor, que vem apaixonando gerações sucessivas de leitores. Quando se introduz na mansão do barão Schormann, deixa um cartão com a seguinte inscrição: “Arséne Lupin, gentleman ladrão, voltará quando os móveis forem autênticos”. Uma delícia! Relógio D’Água
Victor Correia
Deus e o Coronavírus
Primo Levi escreveu em Se Isto É um Homem: “existe Auschwitz, logo não existe Deus”. Em plena pandemia de COVID 19, com mais de 3 milhões de vítimas mortais, que podemos dizer acerca do silêncio de Deus? Num mundo largamente dessacralizado, a questão de Deus, contrariamente ao que aconteceu nas epidemias do passado, não se assumiu como central no debate em trono do coronavírus. Ainda assim, este livro singular promove uma reflexão sobre a forma como as religiões do judaísmo, do cristianismo e do islamismo encararam a pandemia e as polémicas por elas criadas, com enfoque especial no cristianismo. Analisa a recusa do encerramento dos templos, a tese de que a pandemia foi um castigo de Deus, a rejeição religiosa das vacinas, o charlatanismo religioso e as superstições, a ineficácia das orações contra o coronavírus, a relação dos medos e das teorias da conspiração sobre o coronavírus com a atitude religiosa. Finalmente coloca um problema essencial: como encontrar um sentido para a vida durante a pandemia? Esse sentido é Deus? Guerra & Paz
Safo
Poemas e Fragmentos
Safo, a “Décima Musa” como lhe chamou Platão, nasceu numa família aristocrática, na ilha de Lesbos, em meados do século VII a.C. Viveu quase sempre em Mitilene, capital da ilha, rodeada de raparigas, numa comunidade que cultivava a poesia, a dança e o canto, vedada a homens, e que tinha Afrodite como deusa tutelar. Os seus poemas de amor dirigem-se frontalmente a mulheres e traduzem a experiência intima e avassaladora da paixão aliada a uma profunda comunhão com a natureza, numa linguagem de plena naturalidade alheia a qualquer ênfase ou excesso. Da sua obra original, lamentavelmente destruída pelos cristãos nos séculos IV e VI, sob acusação de imoral, chegaram aos nossos dias uma ode completa – a invocação a Afrodite – e cerca de duzentos fragmentos. Estas recriações de Eugénio de Andrade, que sentia por Safo uma das suas “fascinações mais antigas”, foram feitas, nas palavras do poeta: “em duas ou três semanas febris, como se de criação pessoal se tratasse, e nunca outro trabalho me deu prazer semelhante”. Uma belíssima homenagem â autora dos versos imortais: “Amo o esplendor. Para mim o desejo / é um sol magnificente e a beleza / coube-me em herança.” Assírio & Alvim
António Mega Ferreira
Desamigados
A origem deste livro remonta a um episódio anedótico. Um amigo do autor recebeu um comentário desagradável e rasteiro nas redes socias e com o indicador direito premiu uma tecla e exclamou: “Pronto! Já o desamiguei!” De facto, hoje em dia, com as redes sociais, “desamigar” tornou‑se um verbo banal e um ato instintivo, rápido e eficaz. Contudo, para falar verdadeiramente de desamizade, que implica refletir sobre a amizade, há que ir além do digital. António Mega Ferreira recupera a história de 11 amizades famosas e que acabaram mal, de César e Bruto a García Márquez e Vargas Llosa, passando por Wagner e Nietzsche, Freud e Jung ou Sartre e Camus. Como escreve o autor no prefácio à presente obra: “Em qualquer caso, não basta carregar no botão: o desamigamento é um processo doloroso, por muito definitivo que seja, e deixa fatalmente marcas em cada um dos antigos amigos”. São os graus de dor e complexidade que se escondem atrás da rutura real destes afetos que Mega Ferreira procura analisar. Tinta-da-china
Helen Pluckrose e James Lindsay
Teorias Cínicas
