António Mega Ferreira

Mais que Mil Imagens

“Uma imagem vale mais que mil palavras” é uma expressão popular de autoria do filósofo chinês Confúcio, utilizada para transmitir a ideia do poder da comunicação através das imagens. Contudo, para um escritor a emoção estética visual provoca frequentemente o desejo da escrita. A presente obra decorre, justamente, da vontade de dizer por palavras as razões pelas quais certas imagens foram tão importantes para o seu autor: António Mega Ferreira. É, justamente, nas suas palavras, um livro que resulta “de impulsos literários desencadeados por estímulos visuais”. O escritor submete ao seu escrutínio exigente, entre outras, uma pintura de Jan van Eyck, de Rafael de Fragonard ou de Picasso, uma fotografia de Edward Weston ou de Cindy Sherman, uma obra cinematográfica de Bergman ou uma peça de arquitectura de Oscar Niemeyer. A todas elas traz novas formas de percepção e de análise, numa valorosa tentativa de “transpor o abismo entre o que o criador diz e o que o espectador vê.”

Sextante

As Mil e uma Noites

2.º Volume

A labiríntica narração de Xerazade tem seduzido gerações de leitores conduzidos por um mundo lendário, mágico e alegórico, povoado de reis, califas, tapetes voadores, misteriosas princesas, enganos, e trágicos amores, em que exotismo e sensualidade se confundem. Porém, As Mil e uma Noites, é, simultaneamente, uma obra que faz parte do imaginário popular e uma das mais desconhecidas da literatura universal. As suas histórias, as mais antigas remontam ao século XIV, foram sucessivamente alteradas, aumentadas ou encurtadas e, até, inventadas por tradutores menos escrupulosos. As traduções portuguesas d’As Mil e uma Noites, começaram a circular no início do século XIX com base na tradução francesa de Antoine Galland, cheia de erros, de adaptações ao gosto europeu e, sobretudo, de acrescentos de histórias que dela nunca fizeram parte. Pela primeira vez em Portugal, Hugo Maia traduz este conjunto de textos a partir do árabe, com a preocupação de seguir o mais literalmente possível os originais. Eis, finalmente, as histórias de maravilhar de Xerazade reconstituídas com total autenticidade e esplendor.

E-Primatur

Gustave Le Bon

Psicologia das Multidões

“A alma de uma raça é constituída pelo conjunto de caracteres comuns que a hereditariedade imprime a todos os indivíduos dessa raça. Sempre que um certo número desses indivíduos se encontram reunidos em multidão para agirem, a observação demonstra que do próprio facto da sua aproximação resultam determinados caracteres psíquicos novos, que se sobrepõem aos caracteres da raça e, por vezes, deles profundamente diferem”. O presente ensaio de Gustave Le Bon sobre as funções que as multidões organizadas têm desempenhado na vida dos povos foi, na sua época, desprezado pela Academia. Le Bon incorporava Darwin e Haeckel nos seus conceitos de hereditariedade e da natureza humana e reflectia sobre o ambientalismo ou sobre o ensino igualitário. Exerceu, porém, uma reconhecida influência em personalidades tão distintas como Freud, Hitler, Ortega Y Gasset, Lenine ou Roosevelt. Num mundo em plena globalização este ensaio continua a ser uma das mais compreensivas análises sobre como os seres humanos se comportam em sociedade e em grupo.

Bookbuilders

Peter Handke

Poema à Duração

O filósofo Henry Bergson, opôs-se ao positivismo e ao materialismo desenvolvendo uma análise crítica do conhecimento fundamentada nos conceitos de memória, duração e intuição. Ao adoptar a biologia, a fisiologia e a psicologia como bases do seu pensamento influenciou várias áreas da criação artística como o cinema e a literatura (Marcel Proust incluiu na sua obra Em Busca do Tempo Perdido conceções de Bergson sobre a memória). Também Peter Handke, Prémio Nobel de Literatura 2019, se baseou em Bergson, neste caso no conceito de duração, para compor este extenso e belíssimo poema, longe do estilo provocatório das suas obras mais icónicas. Para Handke, a duração “exige a poesia” (“O impulso da duração / já começa por si a entoar um poema”). Neste “poema de amor não carnal”, evoca o tempo como sensação de continuidade, os lugares que permitem sentir a duração e a comunhão consigo próprio que ela representa. Define a duração como “o mais fugidio de todos os sentimentos”, “um brando acorde feito de silêncio, / que leva à união e à perfeita sintonia de todas as dissonâncias”.

Assírio & Alvim


Italo Calvino

Palomar

Último livro publicado em vida por Italo Calvino, Palomar é uma narrativa fascinante sobre a vertigem do homem diante dos implacáveis mistérios do universo. Considerado o testamento literário do grande escritor italiano nascido em Cuba, nos arredores de Havana em 1923, conduz o leitor através de um inquérito de resultados surpreendentes: o senhor Palomar é sem dúvida um alter-ego autor, mas não só. São todos os seus leitores. Será possível encontrarmos um sentido nas coisas, no mundo à nossa volta? E dentro de nós próprios? O senhor Palomar está muito longe de ter alguma certeza quanto a tudo isso. Todavia, continua à procura. Homem excêntrico em busca de conhecimento, visionário num mundo sublime e ridículo, Palomar é um observador nato. «Só depois de ter conhecido a superfície das coisas», acredita ele, «nos podemos aventurar a procurar o que está por baixo.» Seja contemplando um seio nu, uma loja de queijos em Paris, a barriga de uma osga ou os céus de Roma invadidos por estorninhos, o senhor Palomar oferece-nos uma visão do mundo familiar, mas fragmentada pela perceção individual.

Dom Quixote

Júlio Dinis

Uma Família Inglesa

Revelado um ano antes em folhetins, no Jornal do Porto, o romance Uma Família Inglesa seria publicado em volume em 1868, afirmando a singularidade de Júlio Dinis na literatura portuguesa. Os dias de Carlos Whitestone, jovem herdeiro de um lucrativo negócio de exportações, são passados em pleno devaneio boémio nas ruas, nos cafés e na noite da cidade do Porto. Por alturas do Carnaval, num baile de máscaras, Carlos apaixona-se por uma rapariga belíssima, cuja identidade desconhece, mas que irá descobrir tratar-se de Cecília, filha do modesto e obediente guarda-livros que trabalha para o seu pai. É a história deste casal aquela que se narra em Uma Família Inglesa: a força do seu encontro e a mudança a que ele os obrigará, denunciando os dois grandes temas da obra – a família e o trabalho. A reedição deste belo romance vem possibilitar o acesso de novos leitores à obra de um dos escritores determinantes na literatura portuguesa do século XIX.

