Qual é o vosso projeto para o Doclisboa?

No final do festival passado, quando assumimos a direção, terminámos o nosso discurso com a vontade “de imaginar futuros juntos”. As possibilidades de futuro nesse momento são um pouco diferentes das que agora se apresentam, dado o contexto atual em que o festival acontece e a imprevisibilidade do que aí vem. Contudo, a nossa missão e prioridades continuam a ser as mesmas: um festival que defende a pluralidade do cinema, que promove o pensamento crítico e que constantemente levanta questões sobre o mundo que o rodeia. O Doclisboa não defende apenas filmes perfeitos, queremos construir um programa com filmes que enfrentem as suas próprias fragilidades, de cineastas que repensem a sua prática para chegar às pessoas, lugares ou assuntos que nos mostram. Queremos construir o festival em constante diálogo entre o passado e o presente, utilizando a visibilidade que um formato de festival traz. Queremos também que o festival reflita sobre as potencialidades do cinema, no seu futuro e nas suas evoluções. Acima de tudo, é importante criarmos um lugar aberto, com desejo de dar a conhecer, de partilha e de crescimento.

A realidade que se vive condicionou a realização do festival? De que formas?

Esta crise afetou-nos profundamente, e durante os meses da quarentena reservámos algum tempo para nos reorganizarmos e refletirmos sobre as nossas prioridades, o que é importante para o festival, qual o seu papel e qual o caminho a seguir. Acreditamos que um festival serve também a comunidade na qual se insere, as salas, o público, os profissionais do cinema e que deve ter o respeito máximo pelos filmes que apresenta. Nesse sentido, nunca foi uma opção tornar o Doclisboa num evento totalmente online. Para nós é importante sublinhar que o cinema é uma experiência coletiva e que os festivais de cinema servem exatamente como plataforma para esse encontro. Num período em que tudo abrandou, adaptámos também o ritmo do festival e estendemos a programação ao longo de seis meses, dando assim ao público oportunidade para ver todos os filmes do festival e abrindo espaço para mais debates, atividades paralelas e outros momentos coletivos de discussão e pensamento. Na prática, mantivemos as salas habituais e adicionámos outros espaços da EGEAC onde iremos realizar algumas atividades simultâneas. O número de filmes exibido será o mesmo e manteremos a pluralidade de temas, abordagens e linguagens que sempre apresentámos. Todos os eventos relativos à indústria migraram para o formato online.

O cinema da Geórgia é homenageado com uma retrospetiva. Porquê a escolha deste país e que obras destacam?

Esta retrospetiva partiu de um desejo e de um desafio. Queríamos trabalhar cinematografias menos conhecidas em Portugal e, num encontro com o Georgian National Film Center, falaram-nos sobre o projeto monumental que têm em mãos de recuperar e restaurar filmes seminais da cinematografia georgiana. Desafiaram-nos a pensar num programa a partir desses filmes e decidimos então desenhar um mapa mais alargado do cinema deste país. A Geórgia tem uma relação bastante antiga e rica com o cinema. Mesmo antes de se tornar parte da União Soviética, o cinema georgiano já estava bem estabelecido e, nos 70 anos seguintes, prosperou com realizadores que exploraram linguagens e técnicas inovadoras. No entanto, as convulsões políticas que explodiram com o final da União Soviética, afetaram profundamente a produção de filmes. No início dos anos 2000, um conjunto de realizadores e produtores, aliado a um governo interessado em reavivar a indústria, deu um novo fôlego ao cinema georgiano. São estas mutações que acompanhamos ao longo da retrospetiva, desde os anos 20 até à atualidade, com filmes de realizadores incontornáveis como Mikhail Kalatozov, Serguei Paradjanov ou Lana Gogoberidze. E descobrindo novas cinematografias com outros mais jovens, como Mariam Khatchvani ou Salome Jashi. Vão ser 10 dias de viagem pelo cinema georgiano na Cinemateca Portuguesa, em que destacamos Magdana’s Lurja (1956), de Rezo Chkheidze, Tengiz Abuladze, um filme belíssimo sobre a inocência da infância e o sistema feudal. Ou, por exemplo, Dede (2017) de Mariam Khatchvani, sobre o conflito entre tradição e modernidade no contexto dos papéis de género.

O Trabalho está em foco nesta edição, com um ciclo que exibe mais de 20 filmes. Qual o objetivo deste programa?

O ciclo sobre as representações do Trabalho no cinema divide-se em dois momentos: um foco sobre visões contemporâneas de questões atuais, como as alterações sociais do último século, o desemprego, a precariedade e a liberalização, a ter lugar no Cinema São Jorge; e um segundo momento que se debruça sobre problemáticas do passado, exibido online na plataforma dafilms.com. Fazemos assim uma ponte entre as lutas de ontem e de hoje, questionando o próprio conceito do trabalho e como este foi evoluindo ao longo do tempo. Olhamos para movimentos grevistas em Reprise (1996) de Hervé Le Roux, a luta pelos direitos dos profissionais do sexo em Les Prostituées de Lyon Parlent (1975) de Carole Roussopoulos ou a modernização de trabalhos tradicionais, em Mudar de Vida (1966) de Paulo Rocha. Há ainda uma série de debates que acontecerão online, de forma a poder incluir participantes de diferentes contextos e territórios.

Que outros momentos destacam no programa?

Destacamos também os filmes que abrem e fecham o festival. Em outubro, o Doclisboa arranca com Nheengatu de José Barahona. Numa viagem pelas margens do Alto Rio Negro, Amazonas, Barahona procura as comunidades que ainda falam Nheengatu, uma mistura do tupi, português e outras línguas indígenas. Esta língua, imposta pelos colonizadores, moldou a paisagem e os povos daquela região e, através do confronto atual entre dois mundos, levantam-se questões importantes sobre antigos e novos colonialismos, tradição e futuro. Em março, fechamos o festival com Paris Calligrammes, de Ulrike Ottinger. Um filme-memória, no qual Ottinger revisita os seus inícios enquanto artista visual e os caminhos intelectual e emocional que a levaram, mais tarde, ao cinema.

“O Doclisboa não defende apenas filmes perfeitos, queremos construir um programa com filmes que enfrentem as suas próprias fragilidades, de cineastas que repensem a sua prática para chegar às pessoas, lugares ou assuntos que nos mostram.”

 

Em 2019 foi criado o Nebulae, um espaço dedicado à indústria cinematográfica. Qual a sua importância e como será desenvolvido nesta edição?

Um festival de cinema, para além de ser um lugar onde ver filmes, é também um lugar de encontros. Ao longo das várias edições realizadoras, produtores, distribuidores e programadores encontravam-se nos vários espaços do festival e daí surgiam ligações, projetos, ideias. Em 2019, estruturámos esses encontros num mapa de relações que é o Nebulae. Conversas, masterclasses, workshops, laboratórios de desenvolvimento de projetos e outras atividades dedicadas a unir os profissionais de cinema. Em 2020, sentimos que é ainda mais importante juntar esforços e estabelecer sinergias. Este ano, dadas as dificuldades de movimentação entre países, decidimos apostar em organizar as atividades em plataformas online. Embora o contato humano seja insubstituível, acreditamos que o mais importante agora é dar o máximo possível de ferramentas e apoio à indústria para que os filmes possam continuar o seu circuito e os projetos o seu progresso. Tornando esta crise numa oportunidade, usaremos as ferramentas online para ligar pessoas que, de outra forma, poderiam nunca ter os meios para viajar e participar nestas atividades.

Mantêm-se as sessões e atividades para os mais novos?

Acreditamos que o cinema documental é capaz de potenciar uma cidadania mais crítica, informada, aberta e respeitadora da diferença. Com base nisso, o festival recebe o Projeto Educativo da Apordoc e, a partir da programação, organizamos sessões, debates e oficinas para várias idades. Este ano, voltamos a organizar várias atividades para os mais novos. De 22 de outubro a 1 de novembro, temos as sessões DocEscolas, pensadas para estudantes dos diversos graus de ensino. Ao longo dos vários momentos do festival serão organizadas oficinas Docs 4 Kids, promovendo a aproximação do documentário às crianças e aos jovens. O cinema sofreu bastante com a conjuntura atual.

A internet e a televisão permitiram durante este período que o cinema chegasse ao público. Parece-vos irreversível a perda de público na sala de cinema e também nos festivais, uma vez que parte da programação destes acontece online?

É importante refletir sobre as relações que as salas de cinema e os festivais estabelecem com os filmes e com as comunidades onde se inserem. As salas e os festivais são espaços de encontro e de criação, de ligações entre os filmes, o público e profissionais do cinema. Vão sempre ocupar um papel de extrema importância para o próprio avanço do cinema enquanto expressão artística, indústria e como vetor social. O período de quarentena tornou mais óbvios certos meios de distribuição e o acesso alternativo a filmes, mas a relação que as salas e os festivais têm com o público não se alterou. As duas formas de ver filmes podem coexistir, oferecendo oportunidades diferentes não só para o público mas também para os profissionais do cinema. Mais do que colocar em oposição direta a distribuição online e a distribuição física, importa pensar como é que o cinema, que é uma forma de expressão artística que se faz e se vive coletivamente, irá mudar? A arte sempre se adaptou a diferentes paradigmas e construiu novas formas de representar o mundo, mas temos de estar atentos às condições em que trabalham os profissionais do cinema e lutar por políticas culturais justas que garantam o seu futuro.

 

Programação em: https://doclisboa.org/2020/

A personalidade artística de Amália não tem paralelo no panorama cultural português do século XX: a beleza e qualidade da voz, a arte de dizer e a capacidade de relação expressiva com o texto, a ligação com os grandes poetas, a colaboração com Alain Oulman, a importância do traje e das jóias na iconografia pessoal (doravante para sempre associada ao fado), a presença nas artes plásticas como referência identitária nacional.