A escritora e conferencista Helen Pluckrose juntou-se ao matemático James Lindsay, fundador do New Discourses (espaço online para os politicamente desalojados), na concretização deste Teorias Cínicas, guia para a interpretação da linguagem e dos costumes dos teóricos da Justiça Social, movimento que tem origem no pós-modernismo e que visa desconstruir as “metanarrativas” que constituem a tradição do pensamento humano: a religião, a ciência, e o liberalismo filosófico (democracia, direitos humanos universais, liberdade de expressão). Segundo os autores, “A ideia pós-moderna de conhecimento nega que a verdade objetiva ou o conhecimento sejam aquilo que corresponde à realidade tal como determinado pelas evidências”. Os novos teóricos que recolheram elementos do pós-modernismo para aplicação num punhado de teorias (pós-colonial, queer e crítica de raça), afirmam o seu combate para desconstruir a injustiça social, algo que os dois autores de Teorias Cínicas reputam de um trabalho que procura minudências de linguagem que visam tresler propositadamente. Guerra & Paz
Guerra Junqueiro
O Fato Novo do Sultão e outros contos
No alargado contexto da sua intervenção poética, cultural social e política, Guerra Junqueiro tomou posição sobre questões de pedagogia. Acérrimo partidário da alfabetização, defendeu uma escola de contornos lúdicos e libertários para a criança, apoiada em novas metodologias de educação que excluíssem toda a violência institucionalizada. Os contos presentes nesta compilação são retirados da obra Contos para a Infância, publicada em 1877, por Guerra Junqueiro. Apesar de não serem da sua autoria, mas sim adaptações de histórias tradicionais, neles estão patentes as preocupações pedagógicas, sociais e culturais deste autor. Os valores subjacentes — a bondade, a justiça, a solidariedade, a honestidade, a gratidão, entre outros — são transmitidos de forma simples e construtiva. As ilustrações de Elias Gato, expressivas xilogravuras a branco e negro, formam o complemento ideal destas histórias que têm acompanhado o crescimento de tantas gerações de leitores. Fábula
Há três anos abraçou a direção artística do único teatro municipal do país exclusivamente dedicado aos mais jovens. Como está a ser esta experiência?
Está a ser muito gratificante. Gosto do que faço e sempre me diverti a programar, a pesquisar novos enunciados e a procurar respostas nas criações artísticas, em particular dirigidas às crianças e aos jovens. Passar da programação para a direção artística de um teatro trouxe espaço para pensar no teatro como um todo orgânico e articulado entre diferentes objetos de programação, agilizou os processos e as tomadas de decisão e permitiu construir respostas para estes públicos de uma forma mais ágil e em permanente atenção ao aqui e agora, como aliás, pudemos experimentar nos últimos meses. Temos recebido muitas palavras de incentivo vindas de pais, professores e artistas. Por um lado, é satisfatório e deixa-nos a sorrir, por outro, relembra-nos a nossa responsabilidade.
Quais têm sido os maiores desafios com que se tem vindo a deparar?
Abrimos o LU.CA há três anos e, durante o último ano, estivemos a viver um tempo pouco usual. Tínhamos um programa montado para um espaço físico e tivemos de o remontar para um espaço virtual, repensando todo o programa, desenhando-o à medida das características deste novo contexto. Foi um desafio totalmente novo. Curiosamente, foi também esta mudança que nos ajudou a ultrapassar um dos grandes desafios que se colocam a um novo equipamento cultural: darmo-nos a conhecer para além do espetro previsível. Uma programação específica para online fez-nos chegar a pessoas de diferentes faixas etárias, distribuídas de norte a sul do país e ilhas. Foi um público totalmente inesperado e novo que teve contacto com o programa do LU.CA, o que nos levanta novas questões, como o que fazer para manter estas relações. Penso que, num futuro próximo, teremos uma série de novos desafios.
Qual é a sua maior preocupação aquando da escolha dos objetos artísticos a apresentar no Teatro?
A relevância, o valor artístico e o ajuste dos conteúdos ao público alvo do LU.CA. Procuro programar artistas que querem falar com as crianças ou para elas e que fazem pesquisas nesse sentido, favorecendo a construção de experiências novas e, de certa forma, marcantes. Penso que só assim é possível criar uma memória positiva nas crianças e nos jovens, favorável a novos e repetidos encontros com as artes.