Livros do Brasil

Rémi Courgeon

Endireita-te

Toda a sua vida, Adjoa levou à cabeça baldes, milho, gasolina, cabaças, desgostos, feijão, bananas, segredos difíceis de guardar… sempre de cabeça erguida e dentes cerrados, tal como lhe ensinaram. Até porque onde Adjoa vive, em Djougou, para que uma menina cresça, põe-lhe coisas na cabeça. De um jeito poético e inusitado, através de belíssimas imagens repletas de cor local, este livro singular mostra como se podem transformar objetos de dor em atos de amor. Rémi Courgeon é um autor de literatura para a infância, ilustrador e pintor francês. Realizou, igualmente, uma série de cadernos de viagem e reportagens desenhada: sobre os Dogons no Mali em 2002 para a revista Geo, sobre a sida no Quénia para os Médicos sem fronteiras em 2006 e sobre a reconstrução após o sismo de 2010 no Haiti para os médicos do Mundo. Realistou várias exposições de pintura nos Estados Unidos da América e em França.

Orfeu Negro

Vieste para Portugal com cinco anos. Que recordações tens do Irão?

Tenho recordações da minha casa, da minha família. Para a minha mãe, que é uma pessoa muito mais nostálgica do que eu, sair do Irão foi uma experiência difícil. Eu construí a minha vida aqui, a minha mãe tinha 40 anos quando saiu do Irão. Se vir um filme do Kiarostami comove-se muito… Tenho um apetite grande por todas as coisas de lá que acho bonitas, mas não tenho uma natureza nostálgica. Tendo havido aquela rutura aos 5 anos, acho que é natural que tenha ficado mais ‘desapegado’ do que eles.

Nunca mais lá voltaste?

Não. Estou muito grato aos meus pais por terem sempre falado farsi comigo em casa e por me terem mostrado todas as coisas bonitas do Irão, mas o Irão atual não corresponde às minhas recordações de infância. Mas tenho esperança.

Estudaste Direito, trabalhaste em fotografia, foste crítico de cinema e só por volta dos 30 anos te dedicaste à música. Porquê nessa altura?

Foi uma crise de meia idade [risos]. Sempre tive muito amor pela música. Os meus pais ouviam muita música em casa. Talvez pelo facto de a música ser uma coisa muito séria no Irão, o equivalente a tocar guitarra portuguesa: tens que te inserir dentro de uma certa tradição, ter grande respeito pelo instrumento. É algo que passa quase de geração em geração, de pai para filho, mestre para discípulo… Envolvi-me com a música não por achar que tinha particular vocação, mas sim como fuga às outras opções. Não queria assim tanto ser advogado. Em vez de seguir algo pré-formatado para mim, tentei encontrar um sítio onde fosse mais ‘eu’. Daí a música.

O Leonard Cohen é a tua grande inspiração…

O Cohen é provavelmente o grande culpado de tudo isto, foi quem me desviou do caminho mais óbvio. Foi uma revelação para mim. A certa altura da minha vida, sentava-me a ler as letras. Na minha cabeça aquilo era bíblico. Olhando para trás, acho que foi nessa altura que se deu o ‘click’.

Não te imaginas a fazer outra coisa, portanto…

Acho que fazer canções é um fim em si mesmo. Quando estou em casa e tenho um esboço para uma canção, o meu dia está justificado. Consigo dormir melhor porque sinto que estou quase a tornar-me um músico. Nesses momentos, sinto que o dia valeu a pena. Não me vejo a fazer outra coisa, não consigo imaginar uma atividade que me diga tanto quanto isto. Queria muito e continuo a querer muito ser músico. Há um certo ‘síndroma de impostor’ quando se começa tarde e quando não é vocacional. De quando vais para a música em fuga e não por chamamento.

Em 2005, a revista francesa Les Inrockuptibles considerou-te um dos melhores projetos musicais da Europa. Que impacto é que isso teve em ti?

Em 2005 gravei uma maquete e enviei para essa revista, que eu lia e em quem confiava. Lia as críticas, ouvia a música e tendencialmente gostava. A revista elogiou a minha música e eu sempre tinha acreditado na curadoria deles. Pensei que, então, se calhar a minha música tinha valor… Deu-me confiança no início. Às tantas deixas de olhar para fora à procura de aprovação, começas a procurar os teus próprios filões e a persegui-los. Abres uma porta que achas que pode ser uma canção e se alguém disser que não é por ali, tu dizes que sim, é por ali.

Escrever canções é um processo catártico e demasiado pessoal?

Às vezes estou a escrever e penso que estou a contar a minha história toda. Tenho algumas reticências quando estou nesse processo, mas estou a tentar tirar coisas cá para fora, a tentar ser honesto, porque a canção tem de sobreviver à experiência que a leva a ser escrita, tem de ganhar novos significados. Idealmente, quero escrever canções que possa cantar daqui a muito tempo, quero que tenham vitalidade. Isso obriga a algum despojamento. Depois de estar cá fora já não há nada a fazer. Se for útil a alguém, magnífico!

“A canção tem de sobreviver à experiência que a leva a ser escrita, tem de ganhar novos significados”

 

O que te inspira?

A coisa mais natural para mim é cantar. Escrevo para ter o que cantar. Quando se está a cantar é se uma espécie de viúvo, ou de órfão. Não se é pai nem filho de ninguém. Está-se sozinho. O trabalho de escrita é um trabalho evocativo. Há um grande escritor de canções que dá o seguinte conselho: “escreve o título da canção e ficas com uma canção por escrever”. Eu dou o título no final. Procuro descobrir o que estou a escrever à medida que o vou fazendo, tentando revelar o que está dentro de mim. É mais terapia do que outra coisa [risos]…

Já te aconteceu olhar para uma canção mais antiga e não te reveres nela?