Em pleno Estado Novo, período que reservava às mulheres o espaço doméstico, Amália pegou no fado com suprema ousadia, despojou-o das normas bairristas de carácter castiço, trouxe-lhe os poetas eruditos e os novos compositores, deu-lhe glória internacional, libertando-o das audiências restritas das casas de fado e promovendo-o nos grandes palcos do mundo. Simultaneamente, fixou para sempre, no imaginário coletivo, a figura icónica da fadista com a sua pose hierática e os seus famosos longos vestidos pretos, levando o crítico do jornal francês Le Fígaro a declarar, em 1960: “a impossível rosa negra só pode ser Amália Rodrigues”. Segundo o musicólogo Rui Vieira Nery, “a sua obra e o seu legado profundamente ousados e desbravadores de caminhos foram a matriz para muito do que de novo ocorreu na musica portuguesa, até praticamente aos nossos dias”.

Novos lançamentos

Manuel Alegre

As Sílabas de Amália

Há mais de meio século, Manuel Alegre, exilado político em Argel, recebeu uma carta enviada de Paris: Alain Oulman musicara Trova do Vento que Passa e pedia-lhe autorização para ser gravada por Amália Rodrigues. O autor de Praça da Canção respondeu dizendo da sua “alegria e honra em ser musicado por ele e cantado por Amália” e admirou a coragem da fadista “em cantar um poeta proibido”. Esta seria primeira colaboração entre o poeta, o músico e a intérprete que se estenderia a outros três belíssimos fados: Meu Amor É Marinheiro, Abril e As Facas. Para o poeta, Amália “dava outra dimensão a cada verso e fazia da língua portuguesa uma música inconfundível”. Neste volume, Manuel Alegre reúne os poemas de sua autoria que a fadista cantou, os que sobre ela escreveu e aqueles que “exprimem uma visão do fado que em grande parte fiquei a dever a Alain Oulman e a Amália Rodrigues”. Um tocante tributo de um grande poeta ao Centenário de Amália porque, como escreve sobre a genial cantora, “tu mais que tu és todos nós.” Dom Quixote

Miguel Carvalho

Amália – Ditadura e Revolução

Extraordinária investigação jornalística de Miguel Carvalho, analisa a forma como a figura de Amália Rodrigues atravessou grande parte do século XX português sobrevivendo à admiração por Salazar, ajudando os presos políticos, cantando poetas proibidos, financiando clandestinamente a oposição e o PCP e como resistiu aos boatos que a pretendiam silenciar após o 25 de Abril. Paralelamente, traça uma biografia da “grande cantora do português fundamental”, nas palavras de Virgílio Ferreira, personalidade contraditória movida pela inquietação que “detestava as lógicas partidárias ou as sebentas do sectarismo, mas apreciava seres humanos apegados às convicções, mesmo que as combatesse”. E revela como lidou com as invejas mesquinhas dos colegas, num meio artístico formado em parte pelos “capachinhos dos oportunistas políticos” e por “figuras charmosas com voz de linho e pés de barro”. Obra monumental dedicada ao futuro e a todos os que habitam o coração indomável de Amália, “mesmo aqueles que ainda não a descobriram por infelicidade, distracção ou preconceito.” Dom Quixote

Amália Nas Suas Palavras

Entrevista inédita a Manuel da Fonseca

“O que eu adivinho em você, e o que você me disse, não têm comparação, porque disse muito pouco. Vai ser difícil fazer o livro. Você quase não deu nada, fugiu sempre…” Assim se queixava o escritor Manuel da Fonseca, nome cimeiro do neorrealismo português, poeta e autor dos romances Seara de Vento e Cerromaior, quando em 1973 gravou quase dez horas de conversa com Amália Rodrigues com o objetivo de escrever a sua biografia. O projecto foi abandonado, mas surge finalmente a transcrição inédita destas gravações. A longa entrevista oscila entra a cumplicidade (quando se aborda a natureza do fado, se evocam as belezas da campina alentejana ou se partilham gostos literários) e a posição defensiva de Amália (sobretudo nas questões de índole politica), levando-a a exclamar: “As coisas que este senhor me pergunta!” A publicação destas conversas constitui, segundo o musicólogo Rui Vieira Nery, uma das contribuições mais inovadoras para a bibliografia amaliana neste ano em que iniciamos as comemorações do centenário do nascimento da artista”. Artista incomparável que traduz desta forma a sua profunda identificação com o povo: “É como quando uma pessoa vai por um caminho e vê uma erva que dá um cheiro que se reconhece. Acho que as pessoas quando me ouvem cantar, vêem realmente que sou um produto de cá, sou uma portuguesa e, portanto, faço parte do que no fundo eles são.” Edições Nelson de Matos/Porto Editora

Carminho & Tiago Albuquerque

Amália, Já Sei Quem És

Amália, Já sei quem, biografia escrita pela fadista Carminho em homenagem a Amália Rodrigues, por ocasião do 100º aniversário de nascimento da grande diva do fado, é um livro destinado aos mais pequenos. A obra escrita em sextilhas -uma das formas poéticas próprias daquele estilo musical tradicional -conta uma história de vida fascinante e está repleto de pequenos tesouros e pormenores pouco conhecidos do grande público. Com esta biografia infantil, publicada em parceria com o Museu do Fado/EGEAC, Carminho espera despertar nas crianças a admiração que ela própria sente por aquela que acabou aclamada como “a voz de Portugal”. As ilustrações de Tiago Albuquerque prometem levar os pequenos leitores aos principais lugares que marcaram a vida de Amália, que começou a cantar quando era pequena e ainda hoje, passados quase 21 anos da sua morte, continua a inspirar muitos cantores pelo mundo fora. Nuvem de Letras

 

Os “Clássicos”

Vítor Pavão dos Santos

Amália – Uma Biografia

“Rainha do fado”, “sumo-sacerdotisa do culto do amor”, “deusa mundial da música”, “impossível rosa negra”, “tragédia clássica esculpida na Terra”, “infanta majestosa e flexível” ou “alma de Portugal” são algumas das referências da crítica internacional a Amália Rodrigues que podem ser lidas nas páginas deste livro. Esta biografia da grande diva do fado – a melhor e mais completa – teve origem nas longas conversas havidas com o seu amigo Vítor Pavão dos Santos, fundador e ex-director do Museu Nacional do Teatro. Um singular registo de 1987, agora actualizado e aumentado, incluindo novas fotografias e um capítulo de discografia. Escrito no discurso directo, capta admiravelmente não só a graça espontânea e a inteligência generosa de Amália, mas também o seu lado mais triste, proporcionando a cada leitor a sensação de que é o destinatário privilegiado deste extraordinário relato. Relato fascinante da vida e da carreira da artista incomparável que, através do canto, “chamou a si o fardo do sofrimento, exprimindo a coragem de o suportar que existe em todos nós.” Presença

Vítor Pavão dos Santos

O Fado da Tua Voz

No ano de 1950, Amália cantou pala primeira vez um poema de Pedro Homem de Melo no admirável fado Fria Claridade. A cantora teve receio da reação do poeta, mas este sentiu uma grande comoção ao ver-se transmitido de forma tão vibrante e agradeceu-lhe por ter “feito subir a sua poesia até ao povo”. A relação de Amália com os grandes poetas estendeu-se a David Mourão-Ferreira, Alexandre O’Neill, José Carlos Ary dos Santos, Manuel Alegre, e muitos outros, mudando definitivamente a história não só do fado, mas da música popular portuguesa. Nos anos 60, Amália decide em conjunto com o compositor Alain Oulman, cantar “contra ventos e marés” o maior de todos os poetas de língua portuguesa, Luís de Camões. Entretanto, a cantora havia já timidamente escrito o poema para um dos temas icónicos do fado, Estranha Forma de Vida, mas foi só na última década da sua carreira que se dedicou a cantar a sua própria poesia, criando verdadeiros momentos de antologia: Lágrima, Grito, Lavava no Rio, Lavava. Vítor Pavão dos Santos reúne uma antologia dos poetas e dos poemas em língua portuguesa que, ao longo da carreira, Amália interpretou. A obra tem uma recolha de mais de 300 poemas e de 100 poetas que são apresentados na sua relação com a fadista e enriquecidos com a contextualização no mundo do seu tempo. Bertrand

Fernando Dacosta

Amália – A Ressureição

Amália foi, para além da intérprete genial que o mundo aclamou, uma figura dotada de uma prodigiosa inteligência instintiva. Foi essa tremenda acuidade que a fez vaticinar: “depois de eu morrer, o Fado vai ressurgir com esplendor, numa espécie de ressurreição”. É inútil esconder que o atual esplendor do fado não existiria sem o legado da cantora (“o futuro que nos deixou sem darmos por ele”), ao qual a nova geração tudo deve. Como declarou o poeta Manuel Alegre, se o fado é Património Imaterial “isso deve -se exclusivamente a Amália”. Este livro, belíssima evocação da vida da artista, narrando encontros, evocando memórias e revelando episódios menos conhecidos, capta com rigor e vibrante espontaneidade uma personalidade profunda e contraditória, movida pela inquietação. É uma obra necessária, porque como escreve Fernando Dacosta: “A morte dos mitos significa a morte da memória, da cultura, do pensamento, daí a necessidade de os ressuscitarmos ciclicamente.” Casa das Letras

Tiago Baptista

Ver Amália

Na evocação de Amália Rodrigues, muito se fala e escreve sobre o fenómeno global da sua personalidade artística, Um pouco esquecida fica a sua passagem pelo cinema. Amália interpretou sete filmes entre 1947 e 1965, quase todos enormes sucessos de bilheteira. Tiago Baptista, conservador do Arquivo Nacional das Imagens em Movimento da Cinemateca Portuguesa, salienta a importância do cinema no processo de construção da figura pública de Amália, reconduzindo a sua persona cinematográfica à combinação dos seguintes atributos: espontaneidade (equilíbrio entre a naturalidade do estilo de interpretação e a codificação das convenções performativas que fariam a originalidade da sua imagem); solenidade (a encarnação de estereótipos culturais como o fatalismo português, funcionando como símbolo não só do Fado mas do próprio país); intemporalidade (relação com as origens míticas do fado, sem renunciar a ser relevante no seu próprio tempo). Escreve o autor: “Os filmes (…) são uma janela aberta para o próprio processo de construção da figura publica de Amália Rodrigues, Por outras palavras,  os filmes deixam-nos ver de que forma Amália Rodrigues, a mulher, a actriz, se transformou em ‘Amália’, a vedeta, a diva, ou, para usar um termo mais cinematográfico, a estrela.” Tinta-da-China

Disponibilizada pela Câmara Municipal de Lisboa, esta plataforma tem por missão apoiar a criação artística, através da divulgação, num único suporte, das residências artísticas que têm lugar em Lisboa, permitindo obter informações sobre as organizações, públicas e privadas, que promovem residências artísticas e as oportunidades que estas organizações disponibilizam.