Até agora, conseguiu concretizar todas as ideias que tinha para o LU.CA?
Ainda não, mas tenho um bloco de notas a que chamo Ideólogo onde junto as ideias que se vão cruzando comigo. Algumas ainda não se concretizaram, outras transformaram-se e estes tempos mais recentes obrigaram-nos, de certo modo, a mudar de ideias. Além disso, o contexto está sempre a trazer novos inputs e, por isso, quando o contexto muda nada fica como antes.
O que gostaria muito de levar ao palco do LU.CA e ainda não conseguiu?
É uma resposta quase sem fim…. Primeiro, os projetos que ficaram adiados no último ano.
Qual é, para si, o papel que a Cultura tem na formação pessoal dos mais novos?
A Cultura cria o contexto, molda as experiências e influencia o desenvolvimento das crianças. É responsável, em grande parte, pela forma como crescem e evoluem, como interagem com o mundo e se relacionam com o que está à sua volta. Aqui, a relação com as artes é fundamental para garantir um crescimento completo e rico. No entanto, não é possível quantificar com rigor o impacto que as artes e as propostas culturais suscitam na formação individual de cada criança, mas sabemos como é importante a familiarização com a Arte e a Cultura, não só pela sua interpretação e compreensão, mas porque alarga o sentido de liberdade e propõe múltiplos olhares ampliando a sua leitura.
Porquê o nome artístico Moullinex?
Sempre gostei muito de house francês, daquela chamada fase french touch, onde se incluem bandas como os Daftpunk ou os Air. Quando comecei a assinar temas de músicas de dança precisava de um nome. Tinha acabado de samplar o som de uma picadora numa música, e achei que seria boa ideia chamar-me Moullinex, por causa dessa ideia de misturar eletrónica francesa. Em minha defesa, ninguém me leva completamente a sério e acho que isso é bom.
Requiem for Empathy é um álbum carregado de melancolia e introspeção…
Acho que sempre tive estas tonalidades presentes em mim, mas não tinha a segurança ou a coragem de as expor no meu trabalho. Como comecei a fazer música de dança muito celebratória e exuberante, sempre fui muito resistente a explorar este lado, mas achei que estava na altura de o fazer. Não se identificava muito com o que tinha feito antes, então fiz essa procura interior de perceber se fazia sentido este disco ser assinado como Moullinex. Achei que, se sempre tinha sido honesto comigo próprio e com a música que faço, tinha também que o ser com este disco.
Este disco é a prova de que a melancolia também se dança?
Essa prova já foi mais do que dada no passado por imensos músicos. Começando pelo Art Russell, e por tanta gente que canta canções tristes que são muito dançáveis. Há um disco de funk dos anos 70, Dance your troubles away, que ilustra muito bem esta ideia da pista de dança como um lugar de escape e de libertação dos nossos males do dia-a-dia. Mas sim, este é o meu disco mais terapêutico nesse sentido.
Este álbum explora o conceito de empatia. De onde vem essa curiosidade?
Sempre me interessou usar a minha música e o meu trabalho como plataforma para aprender coisas novas. Antigamente, fazia investigação em astronomia e neurologia e essa parte de mim esteve desativada durante muito tempo. Por ter tido tempo livre voltei a mergulhar nesse mundo e voltei a ligar-me a pessoas que vivem essa multidisciplinariedade da mesma forma que eu. Encontrava muitos paralelos entre o que estava a fazer musicalmente e a forma como alguns cientistas olham para a interação humana na pista de dança, por exemplo, e voltei a ligar-me a essa parte de mim.
Enquanto dj, o que te diz a experiência sobre a empatia que se gera nas pistas de dança?
