Uma entrevista à jurista, investigadora e cronista Rita de Carvalho Serra transmitida na rádio despertou na atriz Maria Henrique, conhecida do grande público, sobretudo, pelos seus papéis na comédia, a vontade de se (voltar a) desafiar enquanto artista. Em causa, o livro A Assassina da Roda, lançado em 2020 pela editora Guerra & Paz. “Ao ouvir a história daquela mulher condenada pelo assassinato de 33 crianças, senti uma vibração, quase como um acesso de loucura, e depressa recorri às redes sociais para entrar em contacto com a autora”, conta a atriz.

Foi o início de uma colaboração que está na génese do espetáculo, estreado a 29 de abril no Teatro da Trindade, não muito longe do local onde, a 1 de julho de 1772, padeceu aos olhos do povo da cidade a tenebrosa infanticida. Em palco, na companhia do músico Hugo Aristide, Maria Henrique encarna Luiza de Jesus, revelando episódios da vida de uma mulher e plantando no espectador a dúvida de estar perante “um monstro ou uma vítima” da justiça cruel da época, impiedosa no uso da tortura e da violência.

“Algo que me inquietou nesta história foi perceber como o recurso à tortura levava os processos judiciais a terem, de antemão, um fim determinado”, sublinha Maria Henrique a propósito das sevícias impostas a Luiza de Jesus durante o cárcere. Como lembra o advogado e investigador José António Barreiros, em texto integrante da folha de sala do espetáculo, “a condenação era a de que morresse, mas não sem que antes lhe decepassem as mãos e «atenazada» fosse, o que vale dizer queimada com um ferro em brasa; morte sim, enfim, não pela sufocação de uma corda que a asfixiasse, mas pelo garrote que a isso juntava a lenta perfuração do pescoço.”

No contexto da peça, a dúvida da culpabilidade surge no discurso em off do intendente Pina Manique, que se debate pela averiguação rigorosa dos factos, em contraponto com as “certezas” dos acusadores. Como lembra a atriz, “estamos já no declínio da Inquisição e era imperativo para o clero mostrar publicamente o seu poder.”

No seu ambiente espectral e na “não-linearidade” narrativa, Luiza de Jesus – A Assassina da Roda apresenta-se como um espetáculo de questionamento, em que uma personagem a priori monstruosa, ganha uma perturbadora dimensão humana. “E isso não quer dizer que se procure desculpabilizar seja o que for”, alerta Maria Henrique, lembrando que “as pessoas não são só uma coisa e nem sempre as histórias são tão lineares como aparentam.”

Um debate que, aqui, é o teatro a propor, mesmo que com uma história passada há mais de dois séculos, mas com pertinente atualidade quando os temas da justiça estão, por estes dias, no centro das atenções.

Consegue encontrar algum aspeto positivo nestas quase duas temporadas de paragens prolongadas da CNB?

O primeiro confinamento apanhou-nos a todos de surpresa; de um dia para o outro ficamos confinados às nossas casas, sem acesso ao teatro. O sentimento foi de desorientação, de não acreditar que tudo isso estava de facto a acontecer e, ainda mais angustiante, sem fim determinado. Mas depressa tivemos de nos adaptar. No segundo confinamento, contávamos com a aprendizagem do anterior; mantivemos alguns eixos de atuação, algumas práticas e melhorámos e criámos outras. Aprendemos muito com o primeiro período em que fomos afastados dos estúdios, do palco, da presença do público… Logo de início identificámos dois níveis de trabalho como os nossos grandes focos. Por um lado, uma dimensão interna, de manutenção física do elenco artístico fixo que, numa Companhia Nacional, vive de uma rotina diária de grande exigência; e por outro, uma dimensão externa, de ligação ao público, com quem vínhamos construindo uma relação mais próxima e direta, com resultados muito expressivos no aumento da afluência aos espetáculos e atividades da CNB. Foi sempre muito evidente e presente que não poderíamos descurar estes dois níveis de atenção. Foram períodos complexos, mas em que vimos, por exemplo, potenciados projetos a que já tínhamos dado início e que se centravam numa existência sobretudo digital; os confinamentos vieram sublinhar a sua pertinência e acentuar o seu desenvolvimento. Mostrámos espetáculos, mas também desvendámos curiosidades do trabalho da equipa da CNB, dos bailarinos, partilhámos testemunhos sobre processos criativos de diversas obras e dos seus criadores, mergulhámos no arquivo da Companhia…foi muito interessante perceber como esses projetos ganharam uma outra dimensão e projeção mantendo a ligação a um público que já acompanhava o nosso trabalho e aproximando outro que assim teve oportunidade de o ir descobrindo. Apostámos muito no acesso à CNB por essa via e os resultados foram muito surpreendentes, com muitas mensagens de agradecimento e de motivação por parte de quem nos foi acompanhando.

Considera dar início à constituição de um arquivo de espetáculos filmados para que existam conteúdos para partilhar em momentos como este?

A CNB tem um vasto arquivo, mas que foi sempre pensado como de “consumo, sobretudo, interno”; os espetáculos são desde há muito registados, mas não com a perspetiva de transmissão posterior, mas sim de consulta, como documentos de trabalho. Filmar espetáculos de dança para transmissão não é a mesma coisa; implica outro tipo de recursos técnicos que até ao momento a Companhia não teve. E se, num primeiro momento, disponibilizámos alguns registos de espetáculos como um recurso imediato a partilhar com o público, no segundo confinamento optámos por apostar, como referi antes, noutro tipo de conteúdos, potenciando inclusive outra documentação do próprio arquivo da CNB.

Ensaio © Hugo David

Que efeitos tiveram estas interrupções tão prolongadas sobre o planeamento dos espetáculos a apresentar?