A LAAR permite a submissão de candidaturas para residência, e dá a conhecer, numa primeira fase, os artistas selecionados em programas de intercâmbio artístico promovidos, ou copromovidos, pela Câmara Municipal de Lisboa.

Atento ao dinamismo que se regista na cidade de Lisboa, com a crescente oferta e procura do modo “residência” como forma de criação e experimentação artística, o município, através do pelouro da Cultura, pretende corresponder ao compromisso assumido junto das organizações promotoras de residências artísticas, através da criação desta plataforma, para apoio e incentivo ao desenvolvimento das Artes.

A LAAR está disponível aqui.

Ivan Krastev

O Futuro por Contar

Ivan Krastev, politólogo, investigador do Instituto de Ciências Humanas de Viena, analisa a calamidade da COVID-19 como fenómeno novo, fundamentalmente diferente das três anteriores crises: o terrorismo, a crise financeira e a crise dos refugiados. O presente ensaio centra-se numa série de paradoxos revelados pela crise pandémica e investiga o impacto que esta terá sobre a globalização, a cooperação internacional e a coesão nacional, o avento de novos autoritarismos e o futuro do projecto europeu. Segundo Krastev, estamos a viver em simultâneo todos os pesadelos das distopias mais populares, um fenómeno de intersecção entre o Admirável Mundo Novo, A Historia de uma Serva e O Deus das Moscas. E não esquece o Ensaio Sobre a Cegueira: “Saramago não considera que as epidemias transformam a sociedade; a seu ver, elas desvendam a verdade sobre essa sociedade. Se ele tiver razão, é importante compreendermos o que vimos quando presos nos nossos lares”. Uma obra estimulante para ler no momento em que mundo parece mergulhar “numa floresta sombria, pois que se perdera o caminho a direito” como escreveu Dante n’ A Divina Comédia.

Objectiva

Ruben A.

A Torre de Barbela

Em 2020, celebra-se o centenário do nascimento de Ruben A., autor singular com uma escrita caracterizada pelo recurso a estimulantes jogos de linguagem, desconstrução dos eixos narrativos tradicionais, subversão cronológica dos eventos passados e pela crítica irónica a uma certa forma de ser português. Sobre o desaparecimento prematuro de Ruben A. aos 55 anos, escreveu a sua prima Sophia de Mello Breyner Andresen: “que tenhas morrido é ainda uma notícia desencontrada e longínqua e não a entendo bem”. O romance A Torre de Barbela, retrato psicológico do país desde a sua fundação, publicado em 1964, foi distinguido com o prémio Ricardo Malheiros, da Academia de Ciências de Lisboa. Tem por tema uma antiga torre de vigia, tão antiga quanto o nascimento da nação lusitana, a única torre triangular de toda a Península, que se ergue na margem esquerda do rio Lima. Nos dias que correm, é um velho monumento, memória do Portugal inventado pelas fantasias do caseiro-guia. O que a centena de turistas enganados não sabe é que, após o horário de visita, os antigos Barbelas, vindos de oito séculos diferentes, ressuscitam e habitam os seus arredores.

Livros do Brasil

Ondjaki

Livro do Deslembramento

Ondjaki evoca o universo da infância com o mesmo deslumbramento com que descreve a caixa de chocolates que serve de tema a um belíssimo capítulo deste seu mais recente romance. As peripécias da infância são narradas sob o mesmo olhar de encantamento com que reproduz as cores, os cheiros, os brilhos e os sabores dos bombons daquela “caixa quase de magia”. Como na magnífica canção Come raggio di sol, do compositor veneziano do período barroco, António Caldara, a infância é luminosa, um raio de sol que ilumina a superfície do mar. Porém, na profundidade do oceano, a escuridão esconde uma tormenta que se agiganta. Também neste romance uma dura realidade se impõe: a chegada da guerra civil a Luanda, uma experiência que todos querem “deslembrar”. Este livro, tão bonito e tocante, confirma o universo da infância como o grande tema da obra de Ondjaki. Para o escritor, apesar das carências do dia a dia e das provações da guerra, a memória da infância é, afinal, como os bombons franceses, “uma coisa do outro mundo”, “de um outro mundo que fica ainda mais em cima que as alturas do tal paraíso”.

Caminho

Miguel Carvalho

Amália – Ditadura e Revolução

Extraordinária investigação jornalística de Miguel Carvalho, analisa a forma como a figura de Amália Rodrigues atravessou grande parte do século XX português sobrevivendo à admiração por Salazar, ajudando os presos políticos, cantando poetas proibidos, financiando clandestinamente a oposição e o PCP e como resistiu aos boatos que a pretendiam silenciar após o 25 de Abril. Paralelamente, traça uma biografia da “grande cantora do português fundamental”, nas palavras de Virgílio Ferreira, personalidade contraditória movida pela inquietação que “detestava as lógicas partidárias ou as sebentas do sectarismo, mas apreciava seres humanos apegados às convicções, mesmo que as combatesse”. E revela como lidou com as invejas mesquinhas dos colegas, num meio artístico formado em parte pelos “capachinhos dos oportunistas políticos” e por “figuras charmosas com voz de linho e pés de barro”. Obra monumental dedicada ao futuro e a todos os que habitam o coração indomável de Amália, “mesmo aqueles que ainda não a descobriram por infelicidade, distracção ou preconceito”.

Dom Quixote

Paulo Marques da Silva

Fernando Namora Caricaturista

Fernando Namora (1919/1989), licenciado em medicina pela Universidade de Coimbra em 1942, exerce a sua profissão de aldeia em aldeia, nas regiões da Beira Baixa e do Alentejo, antes de se instalar em Lisboa como médico assistente do Instituto Português de Oncologia. Esta experiência inspiraria alguns dos seus romances mais famosos como Retalhos da Vida de um Médico ou Domingo à Tarde. O escritor, dotado de uma profunda capacidade de análise psicológica a par de uma grande sensibilidade da linguagem poética, contribuiu para o amadurecimento estético do neo-realismo e aproximou-se do existencialismo. Entre as várias formas de expressão artística que utilizou, a  caricatura constitui a faceta menos conhecida do grande público. A presente obra cinge-se, exclusivamente, às caricaturas académicas, entre os anos lectivos de 1936/37 e de 1941/42, período temporal que reflete a duração do seu próprio curso universitário. Conjuntamente com esta colecção de 181 caricaturas, que aqui se reúnem, apresenta um texto de enquadramento que corresponde a uma introdução à temática: algumas considerações sobre a caricatura; breves notas sobre a sua história em Portugal; o impacto da ação da censura sobre esta arte; a “relação” de Fernando Namora com as suas caricaturas, procurando aqui vislumbrar a ambiência da época, quer política, quer artística, mas considerando igualmente as particularidades do seu percurso de vida.

Câmara Municipal de Condeixa

Maria Antónia Fiadeiro

Artistas, Artesãs, Pioneiras

Livro singular de Maria Antónia Fiadeiro, pioneira do jornalismo pós-25 de Abril e dos estudos femininos em Portugal, permite compreender o papel da mulher na história recente do país através de quase cem conversas com personalidades da arte e da cultura nacional – Ana Salazar, Maria Mendes, Hélia Correia, Maria Antónia Palla, Paula Rego ou Lídia Jorge -, com artesãs – Etelvina Faria dos Santos, bordadeira, ou Irene Mourão, carpinteira – e com mulheres dedicadas às áreas há pouco tempo abertas à participação feminina – Cândida Alves, a primeira carteira em Portugal, ou Maria Arsénia, jardineira pública. Entrevistas realizadas entre 1982 e 2008 e publicadas originalmente em meios de comunicação da imprensa escrita como o Jornal de Letras Artes e Ideias, o Diário de Notícias, o Diário de Lisboa e as revistas Máxima e Casa & Decoração. Trata-se de uma recolha de vozes, que compõem um retrato íntimo, sensível e profundo da vida doméstica, social e profissional da mulher na sociedade portuguesa no fim do século XX e inícios do século XXI, com um valor histórico inestimável.

Edições Caixa Alta

Olga Tokarczuk

Alma Perdida

Era uma vez um homem que vivia constantemente com pressa, sempre de um lado para o outro. Comia, dormia, andava, trabalhava e até jogava ténis, mas tinha dentro de si uma sensação estranha. Certo dia, sentiu dificuldade em respirar e deixou de saber quem era. Tinha-se esquecido do que preenchia o seu coração; tinha perdido a sua alma. A Alma Perdida é um delicado objeto literário com texto de Olga Tokarczuk, vencedora do Prémio Nobel de Literatura e do Booker Prize, e ilustrações de Joanna Concejo, galardoada artista polaca, que faz uma reflexão profunda e comovente sobre a capacidade de viver em paz consigo próprio, permanecer paciente e atento ao mundo que o rodeia. Neste livro, a espera, a paciência e a atenção são exploradas através de ilustrações que transmitem um sentimento de paz e de meditação, onde Joana Concejo representa a melancolia e a alegria evocadas pela memória através de linhas finas e desenhos minuciosos. A Alma Perdida, premiado com a Menção Especial Bologna Ragazzi Award 2018, é o primeiro livro de Olga Tokarczuk dirigido a crianças e jovens.