A coisa mais bonita de ser dj é o facto de não ser uma experiência unidirecional como um concerto. No concerto, cria-se um ciclo de feedback, mas num dj set isso ainda é mais acentuado. Os djs são apenas uma componente de tudo o que está a acontecer e a energia do público leva-nos para determinado caminho, não trazemos um alinhamento pré-definido. É como contar uma história. Vamos percebendo a reação do público e percebemos se temos de ser mais dramáticos ou mais exuberantes. Esse loop de feedback interessa-me muito. A experiência partilhada – seja de um concerto ou de um dj set – é uma sensação muito forte. Nos melhores concertos sentimos que fazemos parte de algo maior do que nós. A mim, que sou muito racional e nada dado a metafísica, fascina-me esse sentimento. Olho para ele com uma lente o mais analítica possível. Tenho amigos cientistas que olham para isto da mesma forma, e interessa-me discuti-lo. Quando gostamos tanto de uma coisa passa a ser um bocadinho a nossa fixação.
O título do disco – Requiem for Empathy – resume essa ideia?
Resume, e também é um desafio porque requiem é uma missa fúnebre. É um desafio pensarmos se a empatia, no seu conceito lato, não é algo que se está a perder, e de que forma é que isso nos impacta. Qual é a nossa reação ao nos apercebermos disso? Escolhi este título em 2019, ainda sem saber o que aí vinha. De repente, este título tornou-se ainda mais óbvio. Hesitei em lançar o disco por causa disso mesmo: de ainda precisarmos, coletivamente, de atravessar esta experiência, chegar a algum lado (embora ainda não tenhamos saído dela, já se avista um horizonte). Achei que o disco não podia sair até se ver esse horizonte.

Este disco conta com várias colaborações: Sara Tavares, Selma Uamusse ou Afonso Cabral. Porquê estes nomes?
Todos os cantores que participaram neste disco têm uma relação muito particular com a sua voz, no sentido em que parece nada esforçada, parece uma voz natural, muito honesta, muito pouco treinada. Para ser um cantor assim, é preciso muito mais trabalho do que para parecer um cantor formal e com muita técnica. Adoro isso num vocalista. Alguém que é capaz de atingir cumes e vales enormes, mas que também abraça as suas fragilidades, e eu sentia que precisava de criar este contraste entre uma parede distópica, artificial, um bocadinho hostil, dos sintetizadores e máquinas de ritmo, contraposto com elementos humanos como estas vozes. Achei que precisava de caminhar um bocadinho este contraste neste disco. Tive a sorte de ter convidado estas pessoas e de elas aceitarem porque foram as minhas primeiras escolhas. Em relação à Selma e à Sara terem cantado, respetivamente, em changana e crioulo cabo-verdiano, tem a ver com a questão da expressão ser mais direta ainda. Parece que estamos a mergulhar dentro da personalidade da pessoa, por estar a cantar na sua língua materna, ou na língua que mais corresponde à sua cultura identitária. Para mim, isso foi especialmente bonito. Com o changana, mesmo não entendendo as palavras, a emoção da Selma passa para quem ouve, e isso fascina-me.
De que forma foi feita essa colaboração?
Ambas pensavam que eu queria que a música fosse em inglês, mas senti logo, quando começámos a fazer experiências, que era importante fazê-lo na língua que elas quisessem. Para mim é importante que seja efetivamente uma colaboração muito participativa e não um featuring (em que há um instrumental pronto que se manda ao vocalista). Achei importante que fosse uma contribuição musical maior do que essa. Perco sempre uma oportunidade de ter uma música melhor se assim não for.
Com a pandemia, o universo digital modificou a forma como as pessoas se relacionam. As relações humanas alteraram-se para sempre?
Veio, sem dúvida, alterar a forma como as pessoas se relacionam. A quantidade de ligações multiplicou-se, a sua qualidade é que está em causa. Basta ver as estatísticas dos problemas de saúde mental associados ao isolamento. Os números dizem-nos que estamos a atravessar uma fase de profunda separação, apesar dos zooms constantes e de todas as experiências digitais que tentam substituir a vida real. Estamos todos fartos desse placebo, o que me deixa contente, porque ficou evidente que há uma parte real e tangível da nossa existência enquanto indivíduos que é necessária para nós, e que penso que nunca se irá perder.
O confinamento foi uma altura propícia à criação?