Quando sabemos o que as coisas querem dizer, perdemos o interesse. Enquanto houver coisas por descobrir, enquanto houver um lado obscuro, elas continuam a ser importantes, porque podem ser surpreendentes e ter um desfecho novo. Quando desvendas o que o Leonard Cohen quer dizer, deixas de o ouvir. No caso dele, por mais que se ouça, é sempre misterioso. Há uma letra dele de uma canção chamada Tower of Song, que começa assim:“Well, my friends are gone and my hair is grey, I ache in the places where I used to play”. Sempre adorei essa música. Um dia, na cidade onde cresci, em Setúbal, estava a passar na escola secundária onde andei, olhei para os miúdos e senti-me tão distante daquela realidade… Essa música fez-me todo o sentido naquele momento!

O que sentes quando alguém diz que a tua música lhe mudou a vida?

Esse é o maior sucesso que se pode ter. Há dias estava a caminhar no Jardim da Estrela e reparei num casal que olhava muito para mim. Continuei a andar até que os dois, com 20 e poucos anos, meteram conversa comigo. O rapaz disse-me que tinha mandado uma música minha à rapariga. Eu perguntei se tinha funcionado, ao que ele me respondeu que ela agora era namorada dele. Noutra situação, há uns anos fui tocar ao Porto e apareceu um rapaz com o meu primeiro disco que me disse: “as tuas letras ajudaram-me a fazer o luto pela morte do meu pai”. Isso é o maior sucesso, ser útil às pessoas. Tento fazer, na medida das minhas limitações, alguma cartografia, algum mapeamento. Se esse mapa for útil para alguém, então a missão está cumprida.

Tens cantado sempre em inglês. Há planos para um dia cantares em português?

Não excluo essa possibilidade. Em 2007, fiz uma versão de uma canção escrita pelo Zeca Afonso para o Adriano Correia de Oliveira, A Balada da Esperança, que fez parte do disco Adriano – Aqui e Agora (O Tributo), onde participou muita gente que admiro. Talvez um dia, sim.

Que histórias conta este novo disco, The Gambler Song?

Histórias de amor, desencontro, saudade, distância, e de alguma solidão, que é indispensável para compor. Não há comunidade sem solidão. Não há um concerto sem alguém ter estado em casa a procurar histórias.

Por que razão um coração partido produz melhores canções?

Porque a felicidade vive-se, é um fim em si mesmo. A dor é que tem de ser convertida. Não há nenhuma música boa sobre a alegria ou a felicidade [risos]. Se está tudo bem não há necessidade de fazer canções a dizer que está tudo bem… As pessoas gostam de se rever nas músicas, era o tal mapa de que falava há pouco. Isso é que traz conforto, e isso só se consegue com sofrimento.

És daquele tipo de músico que escreve compulsivamente ou precisas de desligar depois de lançar um álbum?

Não dá para parar totalmente porque depois parte-se de uma inércia muito grande. É importante ir fazendo alguma coisa. É mais do que uma coisa compulsiva, é a forma que arranjo de estar empregado e de justificar o meu dia. É um processo lento, mas quero continuar a dizer coisas.

“Fosse como fosse, eu gostava de ser lembrada”, cantam, à memória de Raquel Castro, os atores Joana Bárcia, Nuno Nunes e Rita Morais num dos momentos deste exercício de “autoficção” onde a atriz e autora encena o próprio funeral. Tudo se passa num palco de teatro, em redor de um caixão onde Raquel jaz após ter cumprido 99 anos de vida.

Nascida em 1981, Raquel preparou a sua cerimónia fúnebre ao pormenor. Durante o tempo em que decorre, e de forma não diacrónica, os cicerones percorrem o legado de uma mulher que foi atriz, da infância à morte passando pelas memórias de infância, pelas aventuras de adolescência, pela revelação do teatro, pelos amores e pela maternidade, pelas conquistas e pelas frustrações do quotidiano.

Para conceber esta “autoficção” (termo que a autora diz ser o mais adequado para caracterizar o espetáculo), Raquel Castro percorreu a sua biografia até 2020 e combinou-a com um futuro imaginado que atravessa as décadas que faltam até 2080, ano da morte. “A peça é construída como se fosse um livro de memórias, da vida de uma pessoa que sou eu mesma”, salienta a autora. “E tudo isso é biográfico, até colidir num tempo futuro, onde se cria um outro espaço de vida.”

Sem querer que o espetáculo assuma uma qualquer propensão lúgubre, Raquel Castro confessa ter-se embrenhado “naquele que foi um processo solitário e íntimo” de escrita e criação como resposta ao “medo da morte”. “Quando fui mãe pela primeira vez percecionei esse medo. Sim, hoje, tenho mais medo de morrer, por isso, este foi muitas vezes um trabalho doloroso.”

Apesar desse medo e de tudo o que significa partir da morte (mesmo que fictícia) para olhar a vida, A Morte de Raquel é um espetáculo festivo, uma celebração do tempo, dos lugares e dos momentos de uma personagem, real ou imaginada, que, como todas, na vida e no teatro, “gostava de ser lembrada.”

Em cena, até 11 de março.

Assentes numa plataforma que forma um círculo giratório, aparentemente suspensos como se desafiassem a gravidade, estão Romeu, Julieta, Mercúcio, Teobaldo e Benvólio, as cinco personagens que na tragédia Romeu e Julieta, de William Shakespeare, encontram a morte.

Numa aparente inércia, que se parece situar “entre a queda e a ascese, entre a vida e a morte, entre a terra e o céu”, o encenador John Romão encontrou a metáfora para os colocar no “apogeu da velocidade”, à luz das teses do pensador francês Paul Virilio. Como se o lugar destes corpos refletisse “a tendência de caminhar cada vez mais rápido, caraterística dos nossos dias, tanto que, à distância, a aceleração do tempo e do corpo dá a sensação de não se sair do mesmo sítio.”

Neste Romeu e Julieta, as personagens “estão presentes e simultaneamente ausentes no tempo e no espaço”, como se “os corpos não tivessem lugar”. É como “se estivessem no Skype ou no WhatsUp”, estão e não estão, num qualquer lugar. Porque, sublinha Romão, nos dias de hoje, devido à tecnologia, “tornámos-nos como que omnipresentes, à semelhança dos deuses.”