Fàbula

Quando teve pela primeira vez contacto com o livro O Ano da Morte de Ricardo Reis, de José Saramago, sentiu de imediato que esta história daria um filme?

Qualquer um dos romances de Saramago poderia ser matéria apetecível para um filme. Mas O Ano da Morte de Ricardo Reis era o guião perfeito para falar de muitas das inquietações que o ano de 2019 trazia aos habitantes desta terra. Não havia ainda a pandemia invisível que hoje nos atinge, mas estavam outras a crescer: populismo, esboços de fascismo, ditadores, etc. O outro, o diferente começa a ser o inimigo que se deve desprezar, e até destruir. 1936, que Saramago descreveu como ninguém, é o ano do anúncio das catástrofes. Mussolini e os seus camisas negras erguem o fascismo e incendeiam Adis Abeba; Hitler e os camisas castanhas começam a engolir os países vizinhos na caminhada para a morte e o caos; aqui ao lado, a carnificina da falange vestida de azul na terrível guerra civil de Espanha. E em Portugal a consolidação do Estado Novo, o verde como a cor da Legião e da Mocidade Portuguesa, esmagando a liberdade e o pensamento.

Apesar de tantos anos de diferença continuam a existir muitos pontos em comum com os dias de hoje…

Parece que os humanos não aprenderam nada com os erros do passado, surgem agora os Trumps, Bolsonaros, Le Pens, Orbans, Erdogans, Putins, Lipins e tantos e tantos, ávidos de poder e servidores da ganância dos ricos e poderosos, trazendo com eles de novo o Mal que leva à subserviência, à miséria, à escravidão. E outras inquietações: os algoritmos que controlam, o individualismo implacável, o Nós transformado em apenas Eu, o pensamento a desaparecer, o consumo como existência. E o abandono da leitura e do saber partilhado. A vertigem que leva ao esquecimento. “A minha pátria é a língua portuguesa” escreveu um dia Pessoa (Bernardo Soares) no Livro do Desassossego. O texto elogiava, como mestre, o Padre António Vieira. E Saramago também escreveu, unindo-se ao poeta, que a língua portuguesa nunca se tinha elevado tão alto como nos textos do célebre padre jesuíta. Assim se encontravam, Saramago e Pessoa, cada um com escritas e oralidades diversas. Às vezes os textos bem escritos ainda crescem quando lidos em voz alta: Música. Assim o Teatro e o Cinema. Uma última inquietação: o Cinema de que eu faço parte há várias décadas. A degradação, o triunfo do entretenimento, do consumo das imagens e dos sons, o triunfo do movimento sobre o tempo. O cinema repito, não é o que se passa nem quando se passa, é como se filma. Luzes e sombras, seres humanos aflitos. Mostrar, ver e ouvir, fazer perguntas, as respostas pertencem aos espectadores, livres de escolher.

Fernando Pessoa tem inspirado a sua obra. Neste filme, a Fernando Pessoa junta-se o escritor genial que é José Saramago. Que dificuldades ou desafios se encontram ao realizar uma obra que tem por base estes dois grandes nomes da literatura portuguesa?

É difícil, sim. “Mas se fosse fácil estavam cá outros”, assim me ensinou um fuzileiro naval, meu amigo. Respeitar os textos, escolher, ligar sem trair. Cinema não é literatura, mas pode usá-la como matéria, como usa o teatro, a música, a arquitectura, a pintura, etc., que são artes mais nobres. Como vampiros, roubamos para construir outra coisa, tentando que as intenções artísticas se sobreponham ao negócio, esse pecado original desta “falsa” sétima arte. Pessoa e Saramago são um “luxo” português.

Podemos dizer que este é também um filme sobre a morte e o esquecimento. E que pretende de alguma forma refletir sobre a necessidade que a criatura tem de se libertar do seu criador?

Uma das invenções geniais de Saramago, a ideia dos nove meses que um morto ainda pode vaguear aí (antes de ser esquecido) para compensar os nove meses que se perdem na barriga materna. Outras invenções são a competição entre o criador (cínico) e a criatura que dele se quer libertar, ou a paixão entre dois homens, tornados físicos, palpáveis. Física da metafísica. Uma relação perturbada por duas belas mulheres e, como num western em que ao pôr-do-sol eles se afastam, aqui num nascer de dia, eles também partem abraçados, para um outro mundo porque neste, de cores cinzentas, já não conseguem viver. Ficam-nos os textos como dádiva gloriosa.

Porquê filmar a preto e branco?

A felicidade pode ser a capacidade de nos adaptarmos às circunstâncias. Como filmar em 2019, nesta Lisboa colorida de semáforos e antenas e lojas, o ano de 1936? Escolher bem, enquadrar com cuidado, fazer chover onde estava o sol, utilizar o Hotel Astória em Coimbra, como justo Hotel Bragança, no centro de Lisboa, Fátima no Campo de Tiro de Alcochete, mas muita Lisboa, “meu lar” e lar do meu filme.

A escolha dos atores foi uma escolha intuitiva ou um processo racional?

Racional, racional. Se olharem para as últimas fotografias de Fernando Pessoa em 1935, com 47 anos vêm um homem velho, inchado, diferente do ícone mas quase igual a Luís Lima Barreto que, com a excelência da representação, transporta com ele a ironia do texto. Ricardo Reis “viveu” no Brasil 16 anos. Um amigo meu, que viveu um ano no Brasil, veio a falar brasileiro. E depois, acima de tudo, Chico Diaz é um actor de génio. Fez um Ricardo Reis perfeito. E a beleza da Victoria Guerra e da Catarina Wallenstein, as suas excelentes qualidades de atrizes, o modo como a luz nelas se reflecte e incendeia o ecrã, são escolhas justas para Marcenda e Lídia.

Que significado atribui à figuração de Pilar del Rio no filme?

Através dela, a presença de Saramago, no meu filme. É um agradecimento.

Uma parte considerável do seu trabalho baseia-se em grandes obras literárias. É caso para concluirmos que é um cineasta especializado em adaptações literárias?

Eu não sou um especialista. Eu sou um apaixonado pelos grandes e inigualáveis textos portugueses. E afirmando-os, luto contra o esquecimento.

 

 

Em entrevista, o premiado romancista, cronista e argumentista fala sobre o jornalista que foi e que, ocasionalmente, ainda é, e de como uma peça de teatro, que rouba o título ao jornal, consegue mostrar tanto sobre o estado atual do jornalismo e as condições precárias de quem o faz, revelando ao mesmo tempo tanto daquilo que somos, jornalistas ou não.

Apesar de a considerar uma comédia, a peça Última Hora parece ser um réquiem ao jornalismo…

Um réquiem esperançoso, apesar de tudo. Várias pessoas leram a peça e concordam que é uma comédia; outras, que não é só uma comédia, e até houve quem achasse que não é de todo uma comédia. Eu continuo a considerar que é uma comédia no sentido lato do género. É para fazer rir embora, comigo, fazer rir é fazer pensar.

Mas o riso é, muitas vezes, amargo.

Acredito que o humor não é aligeirar, é aprofundar. Claro que, apesar de ter pensado nela como um corpo de comédia, quem escreve uma peça sobre jornalismo tendo sido jornalista, e ainda mantendo alguns trabalhos jornalísticos, não pode deixar de ter uma nota de desespero, de nostalgia e de realismo.

Essa nostalgia não a torna sedenta de um tempo que já não existe?

Não. O trabalho que faço neste, ou noutros campos da ficção, é uma espécie de amálgama cronológica em que as personagens, também de acordo com os pensamentos que têm, vivem vários tempos ao mesmo tempo. Como, na verdade, todos vivemos. E a cada pensamento corresponde uma ação. Aqui, as personagens aparentam estar paradas naquela espécie de museu de imprensa. Mas não – elas estão a reagir ao mundo, às mudanças, à invasão de outras linguagens e outras maneiras de pensar (mesmo que estranhas ao jornalismo) para tentar sobreviver. Nesse aspeto, é um grito de vida.

Reconhece haver, apesar de tudo o que acontece na peça, uma visão romântica da vida nos jornais?

Há aqui ainda o jornalismo dos tempos heróicos, em que até era possível fumar dentro da redação ou ter uma garrafa de whiskey para dar combustível ao texto [riso]. Eu passei por isso tudo. Assisti e vivi. No fundo, procurei fazer tudo dentro desta peça. Ao mesmo tempo quero que as pessoas sejam surpreendidas. Gostaria que o público, no final do espetáculo, sentisse o mesmo que o imperador russo ao intervalo de O Inspetor geral do grande Gogol, e dissesse: “ele está a falar de nós”. Ou seja, pretendi obter um retrato de Portugal, de uma época (que é larga) e de uma sociedade.

E o jornal é aqui um microcosmos?

Não só da portuguesa e dos jornais portugueses. Ao contar alguns dos truques sujos que são usados por alguns que usam o jornalismo no sentido que Kant dava ao “mal radical”, ou seja, pessoas que usam os outros em proveito próprio, fazendo tudo o que é possível para se beneficiarem a si através de outrem, estou a falar do jornalismo, e não só, de cá ou de qualquer outra parte do mundo. Acho que a peça pode ser facilmente compreendida em qualquer lugar, tanto hoje como daqui a uns anos. E embora sendo uma peça escrita por mim, espero que fale por muitos.

Estas personagens podem ser facilmente reconhecíveis por quem tenha passado pela redação de um jornal. Inspirou-se em pessoas concretas?

Curiosamente, e sem qualquer tipo de misticismo, acontecem coisas na vida que têm muitas vezes relação com o trabalho que estou a desenvolver. Este livro foi para a gráfica [Última Hora está publicada em livro numa edição da Tinta da China, com lançamento marcado para a data de estreia da peça] no dia da morte do Vicente Jorge Silva, que foi um dos meus mestres, meu diretor no Público, embora o diretor deste jornal não seja o Vicente. Estas personagens são uma mistura de muitas pessoas com quem me cruzei, têm muito de mim, de amigos, dos que estão, dos que já morreram e até mesmo dos que hão-de vir. Acho que consegui, e os atores reconhecem isso, que cada uma delas tenha densidade, tenha contradições, e que isso as torne reconhecíveis.