No meu caso particular, tendo eu assumido as funções de diretora artística da CNB em setembro de 2018, vi as duas temporadas seguintes interrompidas e um pouco desvirtuadas em relação ao projeto que tinha desenhado, e aos objetivos que projetava atingir para a Companhia neste mandato. Mas a verdade é que, no momento em que a primeira interrupção foi anunciada o meu primeiro pensamento foi para os bailarinos. Um bailarino de uma companhia como esta é equivalente a um atleta de alta competição na exigência e necessidade de um treino e atividade diários; não lhe é natural estar parado, isolado, circunscrito a um espaço pequeno onde o corpo não se possa expandir. E embora no segundo confinamento tenham sido melhoradas substancialmente as condições proporcionadas aos bailarinos, a falta de ensaios, o estar longe do estúdio e dos seus pares, implica necessariamente com a sua manutenção e condição físicas. E isso, interfere consequentemente no modo como se organiza a programação pois esta tem que ser consciente do tempo de recuperação que estas paragens implicam. Por outro lado, a programação assenta num calendário no qual cada projeto está pensado para um determinado momento que antecede e sucede um outro projeto. Ao adiarmos um ou vários espetáculos, como foi o caso, estamos a fragilizar essa estrutura original que tínhamos criado ao mesmo tempo que é necessário gerir vários fatores para que o possamos voltar a calendarizar. No caso da CNB, conseguimos, juntamente com os artistas, encontrar novas datas para todos os espetáculos que já tínhamos contratados e assim manter e honrar os compromissos.

O palco da CNB em Lisboa será sempre, exclusivamente, o Teatro Camões, ou considera que a Companhia se poderá vir a apresentar em outras salas da capital?

O Teatro Camões é a casa da Companhia Nacional de Bailado, e é aí que a sua equipa trabalha diariamente ensaiando e preparando tecnicamente os seus espetáculos. Naturalmente é aí que se apresenta com mais regularidade, mas isso não significa exclusividade. A história da Companhia conta com apresentações noutras salas de Lisboa ao longo dos tempos (como é o caso do Teatro Municipal de São Luiz, o Centro Cultural de Belém e o Teatro Nacional de São Carlos), e continuará certamente a contar. Há colaborações a ser desenhadas para as quais se procuram sinergias e lógicas de programação que resultam de interesses e vontades comuns.

A que critérios obedece a calendarização de audições para a entrada de novos bailarinos?

As audições acontecem mediante a necessidade, e possibilidade, de contratar novos bailarinos para o elenco, mas habitualmente acontecem no período entre fevereiro e maio de modo a poder preparar-se a temporada seguinte.

Ensaio © Hugo David

Já tomou medidas da sua inteira responsabilidade depois de ter assumido a direção da CNB?

Ao assumir funções enquanto diretora artística da CNB, em setembro de 2018, assumi também de imediato todas as responsabilidades que me competem. E havendo, a nível de programação um conjunto de obras já agendadas pela anterior direção artística, comprometi-me desde logo a levar avante esses projetos tentando, por exemplo nalguns casos, e em total diálogo com os artistas, encontrar os contextos de apresentação, o momento na temporada, que me pareciam mais adequados. Programar é também cuidar, é criar o espaço e o tempo certos para valorizar as obras, os seus criadores e os bailarinos. Desde setembro de 2019 a programação, embora interrompida por dois confinamentos, é da minha responsabilidade. Naturalmente o trabalho de diretora artística da CNB não se encerra na programação de espetáculos; do meu ponto de vista a missão da Companhia completa-se no desenvolvimento de outras atividades complementares que é preciso desenvolver mais como masterclasses, conversas, exposições, edições. Mas também nas parcerias que cria e que ajudam a expandir o seu potencial. São muitas dimensões. E por isso, ainda na primeira temporada dei início a projetos criados por mim e que, de algum modo, começaram a dar sinais sobre a amplitude de programação que tinha imaginado para a Companhia; dediquei muita atenção ao modo como a CNB comunicava e se relacionava com o público, à imagem que passava, e analisei as ferramentas que utilizava para, com a equipa, investir num refrescar dessa imagem acompanhado por uma oferta ao público de conteúdos que se completem e melhorem a sua experiência junto da Companhia. E claro, há um trabalho diário que é preciso estruturar e que tem a ver com a gestão do elenco artístico, com a organização das aulas diárias dos bailarinos, com os professores convidados que as lecionam; há um trabalho de fundo que se prende com o trabalho de apoio à manutenção física, à prevenção e recuperação de lesões. Existem também questões estruturais que é preciso cuidar, que precisam de um grande investimento, como é o caso das promoções e do desenvolvimento das carreiras dos bailarinos. A CNB tem um conjunto de bailarinos incríveis, versáteis, com uma energia jovem, de grande qualidade e, desde que assumi funções, que acredito no potencial da Companhia para ocupar um lugar de maior destaque a nível nacional e internacional.

O que pode antecipar sobre a programação da nova temporada?

Temos ainda alguns espetáculos, que estavam previstos inicialmente para 2020, que serão apresentados na próxima temporada, mas que, esperamos, sejam os últimos reagendamentos. Continuaremos a apostar numa programação que dê corpo à história da dança, à sua memória olhando para o passado através de obras de repertório, mas também às suas expectativas construindo futuro com novas criações. Embora a programação esteja ainda em construção posso desvendar que contaremos com a nova criação de um novo bailado clássico.

Dia Mundial da Dança na CNB. [ver programa]

Antes de mais, a pergunta que se impõe: como é trabalhar maioritariamente para o público mais novo? É preciso algum cuidado especial?

É preciso, antes de tudo, não o infantilizar. Digo muitas vezes que os livros/objetos ditos para crianças/jovens não são só para adultos. São, na verdade, os únicos objetos artísticos que são para todos. Se um livro ou um espetáculo não for bom para um adulto, for simplista ou estereotipado, também não o vamos oferecer a uma criança, pois não? Para mim é importante que os livros ou o espetáculo abram portas: que gerem perguntas, a descoberta de uma palavra nova, de uma referência a uma obra de arte, etc. Se esses objetos não acabarem quando se fecha a contracapa ou se sai do teatro, tanto melhor. Simultaneamente, desenhar e escrever para crianças (ou para todos) é, a meu ver, um processo de síntese: de eliminação do acessório, de redução ao fundamental. Não só porque o leitor ou espetador é mais selvagem e observa o objeto artístico a partir de um lugar de maior essência, mas também de maior liberdade. E ao ser sintética abro espaço à interpretação e à criatividade do leitor/espetador. É, por isso também, a criação de um lugar permeável, não prescritivo e que nasce, geralmente, das emoções.