Toda esta lógica incorpórea e à prova do tempo e do espaço estende-se também à ausência de toque entre as personagens nucleares. Como conceber um Romeu e Julieta em que o par arquétipo do amor romântico nem um beijo troca? Romão justifica como algo sintomático deste tempo em que “muitas das nossas relações, até amorosas, se consolidam à distância, sem contacto físico.”

©Filipe Ferreira

As palavras de Shakespeare surgem assim como um dispositivo “para rescrever os corpos”, ou seja, nesta visão de Romeu e Julieta, a reflexão sobre o lugar do corpo pode ser entendida, por exemplo, no percurso de Romeu, “o corpo que entra em lugares aos quais não pertence, como o baile dos Capuletos ou o exílio em Mantua”, e isso só pode ser superado com “um não-lugar, que é a morte, aqui entendido como onde se concretizam todas as utopias, até a do amor eterno.”

Entendendo a peça de Shakespeare como “uma história de pulsão e transgressão, onde tudo, alimentado sempre pelo desejo, se passa muito rapidamente em direção à morte”, John Romão apresenta este olhar pouco convencional sobre o clássico, pretendendo questionar-nos sobre “a solidão e o isolamento” num tempo onde parece já não haver lugar para o amor romântico.

Para descobrir, no Teatro Nacional D. Maria, de 14 de fevereiro a 1 de março.

Qualquer coisa de muito grave aconteceu ao jovem rapaz deitado, imobilizado pelo gesso que o prende à cama, num sótão da casa do avô. Um amigo visita-o e tenta desvendar o mistério, mas o jovem parece insondável, perdido. Nem a chegada de uma amiga com quem terá tido uma relação amorosa o anima. Pelo contrário, sente-se acossado. Mas, no final, o enigmático aparecimento de uma desconhecida pode revelar um sentido para a vida.

Através de diálogos curtos, do “linguajar quotidiano”, e de uma notável gestão de silêncios, “como se estas personagens comunicassem secretamente”, Cristina Carvalhal dirige a segunda peça do também ator e encenador Tiago Correia a ser distinguida com o Grande Prémio de Teatro Sociedade Portuguesa de Autores/Teatro Aberto (a primeira foi Pela Água, encenada por Tiago Torres da Silva, em 2016). Com subtileza e sensibilidade, Alma fala de quatro adolescentes (interpretados por Bernardo Lobo Faria, Bruna Quintas, Guilherme Moura e Sofia Fialho) tentando encontrar um lugar num mundo em que as redes sociais se tornaram o veículo privilegiado de conexão comunicacional, e até emocional.

“Para além da escrita muito teatral do Tiago, com quem já colaborei como ator, e que como dramaturgo, nesta peça, me lembra muito Jon Fosse, agradou-me especialmente trabalhar o universo da adolescência”, observa Cristina Carvalhal. “Ter à disposição um elenco muito jovem fez-me preparar tudo em redor com muita precisão e tentar dirigir o menos possível. Acho que a genuinidade que se sente na peça tem a ver com o cuidado que tivemos em não lapidar estes diamantes em bruto que são estes quatro atores.”

Entre o real e o onírico que se confundem ao longo de todo o espetáculo, o cenário de Ana Vaz e o vídeo de Pedro Filipe Marques sublinham a aura de secretismo que envolve as personagens, deixando que elas se revelem pacientemente nas suas frustrações e mágoas. “O que se conta e se desvenda para lá das palavras é essencial”, destaca a encenadora. E, para isso, muito contribuem as versões de Creep dos Radiohead e de When the Party’s Over de Billie Eilish, temas que dialogam diretamente com a geração que a peça retrata.

Em cena até final de março, Alma dá continuidade a um ciclo dedicado à juventude que o Teatro Aberto iniciou no ano passado com as produções de Golpada, de Dea Loher, e Doença da Juventude, de Frank Wedekind.

Deixe os seus problemas lá fora, aqui dentro a vida é bela!, dizia o apresentador do espectáculo no filme Cabaret de Bob Fosse, de 1972. Cores quentes, música alegre, figurinos extravagantes e um erotismo elegante são imagens de marca que identificamos com este tipo de espectáculo, com raízes no século XIX e expoente no período entre guerras mundiais. Burlesco é um dos ingredientes do espetáculo de variedades ou de cabaret, uma designação que deriva da palavra italiana burla (piada, brincadeira). É sinónimo de paródia, exagero, e adoptou-se como designação deste formato cénico que inclui traços de dança, comédia erótica e striptease.

Evil Eva no Maxime

 

Em Lisboa, existem hoje vários locais que oferecem este tipo de experiência e que, segundo nos diz Lady Myosótis, têm vindo a conquistar cada vez mais público. Ela foi uma das pioneiras do renascimento do Burlesco há cerca de dez anos, no então recém-transformado Cais do Sodré, quando o bar Velha Senhora e a Pensão Amor começaram a programar com regularidade shows do género. Pertence a um pequeno grupo ou família com menos de duas dezenas de membros de profissionais do Burlesco que levam a sua arte a vários espaços noturnos da cidade. Na sua maioria têm formação teatral, de dança, de circo ou de música e têm em comum a criação de um alter-ego, uma persona que mostra o seu esplendor no palco e que tem como missão deslumbrar.

Manu De La Roche no Ferroviário

 

A estética vintage é uma imagem de marca mas não é exclusiva. Fora do ambiente de cabaret, em espaços menos tradicionais, apresentam-se quadros mais contemporâneos, como o cyberburlesque, ou de pendor mais arrojadamente fetichista. E há também homens no circuito, embora em menor número.

As imagens apresentam alguns destes protagonistas e os locais onde podem ser vistos.

Miss Tea e Veronique DiVine no Cabaret d’Ourique

 

Para uma experiência de Cabaret completa, com um programa de variedades e possibilidade de jantar gourmet, o Maxime e o Beco têm shows programados para a temporada.

Vanity Redfire, produz e canta no espetáculo do Maxime

 

Fique também a saber que pode contratar estes espetáculos para ambientes privados como despedidas de solteiro/a e eventos de empresas, ou mesmo aprender a fazer em workshops para o efeito.

No Dia dos Namorados, 14 de fevereiro, às 22h30, o Clube Ferroviário apresenta uma produção da associação Lisbon Underground Burlesque, intitulada Cupid Undressed, a Burlesque Valentine’s Tale.

Nasceste no Huambo e manténs uma forte ligação às origens. Que recordações guardas dos tempos de criança?