Há um retrato feroz daquilo em que os jornais e, consequentemente, o jornalismo se tem tornado, essa tendência para a tabloidização…

Hoje é tramado ser jornalista. Somos olhados de lado, parecemos estar sempre sob suspeita de estar a entrar pelo caminho que este jornal da peça está a tomar. Experiencio isso quando vou a tribunal [o autor assina uma crónica intitulada Levante-se o réu no Jornal de Notícias] e puxo do cartão de jornalista para falar com alguém. Mas eu acredito no bom gosto, e ainda acredito no jornalismo.

“As pessoas desabituaram-se de comprar jornais, de pagar pela informação. Assim, não pode haver imprensa livre.”

 

O Rui tem trabalhado regularmente para teatro, lembrando a coautoria de textos para Casal da Treta ou Zé Manel Taxista, ou a dramaturgia de António e Maria [peça do Teatro Meridional, a partir de textos de António Lobo Antunes]. Mas este é um trabalho diferente. Como foi o processo de escrita?

Partiu de um desafio do Teatro Nacional D. Maria II, do seu diretor, o Tiago Rodrigues, que, por sinal, é filho de outro dos meus mestres no jornalismo [Rogério Rodrigues], em inícios de 2017. Depois, concorri a uma bolsa de criação literária em Berlim e para lá fui escrever uma peça sobre jornalismo sem saber ainda o quê. Visitei bem a cidade, tive a noção que subsiste do Muro, fui a alguns jornais e, durante esse período, desenvolvi uma parte importante da história. Aliás, Berlim está muito presente e há um episódio delicioso, que não quero revelar, mas que está na peça. Posteriormente, já por cá, dediquei-me a este trabalho, que foi duro, abdicando mesmo de outros para aqui concentrar o meu esforço.

Nessa passagem por Berlim, na visita a jornais, encontrou um cenário semelhante ao que se passa em Portugal?

A crise na imprensa escrita é geral, eles vendem menos, mas são ainda assim na ordem do milhão de exemplares. Mas, essa estada coincidiu com um período muito interessante. A imprensa alemã estava, em articulação com a União Europeia, a organizar-se de modo a que, se não queremos uma sociedade dizimada pela desinformação, pelas fake news, pelos populismos (que por lá são uma enorme preocupação), é preciso agir. E a ação passou por chamar “à pedra” as grandes plataformas, como a Google e as redes sociais, que andavam a pilhar o trabalho de quem escreve nos jornais. Havia forte mobilização e um debate acesso sobre o assunto.

Por cá, à devida escala, esse debate também foi feito.

Mas muito tardiamente. Eles estavam a tentar mudar mentalidades, enquanto aqui havia jornalistas que publicavam de manhã no papel ou no digital e à tarde já estavam a divulgar, à borla, o artigo no Facebook. Considero, em primeiro, uma deslealdade para com quem está a pagar; em segundo, é uma forma de alimentar quem não lhes dá nada, ou seja, as redes sociais que vendem publicidade com o trabalho dos outros. Adicionando isto a outros problemas, as pessoas desabituaram-se de comprar jornais, de pagar pela informação. E assim, não pode haver imprensa livre.

Tudo isso e muito mais está em Última Hora, uma peça com ambição, muitas didascálias, muitos pormenores e descrição de ambiente, algo até em contraciclo com o que se vai fazendo na dramaturgia contemporânea…

Quis que a peça tivesse “atos” com “c” [riso, aponta para uma cópia da prova da capa do livro onde se lê Última Hora – Peça em três actos]. Ainda pensei escrevê-la em cinco atos, à Shakespeare (desculpe, mas é uma referência), embora, infelizmente, não dominar a técnica porque é muito complicado perceber quando as coisas devem acontecer ou quando chega o tempo de mudar tudo. Portanto, fui pelos tradicionais três atos e, mesmo assim, é uma peça longa, mas moderna. E quis que estivesse lá tudo: a sala de redação, o bar onde vão os jornalistas, o passeio junto ao Tejo…

E que houvesse muitas personagens.

Sim. Uma redação é um organismo vivo, com muita gente. [pausa] Bem, agora nem tanto devido à pandemia (tem graça que o Miguel Guilherme, que faz o papel do diretor, esteve no Público para sentir o pulsar da redação e acabou por não ver o que realmente é aquele bulício).

Para além de atores consagrados, como o Miguel Guilherme, a Maria Rueff e os atores do Nacional, o elenco conta com muitos jovens. Está satisfeito?

Muito. São todos fabulosos. O Miguel e a Maria vão estrear-se, por fim, no palco da Sala Garrett. E há aqui algo muito curioso que é termos estagiários de teatro a fazer de estagiários de jornalistas. Interessante, num mundo em que as pessoas perderam a perspetiva de terem um emprego duradouro que permita pensar no futuro, numa família… O jornalismo, particularmente, perdeu isso, tal como, calculo, o teatro e tantas outras profissões. A peça é também sobre isso.

Para concluir, a dado momento, o diretor do jornal tem um desabafo, que cito: “eu meti-me nesta vida desgraçada, nesta fábrica de divórcios, nesta máquina de trinchar filhos às postas, neste hospital de malucos, neste alambique de bagaço, neste tanque de nicotina e alcatrão, neste camião cisterna de tinta tóxica em defesa de um bem maior: a Liberdade! E a Democracia!” Este ainda é o bem que o jornalismo defende?

Lá está. Os meus heróis na peça, com todos os seus defeitos, têm um fundo bom, embora muitas vezes estejam confrontados com a sobrevivência. É por acreditar que a liberdade e, já agora, o amor, são o principal, que a peça nunca poderá ser um réquiem ao jornalismo. Apesar desta fase híbrida em que vivemos, o jornalismo não pode acabar e encontrará um caminho. Como nos dizia o Vicente [Jorge Silva] e os seus discípulos quando entrei no Público: “você não está a escrever para o diretor ou para o chefe, está a escrever para o leitor”. Esse é o compromisso.

O teu novo disco tem um nome muito forte e simbólico, Canções do Pós-Guerra. Porquê este título?

As primeiras canções que escrevi para este disco nasceram duma guerra conceptual. Deparei-me com expectativas em relação à progressão sonora na minha carreira, e a noção de que o próximo passo musical teria de acrescentar algo mais aos passos anteriores. Apeteceu-me refrear essas ideias, e assumir que uma carreira artística não é necessariamente feita de progressões e acréscimos, também pode contemplar recuos, insistências e subtrações. Comecei a fazer canções contidas, e isso foi uma guerra. Daí brotou o título, que era amplo o suficiente para poder albergar várias temáticas. Há muitas guerras, literais e simbólicas. E há muitas noções em torno do pós-guerra: reconstrução, esperança, desesperança, luto, nascimentos, rescaldos. Finalmente, o título também serviu de pretexto para evocar alguns poetas (de guerras e de pós-guerras) que admiro.

Segundo o press da tua editora, este é o teu disco mais maduro e direto de sempre. Isso está, de alguma forma, relacionado com a maturidade da idade?

Esse press foi o primeiro contacto que tive com uma análise ao meu disco, e por isso aprendi a concordar com o que lá está escrito. Revejo-me nessa ideia, porque revêm essa ideia em mim. Não sinto que fiquei uma pessoa madura dum dia para o outro, mas o abeirar dos 40 (que não são especialmente ternurentos como cantava o outro; parecem-me bem banais) deu-me a capacidade de simular melhor essa maturidade. É como se uma mera faixa etária me conferisse autoridade poética para rezingar, ou para ser incómodo sem amenizar tudo com ironias. O meu relógio biológico é uma coisa bio-poética.

O disco abre com Ao Pós. Atravessamos um período de ascensão de novos populismos, como se não tivéssemos aprendido nada com o passado. A cantiga pode ser uma arma contra a ignorância?

Pode, embora perceba que o poder de uma cantiga para estupidificar é mais forte do que para instruir. Não será uma arma direta contra a ignorância. Para apelar a um ignorante, provavelmente há que baixar o discurso ao nível da compreensão do destinatário, e assim tudo se inquina. Mas uma cantiga pode imiscuir-se no tecido cultural de pessoas, dum povo – e um povo que se habitua a cantar os valores certos dificilmente descai para povo errado.

O disco é composto por canções que são gritos de revolta sobre os nossos falhanços coletivos, mas também por outras que são uma lufada de ar fresco, em que parece que tudo vai ficar bem. Quiseste criar um equilíbrio entre as trevas e a esperança?

Não sei se chega a haver um equilíbrio. Não uso as canções luminosas como contrapeso às canções sombrias, porque acho que o Mal e o erro são mais abundantes do que o Bem e o certo. Mas estar rodeado de negatividade não me impede de fixar os olhos naquilo que lhe escapa. É aí que entra a esperança como elemento fundamental dos meus discos, mesmo que seja em doses pequenas. Não tento, por isso, o equilíbrio. Acabo sempre por abrir portas, mesmo que sejam portas estreitas.

Há também canções que parecem ter um tom demasiado íntimo e pessoal (embora o seu significado pareça algo encriptado), como Cedo ou O Muro. As tuas canções são uma espécie de catarse?

Não procuro catarse nas canções, mas pelos vistos a catarse acaba por me apanhar. É que mesmo as coisas mais mecânicas do meu processo criativo são ativadas por desabafos, por esvaziamentos. Tudo o que eu tenho acumulado, consciente ou recalcado, pode desaguar em canção. Apesar do cariz utilitário, apesar de ser trabalho, há claramente uma purga. E a essa purga podemos chamar catarse.

“Um povo que se habitua a cantar os valores certos dificilmente descai para povo errado”

 

Utilizas muitas metáforas nas tuas letras, deixando sempre várias interpretações em aberto. Preferes que seja o ouvinte a fazer a sua própria interpretação da canção?

