“Nós precisamos de dançar juntos mais do que fazer pão em casa.” É assim que o músico Pedro Coquenão, ou Batida, apresenta 1 Dj + 1 Microfone, a sua estreia na escrita para teatro e encenação. A 6 de março, às 22h30, no Lux Frágil, estará o ator Manuel Moreira, num espetáculo que cruza teatro, stand up e clubbing, convidando o público a escutar e a movimentar-se pelo espaço, “em diálogo com os outros corpos presentes, baralhando as diferenças entre plateia e pista, palco e clube, espaço informal e espaço encenado, improvisado e ensaiado”. O texto, explica, é autobiográfico e íntimo, ao mesmo tempo que interage com a atualidade, o contexto e quem está na sala.

Meet: Criminalizar o Racismo?

28 fevereiro, 18h30
Sede SOS Racismo

O SOS Racismo organiza conversas, com jantar incluído, na sua sede. Pedro Coquenão sugere aquela que acontece nesta sexta-feira, 28. “Fica mesmo ali ao lado da Gulbenkian e tem um ambiente muito familiar e íntimo, por ser numa casa”, sublinha. Para o DJ, é necessário “dar força” a estas associações que lutam por “causas que se mantêm atuais e, infelizmente, cada vez mais atuais do que nunca”.

Discoteca Flur

Mercado de Arroios

Comprar um vinil numa loja de discos independente é um dos programas sugeridos por Batida para esta semana. “Felizmente, muitas têm-se mantido, como a Flur. Sempre que sai um disco da editora Príncipe, tento comprar ali, porque é o mais próximo de comprar diretamente aos artistas. A Flur não é uma loja que tem tudo, mas tem tudo aquilo que querem vender, porque tem uma curadoria e vende apenas aquilo que acreditam ser bom.” Pedro sugere ainda uma outra loja: a Tubitek, mesmo ao lado da saída do Metro do Chiado.

Kit Garden, de Joana Vasconcelos

Largo do Intendente

Esta é uma sugestão para quem está apaixonado, diz. “Passar pela Rua de Benformoso, sem olhar condescendente ou contemplativo, a caminho da obra Kit Garden, da Joana Vasconcelos, um bom lugar para namorar. Sugiro entrar pelo lado sul e terminar já no Largo do Intendente. É um sítio bonito, com privacidade e namorar ali parece-me a melhor maneira de lhe dar uso.”

ADR – Associação Desportiva e Recreativa “O Relâmpago”

“Esta associação tem uma componente muito forte de inclusão. Convoca toda a gente, não faz distinções de sexos e de idades e presta muita atenção ao desporto feminino. É muito familiar também, cada jogo acaba por ser um encontro e um convívio, é dado valor a isso. Gosto desta ideia de uma Lisboa associativa, ligada à vida dos bairros”, afirma Pedro, sugerindo que se procure a associação, que neste momento anda à procura de um lugar para a sua sede entre São Vicente e Penha de França. Pode tornar-se sócio, aconselha, e assistir a um dos jogos ou provas, já que são várias as modalidades que têm, do atletismo ao xadrez, passando pelo boxe, o ciclismo e o futsal.

Plantação, de Kiluanji Kia Henda

Campo das Cebolas

Para Batida, qualquer dia da semana é bom para ir até ao Campo das Cebolas e “imaginar a lindíssima obra Plantação, de Kiluanji Kia Henda, um memorial às pessoas escravizadas, previsto para aquele lugar, mas com execução suspensa”. “É uma obra muito bem pensada, que daria uma profundidade emocional e poética a esta zona”, acrescenta.

Não há homens à vista, apenas mulheres. São 13 e estão vestidas de preto: botas, sapatos, camisolas, calças, vestidos, todas diferentes e, no entanto, todas uma só. Um coro em uníssono, capaz de se multiplicar em 13 vozes, 13 corpos, 13 mulheres. Das suas bocas começam por sair frases-feitas que já tantas vezes ouvimos: “A mulher e a mula com um pau se cura”, “deve temer-se mais o amor de uma mulher do que o ódio de um homem”, “da mulher e do mar não há que fiar”, “do marido, a praça; da mulher, a casa”… Há gritos calados, amordaçados. E as frases continuam, quase como se fossem uma ladainha: “Dor de mulher só dura até à porta”, “mulher honrada, mulher calada”…

Teresa Coutinho juntou 13 atrizes em O Fim Foi Visto, peça que escreveu e encena, e que está no Teatro do Bairro Alto entre 25 de fevereiro e 1 de março, depois de se ter estreado no Teatro do Campo Alegre, no Porto. O texto inspira-se no livro Cassandra, de Christa Wolf, sobre o papel da mulher na História, e também no movimento da Caça às Bruxas entre os séculos XV e XVIII e na vivência das mulheres pelo mundo ao longo dos tempos. “Quando comecei a ler sobre as perseguições da Caça às Bruxas percebi como teve tanta influência na forma como hoje nos comportamos em sociedade”, conta a atriz e encenadora, “até na forma como, por exemplo, o aborto foi proibido. Essa proibição chegou aos dias de hoje, pela influência do capitalismo e do poder da Igreja, que não conseguia controlar as mulheres e os seus lugares de cumplicidade. Foi um abanão para mim e, depois desta epifania, comecei a escrever a peça. Quis perceber o que significa a Caça às Bruxas hoje e o que ficou daquela época”.

O tempo neste espetáculo é, aliás, difuso e pouco definido. Não sabemos em que altura nos situamos, porque, na verdade, em todas elas se repetem acusações, agressões, perseguições, opressões. Podia ser ontem, mas também pode ser hoje e, infelizmente, pode também ser amanhã. Teresa Coutinho quis entender, não só como chegámos onde fomos chegando (uma e outra vez), como porque chegámos aí – que força é essa tão temível, a das mulheres, que leva os homens a querer aniquilá-la? Que medo é esse? De onde vem esta cultura machista que resiste há séculos como dominante? O que pode, afinal, “o descontrolo de uma mulher”, como se diz em cena? O que levou, desde a Grécia Antiga, homens a escreverem tragédias em que a elas apenas cabiam os papéis de ousarem, traírem e desafiarem (Aristóteles escreveu que “a fêmea é um macho mutilado”)? “Enquanto a ousadia se mantiver no palco não extravia para a vida”, ouve-se a certa altura. Será essa a justificação da misoginia?

Um coro de sororidade

Que esta é uma tragédia fica logo enunciado no início do espetáculo. “O final vai acabar mal”, anunciam. “Nós somos o coro. E, se somos o coro, então esta é uma tragédia.” Mais do que fazer o paralelo com o teatro, Teresa Coutinho interessou-se por enaltecer a ideia de coletivo, explica. “A ideia do coro vem da tragédia grega, claro que aqui tem uma encenação muito livre, mas queria mesmo ter um grupo de mulheres e contrariar a ideia de que muitas mulheres juntas nunca têm um bom resultado. E 13, o número do azar, foi para ir ainda mais contra o preconceito.”

Juntou atrizes bem diferentes e com experiências distintas: Ana Baptista, Ana Sampaio e Maia, Ana Valente, Cláudia Semedo, Lucia Pires, Maria Duarte, Siobhan Fernandes, Mariana Guarda, Rita Cruz, Sara de Castro, Sara Ribeiro, Tânia Alves e Tanya Ruivo – algumas delas que nunca se cruzariam de outra forma, provavelmente. “Pode soar a cliché, mas houve, neste processo de trabalho, muita sororidade, sentido de união e respeito”, acrescenta.

A força que vem desse coletivo é também a força que Teresa Coutinho quer sublinhar neste espetáculo. “A violência que as mulheres sofreram ao longo dos tempos tem a ver com a sua capacidade de resistência. Há qualquer coisa muito estoica nas mulheres, há qualquer coisa que as mantém de pé”, aponta. Por isso, em reunião ali se juntam em cena e, em reunião, nos mostram a opressão constante de que são vítimas. “Sobrevivemos a quase tudo e essa é a nossa maldição”, há de afirmar uma delas, depois de outra delas instigar, dançando sem parar: “Dancemos. Até não dançar nenhuma”.