Saí de lá muito pequeno. As memórias que tenho foram todas construídas através do que ouvia. Cresci com pessoas que se queixavam do frio e que tinham a esperança de regressar ao local de origem, que se queixavam também de uma certa frieza das pessoas. Adultos que falavam de um outro sítio, de outra realidade. De que não devíamos estar aqui e de que a qualquer momento poderíamos regressar. Estas são as minhas memórias: pessoas adultas que não se coibiam de falar desses assuntos e de política à frente das crianças. Na realidade sou um descendente daquele contexto. Em casa havia música europeia, mas também muita percussão e batuques. Cresci com isso tudo, com saudades de coisas que não conhecia. Com uma sensação de que era marginal e de que não encaixava totalmente nesta realidade.

Lisboa é uma cidade acolhedora?

Lisboa é feita de pessoas de todo o mundo, mais até de pessoas de fora do que das que cá nasceram. Fala-se muito da ideia das cidades serem novas, de Lisboa ser “a nova Berlim”. Os nacionalistas dirão que Lisboa é a “velha Lisboa” e os mais modernos que é a “nova Lisboa”. Acho tudo isso de um provincianismo com o qual não me identifico. As cidades com que me relaciono são cidades de toda a gente. O Trump é um bom exemplo de alguém que se apropria de um sítio com o qual não tem uma relação profunda. Lisboa é uma cidade muito rica em termos de construção de identidade: ela é africana antes de ser europeia, é árabe antes de ser cristã. Tem uma história muito rica que aceita todo o tipo de pessoas.

Teres nascido em Angola mas teres crescido em Portugal alguma vez te fez sentir que não pertencias a lado nenhum ou, por outro lado, deu-te referências e uma bagagem que noutras circunstâncias não terias?

Sinto que sou condicionado por isso tudo e que tenho essa herança de DNA. Quando se fala de uma Lisboa muito multicultural, a mim parece-me que ainda falta um bocado para se aceitar essa contribuição e não separar os subúrbios do centro. As pessoas devem ser mais convocadas não só para trabalhar, mas também para viver e contribuir. Temos todos a ganhar. Em vez de nos encontrarmos só no metro, encontrarmo-nos também em pistas de dança, em galerias, em musicais…

Em que altura da tua vida sentiste o apelo da música?

Acho que só por volta dos 30 anos. Sempre considerei a música demasiado sagrada, achava que não tinha o direito de me meter nisso. O meu padrasto era músico e muito bom, a minha mãe também ouvia música muito boa, havia ali uma mistura inacreditável. Por um lado isso tornou-me um consumidor atento, mas distante da parte técnica. A certa altura percebi que tinha de assumir o risco de eventualmente ser mau e de me concentrar apenas em fazer. Depois se as pessoas gostavam ou não era outra história. Para conseguir ser um animal vivo tenho que me exprimir como me apetece. E isso, muitas vezes, implica regressar aos instintos básicos, de criança. Tento fazer aquilo que me faz feliz e projetar essa felicidade em quem me segue. Acaba por ser um exercício de deixar o DNA e as circunstâncias existirem. Este trabalho que vou apresentar na Casa Independente é a sorte que tenho de, ao fim de todos estes anos, poder cruzar tudo o que fiz, tudo o que gosto, coisas que arrisquei a fazer mas também coisas que alguém fez. Devemos reconhecer o mérito do outro, não invejar, que é uma coisa muito portuguesa e que gostava que deixasse de existir. Em crianças, eu e os meus primos fazíamos apresentações de música e dança para os adultos. Percebi que fui muito feliz nessa época e sou muito feliz a ter diálogos artísticos e a apresentar as minhas ideias. Gosto de liderar mas cresço muito quando não tenho razão. Acho que a melhor maneira das coisas acontecerem é convocar pessoas com ideias diferentes.

O teu trabalho mistura sonoridades e influências. É difícil ‘casar’ referências musicais mais antigas com sonoridades mais atuais?

Se pensarmos em techno e em kuduro, são exatamente a mesma coisa. A ferramenta pode ser outra, mas é apenas uma forma diferente de fazer a mesma coisa. Há dj’s em Berlim a fazer remixes de músicas angolanas. Quando fiz o primeiro disco isso era completamente exótico e estranho, diziam que era game changing. Neste momento, para um berlinense isso é perfeitamente natural, porque já tem acesso aos discos. Portugal fez um péssimo serviço a promover a cultura das ex-colónias. Nos últimos anos Angola tem conseguido exportar-se mais porque tem uma relevância financeira muito grande, porque existe este circuito Lisboa-Luanda que torna as duas cidades familiares e indissociáveis. O que nos falta é processar e aceitar essa mistura, porque ela existe inevitavelmente.

“O meu trabalho tem sido pensar em coisas que posso apresentar que sejam não um exercício egocêntrico, mas sim um processo de partilha e comunicação”

 

Em 2019, passaste muito tempo a trabalhar neste alojamento artístico local. Como surgiu esta ideia?

No fundo, passei a minha vida inteira. A ideia de fazer este alojamento surgiu de uma aproximação à Casa Independente, que, em 2018, me convidou a fazer a passagem de ano. Gostei muito de ter vivido essa noite, de estar num prédio no meio de Lisboa (ao contrário de todos os outros que estão degradados ou inflacionados ou formalizados por alguma instituição) onde se pode fazer o que se quiser. Depois fiz uma experiência no 25 de Abril, que foi uma emissão de rádio que seguia a cronologia desse dia. As pessoas foram, dançaram ao som da rádio e apercebi-me da predisposição delas para coisas diferentes. Como artista, isso deixou-me feliz. Se eu fizer humor e obtiver um sorriso, isso é suficiente, não é preciso a pessoa rir-se à gargalhada. O princípio é provocar o sorriso, logo, essa reação é boa para mim. Estas intervenções provocam estranheza e desconforto numas pessoas – o que é bom – e noutras provocam sorrisos – o que é ainda melhor. O meu trabalho tem sido pensar em coisas que posso apresentar que sejam não um exercício egocêntrico, mas sim um processo de partilha e comunicação.

Qual é o conceito por trás deste alojamento artístico local?