Basta folhear os seus livros para perceber que usa muitas técnicas de ilustração diferentes. Qual a sua preferida e porquê?

Gosto mais de materiais riscadores: lápis, marcadores, lápis de cera. Prefiro o traço ao pincel, em geral, e quando uso tintas normalmente é para criar texturas dentro de formas definidas a tesoura (como no Vazio, por exemplo) ou a x-ato (como no livro O Meu Avô).

Qual a maior fonte de inspiração para o seu trabalho?

Outros objetos artísticos e outros autores. Normalmente, as interpretações da realidade ou as ficções inspiram-me mais do que a realidade. Normalmente, mas há exceções. O Impossível, por exemplo, é uma história verídica.

O que mudou no seu trabalho – e em si – com a atribuição do prémio da Feira de Bolonha em 2014?

Na verdade não sei. Se me deu mais confiança no meu trabalho e mais reconhecimento foi durante um período alargado. No livro que publiquei imediatamente depois (A Sereia e os Gigantes) senti muito medo de falhar, mais do que antes. Agora sinto que o métier é mais fácil, não tem tantos segredos e não é quase exclusivamente resultado da intuição. Mas se isso acabaria por surgir naturalmente com o tempo, nunca saberei.

Impossível, Orfeu Negro, 2018

 

Este mês, volta a apresentar no LU.CA o espetáculo Impossível, baseado num dos seus livros. Como descreve este livro?

O Impossível é um livro de não-ficção que conta, como se fosse uma narrativa de ficção, a história do Universo, desde o Big Bang até ao aparecimento do Homem. Por ser uma história muito improvável e fruto de um evento singular, de um desvio ou rutura com o pré-existente, não é muito diferente de outras histórias que já inventei (penso no Greve ou no Achimpa, por exemplo). Talvez por isso me tenha atraído tanto a ideia de tentar explicá-la. Embora seja astrofísica, é astrofísica para crianças e por isso serve-se de algumas metáforas e brincadeiras para que os factos científicos pareçam (ainda) mais divertidos.

Como se deu o salto das páginas para o palco?

Na verdade, o salto foi ao contrário. Primeiro, fui convidada a criar o espetáculo e mais tarde fiz a adaptação do Impossível para livro. Há poucas diferenças entre os dois objetos em termos de texto e figuração, mas são muito distintos nas cores e nos materiais que escolhi para ilustrar cada um. Acima de tudo, porque a técnica de projeção que utilizo no espetáculo implicou que trabalhasse com transparências e com figuras passíveis de serem recortadas (cada elemento das ilustrações é um objeto que entra e sai do plano de projeção). As formas são por isso mais planas e geométricas, sem texturas ou modelação nas ilustrações do Impossível de palco. No livro, por outro lado, falta a quarta dimensão, falta a música, a voz da Madalena, a relação que nós os três – eu, a Madalena e o Kent – estabelecemos no espaço cénico. E isso foi, de certa forma, colmatado com a utilização de formas, composições e cores mais livres, mais exuberantes, até mais rítmicas. O texto do livro também tem outra duração: podemos ficar o tempo que quisermos numa página do livro. Já em palco, o tempo é outro: a mesma frase que está escrita no livro é dita num período limitado. E essa diferença também teve de ser tida em conta na transposição do espetáculo para o formato do livro.

O que se pode esperar deste espetáculo?

Trinta minutos de astrofísica com recurso a crocodilos, aparas de lápis, uma lupa gigante e um jingle sobre o Big Bang, lá pelo meio. Espero que seja divertido antes de ser instrutivo. Aliás, espero que seja muitas coisas antes de ser instrutivo: intrigante, questionador, cómico. Se as crianças saírem do teatro contentes, a saber que existem partículas, a missão está cumprida.

Agora a pergunta ingrata: de todos os livros que escreveu e ilustrou, qual o seu preferido?

O Impossível, claro.

Que outro autor gostaria particularmente de ilustrar?

O Julio Cortázar. Gostava até de adaptar uma história dele para cinema de animação.

Se pensarmos nos grandes filmes que colocaram o cinema a olhar para o teatro (e que, afinal, não serão assim tantos), Opening Night é, seguramente, um dos títulos incontornáveis. O filme de John Cassavetes não só é um dos melhores do realizador que marcou o cinema independente americano desde finais dos anos 1950, como aquele em que a sua musa Gena Rowlands terá, porventura, criado uma das mais impressionantes personagens femininas da história do cinema. Logo, de antemão, é assinalável o desafio que Martim Pedroso – e, consequentemente, Dalila Carmo, interpretando o papel que Rowlands imortalizou – assume ao propor a adaptação para palco desta obra-prima de 1977.

O desafio partiu, precisamente, da atriz Dalila Carmo que, como conta o encenador com simpatia, “passa a vida a desafiar-me para novos projetos”. Apesar de recordar o filme de um “provável visionamento, há muitos anos, na Cinemateca”, Pedroso levantou algumas reticências quanto à possibilidade de levar Noite de Estreia para o palco. “Quando o revi, fiquei com a sensação de que era impossível”, confessa. Contudo, o processo começou a ganhar forma, primeiro com a paixão contagiante da atriz pelo filme e pela personagem de Myrtle Gordon, depois com o próprio encenador a partir à descoberta de formas que permitiriam superar as barreiras que separam cinema e teatro, duas linguagens tão próximas e, simultaneamente, tão distantes.