Em palco, fala-se de resistência mas também de passividade, de força mas também de fraquezas. Conta-se como à mulher lhe resta, muitas vezes, apenas a alternativa de ser Maria, a casta e obediente ao homem, ou Eva, a pecaminosa, que acaba posta de lado, acusada, agredida. Uma “caça às bruxas e a todas as metamorfoses do feminino”, sussurram. Há cabelos puxados, expressões de pânico, gestos fortes. Há uma mulher presa e condenada, há uma candidata a presidente de um partido contra o aborto que decide abortar, há uma professora que quer pôr os alunos a pensar e passa a ser olhada de lado, há mulheres constantemente julgadas e bruxas constantemente malvistas. Há, sobretudo, desumanidade – seja na violência, seja na inércia ou na complacência para com ela.

A força da utopia

Nesta narrativa, que começa pelo fim para depois voltar ao início, é o coro que manda. Aqui, as mulheres que nos falam são sujeito e não objeto. Como defende Christa Wolf, em Cassandra, torna-se importante a memória e necessária esta “escrita para a paz”. Teresa Coutinho encena contra a invisibilidade e o silenciamento da experiência feminina – e há uma certa esperança nisso, sim.

“Acredito que cabe às mulheres a arte que vem restaurar a paz”, diz. “Falta cumprir essa possibilidade que não conhecemos: e se as mulheres tomassem efetivamente conta do poder? Como seria um sistema e uma política pensados por mulheres? Tem mesmo de ser assim como é?”

Em cena, ouve-se: “O tempo que passou e que afinal nos apanhou, o terrível tempo que veio sussurrar ao ouvido deste tempo”. Passam anos e séculos e continuamos a ter notícia de violências domésticas, feminicídios e toda a espécie de agressões a mulheres. Como nota Teresa Coutinho, “o modo de interagir é igual ao longo dos tempos, o tipo de perseguição é reconhecível”. E, no entanto, continuamos a trilhar os mesmos caminhos. “O mundo está feio. Vivemos mesmo na altura da banalidade do mal, do insulto, da crueldade. Quando comecei, queria escrever um texto distópico. E, neste momento, a violência deste espetáculo é ele falar de coisas tão atuais. Há um ano e pouco, quando nos encontrámos todas numa primeira residência artística, isto ainda era uma distopia. Hoje já o é muito menos… E pensamos: será que daqui a um ano poderemos fazer este espetáculo?” O Fim Foi Visto, já sabemos como acaba a história – evitemos “um desfecho trágico, uma ditadura futura”.

A nossa árvore

Jessica Meserve

Minutos de Leitura

Pode uma árvore e todos os seus ramos e folhas ser de um animal só? Neste livro, o esquilo Vermelhito há de descobrir que não. Por muito que queira a árvore só para si (e ele bem tenta enxotar todos dali para fora), vai perceber como é muito melhor se a partilhar com minhocas, andorinhas, insetos vários, sapos, camaleões e até elefantes. Unidos, vão compreender como a partilha de um espaço traz muitas coisas boas e como, mesmo sendo diferentes uns dos outros, se conseguem entender. Uma história, delicadamente ilustrada, sobre a capacidade de partilha e de como “a vida é bem melhor quando estamos juntos”.

Troll

Frances Stickley e Stefano Martinuz

Porto Editora

Podia estar atrás de um ecrã de computador, mas, nesta história, o Troll vive debaixo de uma ponte e é dali, bem escondido, que, de megafone na mão, grita insultos e ameaças a quem passa. Sem que ninguém o veja, vai ofendendo todos os animais. Até ao dia em que aparece um coelho surdo que, em vez de fugir, se aproxima do Troll e o olha de frente. Será assim tão divertido dizer coisas desagradáveis na cara de quem vem falar connosco? Será assim tão bom viver num buraco lamacento, sozinho e sem amigos? Um livro que, em rima, fala da importância de compreendermos o outro, de sermos empáticos e de como se formos mais tolerantes com os que nos rodeiam acabamos também por ser mais gentis connosco próprios.

O dinossauro da casa ao lado

David Litchfield

Fábula

Um livro delicioso sobre um dinossauro que faz bolos deliciosos. Para viver entre os humanos, que o adoram e adoram os seus bolos, vive disfarçado, de bigode, óculos e chapéu. De vez em quando visita o lugar de onde veio – um mundo encantado, cheio de dinossauros como ele, mas onde não se fazem bolos deliciosos. O que acontece quando, enfim, se descobre que o Sr. Wilson é um dinossauro? Uma história sobre a importância de acolher e aceitar quem vem de fora, sobre solidariedade entre diferentes, sobre a beleza de seguirmos os nossos sonhos e também sobre a liberdade de escolhermos onde viver – afinal, pertencemos aonde quisermos e não pode haver quem nos tire esse direito.

Sem desvios

Stéphanie Demasse-Pottier e Tom Haugomat

Orfeu Negro

Este é um livro carregado de sensibilidade, tanto no texto como nas ilustrações que jogam com sobreposições de duas tonalidades de azul e laranja quase fluorescente. Com frases curtas, conta-se a história de uma menina que todos os dias faz o mesmo caminho para a escola e se confronta com uma mãe sentada no chão da rua, com um bebé ao colo. Mesmo sem compreender as palavras difíceis dos adultos, que falam em “pobreza”, “injustiça”, “solidariedade” e “humanidade”, a menina sente desconforto e tristeza e uma vontade grande de dar àquela mãe aquilo de que nunca sentiu falta porque sempre teve como garantido. Pensando bem, mesmo que não possamos mudar o mundo, há sempre pequenos gestos que fazem a diferença. E acaba sempre por valer a pena olhar a realidade de frente, em vez de virar a cara ou fazer desvios no caminho.

Onde é que nós íamos?

Isabel Minhós Martins, Dina Mendonça e Madalena Matoso

Planeta Tangerina

As conversas são como um jogo de pingue-pongue ou, como se diz logo no início deste livro, “conversar é ir andando”. Onde é que nós íamos? explica-se no subtítulo: Sobre a importância e o prazer de conversar. Ao longo destas páginas, as autoras vão conversando com o leitor sobre o assunto, falando dessa satisfação (que é como a das cerejas da capa), sugerindo como fazê-lo cada vez melhor (sim, é possível e desejável), imaginando as infinitas maneiras e formas que assumem e também propondo atividades e experiências para as pôr em prática. Pelo caminho, fazem várias perguntas, para nos pôr a pensar e a conversar. E, já sabemos, “é a conversar que a gente se entende”, por isso, vale a pena fazê-lo com quem tem opiniões opostas às nossas, quando há nós que é preciso desatar, quando existem polarizações, quando já sabemos que serão conversas difíceis. Como se diz na contracapa, “conversar não resolve tudo, mas é fundamental para fazermos o caminho em conjunto”.

Há um herbário no deserto marca a estreia de Mia Tomé nos discos. Neste novo projeto, a atriz canta e declama – em português e inglês – a poesia da autora americana Emily Dickinson. A sua paixão pelo Arizona (onde gravou o disco) está bem patente na sonoridade folk e pop do álbum, que conta “várias histórias ao ouvido que comemoram a poesia no feminino”. Há um herbário no deserto celebra a Natureza (tão evocada na obra de Dickinson), explorando a sonoplastia do deserto do Arizona na altura da sua gravação, “com o som dos coiotes, o vento, as tempestades entre terras vermelhas, montanhas e desfiladeiros”. Em Lisboa, podemos vê-la a apresentar o disco na Estufa Fria a 23 de fevereiro, e ainda dia 28, numa sessão intimista na Livraria Buchollz que conta com uma escuta em vinil do álbum e uma conversa moderada por Isabel Lucas. Brevemente, a artista levará o projeto à Polónia no âmbito do programa Culture Moves Europe.