Em termos de música não. Foi, efetivamente, uma montanha-russa de emoções. De um dia para o outro o meu estado de espírito mudava completamente. Não fiz quase música nenhuma. Fiz um tema, Luz, que depois decidi incluir no disco. O disco ficou fechado uma semana antes do primeiro estado de emergência. Em termos criativos, foi-me muito difícil compor. Imagino sempre um espaço físico, mesmo que seja fantasioso, mas o tapete foi-nos tirado debaixo dos pés. Não havia pistas de dança, não conseguia imaginar a minha música a ser tocada e por isso tornou-se muito difícil criar. Canalizei um bocadinho os meus esforços para áreas nas quais não estava tão confortável, como os mundos mais visuais. Aprendi imensas técnicas visuais e de 3D, precisamente por serem coisas mais abstratas do que a minha música, e refugiei-me nisso. Mesmo em termos de consumo de entretenimento e de literatura, era tudo muito ficcional, imaginado, sci-fi, o mais desligado da realidade possível.
Em junho dá-se o tão antecipado regresso aos palcos. O que esperas deste reencontro com o público?
O diálogo entre o que faço no estúdio, nos dj sets e no palco com a banda é muito importante para mim. As coisas contaminam-se muito umas às outras e ter um disco pronto sem o poder materializar e mostrar às pessoas não é fácil… a melhor forma de o mostrar é mesmo frente a frente. Tem sido muito difícil, porque temos estado com a vida em suspenso. Estamos muito ansiosos por poder mostrar este disco ao vivo. É como se tivéssemos estado do lado de cá da janela a ver as músicas saírem, mas nós não podemos ir com elas para a rua, por isso sim, a vontade é muito grande.
Houve algum disco que te tenha marcado particularmente nos últimos tempos?
O meu disco favorito deste ano é Promises, de Floating Points, com Pharoah Sanders e The London Simphony Orchestra. É um encontro entre músicos que eu admiro muito: o Sam Shepherd (conhecido como Floating Points) e o Pharoah Sanders, que é um saxofonista incrível. Estas duas sensibilidades juntam-se num disco que tem de ser ouvido do início ao fim, como uma experiência contínua. É um bálsamo nesta altura em que precisamos de coisas que nos transportem para outros lugares. Não podia recomendá-lo mais.
No topo da Praça David Leandro da Silva, o edifício oitocentista, que foi outrora sede da empresa vinícola José Domingos Barreiros Lda., continua a manter a intemporal elegância, com toda a sua agradável simbiose de elementos clássicos e barrocos, que o tornam dos mais belos e icónicos do bairro lisboeta. Antes de entrar em obras de reconversão para habitações de luxo, os atuais proprietários, em parceria com a promotora de arte contemporânea Movart, sediada em Angola, abrem aos artistas e ao público os cinco pisos do imóvel, inaugurando o projeto MAD – Marvilla Art District.
Como refere Janire Bilbao, diretora da Movart, a exposição New Era for Humanity pretende ser o início de “uma ligação consistente que se pretende criar com este e outros espaços” de uma zona da cidade que, paulatinamente, foi substituindo aquela que foi a sua vocação maioritariamente industrial, pela locação de projetos artísticos e criativos que a veem tornando numa das mais vibrantes da capital.
Em busca do maior ecletismo e diversidade, a mostra reúne, nas palavras da curadora Negarra A. Kudumu, “uma assinalável variedade de expressões plásticas como a pintura, a fotografia, o filme, o têxtil, a escultura e a instalação”. Igualmente dispares são os temas abordados pelos artistas, que percorrem desde as temáticas intemporais na história da arte às inquietações mais atuais, que se prendem com os constrangimentos às liberdades, as migrações e, claro, a pandemia.
E a propósito da crise sanitária global dos últimos meses, considera a curadora que esta exposição, ao “recordar-nos onde estávamos” e também muito do que vivemos durante a pandemia, apresenta-se como “um exercício ativo de construção de comunidade, que nos recorda das ideias e práticas criativas que temporariamente tivemos de suspender, mas que agora estamos prontos para retomar.”