Parte dessas barreiras acabaram por ser superadas através do recurso ao vídeo, em vários segmentos de filme realizados por Ruben do Valle, que não só permitem encaixar as peças na narrativa, como prestar o devido tributo a um grande filme dirigido por um cineasta de exceção, que se distinguiu, sobretudo, no modo como filmava e dirigia os atores. Mas a exigência de levar à cena Noite de Estreia encontraria ainda uma outra contrariedade que passou pela obrigatoriedade da adaptação ser fiel ao script original de Cassavetes. Como sublinha Martim Pedroso, “isso impossibilitou a hipótese de reescrever algumas cenas, o que tornou ainda mais complexo o trabalho de encenação.”

“Uma peça feminista”

Noite de Estreia apresenta-se como uma arrebatadora elegia sobre o envelhecimento e a morte, tendo como epicentro uma atriz de sucesso, Myrtle Gordon, confrontada com a construção de uma personagem numa peça em que lhe pedem que assuma o envelhecimento no qual ela não quer nem se pretende rever. No final de um dos ensaios (no filme é uma preview), uma jovem fã é colhida mortalmente por um automóvel à saída do teatro, acontecimento que perturba a já de si periclitante existência de Myrtle, cada vez mais assolada pela dependência do álcool e pelo vício de “estar a pé toda a noite”.

A atriz começa então a projetar a memória de juventude no fantasma de Laura (Margarida Bakker), a jovem que perdeu a vida de um modo tão trágico, deixando-se arrastar numa espiral de questionamento sobre si mesma enquanto mulher e artista que, embora amplamente consagrada e amada pelo público, nunca deixou de estar remetida às convenções estabelecidas pelos estereótipos da sociedade patriarcal.

Como salienta o encenador, “Myrtle é uma mulher cansada da sociedade que diz que a atriz tem de levar estalos em cena, farta de ter de representar o papel de mulher que não é o dela, nem o que ela acha ser o de nenhuma mulher dos tempos de hoje. Farta de a confrontarem com a idade, com o não ser mãe ou com o facto de os seus relacionamentos terem falhado todos. Portanto, se o filme é assumidamente feminista, a peça não poderia deixar de o ser. E essa é uma das muitas camadas que pretendo salientar no espetáculo.”

Essa revolta de Myrtle é então lançada contra o objeto artístico que lhe querem impor. A Segunda Mulher, título da peça que a atriz ensaia, curiosamente escrita por uma mulher, a conservadora Sarah Goode (Maria José Paschoal), “é demonstrativa do machismo endémico” contra o qual Myrtle se propõe lutar e, entre o desespero e a razão, resta-lhe “pôr o seu teatro de pernas para o ar.”

Noite de Estreia conta ainda com interpretações em palco de João Reis, Heitor Lourenço, João Araújo, Marta Félix e Sabri Lucas, e em vídeo de Inês Santos Caramuchande, Isabél Zuaa, Madalena Brandão, Mauro Herminio e Noah Santos Caramuchande. O espetáculo está em cena até 6 de junho.

O facto de ser bilingue atrapalha-o na sua escrita?

Curiosamente até me ajuda em relação aos livros para crianças. Descobri algo que não fazia originalmente, mas que agora gosto de fazer: escrevo uma primeira versão em português e depois faço uma versão inglesa que é traduzida, mas à qual acrescento elementos que depois vão surgindo na minha cabeça. Isto é engraçado porque depois transfiro o que gosto da versão inglesa para a versão portuguesa, e mais coisas surgem, mais personagens inesperadas…

Então é como se escrevesse o livro três vezes…

Escrevo-o muitas vezes. Cada versão, inglesa e portuguesa, influencia a outra, que, por sua vez, influencia a versão final. Para mim é uma mais-valia ter esse debate/conversa/diálogo entre a versão inglesa e a portuguesa. Para mim é uma vantagem.

Como está a viver a fase atual que o mundo atravessa? Sentiu-se, de alguma forma, inspirado para escrever, ou o confinamento teve o efeito contrário em si?

Há fases diferentes do confinamento. Nos primeiros meses de confinamento do ano passado (março, abril) todos ficámos perturbados, mas, em relação à minha escrita, o meu horário mudou bastante. Antigamente, eu escrevia sempre de manhã, que é quando estou mais alerta, mais vivo, mais dinâmico. Pelas nove horas, logo a seguir ao pequeno-almoço, já estava sentado em frente ao computador a escrever. Com a Covid’19 e todo o stress e a desorientação, eu precisava de algumas horas da manhã para não fazer nada… Tomar o pequeno almoço, ver televisão, ler, ouvir música, fazer um passeio… Só da parte da tarde é que começava a escrever, o que é completamente diferente. Agora, estou numa fase em que às vezes escrevo de manhã, outras vezes da parte da tarde. Não há um horário fixo, o que também para mim é novo, mas estou a aprender, como muita gente, a, pouco a pouco, não me pressionar, não criar mais stress na minha vida, porque já temos stress suficiente.

©Humberto Mouco/ CML-ACL

Na terra dos animais falantes é o seu mais recente livro para crianças. De onde surgiu a inspiração para esta história?

Comecei a escrever sobre um jovem no Algarve, com os pais, e surgiu logo o facto de ele ter perdido a sua grande amiga, a cadela Miss Marble. A partir daqui percebi que queria escrever um livro sobre esse trauma [de perder um animal de estimação], e de como é que este jovem, com ajuda dos pais e de outras pessoas, pode ultrapassar esse trauma e continuar a sua vida. Não sei porquê, mas gosto sempre de usar magia nos meus livros para crianças, gosto sempre de falar de animais porque os jovens conseguem formar uma relação afetiva e duradoura com os seus animais. Isso é uma vantagem para qualquer escritor de livros para crianças, porque podemos aproveitar essa capacidade infantil para captar a atenção e as emoções dos jovens. Foi um processo que começou primeiro com a morte da Miss Marble, e depois de perceber que eram precisamente os animais que iam ajudar a personagem principal.