Casablanca – inserido no ciclo Teremos Sempre Michael Curtiz (Parte I)

17 de fevereiro, às 16h30
Cinemateca Portuguesa

“Estive no Arizona várias vezes. Na primeira, fiz uma pesquisa onde pude conversar com uma série de mulheres artistas. Uma delas foi a Victoria Lucas – uma mulher inspiradora e neta de Michael Curtiz. Casablanca é um grande filme que merece ser visto em tela e vai ser projetado na Cinemateca no dia 17”, conta Mia. Inserido no ciclo Teremos Sempre Michael Curtiz (Parte I), este clássico do cinema tem Humphrey Bogart e Ingrid Bergman como protagonistas. Passado durante a Segunda Guerra Mundial, acompanha a história de um americano que reencontra um antigo amor em Marrocos, na cidade de Casablanca.

No Yogurt for the dead , escrito e encenado por Tiago Rodrigues

19 a 23 fevereiro
Culturgest

“Adoro o trabalho do Tiago Rodrigues, acompanho-o desde sempre. Quando estava no segundo ano do Conservatório sentia-me cansada do teatro que andava a ver, não era aquilo que me via a fazer. Depois vi um espetáculo dele chamado Bovary, a partir do romance de Gustave Flaubert, que mudou a minha vida para sempre”, confessa. No Yogurt for the dead foi escrito por Tiago Rodrigues a partir das últimas semanas de vida do seu pai. Trata-se de uma peça sobre uma voluntária que acompanha os últimos dias de um homem prestes a morrer, ajudando a combater a solidão da doença. “Ir ao teatro ver [uma peça de] Tiago Rodrigues é sempre uma inspiração. Ele é genial e arriscar-me-ia a dizer que é o melhor no que faz”, sublinha a atriz.

1984 de George Orwell, adaptação de Robert Icke e Duncan Macmillan

21 a 24 fevereiro
Centro Cultural de Belém

“Os Artistas Unidos são uma companhia muito importante para mim porque foi lá que fiz os primeiros trabalhos profissionais de teatro, ainda estava no Conservatório”, conta. Com encenação de Pedro Carraca, o CCB recebe a versão cénica do clássico de George Orwell numa adaptação dos dramaturgos britânicos Robert Icke e Duncan Macmillan. 1984 retrata um futuro sombrio onde a liberdade individual é suprimida e a verdade é distorcida por um governo autoritário. “Dou esta sugestão não só porque eles fazem um bom trabalho em cena, mas porque é importante falarmos deles. Merecem muito mais atenção do que a que estão a ter”, acrescenta a artista.

Exposição And Your Flesh Becomes a Poem, Tamara Alves

Até 8 de março
Galeria Underdogs

Tamara Alves regressa à Underdogs com And your Flesh Becomes a Poem, uma exposição que inclui desenhos, aguarelas, esculturas e dípticos, em materiais tão diversos como a resina e a madeira, que evocam ausência, silêncio e tensão. São 27 novas obras que abordam temas como a vitalidade instintiva, o amor e as forças selvagens que moldam a experiência humana. “A Tamara Alves é incrível e o título da exposição é brilhante. Ela é uma artista visual, mas a poesia está em muitos sítios. Relaciono-me muito com este trabalho que faço à volta dos poemas e ela consegue transformar esse lado feroz e encontrar aí poesia”, afirma a atriz.

Only Light de Ray

“O Ray também tem presente o universo do folk norte americano e escreve muito bem”, diz. Membro dos The Poppers e dos Keep Razors Sharp, o músico prepara-se para lançar o seu próximo álbum, Buffalo. A primeira amostra deste novo trabalho é a canção Only Light, que conta com produção de Paulo Furtado (mais conhecido por The Legendary Tigerman). “Este tema é só guitarra e voz e é muito bonito. É uma carta de amor – não necessariamente romântico”. Na verdade, trata-se de uma declaração de amor ao filho de Ray e uma canção que tocou particularmente Mia Tomé. “Gosto muito desta letra – as letras são poemas, não é?”

“Mas, mas?”, dizem Foxy e Meg, de olhos esbugalhados, como se perguntassem “o que vem a ser isto?”. Pelas páginas fora, a dupla de amigas improváveis (uma raposa e uma galinha) há de tentar descobrir o que é aquela “coisa”, azul e cinzenta, nem redonda nem oval. A Pato Lógico traz de volta as personagens criadas por André Letria em 2004 para uma série de livros editados pela Ambar. Foxy e Meg já foram até protagonistas de episódios para televisão e de um filme animado, com guião de Catarina Sobral e Ricardo Henriques.

Agora, André e Ricardo juntam-se para lhes dar novas aventuras. Este é o quinto livro que fazem juntos e o primeiro de uma coleção com estas duas personagens. Em Foxy & Meg encontram um Mas-Mas, exploram a natural curiosidade das crianças, com muito humor pelo meio, numa história que vale pelo que se encontra no final, mas também pelo caminho para lá chegar. Afinal, o que vem exatamente a ser um Mas-Mas? E será que queremos mesmo saber?

1. Quem são Foxy e Meg?

André Letria (A.L.): São duas amigas improváveis, porque normalmente não se espera que uma raposa e uma galinha sejam amigas, mas neste caso a coisa corre bem. Convidei o Ricardo para escrever a história inaugural desta coleção, que fala de uma coisa misteriosa… A ideia já andava a ser amadurecida há muito tempo, porque fiquei sempre com pena de ver a Foxy e Meg esquecidas. Depois daquelas experiências iniciais, primeiro com os livros que foram editados pela Ambar e depois com a série que foi feita poucos anos depois com a Animamostra. Desde a série, fiquei sempre a pensar que era interessante reabilitar as duas amigas. Não tinha ainda a editora Pato Lógico nessa altura, portanto não havia meios para fazer isso. E, entretanto, elas foram também as protagonistas de um filme, escrito pelo Ricardo e a Catarina Sobral.

Ricardo Henriques (R.H.): Sim, escrevemos um argumento fez-se o filme Isto não é um chapéu, que foi coproduzido pela RTP. Fomos buscar o início da amizade delas: a Foxy roubava galinhas e, um dia, está pôr a Meg no forno e esta diz-lhe “olá” e ela fica espantada: “Não sabia que as galinhas falavam!”. E decide ser vegetariana e fica amiga da Meg. Tem piada porque, no ano em que nasci, a minha mãe escreveu um livro chamado A Raposa Vegetariana… mas essa era só porque estava mal disposta de comer tanta carne.

A.L.: No filme, as personagens são direcionadas para um público mais velho, já não para bebés ou crianças pequenas, como acontecia nos primeiros livros. Agora, encontrámos um público intermédio, que, na verdade, diria que é mais jovem do que aquele para que normalmente trabalhamos na Pato Lógico. Além de recuperar estas personagens e de lhes dar uma vida nova, com um aspeto mais contemporâneo, agrada-me a ideia de este livro ser o início de uma coleção, isso entusiasma-me como editor, e de ocupar um espaço no catálogo que não estava muito preenchido: o dos livros para crianças mais novas, embora não gostemos muito da ideia de limitar o público, porque acreditamos que um livro destes também é para adultos.

R.H.: Pelo menos, para os adultos que não têm vergonha de ler livros para crianças.

A.L.: Já andávamos a falar em fazer um livro com a Foxy e a Meg desde 2018, acho. No ano seguinte, lembro-me que fomos à Feira do Livro Infantil de Bolonha e, quando terminou, alugámos um carro e fizemos uma viagem passando por Parma e Modena. Estávamos em Parma a comer um gelado e a falar de ideias que podiam tornar-se livros no futuro e foi nessa altura que nos entusiasmámos mais com isto. O que me deu mais gozo foi poder atualizar as ilustrações, recuperar estas personagens para criar uma nova coleção na editora e também voltar a trabalhar com o Ricardo.

2. Como é trabalhar um livro a quatro mãos e como foi a criação deste em particular?

R.H.: Neste caso, fui bombardeando o André com várias histórias da Foxy e da Meg e acabou por ficar esta.