Não é bem uma preferência, embora sinta qualquer interpretação do ouvinte como um momento de extrema generosidade. É generoso, até quando não me encontra e se encontra a ele próprio na canção. Deu-se ao trabalho, escutou, escrutinou: é generoso. Quando escrevo, procuro a sinceridade, que é uma coisa muito pedante de se dizer, mas não deixa de ser verdade. E em quase toda a poesia que me interessa, a sinceridade é reforçada por símbolos, não por relatos concretos. Corro o risco de não ser entendido, mas, se finalmente me entendem, corro o risco de não ser esquecido.

O álbum – que contém nove faixas – é ilustrado por nove vídeos, filmados em sequência, e que te mostram a passear por Lisboa. É uma carta de amor à cidade?

É uma carta de amor a esse tesouro que é poder andar na rua. Não conseguimos fazê-lo durante uns meses, continuamos limitados e não sabemos muito bem o que nos espera. Este disco cumpriu o confinamento caseiro como qualquer um de nós; ficou fechado à espera da altura em que pudesse sair. Levei-o, portanto, a passear na minha cidade. A passear nas mesmas ruas onde, tantas vezes, já andei a pé à procura da rima certa, ou da frase mais conveniente.

A quarentena trouxe-te algum tipo de inspiração para este disco ou para discos futuros?

Embora não tenha escrito qualquer canção durante a quarentena, não deixou de ser um dos períodos mais marcantes pelo qual passei no meu tempo de vida. Assim sendo, duvido que consiga estar imune a isto tudo quando voltar a escrever.

Menina surge como uma canção de embalar que fecha o disco com um final que se espera feliz. Há luz ao fundo do túnel?

Menina abeira-se do contrassenso. Canto e toco-a como se fosse de embalar, mas é uma canção sobre despertar. Há luz, e vivo acordado para essa certeza.

É um dos mais emblemáticos músicos nacionais, que atravessa gerações e continua a apaixonar quem o ouve. Jorge Palma começou a estudar música clássica ainda criança, mas foi na adolescência que sentiu o chamamento do rock. Para além do piano, aprendeu a tocar guitarra ao mesmo tempo que foi crescendo em si uma curiosidade pela música popular anglo-saxónica.

Fugiu à guerra e exilou-se na Dinamarca, onde nunca deixou de compor. Depois do 25 de Abril, o músico regressou a casa para, em 1975, gravar o primeiro LP, Com uma Viagem na Palma da Mão, que inclui canções compostas durante o exílio. Depois de lançar o segundo álbum, voltou a sair do país, passando a ser presença assídua nas ruas de várias cidades, onde cantava e tocava guitarra. Fixou-se, entretanto, em Paris, onde tocou no metro durante alguns anos.

Quando regressou a Portugal lançou alguns dos seus discos de maior sucesso, como O Lado Errado da Noite (1984) ou o Bairro do Amor (1989), por muitos considerado um dos melhores álbuns portugueses do século XX. Seguiram-se outros álbuns que viriam a marcar a história da música nacional, como (1991) e Voo Nocturno (2007).

Embora seja mais conhecido pela sua carreira a solo, Jorge Palma integrou ainda os projetos Rio Grande e Cabeças no Ar e, mais recentemente, partilhou o palco com Sérgio Godinho no projeto Juntos. 

Compositor, poeta, rock star, boémio. Qual destas facetas o define melhor?

Compositor/intérprete e boémio também, um pouco menos inquieto agora.

Como reage quando alguém lhe diz que a sua música lhes mudou a vida?

Sorrio e desejo-lhe(s) boa sorte, já que teria sido ao som de uma canção minha que se conheceram, namoraram ou casaram.

Se só pudesse ser recordado por uma canção, qual seria?

Talvez .

Tem algum álbum preferido, ou os álbuns são como os filhos?

Os filhos e os álbuns preenchem áreas bem diferentes nos meus “leques” emocional, cognitivo e sensorial, não consigo preterir um filho em favor do outro. Quanto aos álbuns a escolha é difícil, tendo em conta que cada LP corresponde a um período específico da minha vida, mais ou menos longo, e que todos eles me trazem à memória múltiplas e variadas estórias. A escolher, teria de ser o primeiro: Com uma Viagem na Palma da Mão (1975) (por ser o primeiro) e talvez o , que, não sendo de originais, ilustra o meu percurso entre 1975 e 1981.

De todos os duetos que fez, qual foi o mais inesquecível?

Os intérpretes com quem tenho feito duetos, em disco e em palco, são tantos, que seria preciso uma página (ou mais) para citá-los a todos. Saliento a minha colaboração de longa data com Sérgio Godinho, com quem recentemente partilhei o palco em concertos de duas horas na digressão Juntos, que nos levou a percorrer o país inteiro ao longo de quase dois anos e da qual resultou o CD/DVD homónimo. Destaco também os meus encontros musicais, em disco e em palco, com Cristina Branco, de novo minha convidada neste próximo concerto em orquestra, a 12 de setembro.

Com que músico/cantor da nova geração gostaria de trabalhar?

Talvez Salvador Sobral, excelente músico de grande expressividade, energia e imaginação.

Se fizessem um filme sobre si, que ator lhe daria vida?

Sean Connery.

Como é celebrar 70 Voltas ao Sol com um concerto sem público presencial?

Vai ser um pouco estranho mas, sobretudo, uma grande festa.

Para quando um novo disco?

Sou capaz de ter disco novo gravado até ao final do ano, logo se verá.

Escreveu José Saramago: “São os autores que fazem as literaturas nacionais, mas são os tradutores que fazem a literatura universal”. Por ocasião da Feira do Livro de Lisboa, que regressa ao Parque Eduardo VII, na sua 90.ª edição, de 27 de agosto a 13 de setembro, a Agenda Cultural de Lisboa falou com cinco tradutores.

Valério Romão

A informática ocupou grande parte da vida profissional de Valério Romão. O escritor, licenciado em filosofia, chegou à tradução por via da paixão pela leitura e pela escrita e “pela vontade de ver em português um determinado texto que não tenha ainda sido traduzido. Tentar fazer aquilo que os outros tradutores fizeram antes de mim, incorporar na cultura portuguesa a voz de determinado autor, dando-o a conhecer.”

Nascido em França, onde viveu até aos 10 anos, tem facilidade natural em traduzir do francês, mas também traduz do inglês, “com a ajuda do dicionário”. Traduz muita poesia que não está editada. “São traduções que tenho na gaveta e que faço por gosto, que eventualmente um dia proporei a uma editora. Estou a traduzir o livro La Main hantée, da poeta canadiana Louise Dupré que escreve em francês. Admiro a poesia dela que descobri numa livraria francesa. Enviei-lhe uma mensagem a dizer que gostava muito de traduzir o livro, mas que não tinha como pagar direitos de autor porque nenhuma editora iria suportar esse custo. A edição de poesia em Portugal faz-se com tiragens de cem exemplares e sem dinheiro. Ela ficou muito satisfeita. Disse que não era pelo dinheiro que estava na poesia e ficou encantada com a situação de um autor ter entrado numa livraria e ter lido um livro seu que lhe apeteceu traduzir e divulgar.”

A mais recente tradução de Valério Romão, O Quarto de Giovanni, de James Baldwin, foi parar-lhe ao colo por via da editora para quem já tinha traduzido Houellebecq. “Foi uma honra porque é um autor tremendo, não só pelo valor literário, mas por todas as contribuições para a luta dos direitos humanos, nomeadamente dos negros e homossexuais. É um livro arriscadíssimo, dos anos 50, muito bem escrito por um negro homossexual, sem qualquer ambiguidade de discurso. O Baldwin é um daqueles autores de que uma pessoa pensa: gostava de ter conhecido este tipo! É um sujeito com uma coragem e uma lucidez espantosas”. Quanto à obra, refere que o livro não tem uma linguagem complexa: “Um pouco escola Hemingway, exilado, frases curtas, embora com um tópico e uma densidade emocional diferente”. Perguntado sobre se essa simplicidade de estilo não é difícil de transpor para a tradução, responde: “Depende, se a aparente simplicidade do autor é mais um efeito, ou não. No caso do Baldwin, existe uma grande honestidade na forma como escreve”.

E termina com um desabafo: “a atividade de tradutor é muito mal paga em Portugal. Se fizermos contas ao tempo investido, à qualidade que exige de si próprio, ao que fica depois dos impostos, só vale a pena fazer isto por amor ou por não saber fazer mais nada”.

Margarida Vale de Gato

Margarida é licenciada em Línguas e Culturas Modernas, mas o seu encontro com a tradução começou antes de ir para a faculdade. Aos 13 anos foi com a família viver temporariamente para a Califórnia enquanto o pai fazia o mestrado. “Já na altura gostava de línguas. Costumava interrogar-me como as pessoas pensavam em línguas diferentes. Entrei na escola local e, ao fim de alguns meses, comecei também a sonhar em inglês. Isso iluminou os meus dias que eram um pouco solitários, porque não é fácil transitar com essa idade para outro país. Como sabia que ia regressar a Portugal comecei também a aprender francês, mas como era bastante rudimentar, dediquei-me a aprender autodidaticamente ouvindo Jacques Brel. As minhas primeiras traduções foram letras de Brel. Logo aí percebi que esta era uma atividade onde me sentia muito bem.”

Neste momento não traduz do francês, a não ser que lhe venha algum poema: “não por ser mais fácil, mas porque há uma concentração na palavra que requer outro tipo de atenção que não tem a ver com expressão do uso quotidiano da língua. Para traduzirmos romances, temos que estar sempre a ver séries na televisão, que não gosto especialmente, ou filmes – que vejo mais. Ou vamos constantemente aos países onde se fala a língua na variante em que traduzimos, senão a coisa começa a congelar. A literatura é um mecanismo de inovação da língua onde se acompanham os rumores mais recentes.”