Qual é o maior desafio em escrever para crianças?

Usar uma linguagem poética, muito visual, muito colorida… Há duas coisas importantes. Primeiro: temos de ser muito honestos. Eu podia ter escrito um livro mentiroso e dizer que bastam uns beijinhos dos pais para o rapaz recuperar e conseguir ultrapassar esta dificuldade. Isso é uma fantasia. Eu sei, porque perdi uma cadela quando tinha 10 anos e não foram os beijinhos da minha mãe que curaram essa minha tristeza. Não lhes podemos mentir. Temos que dizer frontalmente que sim, a morte é difícil, é muito difícil enfrentar a morte de um ente querido, mas consegue-se. Honestidade primeiro, e, em segundo, não podemos escrever uma coisa maçuda. Cada parágrafo tem de ter elementos que despertem a imaginação das crianças. A última coisa que queremos com uma criança de 5, 7, 10 anos, é dar-lhe uma lição de moral. Temos de captar a atenção e a imaginação da criança.

As crianças são os leitores mais difíceis de agradar?

Na minha perspetiva não. Antes da pandemia, eu fazia muitas sessões nas escolas com crianças entre os 5 e os 10 anos e eles adoram histórias. Adoram falar com os escritores, fazer perguntas. As professoras dizem-me que as crianças adoram ler, adoram ouvir histórias. Só quando atingem a adolescência, aos 12/13 anos, é que começam a perder esse hábito. As crianças fazem perguntas maravilhosas. A melhor pergunta que já me fizeram foi numa sessão em Fafe há uns três ou quatro anos, um rapaz com uns sete anos perguntou-me: “quantos livros é que o senhor ainda não escreveu?” É espetacular, é budista. Adorei a pergunta. Gosto muito de fazer sessões com crianças.

O que está a ler neste momento?

Curiosamente, estou um livro que é meio ficção científica, mas muito realista (não é aquele tipo de ficção científica que fala sobre outros planetas e seres com três cabeças…). Decorre no nosso planeta, com figuras realistas e foi escrito por um grande escritor de ficção realista e ficção científica, que se chama John Wyndham. Escreveu vários livros excelentes. Este chama-se Chocky, e é sobre um jovem de 12 anos que tem um amigo invisível, imaginário, como muitas crianças têm. Só que este amigo em particular talvez não seja tão imaginário assim, porque acrescenta elementos e conversas que uma criança de 12 anos não tem. Estou na fase de saber o que é esse tal amigo invisível.

Qual é o autor português de que mais gosta?

Miguel Torga. Gosto muito dos contos dele – concisos e poderosos. Tive o prazer de conversar com ele por telefone, em 1992 ou 1993. Queria traduzir um conto dele para um número especial de uma revista literária americana que eu estava a organizar. Pedi para ele me indicar qual conto que gostaria de ver traduzido. Indicou-me Vicente, de Os Bichos, sobre o corvo que sai da Arca de Noé.  Disse-me que tinha, para ele, mais significado do que os outros contos.

Passados 25 anos, a Quinta Pedagógica dos Olivais é a casa de mais de cem animais, muitos deles de raças portuguesas, e de inúmeras espécies de plantas, espalhadas pela horta e pomar. Ali há burros, porcos, vacas, um cavalo, ovelhas, cabras, coelhos, galinhas, patos, cisnes, gansos e outras aves. Há também árvores de fruto, ervas aromáticas, legumes e outras plantas e um relvado que convida a muitas brincadeiras. E, como qualquer quinta que se preze, tem espantalhos espalhados por todo o lado!

Durante estes anos, a Quinta Pedagógica dos Olivais tem promovido atividades de carácter cultural, educativo e pedagógico junto de famílias e de escolas. Sempre com a promoção da ruralidade em mente, a Quinta proporciona experiências que vão desde os vários afazeres da lavoura, pecuária e cozinha tradicional (queijaria, padaria e doçaria), às hortas pedagógicas, contacto com os animais e ainda diversas atividades relacionadas com as festas e acontecimentos que marcam o calendário rural, como a apanha da azeitona, a desfolhada ou o Dia da Espiga.

Como parte das celebrações, a Quinta vai inaugurar, no dia do aniversário, 16 de abril, um Mural de Partilhas, que vai refletir, através de fotografias e testemunhos, as experiências vividas por várias gerações naquele espaço. Será também inaugurado o Alojamento Local para Insetos, uma estrutura em ferro preenchida com materiais naturais e reciclados (cortiça, pinhas, folhas, ramos de árvores, etc.) que servirá como abrigo para criação de um refúgio de polinizadores e outros animais.

Durante o mês de abril, será ainda disponibilizado uma nova versão do site da Quinta Pedagógica.

O Cinema Nimas apresenta uma programação diversa. Depois de vários adiamentos é finalmente exibido O Ciclo Rever Joseph Losey – Cineasta Essencial. Uma oportunidade imperdível de conhecer o encenador e realizador americano, que viveu exilado em Inglaterra e cuja obra, marcada por temas controversos como a corrupção, o preconceito racial e as questões sociais e políticas, foi amplamente reconhecida. Os títulos Prisão Maior, Eva – Director’ s Cut, O Criado, Acidente, Mr. Klein – Um Homem na Sombra, estreiam em cópias digitais restauradas, a 19 de abril. A partir de 13 de maio é possível ver The Go-between – O Mensageiro, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1971. Em maio, há ainda quatro sessões especiais dedicadas a Losey onde são exibidos: Cerimónia Secreta, The Big Night, The Gypsy and the Gentleman e Modesty Blaise.

O Nimas, neste recomeço, exibe também vários filmes em estreia nacional. Assim, dia 19 de abril é possível ver Undine, do alemão Christian Petzold e Nomadland – Sobreviver na América, de Chloé Zhao. Dia 22 é a vez de Já!, documentário de Jim Rakete, que acompanha jovens, ativistas ambientais, na sua luta contra o aquecimento global. Neste dia, às 20h, a sessão é seguida de debate. A 29 de abril estreiam Mais Uma Rodada, de Thomas Vinterberg e O Começo, de Dea Kulumbegashvili.