Daí o título, com tanto de celebrativo, New Era for Humanity, e o olhar proposto pelos trabalhos exibidos, assinados por Abraão Vicente, Agar Domingas, Alan Louis, Alain Richard, Alina de Oliveira, Ana Silva, Àsikò, Binelde Hyrcan, Bruno Cattani, Colectivo Boanda, Ihosvanny, Jordi Busch com o escritor angolano Ondjaki, Kwame Sousa, Lino Damião, Lola Keyezua, Lucano, Mário Macilau, Miguel Petchkovsky, Miguel Rodrigues, Mónica de Miranda, Mumpasi Meso, Nelo Teixeira, Rebecca Fontaine-Wolf, Rita GT, Sizwe Sibisi, Thina Dube e Thó Simões.
Com inauguração agendada para 27 de maio, a exposição pode ser visitada de segunda a sexta-feira, entre as 14 e as 18h30, e aos fins de semana, entre as 10 e as 14 horas. A entrada é gratuita.
Quando soubeste que querias ser músico?
Na verdade, sinto que, na minha família, fui o último a aceitar isso. Desde cedo, os meus pais acharam que eu era muito musical e que tinha algum jeito. Gostava de música, mas não estava na minha ideia tornar isso uma coisa séria. Na adolescência escolhi a área de desporto, mas tive uns contratempos a nível físico. Houve algumas lesões e sofri um acidente. Posteriormente a isto, comprei uma guitarra, comecei a tocar meio na brincadeira e passado algum tempo a coisa começou a ganhar uma dimensão maior. A partir daí comecei a estudar música. Primeiro num universo clássico, depois estudei jazz no Hot Clube. Foi aí que as coisas começaram a ficar sérias, e que comecei a viver profissionalmente da música.
A tua música concentra vários estilos e sonoridades. Dirias que és uma verdadeira mistura de influências?
Acho que é uma mistura de coisas, sim. Sou um português made in África, o que fez com que tivesse o privilégio de ser criado num ambiente de mescla cultural. Os alicerces da minha vivência estavam associados à cultura portuguesa, mas também à cultura da África lusófona. Nunca tive um alter-ego musical. A minha música é um reflexo daquilo que sou enquanto pessoa e das minhas vivências. Sendo esse processo muito autêntico em mim, ao nível das influências todas essas coisas estavam lá também, e não fazia sentido não estarem na minha música porque fazem parte de mim.
Participaste em projetos como Luiz e a Lata e tocaste em bares. Foi uma escola importante?
Sem dúvida. As escolas de música são, porventura, um fator importante na formação de um músico, até porque o saber não ocupa lugar e, quando estás em determinada área profissional, é importante ter as melhores valências possíveis em relação a essa mesma área. Agora, o palco também traz muitas outras coisas que a escola não traz, acho que acaba por ser um complemento. Tive a sorte de poder ter os dois mundos: durante o dia estudava música e passava as noites a tocar em bares. Tive projetos de vários estilos musicais, desde projetos lusófonos, música portuguesa, brasileira, funk, soul, reggae… acabei por deambular um bocadinho por vários estilos musicais e todos eles acabaram por me ensinar muito e trazer muita riqueza àquilo que faço.
Como é o teu processo criativo?
50% de inspiração e 50% de transpiração [risos]. Às vezes inspiro-me nas coisas mais mundanas e triviais. Pode ser a leitura de um livro, o visionamento de um documentário, uma história que me contaram… há muitos inputs que me dão vontade de escrever. Funciono um bocado por camadas: quando estou em processo criativo estou literalmente em processo criativo, e não quero focar-me noutras coisas. Quando sinto que já tenho um leque de temas que dá para começar a trabalhar, então termino esse processo criativo aí e passo para outro que é quase comparável a estar na cozinha a temperar a comida. A produção, para mim, é um bocadinho isso. Quando estou no processo de produção, de um modo geral não estou a compor. Vou fazendo as coisas um bocadinho por etapas e concentro-me muito em cada uma delas.

Em dezembro lançaste o EP Só.Tão. É um trocadilho com o local de casa onde escreveste os singles?