Margarida prepara uma antologia de poesia Beat com Nuno Marques e traz-nos um volume de Marianne Moore, O Pangolim e Outros poemas, a única proposta que fez à editora. “Queria muito traduzir este livro. Sou professora de Literatura Americana e no modernismo agradam-me aqueles que fazem experiências. Ao nível da poesia, gosto muito de arriscar perceber a experiência através da tradução. Marianne Moore é uma poeta que conjuga a curiosidade pelas pequenas vidas (o pangolim, bicho tão maltratado pela nossa pandemia, ou a nectarina e o morango, por exemplo) com a consciência de que a maneira de conhecer já depende de anteriores representações – mas de que ela procura oferecer um ângulo diferente através da cadência de linguagem. Enquanto autora, ela proporciona-me uma atenção ao objeto representado que sai da esfera do eu. A minha poesia tende a ser pessoal e a jogar com a autobiografia de uma maneira que continuo a prosseguir porque acho interessante, mas que ela contraria.”

Sobre o tema da tradução, afirma: “é muito difícil trabalhar com certos tipos de sistematização porque há textos que admitem uma maior literalidade, importante para conservar o estilo e a estranheza. Outras vezes, é preciso adaptar. Por isso, quando se fala em coerência em tradução, devemos desconfiar. É preciso arriscar contradizer-se, porque a unidade do texto é algo que a tradução nega por inerência”.

Miguel Martins

Arqueólogo que não exerce, Miguel Martins começou a ser convidado por editores para traduzir em virtude de ser poeta. Embora também faça crítica para a revista Colóquio/Letras da Gulbenkian, vive essencialmente da tradução. Traduz do francês, inglês e castelhano e já traduziu um livrinho a partir do italiano, Manifesto da Música Futurista de Luigi Russolo, que foi uma coisa por amor e mais morosa do que seria se  tivesse verdadeiro domínio da língua. “Eu traduzo tudo para ganhar a vida, livros muito maus, de auto-ajuda, etc. De vez em quando, lá traduzo coisas verdadeiramente boas como sejam o Forster ou a peça de teatro Mariana Pineda, do Lorca, além de muita poesia para revistas literárias.”

Sobre a sua mais recente tradução de A Máquina Pára e Outros Contos, de E. M. Forster, uma coletânea de textos escritos ao longo de 20 anos, diz-nos: “para motivar os leitores falaria essencialmente do conto que lhe dá titulo, um texto verdadeiramente fantástico que, escrito há cem anos, prevê com rigor surpreendente muitíssimos dos aspectos do mundo atual e das suas características distópicas: a comunicação apenas através da máquinas, o afastamento das pessoas, uma espécie de internet ou coisas como os likes do facebook.”

Da atividade de tradutor, salienta: “penso que para uma boa tradução é muito menos importante o domínio da língua de partida, (com mais ou menos trabalho chega-se lá), do que o domínio da língua de chegada. Finalmente, o que chega às pessoas tem que estar escrito em bom português. Por isso, acho que, sempre que possível, as traduções literárias devem ser feitas por escritores. Mas, paralelamente a isto, a tradução implica cultura, referências de toda a ordem, histórica, científica, artística, política. É por aí que muitas traduções pecam. E é por essa razão que, apesar das exceções, tenho sérias dúvidas que possa haver grandes tradutores muito jovens. Quem trabalha em tradução profissionalmente não sabe o que lhe vai parar às mãos, portanto essa cultura tem de ser tão abrangente quanto possível, sem prejuízo das pesquisas necessárias a cada caso. Não se pode viver da tradução trabalhando só em coisas boas. Em Portugal, os preços são iguais, quer estejamos a traduzir Shakespeare ou a biografia das Spice Girls. Ora, de um livro de chacha, eu traduzo quinze páginas por dia; de Shakespeare, se calhar traduzo sete linhas. Os tradutores que só traduzem coisas verdadeiramente interessantes, ou não vivem disso ou vivem muito mal. Para mim, o problema deste trabalho é não ser ininterrupto, haver hiatos entre uma tradução e outra. Se estivesse sempre a trabalhar (o que também não era desejável, porque é mentalmente muito cansativo e porque, às vezes, preciso de me libertar do estilo e linguagem de um autor, antes de começar outro) seria uma profissão relativamente bem paga.”

Hugo Maia

“Comecei a aprender árabe quase por brincadeira. Tinha passado férias em Marrocos e fiquei curioso com a língua. Compreendemos castelhano, falamos inglês, mas não entendemos a língua de um país vizinho que nos parece totalmente diferente.”

Hugo Maia inscreveu-se então num curso livre de árabe na Faculdade de Letras e leu muito sobre a história do mundo árabe e da presença islâmica em Portugal. Como era o melhor aluno da turma conseguiu uma bolsa para um curso intensivo de verão na Tunísia. “Apercebi-me que, para aprender árabe, teria que o fazer num país árabe. Era a melhor forma de aprender o árabe padrão e o árabe coloquial e por isso decidi inscrever-me no curso anual intensivo, em Tunes. Na realidade sou licenciado em antropologia e interrompi a licenciatura, em 2001/2002, para fazer este curso. Não sou um especialista em literatura. Considero-me acima de tudo um leitor. Por vezes comparava traduções de árabe para francês e comecei a interessar-me por teoria da tradução. Constatava que, em Portugal, praticamente não existiam traduções directamente do árabe. Em 2006, apresentei alguns projetos de tradução a várias editoras que foram recusados. Felizmente, porque os meus conhecimentos não eram assim tão bons. O árabe não é uma língua muito difícil de aprender, mas tem uma grande complexidade do ponto de vista sociolinguístico, aquilo a que chamamos uma diglossia muito acentuada. Existe um árabe padrão, que é igual em todos os países árabes, e um árabe coloquial, que muda de país para país e mesmo de região para região. As diferenças entre as várias línguas árabes coloquiais são tão grandes como as que existem entre o português, o italiano e o romeno. Costumo dizer que, para aprender bem o árabe, temos que saber duas línguas: o árabe padrão e, pelo menos, um árabe coloquial. Entretanto, vivi cinco anos em Marrocos, onde aprendi o árabe coloquial marroquino que me ajudou a traduzir As Mil e uma Noites, uma obra que inclui muitas expressões árabes coloquiais do Levante, da Síria e Egipto, apesar de serem muito diferentes.”

Quando Hugo descobriu Périplo pelos Bares do Mediterrâneo numa livraria de Tunes, não sabia que Ali Duaji era considerado o pai do conto contemporâneo tunisino. Ficou fascinado com a ironia e o sarcasmo do autor que, nos anos 30, “satirizava as novas classes burguesas que surgiam aliadas ao poder político do protetorado francês, com aquela mistura de costumes muito confusa”. Mas a sua mais recente tradução, parece-lhe, sobretudo, um relato de viagens muito particular. “Uma viagem através dos bares da Europa e da Ásia, ignorando os locais tradicionais de visita como os museus”. Confessa que até se identificou com isso, dando um exemplo “vergonhoso”: viveu um mês em frente ao museu Van Gogh de Amesterdão e nunca o visitou. “E adoro o pintor. Já vi os quadros dele do Museu d Orsay!”

Paulo Faria

Licenciado em Biologia, o escritor e tradutor literário Paulo Faria chegou a dar aulas nessa área, embora não fosse aquilo de que gostava. O avô era professor de línguas no Colégio Militar e ensinou-lhe inglês e francês desde muito novo. Ficou-lhe a vocação para as letras que explorou como autodidata e, quando surgiu a oportunidade de fazer tradução literária, aproveitou.

Traduz do francês, mas essencialmente do inglês. Traduziu Emily Brontë, Jane Austen e Charles Dickens, porém, ressalva que quando as pessoas o referenciam nesta vertente, costumam dizer que “é o tradutor do Cormac McCarthy”, autor pelo qual nutre uma admiração especial e de quem traduziu doze títulos. “Traduzi três deles por duas vezes de raiz, porque o resultado das primeiras traduções me começou a irritar, quando calhou folheá-las uns anos depois: Meridiano de Sangue, O Guarda do Pomar e Filho de Deus.”

Ganhou o Grande Prémio Internacional de Tradução Literária da Sociedade Portuguesa de Autores 2015 com a tradução de História em Duas Cidades de Dickens e, talvez por isso, o seu nome surja quase sempre associados aos grandes clássicos. É também de Dickens a sua mais recente tradução: O Mistério de Edwin Drood. Trata-se do último romance do autor que ficou incompleto, pois Dickens morreu subitamente a meio do livro. Tem, por isso, “essa característica bizarra de ser um romance de vocação policial em que o mistério não é resolvido. O mistério do título torna-se assim um mistério duplo.”

Paulo cita Dire Quasi la Stessa Cosa: “obra em que Umberto Eco diz que na tradução nunca se consegue dizer a mesma coisa, mas consegue-se dizer quase a mesma coisa se o tradutor for bom. Eco define a tradução como uma interpretação que segue uma negociação. Concordo com ele. No caso da tradução de um escritor como Dickens é preciso perceber o que os leitores da sua época sentiam quando liam aquele texto que para eles era natural (embora nem todos falassem assim) e tentar depois criar uma artificialidade natural. Não conseguimos reproduzir em português a linguagem da época, nem o leitor contemporâneo quererá isso. A boa tradução deverá ir ao encontro do leitor sem distorcer o original. É justamente essa a razão pela qual as traduções envelhecem. Cada geração traduz o Dickens ou o Victor Hugo porque o nosso mundo já não é o mundo deles, mas também já não é o mundo das traduções dos anos 40. Enquanto escritor, quando redijo um romance não penso nos leitores, enquanto tradutor, penso sempre no leitor.”