O Cinema Ideal marca também o regresso às salas com a exibição de Nomadland – Sobreviver na América e ainda com quatro obras do cineasta sul-coreano Hong Sang-Soo: A Mulher Que Fugiu, O Dia em que ele chega, Mulher na praia e O Filme de Oki. Destaque para a estreia em maio, no dia 13, do filme WOMEN MAKE FILM – as mulheres fazem cinema, de Mark Cousins, acompanhado por Be Natural – A História Nunca Contada de Alice Guy-Blaché, sobre a primeira mulher realizadora da história do cinema, realizado por Pamela B. Green e narrado por Jodie Foster. Dois trabalhos fundamentais que dão visibilidade a cineastas inovadoras e imprescindíveis.

A Cinemateca Portuguesa reabre as suas portas no dia 19 de abril com um horário reduzido (duas sessões diárias na Sala M. Félix Ribeiro, genericamente às 15h30 e às 19h), mas com um programa diversificado, concebido como antecâmara da restante programação do ano. Até 30 de abril realizam-se 22 sessões que assentam em três eixos da programação: Brevemente neste cinema, que antecipa os temas de alguns dos principais ciclos a apresentar. Destaque para a inauguração do ciclo Os Mares da Europa, que não chegou a estrear em janeiro como estava previsto; Filmes portugueses em cópias novas, que inclui as primeiras exibições nas salas da Cinemateca de três trabalhos de laboratório feitos no âmbito da preservação e divulgação do cinema português, são eles O Movimento das Coisas de Manuela Serra (1985), Cartas na Mesa de Rogério Ceitil (1975) e As Armas e o Povo (coletivo, 1975); e por fim, Novas edições, que apresenta quatro sessões especiais articuladas com o lançamento de novas edições, da Cinemateca e não só.

Candidatos aos Óscares nos cinemas

Abril é também o mês dos Óscares (a cerimónia realiza-se a 25 de abril, em Los Angeles) e muitos dos candidatos têm estreia marcada já em abril. Nomadland – Sobreviver na América é um dos mais aguardados e aquele que marca abertura das nossas salas, a 19 de abril. Realizado por Chloé Zhao e protagonizado pela veterana Frances McDormand, segue Fern, uma mulher que perde tudo depois do colapso económico da cidade empresarial onde vive. Parte então, na sua carrinha, explorando uma vida fora da sociedade convencional, como uma nómada moderna. O filme venceu o Leão de Ouro para Melhor Filme no Festival de Cinema de Veneza e é candidato, entre outros, ao Óscar de Melhor Filme, Melhor Realização e Melhor Atriz.

Dia 29 de abril está prevista a exibição de Mais Uma Rodada, de Thomas Vinterberg, obra que representa a Dinamarca nos Óscares e que está nomeado, também, para melhor realização. A história centra-se em quatro amigos que decidem experimentar um estilo de vida controverso, aplicando no seu dia de trabalho a teoria que defende que o ser humano deve ter uma pequena quantidade de álcool no sangue, para conseguir uma mente mais aberta.

No início de maio, dia 6, chega às salas O Pai baseado na peça de teatro homónima, escrita por Florian Zeller, que assume também a realização do filme e que conta com Anthony Hopkins no papel de um homem fragilizado pela idade e pela perda da memória. Está nomeado para seis Óscares, entre eles Melhor Filme e Melhor Ator.

A 13 de maio, estreia mais um candidato a várias estatuetas douradas (seis no total), Minari, do cineasta coreano Lee Isaac, distinguido com o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro. Uma obra que parte da experiência do próprio realizador que cresceu no Arkansas, no seio de uma família imigrante da Coreia do Sul e que homenageia, com este filme, a luta e determinação de todos os pais imigrantes que desejam um futuro melhor para os seus filhos.

Nasci em Portalegre e vim para Lisboa estudar aos 17 anos, já com a ideia de seguir jornalismo escrito, para o curso de comunicação social, na avenida de Berna. Inicialmente, a minha experiência de viver na capital foi um bocado aflitiva. Como muitos dos que vêm da província, estranhei as pessoas que não se falavam, os transportes públicos (lembro-me de um amigo que quando entrou pela primeira vez no metro gritou: “Isto tem cá um arranque!”).

 

Vivi em nove locais diferentes da cidade e foi numa dessas casas entre Sete Rios e a Praça de Espanha que conheci uma das personagens do romance Deixem passar o Homem Invisível, o mágico Serip. Foi uma relação marcante porque ele era muito engraçado e disparatado. Dizia-me: “Se alguma vez escreveres sobre mim, tens de expor também os meus ridículos”. Esta rua foi importante e serve de cenário ao lugar onde vive o cego que protagoniza o romance. Gosto de escrever com sítios específicos na cabeça, que o narrador saiba onde a personagem está e para que lado se vira, um pouco como aquilo que aprendi para escrever sobre um cego, a questão da orientação, da localização e deslocação.

Uma das grandes alegrias que tive foi quando este livro foi passado a Braille. Houve uma sessão na Biblioteca Nacional, às escuras, e dizem-me, ainda hoje, que nunca falei tão bem. Foi porque perdi todas as referências e toda a noção do espaço. Tudo passou a ser preenchido pela voz. Um senhor lá do fundo pediu a palavra e disse: “O senhor Rui que me perdoe, mas até parece ceguinho”. Foi o maior elogio que me podiam ter feito. Eu não queria transformar a cegueira numa alegoria, procurei dar a sua verdadeira dimensão e a do sofrimento que acarreta. Por essa razão, os cegos reviram-se nesta aventura.