Este trabalho cruza tudo o que fiz, tudo o que gosto, coisas que arrisquei a fazer mas também coisas que alguém fez. Acho que a melhor maneira das coisas acontecerem é convocar pessoas com ideias diferentes das nossas. Vou expor, ter dança, música e uma rádio normal, tudo a acontecer ao mesmo tempo. Umas coisas são minhas, outras de pessoas que admiro. Espero que as pessoas entrem e participem. Podem rebentar-me com o ego no fim, mas uma coisa não vai falhar: o de existir um espaço que não é nem um museu, nem uma discoteca, nem um bar, nem um restaurante, nem uma casa, mas que é isso tudo. O objetivo é quebrar fronteiras formais. Durante este mês haverá ainda uma Rádio Normal, com emissão para o quarteirão todo. A definição de “rádio normal” é uma rádio coreografada, repetitiva, com informação redundante, gravada, escrita, umas vezes com pouca emoção, outras vezes histérica, sem publicidade.

A residência inclui a exposição Neon Colonialismo, que inclui peças próprias e outras do espólio do Museu de Lisboa…

Dentro das minhas peças há uma grade de garrafas de água do Luso a que acrescentei a palavra ‘angolano’e que pretende pôr as pessoas a pensar; um padrão (falso) de azulejos criado para dar uma ideia do tradicional; uma peça chamada Neon Colonialismo que pretende provocar uma reação e fazer as pessoas olharem para a mesma coisa e ver que ela pode ter vários significados, e um estendal com roupa, que simboliza o facto de eu estar mesmo a viver na Casa durante esse mês (é um alojamento literal). Há ainda peças do Arquivo Histórico do Museu de Lisboa. Neste processo descobri uma coleção de mais de dez quadros relacionada com o mar, de um pintor que desconhecia, o António Costa Pinheiro. Foi-me apresentado como um autor incontornável da pintura portuguesa. Senti-me um ignorante, mas fiquei imediatamente apaixonado pelas obras dele. Fiquei muito feliz por ter acesso a estas obras e por poder mostrá-las a quem também não as conhece.

O momento musical desta residência é uma parceria com Luaty Beirão. O que podemos esperar deste encontro?

Não havendo relação familiar entre nós, o Luaty é o mais próximo que tenho de um irmão, alguém que está sempre disponível. Quando surge algum projeto em mãos, é praticamente inevitável incluí-lo. O espetáculo pretende colocar questões: qual é o momento sério? É quanto estamos a cantar, a dançar, ou quando estamos a passar o som de uma rádio? Temos textos feitos pelo Luaty, bailarinos a dançar que vão ilustrar uma história ou uma música. Há momentos em que é a cena que define tudo, outros em que a dança é predominante e outros em que é o ritmo ou as palavras.

É difícil viver da arte em Portugal. Qual é a motivação?

É inevitável, não é uma escolha. Se não houver filhos que dependam financeiramente de nós, acho que é preciso ser-se muito corajoso para não se fazer o que se tem dentro do coração. Morre-se em vida, que é uma coisa muito triste. É preciso ter coragem para ignorar tudo o que grita dentro de nós. Não consigo calar essas vozes, é impossível. A motivação é ter paz, é um exercício de sobrevivência.

André Tavares e Diogo Seixas Lopes

Arquivo Diogo Seixas Lopes

Diogo Seixas Lopes deixou-nos prematuramente em 2016, ainda na casa dos 40. Partiu antes de ver concluída a construção da Torre FPM 41, projecto do atelier Barbas Lopes, dirigido por si e por Patrícia Barbas. A amizade, a saudade e o reconhecimento intelectual estão na génese da produção deste extraordinário Arquivo, documento e documentário da produção escrita de Seixas Lopes – entre produção impressa e inéditos – com a excepção dos livros Cimêncio (Fenda 2002, com Nuno Cera) e Melancolia e Arquitectura em Aldo Rossi (Orfeu Negro, 2016). Diz André Tavares que “Seixas Lopes pensava de um modo cinematográfico.” Os seus interesses não conheciam fronteiras; toda a cultura lhe interessava: o cinema dos artistas e dos autores, a música dos punk-rockers e dos cantautores, a banda-desenhada e, claro está, a arquitetura, cada texto marcado por uma “permeabilidade disciplinar que caracterizava o seu olhar.” As mais de 800 páginas deste impressionante volume dão conta de um arquivo muito vivo. RG  

Dafne Editora

 

Maria Barreto Dávila

A Mulher dos Descobrimentos

No prefácio deste livro, escreve a historiadora Maria Barreto Dávila: “As mulheres estão normalmente ausentes do discurso historiográfico sobre a História da Expansão e dos Descobrimentos Portugueses. A única mulher presente no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa, é a rainha D. Filipa de Lencastre, aí representada por ser a mãe da Ínclita Geração. Porém, as mulheres foram agentes activos da Expansão Portuguesa. Entre elas, a que mais se destaca é sem dúvida a infanta D. Beatriz de Portugal, duquesa Viseu e de Beja, e governadora do Atlântico”. A autora traz-nos a primeira biografia de D. Beatriz, mulher dos Descobrimentos, sobretudo no que diz respeito aos avanços levados a cabo pelos portugueses nas ilhas e na costa do Atlântico. Governou entre 1470 e 1483 os arquipélagos da Madeira, dos Açores e de Cabo Verde, cabendo-lhe velar pelo crescimento económico da madeira pelo povoamento dos Açores e pelo desenvolvimento de Cabo verde. A obra acompanha as suas origens, a sua formação, a sua ascensão entre homens, o seu carácter e o seu legado.

A Esfera dos Livros

Orlando da Costa

O Signo da Ira

O Signo da Ira (1961), foi o primeiro romance do autor, galardoado com o Prémio Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa, a mais importante distinção portuguesa para obras literárias do seu tempo. O romance, reflectindo a influência neo-realista, conduz-nos pelos conflitos sociais e humanos da sociedade goesa durante o salazarismo, aprofundando e explorando as memórias da história colonial portuguesa na Índia. A acção decorre durante a II Grande Guerra, na então denominada Índia Portuguesa, e retrata a rígida estratificação traduzida pelas castas locais e a intromissão protagonizada neste sistema pelos expedicionários portugueses. Num ambiente de opressão e miséria, decorrente da prepotência das castas superiores e das agruras do clima e das condições agrícolas, surgem as inesquecíveis personagens femininas revelando uma força interior e uma atitude de revolta ausente nos homens. Este belíssimo romance é agora reeditado com prefácio de Gonçalo M. Tavares e posfácio de Rosa Maria Perez.