A.L.: Já existem várias ideias para histórias da Foxy e da Meg e a próxima já está escrita. O nosso processo de trabalho é: o Ricardo escreve a história em bruto, que tem bastante mais diálogo do que depois aparece no livro e depois é feita uma adaptação tendo em conta o formato e a limitação do número de páginas – os livros desta coleção terão sempre o mesmo formato e o mesmo número de páginas. Neste caso, quisemos uma cadência das frases mais curtas, por isso, fui fazendo uma limpeza de algumas coisas escritas pelo Ricardo. Se vou trabalhar num livro como ilustrador, é uma autoria partilhada e, portanto, aquilo que o texto propõe pode gerar respostas que implicam alguma alteração. Penso que o texto original deste livro seria quatro ou cinco vezes maior do que o final.

R.H.: Não sei como é que são as outras “duplas sertanejas”, mas no nosso caso funciona assim: eu tenho ideias de texto, mas também tenho ideias muito visuais e com o André estou completamente à vontade para as propor. E o André, ao contrário de muitos ilustradores que ficam só no seu cantinho, também lê muito e está sempre a fazer propostas. Acho que acabamos por nos completar bem. Desde que fizemos juntos o livro Mar que costumo usar uma expressão: depois da ilustração ser feita, tens de abanar o livro para caírem as palavras que estão a mais. Porque há sempre coisas a mais, que ficam redundantes depois das ilustrações feitas.

A.L.: Penso que se nota que nos divertimos bastante a fazer livros. E, muitas vezes, a nossa vida pessoal e profissional mistura-se e estamos a falar dos livros que vamos fazer como podíamos estar a combinar outra coisa qualquer, não é? Por exemplo, o título deste livro foi decidido na esplanada no Jardim da Estrela, num dia em que fomos passear o Ricotta, que é o cão do Ricardo.

3. Afinal, o que é um Mas-Mas (sem spoiler)?

R.H.: Penso que este é um livro que explora a curiosidade. Quando algo de diferente ou de estranho aparece nas nossas vidas, podemos ter duas atitudes: ter medo e afastar-nos ou avançar e tentar perceber o que é que está à nossa frente. Isto é tão natural numa criança de quatro ou cinco anos como num adulto. Diria que, nesta história, se existe moral, coisa que odeio, é que medo, mas não muito, e coragem, mas não muita…

A.L.: Esta história não tinha este título originalmente. Na verdade, esta ideia do Mas-Mas apareceu numa conversa em que achámos isto podia ser um bocadinho mais parvo do que tínhamos pensado. O Mas-Mas seria uma coisa misteriosa, mas também podia ser uma coisa disparatada.

R.H.: E a parvoíce em nós é uma coisa natural…

A.L.: Gostamos de imaginar que, qualquer dia, os miúdos passam a dizer ‘olha um Mas-Mas’ para se referirem a alguma coisa grande, estranha e misteriosa. Na verdade, acabámos por ter de explicar mais do que queríamos, por causa das traduções para outras línguas… mas gosto da ideia de que não é necessário explicar nada. Uma das coisas que dei por mim a valorizar na história é aquela parte em que a Foxy e a Meg se viram para o leitor e perguntam, depois daquelas tentativas para perceber o que é o Mas-Mas: “Será melhor não sabermos o que é?” É aquela dúvida que fica. É um momento que pode ser mais filosófico e que nos põe a pensar… O que é que interessa realmente? Ou será que resistimos à curiosidade? E vamos continuar a viver o dia a dia sem nunca saber uma coisa que poderia ter sido muito boa? Mas se formos lá pode ser muito má também… Na verdade, o Mas-Mas nem é a descoberta e aquilo que sai do ovo, é o mistério, não é? É o caminho que elas fizeram até lá, não é?

 

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Rachel Caiano invadiu o Teatro LU.CA com muitas linhas. No entrepiso e no piso 2, a artista plástica e ilustradora espalhou o seu traço na exposição Viagens à volta de uma linha, que ali estará até 27 de fevereiro, e em que mistura os desenhos do livro Roda-Viva (a Menina e o Círculo), ilustrado por si e escrito por Sandro William Junqueira, com os desenhos que faz, em tempo real, no espetáculo de Cláudia Nóvoa com o mesmo nome (em cena de 12 a 27 de fevereiro). “Cada linha é uma frase, é um novelo, é uma estrada”, promete Rachel, que vive “entre lápis, pincéis, agulhas, cães, guitarras e tabuadas”. “É uma exposição interativa que será feita, em parte, pelos visitantes”, adianta. No espetáculo, indicado para maiores de 3 anos, além de desenhar ao vivo, é também ela a responsável pelos figurinos. “É bom voltar ao LU.CA, depois de várias apresentações pelo país.” Não será fácil, nestas semanas, encaixar programas culturais na agenda, mas as sugestões que aqui faz são tentadoras – e, sobre algumas, Rachel Caiano confessa-se bastante curiosa e entusiasmada.

Anastácia Carvalho

11 fevereiro, 19h
Biblioteca de Marvila

O projeto Música em Bairros, da associação cultural Soma Cultura, tem organizado concertos gratuitos de músicos do mundo em vários lugares da cidade. Esta semana, a cantora são-tomense Anastácia Carvalho atua na Biblioteca de Marvila, e Rachel Caiano, que já ali viu a ucraniana Litá Folk Band, faz desta uma das suas sugestões. “São concertos de proximidade. Todos os cantores atuam nos vários locais e gosto dessa ideia de levar estas músicas até perto das pessoas. Agrada-me muito a multiculturalidade e conhecer coisas de outros sítios. Ficamos com o mundo aqui perto”, nota. Até abril, as atuações acontecem na Ti – Associação Juvenil Ponte, Quinta Alegre, Biblioteca de Marvila e Orientar. Para o concerto de Anastácia Carvalho podem fazer-se reservas para o email bib.marvila@cm-lisboa.pt.

Veludo Azul, de David Lynch

12 fevereiro, 14h
Cinema Nimas

Talvez não seja o melhor dia e o melhor horário para ir ao cinema, mas Rachel não quis deixar de destacar o ciclo de homenagem a David Lynch, que decorre no Cinema Nimas. “Falo do Blue Velvet, mas recomendo qualquer um dos filmes, claro. O David Lynch é incontornável. Mesmo não sendo o meu realizador favorito, tem uma linguagem muito própria que é necessário conhecer”, aponta. “Admiro a forma como trabalha o subconsciente, gosto da ideia de não ter de se perceber tudo, de não ter as respostas todas, de existir espaço para a dúvida e o questionamento. Ele faz isso muito bem e os seus filmes são objetos abertos, que cada um interpretará à sua maneira. Numa altura em que a tendência é explicar tudo e que as coisas tenham todas princípio, meio e fim, agrada-me este lugar que o Lynch cria.”

© Os Espacialistas

Cella, d’ Os Espacialistas

MAC/CCB

Na praça CCB do Museu de Arte Contemporânea e Centro de Arquitetura, está uma instalação feita de cortiça, criada pel’ Os Espacialistas, um coletivo de investigação teórica e prática das ligações entre Arte e Arquitetura. “Uma espécie de espaço de natureza anatómica, arquitetónica e escultórica”, como se define, onde podemos entrar e que podemos explorar – e que está nomeado para o prémio de Building of the Year, da plataforma Arch Daily. A ilustradora já se aventurou e recomenda. “É muito sensorial, as pessoas podem sentar-se, deitar-se e rebolar! Dá vontade de trepar e de nos encostarmos”, diz, contando que se deitou lá dentro, a olhar para o céu. “Parece uma eira ou um poço, dá para imaginarmos o que quisermos, é um espaço livre que, sendo fechado, nos abre muitas leituras”, acrescenta.

Festival Play

15 a 23 fevereiro
Cinema São Jorge e Cinemateca Júnior

Começa na sexta-feira, 15, a 12.ª edição do Festival Play, com uma seleção cuidada de filmes de animação para os mais novos – dos bebés aos adolescentes de 16 anos. Rachel conta que sempre frequentou o festival e que, mesmo agora que já não tem filhos pequenos, não deixa de ir. “Não preciso de desculpas e vou à mesma”, diz, defendendo que este não tem de ser um programa apenas para crianças. “Não há muitas ocasiões para vermos filmes de animação e tantos tão diferentes uns dos outros. A programação é sempre variada e ali descubro o que se está a fazer em animação pelo mundo. Gosto muito deste festival.”