Sempre gostei de trabalhar em equipa, e os meus discos anteriores – fosse a solo ou com Luiz e a Lata – tiveram muitas colaborações, não só a nível autoral, mas também participações de músicos a tocar. Desta vez, devido à contingência da pandemia, o facto de ter um pequeno sótão em casa, onde tenho um estúdio, acabou por me levar a este percurso que terminou no Só.Tão, e acabei por, pela primeira vez, fazer tudo completamente sozinho: compor, tocar, captar som, misturar. Foi um trabalho que me fez viajar, muito interessante e importante para mim. Obviamente que continuo com muita vontade de trabalhar em equipa, mas foi a forma que encontrei para continuar, de algum modo, a fazer música e a estar ligado ao processo criativo. Enchi-me de coragem e avancei para algo que nunca antes tinha acontecido, e que resultou neste novo EP.
Conseguiste, portanto, aproveitar o tempo do confinamento para criar?
Num primeiro momento passei bastante mal. Tenho dois filhos pequenos, a minha filha mais nova nasceu pouco tempo antes tudo isto ter começado. De repente, estarmos quatro pessoas num apartamento, a minha mulher em teletrabalho, eu praticamente todo o dia a tomar conta dos miúdos… nos primeiros momentos foi bastante duro. Senti que precisava de reagir, e este Só.Tão acabou por ser uma tábua de salvação. Sentia que não me podia deixar ir abaixo, tive de arregaçar as mangas e trabalhar para continuar a compor, embora de um modo mais solitário.
No EP abordas um tema muito presente nas nossas vidas, e especialmente na das gerações mais novas: a importância da internet e das redes sociais. Achas que isto nos afasta cada vez mais, em vez de nos aproximar?
Já tive várias opiniões e ideias à volta dessa questão. Nasci numa era completamente analógica e a certa altura tudo virou digital e altamente globalizado. Está tudo à distância de um clique, com o melhor e o pior que daí advenha. Se, por um lado, hoje em dia é muito fácil ter conteúdos e chegar às pessoas, por outro, acho que cada vez mais há excesso de informação. A questão dos likes está altamente valorizada e passou a valer mais do que os próprios conteúdos que cada pessoa ou artista apresenta. Deixou de haver uma espécie de meritocracia. Antigamente, quando queríamos gravar um disco, íamos à editora, apresentávamos as canções e a editora ou gostava ou não. Hoje em dia, se alguém tem 500 mil seguidores, já nem interessa o que é que essa pessoa faz. As coisas estão um bocadinho perversas a esse nível. Custa-me um bocadinho lidar com isto e a canção Likes por amor acaba por falar sobre isso. Prefiro trocar um like por um concerto meu, algo verdadeiramente genuíno que não esteja naquela espécie de bolha que são as redes sociais, onde toda a gente tem uma cara, mas onde é fácil as pessoas esconderem-se atrás do ecrã.
Há um investimento no lado visual das canções…
Tive a sorte de, há uns anos, ter começado a trabalhar com um músico que também domina esta área do audiovisual. Temos sido grandes parceiros. Chama-se Gus Liberdade, foi com ele que fui ao Festival da Canção de 2020. Para além de ser músico, está ligado ao audiovisual. O facto de ele tocar comigo, de termos proximidade e de ele conhecer bem a minha música, ajudou a que fossemos construindo uma estética visual. Os três vídeos deste EP (e o da música que levámos ao Festival o ano passado, Dói-me o País) foram feitos pelo Gus, daí haver esta homogeneidade neste trabalho.
No final do mês, atuas no Som no Coreto, ao ar livre. Estás ansioso por poder tocar novamente para as pessoas?
Felizmente, tenho vários concertos agendados para os próximos meses. Quero muito acreditar que o pior já passou e que a estrada vai voltar para muitos de nós, músicos, que tanto precisamos de voltar a trabalhar e estar com o público. Preciso do palco como de oxigénio. Estes meses foram asfixiantes, mas espero que o pior já tenha passado.
Um concerto imperdível para ver nos próximos tempos?
O baterista que toca comigo há muitos anos e que é como um irmão para mim, o Ivo Costa, é também o baterista de um projeto incrível que se chama Bateu Matou. O grupo vai apresentar o disco de estreia no Lux [dias 27 e 28 de maio] e acho que vai ser um concerto imperdível. O álbum tem uma grande energia e em cima do palco vai ter mais ainda.
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