Manuel Alegre

As Sílabas de Amália

Há mais de meio século, Manuel Alegre, exilado político em Argel, recebeu uma carta enviada de paris: Alain Oulman musicara Trova do Vento que Passa e pedia-lhe autorização para ser gravada por Amália Rodrigues. O autor de Praça da Canção respondeu dizendo da sua “alegria e honra em ser musicado por ele e cantado por Amália” e admirou a coragem da fadista “em cantar um poeta proibido”. Esta seria primeira colaboração entre o poeta, o músico e a intérprete que se estenderia a outros três belíssimos fados: Meu Amor É Marinheiro, Abril e As facas. Para o poeta, Amália “dava outra dimensão a cada verso e fazia da língua portuguesa uma música inconfundível”. Neste volume, Manuel Alegre reúne os poemas de sua autoria que a fadista cantou, os que sobre ela escreveu e aqueles que “exprimem uma visão do fado que em grande parte fiquei a dever a Alain Oulman e a Amália Rodrigues”. Um tocante tributo de um grande poeta ao Centenário de Amália porque, como escreve sobre a genial cantora, “tu mais que tu és todos nós.”

Dom Quixote

Ali Duaji

Périplo pelos Bares do Mediterrâneo e Outras Histórias

Apesar de ter escrito menos de uma trintena de contos, o novelista, dramaturgo, ensaísta cronista, critico literário jornalista e caricaturista Ali Duaji é considerado o pai da moderna novela tunisina. Falecido prematuramente em 1949, aos quarenta anos, vítima de tuberculose, Duaji foi um dos membros que integraram e dinamizaram o colectivo vanguardista e multifacetado conhecido como grupo Taht Essour, nome do café que frequentavam em Tunes, que defendia uma modernização, não só das letras e artes tunisinas, mas da própria sociedade. Périplo pelos Bares do Mediterrâneo promete um trajeto que “começa em França, passa por Itália, Grécia, Turquia e Levante, e cujo ponto – pelo menos na minha perspectiva – é a cidade de Alexandria, a última desta nossa viagem e também a mais importante”, porém termina em Esmirna sem qualquer menção posterior à Siria, ao Libano, à Palestina ou ao Egipto. Não se conhece a razão de assim ser, talvez se fique a dever ao temperamento anárquico do autor que começa “a ler qualquer poema pelo fim”. O escritor adverte que neste périplo verdadeiramente atípico “nada vimos a não ser os bares e os cafés” do esplêndido mar Mediterrâneo e que não irá referir “curiosidades dos museus”, “maravilhas da natureza”, nem “descrever as ruas, as praças, os jardins e os edifícios. “Realizei esta viagem para me divertir e, ao relatá-la, não tenho outra ambição que não seja a de divertir também o leitor”.

E-Primatur

Joris-Karl Huysmans

À Deriva

De Huysmans (1848-1907) diz-se ter tido dois períodos enquanto escritor, primeiro o naturalismo, depois o decadentismo e o simbolismo. Tem em À Rebours (1884) o seu livro mais celebrado, que alguns lembraram a propósito do período de confinamento a que fomos sujeitos, e aos seus méritos, pegando na figura de Jean Des Esseintes, um dandy e um esteta que se fecha em casa para desfrutar de prazeres que excluem os seus semelhantes. Este desencanto com a vida quotidiana, com as suas gentes e lugares está já presente na novela À Deriva (1882), que pode ser lida, e o próprio Huysmans reconhecia, como um ensaio para À Rebours. Aqui o protagonista é Jean Folantin e o que pensa da vida é expresso após ter privado com a prostituta que se lhe impôs à mesa de um dos restaurantes decrépitos que frequenta: “abarcou com uma vista de olhos o horizonte desolado da vida; compreendeu a inutilidade das alterações de rota, a esterilidade dos impulsos e dos esforços (…) disse para si, a vida do homem oscila como um pêndulo entre a dor e o tédio”.

VS. Editor

Mário de Carvalho

Epítome de Pecados e Tentações

Mário de Carvalho regressa ao universo do conto com um volume consagrado às relações entre homens e mulheres. O volume dividido em três partes inicia-se com duas narrativas de certo fôlego: a primeira conta uma relação de fascínio obsessivo de um homem por uma mulher (“Eu detestava-a em desespero por amá-la demais”), e a seguinte descreve uma série de encontros fortuitos no Hotel Azul, estância termal de luxo. Na segunda parte, uma sequência de contos breves protagonizados por mulheres e relatados na primeira pessoa narram aventuras de uma noite. Na terceira parte, a única narrativa em que “a felicidade dos amantes perdura” conclui esta belíssima colectânea. Amores juvenis ou tardios, tentações, pecados, fascínios, traições, adquirem um sabor especial através da prosa evocativa de Mário de Carvalho de grande riqueza e variedade lexical. O escritor olha para estes “casos” e seus protagonistas com domínio soberano da ironia, mas excluindo a crueldade e a ferocidade. Pois como refere um dos seus personagens “Em campo de ferocidade, mais feitio tenho para vitima que para verdugo”.

Porto Editora

 

Joël Dicker

O Enigma do Quarto 622

É com um cadáver estendido na alcatifa do quarto 662 de um hotel de prestígio dos Alpes suiços que se inicia o novo mistério de Joël Dicker. O escritor estreou-se com Os últimos dias dos nossos pais. Mas foi a publicação do segundo romance que fez dele um fenómeno literário global: A verdade sobre o caso Harry Quebert foi publicado em trinta e três países, vendeu mais de quatro milhões de exemplares e venceu o prémio de melhor romance da Academia Francesa de Letras, o Prix Goncourt des Lycéens e o prémio da revista Lire para melhor romance em língua francesa. O seu quinto romence, o primeiro ambientado na sua Suíça natal, é dominado por uma questão chave: que crime terrível teve lugar no quarto 622? A morte misteriosa ocorre em plena festa anual de um prestigiado banco suíço, nas vésperas da nomeação do seu presidente. A investigação policial nada conclui e a passagem do tempo leva a que o caso seja praticamente esquecido. Quinze anos mais tarde, o escritor Joël Dicker hospeda-se nesse mesmo hotel, para recuperar de um desgosto amoroso e para fazer o luto do seu estimado editor, sem imaginar que acabará a investigar esse crime do passado. Não o fará sozinho: Scarlett, uma bela mulher hospedada no quarto ao lado do seu, acompanhá-lo-á na resolução do mistério, ao mesmo tempo que vai decifrando a receita para escrever um bom livro.

Alfaguara

Victor Correia

Homossexualidade no Livro do Desassossego de Fernando Pessoa

Na obra Homossexualidade e Homoerotismo em Fernando Pessoa, Victor Correia, doutorado em Filosofia Política e Jurídica na Universidade da Sorbonne, em Paris, e pós-doutorado em Ética e Filosofia Política FCSH da Universidade Nova de Lisboa, reuniu os muitos textos de poesia e de prosa em que o escritor exprime sentimentos homoeróticos, ou em que aborda o tema da homossexualidade, de forma mais ou menos explícita. Neste seu mais recente estudo, estabelece relação entre o Livro do Desassossego e a generalidade da obra literária de Fernando Pessoa mostrando pontos de confluência e complementaridade recíprocos. Segundo o autor: “Entre os vários temas do Livro do Desassossego, encontra-se também o da homossexualidade, que era uma das razões do desassossego de Fernando Pessoa. Alguns dos textos aqui selecionados são uma referência direta à homossexualidade, outros são uma referência indireta, e outros são o resultado de uma interpretação nossa. Junto da seleção e da organização dos textos por subtemas, encontram-se aqui explicações de modo a tornar mais acessível cada um desses textos, que são por vezes de difícil compreensão, devido ao seu carater enigmático, aos seus subentendidos, às suas máscaras”.

Edições Colibri

Rosa do Rio

Diários do 1992

A partir das notas rabiscadas na sua agenda Redstone de 1992, Rosa do Rio, pseudónimo literário de Rosário Soares Carneiro, que divide a sua actividade entre as artes plásticas e a escrita, guia-nos numa viagem pela Europa e pelos altos e baixos de um ano que acabaria por revelar-se marcante. No prefácio à presente publicação, Pedro Elston destaca: (…) esta vontade de mostrar e esconder ao mesmo tempo faz com que estes diários se tenham de ler como um jogo em que o leitor recebe apenas breves alusões que pode transformar em pistas de um caminho a reconstruir: algumas datas, acenos breves a encontros e desencontros com os que estão mais perto ou mais longe, uma geografia particular de idas e vindas pela Europa com a África em pano de fundo. Mas mais importante do que tudo isto, indícios de grandes abalos de alma, de um longo momento de passagem em que se pedem contas ao passado, se medem forças com desejos e desconsolos, se faz frente às temíveis possibilidades do amor e da morte”. Por sua vez, José Sousa Machado salienta na morfologia deste diário: “uma depuração e limpeza de linguagem de tal modo minuciosas que os acontecimentos sobre os quais pressentimos ter sido construído o texto esfumam-se muitas vezes num limbo poético, conformando categorias simbólicas universais, aplicáveis à generalidade da condição humana, tal como sucede com os relatos mitológicos.”

Adelaide Books Portugal

Ondjaki

A Estória do Sol e do Rinoceronte

“É sabido que o rinoceronte é um animal de grande sabedoria. Dizem que isso vem de uma lição que o sol lhe deu…” Estas duas frases dão início à nova história infantil de Ondjaki, Prémio Literário José Saramago 2013. Tal como nos belíssimos Ynari; A Menina das Cinco Tranças e Uma Escuridão Bonita, o local escolhido para a ação é, uma vez mais, a sua África natal. Esta narrativa tem com herói principal um dos mais impressionantes exemplares da sua fauna, o rinoceronte, que o escritor reveste de uma tocante humanidade. Numa floresta antiga, um rinoceronte de grande porte e com um só chifre perguntava-se que tristeza tão grande era aquela que sentia no coração. Não se contentava só com a força que tinha e foi então que pediu ajuda ao sol. Esta é uma fábula de encantar escrita em verso por Ondjaki, uma das vozes mais originais e talentosas da sua geração, e ilustrada por Catalina Vasquez, artista visual sul americana que cunha o seu trabalho com versatilidade e ousadia. Uma história inspiradora, comovente e bela sobre um rinoceronte, o sol e a importância da empatia, da gentileza, da ternura e da sensibilidade.

Alfaguara

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