Lucy and Friends, de Lucy McCormick

14 e 15 fevereiro, 19h30
TBA – Teatro do Bairro Alto

É uma sugestão quase no escuro, esta. “Não conheço a Lucy McCormick, mas estou muito curiosa. Parece-me uma proposta muito interessante, diferente e visceral, e agrada-me essa ideia de puxar as margens para o centro. Pelo que li, tem uma linguagem mais divergente que nem sempre tem muita visibilidade”, diz sobre o trabalho da artista britânica cuja biografia destaca as “interrupções em discotecas, intervenções em cabarets e peças de teatro espetaculares, conjugando interesses no absurdo, no ego e no grotesco”. Neste regresso ao Teatro do Bairro Alto, Lucy promete deixar o público “a precisar de ser abraçado, de chorar um pouco e de tomar logo um duche” depois de ver “o seu mais ambicioso espetáculo de cabaret queer moderadamente conceptual”. “Além disso, no dia 15, há uma conversa moderada pela Maria Sequeira Mendes, por isso, só pode ser bom”, conclui a ilustradora.

Os Cães e os Lobos, de Irène Némirovsky

Relógio d’Água

“Sugiro o livro que estou a ler neste momento. É uma autora que descobri há pouco tempo e já li vários dos seus livros. Comecei pel’ O Baile, que é um conto incrível, li outros e agora vou a meio deste, que dizem que é o melhor dela. Estou a gostar muito”, afirma sobre as obras de Irène Némirovsky, escritora judia que morreu durante a II Guerra Mundial no campo de concentração de Auschwitz. “Os livros passam-se naquela época, anos 30 e 40, e ela escreve sempre de um ponto de vista muito humano. Não sendo autobiográficos, penso que são muito próximos da história dela, da sua relação com a família e com a mãe, em especial”, descreve Rachel, confessando que gosta de explorar a obra dos escritores e não ficar apenas por um dos seus livros. Annie Ernaux foi outras das escritoras que leu recorrentemente nos últimos meses.

A tua relação com a música começou muito cedo. Tinhas seis anos quando começaste a aprender violino. Foi por vontade própria ou dos teus pais?

Surgiu por minha vontade, mas gostava que tivesse durado mais tempo. Comecei por frequentar música para bebés aos três anos, e lá experimentávamos um pouco de tudo. Iniciei a aprendizagem de violino por uns cinco anos, mas nunca cheguei a ser boa. Mas sempre foi tudo muito orgânico, os meus pais nunca fizeram pressão para eu fazer música, mas também nunca estiveram contra, e fui experimentando também muitas outras coisas. À medida que o tempo foi passando fui encurtando as possibilidades até perceber que era mesmo na música que queria continuar.

Cresceste rodeada de música: o teu pai trabalhava com o Fausto e com o José Mário Branco. De que forma é que isso influenciou o teu caminho?

Não sei exatamente de que forma, mas a verdade é que, obviamente, teve influência. Tenho a certeza de que, se tivesse crescido noutra casa, a música que faço seria diferente. Nunca nada me foi imposto, foi uma coisa muito natural, sempre ouvi muita música em casa. Do lado do meu pai, mais música portuguesa, e do lado da minha mãe, mais anglo-saxónica e jazz, portanto, houve uma fusão e um interesse que eu acabei por recolher de forma absolutamente inconsciente. Podia, se calhar, não me ter apaixonado por este ofício, mas aconteceu.

Há também um gosto muito grande quer pela poesia, quer pela literatura. Isso também influenciou a tua forma de compor?

Influenciou muito. Mas foi uma paixão já tardia, embora eu seja muito nova [risos]. Escrevia prosa de forma absolutamente descomprometida, até que, no ensino secundário, tive uma professora brilhante de literatura portuguesa, ela própria muito apaixonada por literatura, o que levou a que eu também ganhasse esse amor. É mesmo importante ter professores que gostam do que fazem pois isso tem um impacto enorme nos alunos. Apaixonei-me primeiramente pela obra de Fernando Pessoa e a partir daí comecei, de forma quase obsessiva, a explorar a literatura portuguesa. Isso mudou muito a minha forma de escrever canções. Tive de entender que, depois de ler tantas obras incríveis, nunca iria escrever nada brilhante – percebi o meu tamanho microscópico nessa área, mas sou muito apaixonada por poesia…

Consomes mais poesia do que prosa, é isso?

Muito mais, sim.

A certa altura, apaixonaste-te pelo fado. Como é que começaste a frequentar casas de fado?

Os meus pais não gostam muito de fado, na verdade, acho que também nunca tiveram essa cultura. Mas um dia fui a uma casa de fados e apaixonei-me. Comecei a ir mais vezes, cada vez com mais regularidade e percebi que aquilo que estava a atrair-me não era tanto a questão musical, mas sim o ambiente que lá se vive, a forma como fui recebida. E o fado apareceu numa altura em que eu precisava dele, precisava de me sentir compreendida no meio de pessoas que são, de facto, muito sensíveis. Foi uma fase muito especial e que me mudou, principalmente, como intérprete. É muito engraçado porque o De Sombra à Sombra nasceu antes desta fase, mas a partir do momento em que comecei a visitar casas de fado, o disco teve uma alteração de 180 graus. Realmente comecei a cantar de forma diferente. Vou parecer louca, mas já é a segunda paixão obsessiva que tenho [risos]. Talvez tenha sido ali uma coisa muito vincada e, atualmente, já não é tanto assim, mas é uma influência que vai existir para sempre, porque quando nos apaixonamos pelo fado já não há forma de ele se ir embora.

Consegues definir a música que fazes? Há quem diga que é uma mistura de fado e pop

Não gosto nada de rótulos, até porque os artistas estão constantemente em transição. E, embora não concorde, entendo a associação do meu primeiro disco ao fado. Não foi propositado, mas houve essa influência, por isso entendo que a minha forma de cantar possa remeter para esse lugar. Aquilo que estou a fazer agora – e tudo o que vier no futuro que esteja mais ou menos associado ao fado – não é propositado. Amanhã posso fazer um disco de reggaeton e essa gaveta deixa de fazer sentido, mas é normal, faz parte.

“A arte tem de vir de um sítio de vulnerabilidade”

De Sombra à Sombra foi escrito a partir de um lugar um bocadinho sombrio. Como é que é interpretar músicas com as quais, se calhar, agora não te identificas tanto?

Atualmente, cantar as canções desse disco é um processo bonito. No início foi um bocadinho doloroso, no sentido em que sou muito intensa na minha forma de interpretar e de estar em palco. Aquilo que canto é o que estou a sentir no momento… Às tantas comecei a perceber que isso já não estava a acontecer, porque realmente eu já não estava naquele lugar tão escuro. Mas foi um exercício muito giro, era quase como se eu estivesse a fazer uma homenagem a uma artista que não era eu, e a criar uma ligação de empatia com uma terceira pessoa. Por isso, canto esse disco a partir de um sítio diferente, mais bonito, porque estou a cantar a tristeza de uma forma distante. Na altura em que estava naquele lugar sombrio, precisava de estar constantemente a exteriorizar isso. Mas há uma coisa engraçada: antes de ter começado a tocar ao vivo, a imagem que as pessoas tinham de mim – fosse por causa do disco ou de algumas entrevistas que dei – era de uma pessoa pesada, muito fria e distante… Quando comecei a tocar foi bonito perceber que as pessoas não sentiam nada disso, porque depois tenho o lado leve dos meus 23 anos e, portanto, estou sempre nesse balanço entre o lado escuro e o lado mais solar.

E não é difícil partilhares as tuas inquietações?