Caminho

T. S. Eliot

O Livro dos Gatos Práticos do Velho Gambá

Nos anos 30, T. S. Eliot escreveu, sob o pseudónimo de Old Possum, uma série de poemas sobre gatos que enviou por carta aos seus afilhados. Um poema inicial sobre o nome dos gatos e um final sobre o tratamento dos gatos abrem e fecham uma coletânea sobre o comportamento de 13 felinos: da velha Gruda, a gata doméstica, ao Bustopher Jones, o gato citadino, passando pelo Mungojerrie e o Rumpelteazer, os gatos artistas, hábeis rapinantes, Gus, o gato do teatro ou Macavity, o gato mistério. Para além de  “outros tantos e diferentes / de muitos tipos, muitas mentes” demonstrando que, afinal, “Os Gatos são iguais a nós”. A presente edição bilingue (português/inglês) de um clássico da literatura infantil do século XX, da autoria de um dos seus mais influentes poetas, Prémio Nobel de Literatura de 1948, constitui um grande acontecimento editorial. Tradução do poeta Daniel Jonas e ilustrações originais de Edward Gorey.

Assirinha

Patricia Reis

As Crianças Invisíveis

Patrícia Reis nasceu em 1970, em Lisboa. Começou a sua carreira de jornalista em 1988. Estreou-se na ficção em 2004, com Cruz das Almas. A sua novela O que nos separa dos outros por causa de um copo de whisky (2014) ganhou por unanimidade o Prémio Nacional de Literatura da Fundação Lions. Quem são as crianças invisíveis de que fala no seu mais recente romance? São as crianças vítimas de abandono, maus-tratos e sujeitas a processos de adopção a ser usada e devolvida por famílias sucessivas, representadas por M, a protagonista desta obra tocante. Esta é a sua história até chegar à idade adulta, atravessando um processo de invisibilidade, no qual a dor se confunde com a esperança de encontrar uma vida a que possa chamar sua. Construindo toda a narrativa de uma maneira muito original, sem identificar o sexo das crianças, e a partir do olhar delas, a escrita límpida, poderosa e cirúrgica de Patrícia Reis conduz-nos, neste romance avassalador, através dos sonhos, do medo e da intimidade de um conjunto de personagens que percorrem a infância e a adolescência sem pai, nem mãe, nem identidade

Dom Quixote

Mário Moura

A Força da Forma

A Força da Forma problematiza a identidade do design português e as suas múltiplas intersecções com outros formatos sociais e institucionais. Numa reflexão crítica sobre a contaminação das formas gráficas pelos regimes políticos, o mercado e a tecnologia, Mário Moura revela como o discurso do design nunca é puramente visual. Desenvolvidas a partir da exposição homónima no âmbito da Porto Design Biennale 2019, as crónicas historiográficas apresentadas traçam um percurso amplo, por vezes inesperado, desde as práticas do design no Estado Novo ao diálogo com a arquitectura e a banda desenhada. Mário Moura é crítico de design, conferencista e blogger. Lecciona actualmente História e Crítica do Design na Faculdade de Belas-Artes da Universidade do Porto, integrando também o Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade (i2ADS). Escreve regularmente para jornais, revistas e no blogue The Ressabiator. É autor do livro Design em Tempos de Crise (Braço de Ferro, 2009) e editor da revista Monumentânea (Grandes Armazéns do Design).

Orfeu Negro

Álvaro Pereira

O Grande Livro do Xadrez

Na obra-prima de 1957, O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman, um cavaleiro medieval que regressa das Cruzadas vê-se confrontado com a figura da Morte. Propõe-lhe um decisivo jogo de xadrez com duas exigências: uma trégua enquanto o jogo durar e, em caso de sua vitória, ser deixado em paz. Não foi por acaso que Bergman escolheu o xadrez, pois ele é o jogo de estratégia por excelência que só um grupo muito pequeno de pessoas consegue dominar com elevada mestria, sublinhando assim a grandeza e a nobreza do duelo em causa. As origens do jogo do xadrez perdem-se nas brumas do tempo, mas nos nossos dias é utilizado e recomendado como instrumento fundamental para desenvolvimento de capacidades de liderança estratégica e como desafio intelectual para os mais jovens desenvolverem a concentração e a literacia estratégica. O presente livro é a mais completa e abrangente abordagem ao jogo nos seus fundamentos práticos, teóricos, estratégicos e nas suas mais variadas manifestações culturais. Uma abordagem inédita ao mundo do xadrez, alternando capítulos de natureza técnica, que compõem um manual completo do jogo, com outros, que compilam a história, as lendas e episódios curiosos que ajudaram a criar a sua mística.

BookBuilders

Fale-nos da sua carreira como bailarino e do seu ingresso no Ballet Nacional da Croácia.

Após terminar o Conservatório, estive dois anos em Zurique a estudar e fui depois para Helsínquia, para o Ballet Nacional da Finlândia, onde estive dois anos e dancei alguns papéis solistas. Foi entre os meus 19, 21 anos. Depois vim então para a Croácia, o país da minha mulher, também bailarina no Ballet Nacional da Croácia. Estamos aqui há nove anos e fomos ambos promovidos a bailarinos principais.

Como apresentaria o Ballet Nacional da Croácia a alguém que nunca assistiu a qualquer dos seus espetáculos?

A companhia tem estado a crescer muito por obra do seu diretor, Leonard Jakovina. Temos um repertório bastante diversificado, com bailado clássico e com os bailados dramáticos, como o Morte em Veneza, baseado no livro de Thomas Mann, que contam uma história de forma moderna. Criámos Anna Karenina, agora Morte em Veneza, e vamos estrear Orgulho e Preconceito, baseado em Jane Austen. E fizemos ainda The Glembays, a história de uma família croata. Já fomos a vários sítios da Europa, estivemos em Budapeste com o Morte em Veneza. Agora Lisboa e depois São Petersburgo. Somos cerca de 80 elementos e, tal como em Portugal, em que a idade da reforma é muito tarde, temos pessoas que já não dançam, mas continuam ao serviço da companhia.