Hoje gosto muito de Lisboa e é aqui que quero viver. Mais tarde tenciono dividir o meu tempo entre a cidade e a serra de São Mamede onde tenho uma pequena quinta de família. Por coincidência, a quinta é atravessada por uma pequena ribeira que vai dar a um rio que desagua no Tejo. Sei que aquelas águas vão parar à beira da minha casa de Lisboa (na zona da Expo) e sinto também essa ligação fluvial.

Palácio da Justiça

Fui estagiar para o Público no inicio do jornal. O Vicente Jorge Silva lembrou-se que tinha havido em tempos uma tradição de crónica judicial e sugeriu que eu fosse assistir aos julgamentos. Encontrei ali uma espécie de microcosmos do mundo inteiro, onde se vivem histórias dramáticas, cómicas e, às vezes, uma mistura das duas. Isso deu-me a primeira oficina, aprendi a relatar, com condições, acontecimentos que são fulcrais na vida daquelas pessoas. Histórias de ciúme, paixão, roubo, traição, quebra de confiança, juízes paternalistas… Um sítio onde se ouvem frases extraordinárias como esta: “Peço perdão e vou viver a minha pessoa de outra maneira”. Este conjunto de crónicas foi depois publicado em dois volumes Levante-se o Réu (2015) e Levante-se o Réu Outra Vez (2016).

Igreja de São Sebastião da Pedreira

Nasci em 1967, ano da grande inundação de Lisboa que matou 700 pessoas e que foi abafada pelo regime. Um dia, no Museu da Água foi-me mostrado o mapa da Lisboa subterrânea com todos os seus 32 caneiros. A minha visão da cidade passou a ser diferente e questionei-me se haveria um cano que começasse na cidade alta e que desaguasse no Tejo. De facto, existe um que tem início em S, Sebastião da Pedreira e desagua no Cais das Colunas. Depois deu-se um facto quase anedótico, um célebre autocarro caiu num caneiro de Alcântara, revelando um rio subterrâneo tapado por betão. O meu raciocínio foi olhar para Lisboa e pensar: se cai um autocarro, pode cair um carro, uma mota ou uma pessoa. A ideia inicial do romance Deixem passar o Homem Invisível, uma grande viagem por Lisboa, por baixo e por cima, foi esta: uma pessoa ou duas que caem num cano e vão andando até ao rio, salvando-se ou não. Depois coloquei a ação no largo em frente à igreja de São Sebastião da Pedreira que está cheia de iconografia deste santo, um dos primeiros mártires do cristianismo, cravado de flechas.

Parque Eduardo VII

Este livro começa com uma catástrofe natural, uma inundação provocada por uma chuva torrencial, e acaba com outra, um terramoto. Pareceu me interessante iniciá-lo nesta área que vai do El Corte Inglés ao Parque Eduardo VII. Era uma zona rural no século XVIII e foi aqui que o marquês de pombal mandou enterrar as cerca de dez mil vítimas do terramoto de 1755, numa enorme vala comum. No romance, este local serve também para evocar uma imagem de Lisboa: os grandes bandos de estorninhos, autênticas marés voadoras que fazem aquelas pinceladas de brilho prateado no céu e que parecem unidas por um único cérebro de pássaro. À noite recolhem para dormir nos choupos e plátanos do parque até lhes dobrarem os ramos com o peso.

Rua de Santa Marta

Na cidade subterrânea, fazendo o percurso das águas até ao rio, os protagonistas do romance, António e João, um advogado cego e uma criança, escuteiro que saía da Igreja de São Sebastião da Pedreira, engolidos pela força da enxurrada, passam por baixo da Rua de Santa Marta. É uma oportunidade para falar de uma Lisboa ao gosto popular, dos restaurantes de bairro que servem caracóis, bacalhau, iscas, e das lojas com saldos de calças, soutiens e cuecas.

Rua da Fé

António e João, encontram abandonado numa sarjeta o corpo de um recém-nascido morto. A ideia tem a ver com a história antiga dos túneis dos conventos onde se encontravam muitas ossadas de recém-nascidos, mas também, mais uma vez, com casos dramáticos a que assisti nos tribunais: bebés deitados no lixo, alguns vivos, outros infelizmente já mortos. O livro tem apontamentos de humor, mas está cheio de situações trágicas como esta.

Teatro Nacional D. Maria II

Escolhi este local por duas razões. Porque foi o local dos autos de fé da Inquisição, período histórico que muito me inquieta. E porque estreei neste teatro, em 2020, a peça Última Hora, onde, de forma humorística, mas espero que com grande sentido crítico, procurei perceber o que vai ser do jornalismo em Portugal, uma atividade que acho essencial à democracia. Gosto de pensar que passa ali por baixo um caneiro que se vai alargando até ao rio.

Cais das Colunas

O final do romance é apocalíptico. O refluxo das águas provocado por um novo terramoto expulsa António e João para um vale de lodo no Tejo. Quando as pessoas pensam se eles morreram ou não, eu acho que não. Pensei muito em como acabar o livro e um dia, na Igreja de Nossa Senhora dos Mártires, ao Chiado, a última frase do livro caiu-me do céu: “António, por muito que lhe custasse, por mais que estivesse errado, continuava a acreditar.”

Chasing Rabbits

Rua do Sol ao Rato, 61A | chasingrabbitsrecordstore.com

Existem desde novembro de 2019, após transformação do espaço onde antes funcionava um ateliêde arquitetura de cozinhas. Coincidência ou não, a gastronomia é outro dos negócios da Chasing Rabbits: refeições ligeiras de um lado e montra de vinis do outro. O primeiro confinamento foi aproveitado para criar o siteda loja e uma página Discogs, e também para se expandirem para o pátio das traseiras, uma área especialmente agradável em noites amenas. A música que vendem abarca os géneros pós-punk, new-age, indie rock e eletrónica, e,fazendo justiça ao nome da loja, inspirado na canção mais famosa dos Jefferson Airplane, não se cansam de procurar edições criteriosamente escolhidas e raras.