No início, com algumas canções específicas, tive medos. Agora, isso raramente me passa pela cabeça. Sinto que a arte tem de vir da vulnerabilidade. Se eu estiver preocupada com isso e a tentar esconder ou tornar menos óbvias as coisas que quero contar, a mensagem não vai chegar de forma tão clara ao público. Se escrever uma canção a partir de um sítio vulnerável e triste, acho que é importante que isso passe para as pessoas, não quero tentar mascarar as coisas. Já não é algo que me preocupe muito, acho que já não é um assunto. Aconteceu com algumas canções, principalmente com a Roubar um corpo, mas agora já não.

Neste álbum trabalhaste com o Agir. Como é que surgiu esta colaboração?

Foi um acaso. Não o conhecia pessoalmente, mas sabia quem ele era. Tinha escrito o Lamentos, que era o primeiro single, e pedi ajuda ao Rodrigo Correia, que foi quem me ajudou também no De Sombra a Sombra. Sem que soubesse, ele mostrou a canção ao Agir. Um dia, estava com as minhas amigas na rua à noite a fumar um cigarro e recebo uma chamada do Agir, a dizer que tinha ouvido a canção e a perguntar se queria passar no estúdio. Fui, demo-nos muito bem, começámos um namoro profissional e fomos trabalhando… Fomos unha com carne. Não foi sempre fácil, mas foi sempre muito verdadeiro.

E depois participaste no Festival da Canção [em 2022] com uma composição dele. Como é que foi interpretar uma música que não foi escrita por ti?

Amo cantar, com paixão. Às vezes sinto que, se calhar, estou a fazer as coisas erradas. Poderia estar a cantar canções de outros em vez de escrever as minhas. Amo cantar canções de outras pessoas quando me identifico verdadeiramente com elas. E a verdade é que eu me revia cem por cento nessa canção, que fala sobre a importância de estarmos atentos ao papel da mulher. Foi uma responsabilidade grande defender uma canção daquelas no festival. Uma situação que, à partida, me era desconfortável: a questão de estar a pedir votos, de pôr a música em competição, não tem muito a ver comigo, mas acabou por ser uma etapa muito especial para mim.

No ano passado atuaste num Teatro Maria Matos completamente esgotado, e agora vais estar no CCB. Como é que te sentes?

Só vou ter consciência de que isso está a acontecer quando acabar o concerto, porque parece tudo meio irreal… Desde ter o disco lançado, que não era uma coisa que estivesse realmente nos meus planos, a todas as coisas boas que foram acontecendo desde então, tudo me parece uma surpresa. Estar a tocar no CCB e na Casa de Música, dá-me uma sensação de síndrome de impostor: como assim? isto está mesmo a acontecer? Mas, falando sobre os concertos, acho que que vai ser o fecho de um ciclo, não um fecho completo, porque, na verdade, o disco saiu há dois anos e mal seria se nunca mais voltasse a cantá-lo. Mas, porque vou começar a preparar outro disco, o concerto no CCB vem encerrar este ciclo escuro do De Sombra a Sombra, embora comigo a cantar com mais distância. Aquilo que mais quero é que seja um concerto intimista e muito familiar, que as pessoas sintam que entraram em casa. Adorava encontrar um palco gigante onde as pessoas pudessem estar ali e que fosse quase em modo tertúlia. Não é a melhor sala para fazer isso, é muito grande [risos] e também por isso estou um bocadinho nervosa…

Agora que estás a trabalhar no próximo álbum, podemos esperar um trabalho mais solar?

Sim. Este lado mais solar tem mais a ver com a forma como estou a viver e a olhar para a minha vida, porque nem sequer sei se sou boa a escrever coisas levezinhas, será um desafio para este ano. O sítio mais leve não vem tanto da parte temática, mas sim da forma como estou a olhar para a vida. Estou realmente mais feliz e mais leve. Estou a preparar este disco com calma, não quero sentir pressão, acho que não faz sentido. Quero ter a certeza de que aquilo que estou a contar é aquilo que quero contar. E parece-me que o Algo mais já é uma boa iniciação para o que aí vem.

 

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Na galeria principal do Gabinete Curiosidades Karnart (GCK), pouco mais de uma dezena de pequenas cabines individuais em círculo cercam o camarim de Bianca, uma dançarina de strip tease do Quartier Pigalle acabada de ultrapassar os 50. Quando cada espectador se instala na sua cabine, já Bianca está em frente ao espelho, vertendo lágrimas: os novos donos do Love Supreme, o peep show onde trabalha desde os 18 anos, acabam de a despedir – “esta adoração estúpida pela juventude, eles queriam era miúdas novas. Aliás, parece que neste negócio atinges o auge entre os 18 e os 25 anos, depois é tarde demais, dizem eles”, nota a dado momento Bianca.

Antes de abandonar definitivamente o lugar que roubou nome ao mais mítico álbum de John Coltrane – e que nem as mais jovens dançarinas nem os novos donos eslavos sabem quem é (“Não conhecemos o John Coltrane, estamos a cagar-nos para esse gajo, e se nós não conhecemos, os outros também não conhecem!”, cita-os Bianca) -, a dançarina despe-se uma última vez. Contudo, agora já não é o corpo, considerado noutro tempo “objeto de desejo”, mas a própria identidade e a memória que são postas a nu, a par do olhar pessoal sobre o mundo da noite, que mudou numa cidade também ela distante daquela que outrora terá sido.

“É muito interessante nesta peça o modo como o lugar da mulher na sociedade patriarcal é abordado, desde o objeto de desejo sexual ao eventual potencial maternal”, sublinha Andreia Bento que, além de dar corpo e alma a Bianca, assina com Nuno Gonçalo Rodrigues a encenação deste texto escrito em 2018 pelo dramaturgo francês Xavier Durringer.

Para Andreia Bento, a identificação com a protagonista de A Love Supreme foi imediatamente reforçada por partilhar com a personagem a mesma idade. “A Bianca é vítima desta ideia de que as mulheres de uma determinada idade se tornam invisíveis e descartáveis, que deixam de ser válidas”, aponta.

Para além desse olhar sobre o envelhecimento da mulher, A Love Supreme aborda questões culturais e sociais a partir das histórias e das referências culturais que vão sendo partilhadas. Com uma grande paixão pela música – com os Joy Divison e os Clash à cabeça, ao lado (claro) de Coltrane – e pelo cinema, Bianca usa a iconografia que capta através de uma cinefilia esclarecida para a sua arte – são incontáveis as menções a filmes como O importante é amar, Uma mulher sob influência e Paris, Texas, e às suas estrelas: Romy Schneider, Gena Rowlands e Nastassja Kinski.

“Independentemente das experiências de vida da personagem serem muito diferentes das minhas, a peça fala de um mundo que, de certo modo, também foi o meu. Há a memória algo glamorosa da noite de Pigalle de que ela fala e faz lembrar o Bairro Alto de quando eu era nova, com as noites do Frágil”, refere a atriz e encenadora.

“Um tour de force da Andreia”

A peça A Love Supreme chegou às mãos de Andreia Bento através da editora francesa de textos de teatro independente Éditions Théâtrales. “Por saberem dos nossos Livrinhos de Teatro [coleção de textos dramatúrgicos editados pelos Artistas Unidos, atualmente com a chancela da SNOB], enviaram-nos uma lista com peças de alguns autores franceses para saber se tínhamos interesse em publicar. Uma das peças era esta, do Xavier Durringer, de quem encenámos em 2001, ainda n’ A Capital, Bal-Trap”, lembra.

“Ao ler a sinopse, que referia qualquer coisa como Bianca, bailarina de peep show de 50 anos, despedida por não ser já considerada atraente, rentável…, disse para mim mesma ‘quero ler isto'”. Na altura, Andreia tinha completado 49 anos e quando acabou de ler a peça, confessa, “estava apaixonada pela personagem e senti que tinha de a fazer.”

Interpretar Bianca começou por comportar, desde logo, um primeiro desafio para a atriz: “Esta proximidade muito grande com o público, esta necessidade de o fazer no limite, com um elevado grau de exposição, é algo que nunca tinha experienciado na minha carreira. Acho que aos 20 anos era incapaz de fazer algo deste género, aos 30 não teria coragem para o fazer de todo, mas agora, aos 50 anos, sinto-me no melhor momento, mais consciente de mim mesma, a passar pela fase mais plena e segura da minha vida.”