A programação da Ballet Nacional da Croácia é muito eclética, indo do bailado clássico à dança contemporânea. O que prefere interpretar?

Prefiro os narrativos contemporâneos, onde se tem maior liberdade de expressão, tanto no movimento como em relação à personagem. É o que mais gosto e onde me sinto mais à-vontade.

No passado Natal dançou, com grande sucesso, o papel titular no Quebra-Nozes. O que trouxe de novo um papel como este que já foi dançado milhares de vezes e pelos melhores interpretes de sempre?

No bailado clássico há certas coisas rigorosas que temos de fazer em termos de técnica. Em matéria de personagem, tentei colocar algo de meu, da minha forma de ver um príncipe, e ao mesmo tempo tentei ser gentil, porque o coreógrafo é uma pessoa muito gentil, que explora uma forma de movimento muito suave. E como também dancei com a minha mulher, foi fácil sentir-me apaixonado pela Clara.

O que gostaria de dizer sobre esta produção de Morte em Veneza, que traz a Lisboa?

É um bailado bastante especial que não consigo categorizar. Tem uma dimensão cinematográfica, que vem do uso do vídeo, e não há só dança. Tem momentos puramente visuais onde ninguém está a dançar. É um tipo de bailado que as pessoas em Portugal não estão habituadas a ver, tanto quanto sei daquilo que constitui o repertório da Companhia Nacional de Bailado. Além da versão que aqui apresentamos, onde a coreógrafa Valentina Turcu fez um trabalho esplêndido, esta história só foi coreografada uma outra vez.

Neste bailado interpreta a figura do Anjo da Morte. Quais os principais desafios que apresenta este papel?

Sou o Anjo da Morte, mas noutras partes faço o deus Eros, o que exige uma técnica de improvisação que é, digamos, mais erótica. Isso foi o mais difícil, porque não me senti à-vontade a improvisar com aquela forma de movimento. Para além disso, filmámos um vídeo em que tive de falar para a câmara e de fazer coisas com o corpo a que não estava habituado. Mas essa transformação entre personagens e a mudança de caráteres é o mais difícil.

Qual o bailado clássico que sonha interpretar?

Há o Onegin, de John Cranko, e o Don Quixote, cujo carácter da personagem me identifico e o qual me habituei a ver desde criança. Dos clássicos diria que estes dois.

E o coreógrafo contemporâneo com quem gostava de trabalhar?

Gostava muito de trabalhar com Jiří Kylián. Com o Ohad Naharin já trabalhei, mas gostaria de trabalhar mais. Akram Khan é também alguém com quem gostava de trabalhar.

O que espera deste encontro com o público português?

Nunca dancei para o público português. Estou muito ansioso e ao mesmo tempo feliz. Só quero que gostem da dança. Estou muito orgulhoso de trazer a companhia onde trabalho a Portugal, e logo com um bailado  muito bonito. Existem pessoas da minha família, e pessoas que me conhecem desde criança, que nunca me viram dançar. Saí de Portugal com 17 anos e volto agora com 30. Espero que seja um momento bonito.

Mais de 40 anos depois de Heiner Müller a ter escrito, ainda não é fácil definir um objeto tão complexo como A Máquina Hamlet. Em pouco mais de um punhado de páginas, o dramaturgo alemão conjuga uma crítica à História da Europa, ao teatro e à própria situação política do país natal, ainda dividido em dois e com regimes políticos antagónicos. Um texto, como sublinha Jorge Silva Melo que agora o leva a cena, escrito “como que entre o Maio de 68, que aconteceu 10 anos antes de Müller ter concluído a primeira versão, e a queda do muro de Berlim, uma década depois.”

Hoje, a história de A Máquina Hamleté ouvida de outra maneira”. “As ruínas da Europa agora são outras e o texto ganhou novas qualidades”, frisa Silva Melo num convite à sua redescoberta.

Clássico do teatro moderno, a peça rompe com as regras daquilo que é a convenção teatral. Aliás, Silva Melo, elenca-o entre “os textos mais estranhos da História do Teatro”, lado a lado com Os Cenci de Antonin Artaud e As Quatro Meninas de Pablo Picasso. “É tão fragmentário, tão incompreensível, que me fascinou desde o dia em que o li pela primeira vez, em Paris, na casa de um amigo meu. Depois, vi várias produções da peça, entre elas, duas, bastante distintas, do Bob Wilson.”

Para lidar com a estranheza e tornar menos críptico o contacto com o texto,  a encenação “procura que cada frase do texto tenha a capacidade de ecoar no espectador como uma onda quando estamos a olhar o mar”. Afinal, A Máquina Hamlet tem de ser digerida porque “é uma peça analítica, não romântica. A peça analítica de um cadáver, o do homem que foi Hamlet.”

O cenário são “as ruínas da história”, a agonia do “macho”, que declara, precisamente, “eu era Hamlet”, naquele que é um premonitório anúncio da sua impotência para mudar o rumo das coisas. “Esse papel de força perante a História, até ai masculinizado, caberá, segundo Müller, à mulher, mais especificamente a Electra” (“ela é a violência sem a melancolia de Hamlet”), sublinha Silva Melo, recordando o monólogo final em que Ofélia, a submissa noiva de Hamlet, assume o papel da heroína da mitologia grega e evoca liderar a revolta contra o estado do mundo. “A peça fala, portanto, da passagem do masculino para o feminino, a mulher como futuro do homem, algo que só descobri anos depois de a ter lido pela primeira vez.”

Para interpretar “o jovem Hamlet, esse herói romântico falido”, Silva Melo escolheu João Pedro Mamede, sublinhando que o ator “conjuga de modo exemplar a ferocidade e a fragilidade, a agressividade e a ternura. Há um romantismo no João Pedro que é muito próprio da imagem tradicional do Hamlet. Depois, ele é um ator da palavra, perfeito a dar o tempo do texto, sem precipitar, sem cavalgar. Foi imediatamente nele que pensei para o papel.”

O espetáculo conta ainda com interpretações de Américo Silva, André Loubet, Hugo Tourita, João Estima, José Vargas e Inês Pereira, no papel de Ofélia/Electra. A participação especial do contrabaixista João Madeira entrega “substrato ao indizível” desta sempre fascinante obra-prima da dramaturgia ocidental, em cena no Teatro da Politécnica, até 22 de fevereiro.

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