Tubitek

Rua do Crucifixo, 79 | compactrecords.com

Um milhão de discos em stock dão uma ideia da robustez da marca Tubitek que, antes de estar em Lisboa, já tinha lojas em Leiria, Porto e Braga. Chegaram para ter sucesso e com conhecimento de um negócio que continua a fidelizar clientes, os de sempre e os novos. Dois confinamentos no ainda curto espaço de existência da Tubitek Lisboa limitam a possibilidade de fazer balanços, mas as vendas nunca pararam (encomendas por email com envio para casa), e a marca continuou a assegurar exclusivos em Portugal de edições vinil de tiragem reduzida, daquelas que esgotam depressa. A Tubitek Lisboa ainda está a ser descoberta, pelos lisboetas e pelos clientes do resto do país, que, apanhados de surpresa pela pandemia, sofreram perturbações profundas nos seus hábitos de vida. A loja está nova, como nos primeiros dias.

Neat Records

Rua Rebelo da Silva, 55B

A sociedade que dá origem à Neat Records surge na sequência do primeiro confinamento. Rafael fechou a loja de discos que tinha no Intendente e associou-se a Eduardo, amigo de longa data e grande dinamizador da venda de discos online. Beneficiando da quebra no valor das rendas em Lisboa abriram a atual loja. A especialidade são várias, como se costuma dizer popularmente. Classic rock, metal, e punk/hardcore, sendo este último género aquele em que a Neat Records afirma a sua individualidade. O balanço de porta aberta registou sete meses a funcionar e dois meses parados. O recomeço é, ali, praticamente um começo. Enquanto o site(em preparação) não é disponibilizado, todos os interessados em raridades e discos em segunda mão, ficam a saber que têm mais uma loja onde se podem dirigir.

Jazz Messengers

Lx Factory. Primeiro piso da Livraria Ler Devagar

Em Barcelona existe, há 40 anos, uma loja de referência chamada Jazz Messengers. Lisboa tinha, no género, a Trem Azul que fechou portas. Foi também para suprimir essa orfandade que os responsáveis da Jazz Messengers, que tal como a congénere catalã tem ligações à distribuidora de discos Distrijazz, resolveram abrir um espaço dedicado ao jazz, ainda que disponham de seleções cuidadas de música clássica e música brasileira. A abertura prevista para a sexta-feira, 13 de março, do ano passado, foi abortada pelo estado de emergência. Abriram meses depois, para voltarem a fechar ao fim de meio ano de funcionamento. Estão agora a experimentar uma segunda reabertura e contam finalmente poder tirar partido de um trabalho mais regular e das valências especiais do espaço Ler Devagar, onde existe uma galeria equipada para apresentações de música ao vivo.

Devido ao desgaste natural decorrente da intensa utilização destes apartamentos, tornou-se necessária a sua requalificação, de forma a melhorar as condições de conforto. Neste contexto, surgiu a ideia de desafiar quatro conceituadas artistas visuais a intervencionar cada um dos quatro fogos. Conheça a nova cara das residências da Boavista e saiba mais sobre cada intervenção nas palavras das suas autoras: Vanessa Teodoro, Mariana a miserável, Catarina Glam e Leonor Brilha.

1ºEsq

Vanessa Teodoro

vanessateodoro.com

A minha intervenção baseou-se na adaptação do meu estilo gráfico mais abstrato, inspirado na pop art e na minha infância na África do Sul, às duas palavras-chave para o espaço: elétrico e Lisboa. Escolhi estas palavras porque o apartamento está virado para uma rua principal onde passam muitos elétricos, e, claro, a palavra Lisboa não podia faltar na composição. Optei por uma paleta de cores mais simples – o preto e o amarelo – por fazer parte do meu registo mais característico como artista. E, como os padrões já são, por si, muito ‘intensos’, não usei mais cores para não tornar a peça cansativa. A escolha do amarelo foi inspirada na maravilhosa luz de Lisboa e nos seus famosos elétricos. Alguns dos elementos gráficos remetem, ainda, para as sete colinas de Lisboa.

2ºDto

Mariana, a Miserável

marianaamiseravel.com

A ilustração que criei inspira-se na cidade de Lisboa, no rio e nas tradições. Para o corredor do apartamento pensei na definição de Lisboa, cidade das sete colinas. Cada colina é carregada por um indivíduo pequeno, naquela que é a minha reinterpretação não muito óbvia da lenda da fundação da cidade. Para o recanto da sala desenhei o rio Tejo que se estende do chão ao teto, que não poderia deixar de estar presente pela sua importância para a cidade, e nele o Cais das Colunas. Depois da referência às colinas e ao rio, apenas faltava interligá-los com as pessoas, a tradição e os bairros, elementos transversais que sobrevivem ao tempo, que elevam Lisboa e a tornam tão característica.

3ºDto

Catarina Glam

catarinaglam.com

A intervenção artística que desenvolvi inspira-se na cidade de Lisboa, em particular na Rua da Boavista. Elaborei uma composição juntando alguns elementos característicos e partindo das cores previstas para a decoração do apartamento. As tonalidades verdes têm uma forte presença na imagem, retratando a vegetação que existe camuflada na paisagem urbana, em contraste com o amarelo dourado do elétrico. Devido à proximidade ao rio, esta rua recebe, frequentemente, a visita de gaivotas, que também dão nome ao polo que gere estas residências. Elas são os personagens que escolhi para dar mais vida ao apartamento.

4ºEsq

LEONOR BRILHA

behance.net/leonorbrilha

A ilustração que criei inspira-se nos bordados e rendas de Portugal. Para a entrada, elaborei uma composição com rendas de bilros de Vila do Conde e de Peniche, assim como as frioleiras de Nisa, cujo desenho rendilhado a branco contrasta com o fundo vermelho da parede. Na sala, optei por inverter a paleta de cores e representar os bordados de diferentes pontos do país: Vila Verde / Braga, Guimarães, Castelo Branco, Viana do Castelo e Caldas da Rainha, criando também alguns elementos pontuais e de destaque na zona das janelas.

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