Ao mesmo tempo, este é o primeiro monólogo de Andreia Bento, e logo com “um texto muito longo e exigente, tanto do ponto de vista emocional como físico”. “Para estar uma hora e meia sozinha em cena, iria precisar de quem me ajudasse criativamente na ideia do espetáculo” – e assim a atriz estendeu o desafio a Nuno Gonçalo Rodrigues, com quem havia encenado, em 2023, a peça de Frances Poet Adam.

“Eu e a Andreia somos muito cúmplices, mesmo quando não concordamos ou temos visões um bocadinho diferentes das coisas”, aponta Nuno Gonçalo Rodrigues. Sobre A Love Supreme, o também ator faz suas as palavras do autor da peça: “é quase como se fosse uma improvisação de jazz para uma atriz”. Por isso, o seu trabalho com Andreia passou por “guiar um bocadinho” a atriz “na forma como os objetos e o som se podem tornar gatilhos para a memória. A escrita do Durranger é muito real, muito crua e orgânica, o que convida a uma série de flutuações do discurso e mudanças súbitas de ambiente”, atenta.

Voltando à imagem da improvisação de jazz, Andreia acredita que, inevitavelmente, cada récita será sempre diferente, como “um caminho em construção”. Nuno crê que o grau de exigência de A Love Supreme é “um verdadeiro tour de force para a Andreia”, mas ao qual, dizemos nós, a atriz corresponde desafiando-se, minuto a minuto, neste peep show que os Artistas Unidos levam ao GCK até 22 de março.

[este artigo foi atualizado na data de término da temporada]

Na sua segunda colaboração com o dramaturgo e encenador Pedro Penim, depois de em 2021 ter integrado o elenco de Pais & Filhos, Stela assume o papel da protagonista em A Farsa de Inês Pereira. Esta produção do Teatro Nacional D. Maria II, na estrada desde outubro de 2023, oferece uma visão contemporânea da peça vicentina escrita em 1523, transformando Inês Pereira numa “adolescente bastante raivosa ou, como se diz no texto, numa baddie“. Um desafio acrescido para Stela – “eu não sou nada assim”, pelo que “tive de me inspirar noutras pessoas para torná-la minha e conseguir interpretá-la”. À construção desta Inês Pereira punk e algo destrutiva, Stela debateu-se ainda com “um texto muito palavroso e em verso”, o que representou “um desafio teatral” acrescido para a intérprete. A partir de 12 de fevereiro, este “olhar cáustico sobre alguns alicerces da sociedade contemporânea, como o trabalho, a sexualidade e a célula familiar”, chega a Lisboa, ao Teatro Variedades, e em cena, ao lado de Stela, vão estar, entre outros, Rita Blanco e Hugo van der Ding.

Intimidades em fuga. Em torno de Nan Goldin

MAC/CCB

Até 31 de agosto

A partir da obra da fotógrafa norte-americana de origem judaíca Nan Goldin, o MAC/CCB, em Belém, apresenta aquela que é uma das exposições do ano em Lisboa. Goldin destacou-se pelo seu trabalho em torno da intimidade, sublinhando em parte considerável do seu trabalho os corpos LGBT e o drama do HIV. A mostra parte de The Ballad of Sexual Dependency e reúne outras 65 peças de 36 artistas diferentes, num diálogo que recorre à obra de Goldin para gerar outras fugas e explorar temas variados ligados à intimidade, com enfase no trabalho de artistas femininas que desafiaram normas patriarcais. Segundo Stela, “é importantíssimo ver a obra de Goldin e conhecê-la pela importância que tem na arte e na fotografia.”

Isto não é uma aula – referências LGBT na literatura portuguesa

Casa do Comum

5 de fevereiro, às 19h

Segunda conversa de um ciclo de 11 que a Casa do Comum, no Bairro Alto, promove com a Causas Comuns, estrutura dirigida pela atriz Cristina Carvalhal, e a Livraria Aberta. O mote é dado pela leitura de um ou mais textos da literatura portuguesa, escritos entre o século XIX e a atualidade, que, sublinham os organizadores, “estava mesmo a pedir uma releitura queer“. A conversa é dinamizada por Paulo Brás, e para além da pertinência desta iniciativa, Stela destaca a Casa do Comum como um espaço que vale sempre a pena visitar por ser “um sítio muito dinâmico, onde há sempre coisas novas a acontecerem.”

Festa CURVS#12

Planeta Manas (Prior Velho)

8 de fevereiro, a partir das OOh

Às portas de Lisboa, no Prior Velho, surgiu em 2021 um espaço cultural colaborativo entre a Associação Cultural Mina e a Rádio Quântica. “Frequento bastante o Planeta Manas pela sua relevância cultural, sobretudo pelo foco na música eletrónica, e por ser ao mesmo tempo um espaço de resistência queer“, explica Stela. Pelo seu caráter inclusivo, tornou-se “um dos maiores safe space de Lisboa para pessoas queer saírem à noite”. No próximo sábado, noite dentro, acontece a celebração de “dois anos de resistência e abundância” com a CURVS#12, ao som de GAYANCE e DJ Caring. “É uma rave, uma festa de tecno e underground, onde as pessoas queer podem expressar de uma forma mais efetiva e criativa as suas identidades.”

poros

Malva

Disponível em Spotify, Apple Music e outras plataformas

Carolina Viana, mais conhecida por Malva, música e compositora natural de Viana do Castelo, tem novo disco. O sucessor de vens ou ficas chama-se poros e é já a banda sonora de Stela por estes dias. “Para além de minha amiga, a Carolina é um talento que escreve de uma forma muito profunda e poética. Este álbum, saído há poucos dias, é muito bonito e tem uma canção, manada, escrita durante uma residência de duas semanas que fizemos na minha aldeia natal, Miranda, em Arcos de Valdevez, e que deu origem a um espetáculo que lá apresentámos”, conta. poros é o segundo registo de Malva e conta com participações especiais de Mimi Froes, Miguel Marôco, Luís Duarte Moreira, Bia Maria e Francisco Fontes.

Um disco e espetáculos em vários palcos do país, sempre acompanhados de conversas com especialistas. Como surgiu este Viva la Muerte!?

Pensámos fazer o disco depois dos seis espetáculos se terem realizado. Só a seguir aos concertos entraríamos em estúdio para gravar os temas, mas os espetáculos, que eram para se estrear em setembro do ano passado, tiveram de ser adiados, devido a um acidente que tive no mar e que implicou uma intervenção cirúrgica e um longo período de imobilidade e de recuperação. Esse facto criou-nos um vazio, por isso, decidimos mudar os planos. Já que tínhamos um interregno sem nada para fazer, fomos gravar o disco. Os temas estavam todos feitos, portanto, os músicos entraram em estúdio em setembro e gravaram tudo sem mim. Só fui lá depois, ainda meio combalido, fazer as vozes. Foi assim que o disco foi gravado e saiu agora.

Viva la Muerte! fala-nos de fascismo. Porque escolheram este tema neste aniversário da banda?

No início de 2023, fomos convidados pelo Theatro Circo de Braga para fazermos um espetáculo comemorativo dos nossos 40 anos. Fomos apanhados um bocado de surpresa, não é nossa prática andar a olhar para o passado, gostamos mais de olhar para o futuro. Quando demos a resposta, já levávamos esta proposta: fazer um espetáculo de palco que, em vez de ser uma retrospetiva dos nossos 40 anos, apontasse para o futuro, aproveitando o facto de serem os 50 anos do 25 de Abril. Sentíamos que era urgente falar de uma temática que começa a ser perigosa, não só em Portugal, mas em todo o mundo democrático, que é esta ameaça latente da extrema direita e do regresso do fascismo, seja qual for a aceção que queiramos atribuir ao termo. Quisemos olhar para o lado ideológico do fascismo, fazer-lhe uma espécie de psicanálise do que são as suas traves mestras, do que é esta pulsão de morte que lhe está inerente, que é a sua principal matriz ideológica. E queríamos que essa interpretação deste perigo iminente do fascismo tivesse um lado mais sério, mais sapiente, mais científico, chamemos-lhe assim. Desde logo, propusemos que houvesse, paralelamente a este espetáculo de palco, uma conferência com especialistas, com historiadores que soubessem do que estavam a falar e que nos ajudassem a compreender e a pensar este fenómeno do ressurgimento do fascismo e das ideias fascistas.

Musicalmente, isso levou-vos para uma sonoridade que evoca o 25 de Abril.

A ideia de fazer um espetáculo sobre o tema do fascismo iria permitir que fizéssemos coisas novas além daquelas que estamos habituados a fazer. Porque nos mandava para algo que tinha a ver com a música portuguesa de intervenção pré-25 de Abril e logo a seguir ao 25 de Abril, iríamos lá buscar referências, nomeadamente ao José Mário Branco: referências melódicas, harmónicas, vocais… permitiria que usássemos um coro masculino, que era uma espécie de piscar de olho ao Grândola, Vila Morena. Também nos permitia explorar novos caminhos em termos estritamente musicais: a ideia era misturar essas referências de música de intervenção com a nossa matriz, mais rock e experimental.

Então, partiram primeiro para a música e só depois para as letras?

Há 40 anos, partíamos das letras para as músicas, mas desde finais dos anos 90 que estamos a trabalhar essencialmente – não quer dizer que não haja exceções – a partir das músicas para as letras. A mim, autor das letras, ajuda bastante ter já muitas restrições, porque a página em branco é demasiada liberdade. Perco-me um bocado, assim estou mais focado em termos de métrica e de rima. Há uma série de condicionantes que me focam mais e que me ajudam bastante a escrever.

Criar músicas acaba, de alguma forma, por ajudar também a enfrentar a realidade, nomeadamente esta do ressurgimento do fascismo?

Alivia-me eticamente sentir que contribuo para defender a democracia, não é? Acho que é um dever moral de qualquer cidadão amante da liberdade fazê-lo, ainda mais um artista que o pode fazer no seu trabalho. Mas não mais do que isso.

Porque sentiram necessidade desse lado “mais sério”, como lhe chamou, e de ter paralelamente conversas sobre o tema?

Fala-se muito de fascismo, designando as coisas mais variadas e até mais comezinhas, como, por exemplo, a obrigação do uso de máscara, que ouvimos muitas vezes no tempo da pandemia, ou dizer que um superior hierárquico mais rígido é um fascista, ou que o terrorismo islâmico é fascismo… Acabamos por usar o termo indiscriminadamente. E achamos que a ameaça é tão real que a palavra não pode ser utilizada de uma forma tão leve. Temos de saber do que estamos a falar. Apesar de nas letras das músicas ter uma liberdade artística, fui estudar afincadamente, fartei-me de ler livros sobre o que é o fascismo, sobre as suas matrizes ideológicas. O que me interessava mais era perceber porque é que hoje essas ideias velhas de cem anos estão a ter tanto eco e perceber que ideias concretamente são essas. Sabendo quais são as características ideológicas do fascismo, podemos saber sobre o que estamos a falar e quais são os perigos que isto traz, porque estas ideias têm consequências.

Nessas leituras chegou a algumas conclusões?

Sim, cheguei. Aliás, as conclusões estão espelhadas nas músicas, de alguma forma. Com alguma liberdade artística, como é evidente, porque estamos a falar de criação artística. Mas o cerne está lá. A primeira conversa já aconteceu, em Braga, e fiquei contente porque todos os oradores foram buscar excertos como exemplificativos de uma boa síntese do que são as ideias fascistas ou do que é a trave mestra das ideias fascistas. Deus Pátria Autoridade é o tema inicial do espetáculo e também do disco, e põe logo em cima da mesa o que é o cerne do fascismo.

Em Viva la Muerte!, há alguma réstia de esperança?

Viva la Muerte!, que dá nome ao espetáculo e ao disco, é o tema final, que sai com alguma esperança, sim. Há uma espécie de grito mudo que se ergue ali e que diz “não”. A esperança somos nós. Nós é que podemos dizer “não” a isto. Os fascismos sempre chegaram ao poder através de eleições – aconteceu assim há cem anos e está a acontecer assim agora. São todos democráticos, só que depois, quando se instalam no poder, começam a ilegalizar, a limpar, a alterar a Constituição, a mudar o regime, a criar o Estado Novo, a nova ordem… Na verdade, até falam disso de uma forma encapotada, ouvimos o Chega dizer que é contra o sistema, não é? Nós é que interpretamos aquilo de uma forma ligeira. Portanto, há esperança, sim, mas a esperança somos nós.

©Adriano Ferreira Borges

Não sendo os Mão Morta uma banda que gosta de olhar para trás, acabaram por fazer algum balanço nesta altura de aniversário ou nem por isso?

Não mesmo, verdadeiramente olhamos para a frente. Se fizéssemos um balanço, acho que ia ser positivo, mas isso seria um bocadinho andarmos a afagar o ego e não é isso que nos move. Gostamos de música, de fazer música, de experimentar música e de aprender música e também de fazer coisas novas. Não é que nunca tenhamos usado coros, por exemplo, mas nestas músicas utilizamos o coro como elemento central da composição e de uma forma que nos obriga a trabalhar de outras maneiras em termos melódicos, vocais, harmónicos, etc… Mesmo em termos de escrita, usamos o coro de uma forma muito mais abrangente. Tanto o pensamos como uma espécie de coro grego, como o usamos como uma espécie de coro operático, à Kurt Weill. Há uma data de experiências que vamos fazendo e é isso que nos dá prazer. Trabalhamos na música porque pura e simplesmente gostamos. Não é o nosso ganha-pão, não é a nossa sobrevivência. Portanto, temos essa liberdade absoluta de sermos apenas guiados pelo nosso anseio, pela nossa vontade de descoberta, de fazer coisas que não fizemos ainda. Agora, juntámos uma necessidade profunda de nos manifestarmos politicamente, de uma forma cidadã, relativamente a este perigo que sentimos premente do regresso do fascismo, com uma necessidade de nos manifestarmos musicalmente, de fazer aquilo de que mais gostamos, que é descobrir. Este disco e este espetáculo são a junção dessas duas facetas.

Tem sido esse lado do prazer e essa forma de fazer música, quase como um hobby, que vos tem dado longevidade?

É um dos motivos, sim: o facto de não termos uma dependência física e económica relativamente à música. Se estivermos fartos da música, vamos embora. Mas se não estivermos, continuamos. E, não estando, o que gostamos de fazer é descobrir, não há necessidade de andar a repetir uma fórmula de êxito, não é isso que nos move. É o prazer puro e o prazer puro não cansa, acho.

Imaginavam, há 40 anos, quando começaram quase sem saber música nem saber cantar, que aqui estivessem hoje?

Nem nos piores pesadelos! Começámos a banda para irmos passar umas férias a Berlim, coisa que nunca realizámos até hoje. E fomos aprendendo. Foi essa necessidade de aprender também que nos guiou o caminho e que fez com que, nas encruzilhadas, direcionássemos os nossos passos para um lado ou para o outro. A banda, que começou de uma forma incipiente e sem saber ler nem escrever, hoje tem dos melhores músicos que existem no panorama nacional. Sem falsa modéstia, até porque não sou músico, portanto, estou à vontade para dizer isto.

Há saudades dos tempos mais loucos daqueles concertos míticos no Theatro Circo ou no Rock Rendez-Vous?

Faz parte do nosso crescimento e da nossa aprendizagem, mas não temos saudades do passado. Só não me importava nada de ser o que sou hoje e ter fisicamente menos 40 anos, a idade começa a pesar…

Mas isso não há de impedir um concerto cheio de energia na Culturgest.

Este é um espetáculo que não pede tanta energia, mas musicalmente é muito enérgico, sim. E tem muita força, penso eu.

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