Luís de Camões

Sonetos escolhidos por Eugénio de Andrade

Helder Macedo escreve no volume de ensaios Camões e Outros Contemporâneos: “O mundo de valores em transição que foi o seu [de Camões] é ainda o nosso. A nossa contraditória diversidade já era a dele. Ele é porventura mais velho mas, por isso o mais sábio dos nossos contemporâneos. (…) Quando Camões fala do seu tempo, está também a falar do nosso tempo e para o nosso tempo”. Certo dia, um amigo perguntou a Eugénio de Andrade qual o era o mais fascinante livro de poesia escrito em português e recebeu a seguinte resposta: “O livro de sonetos de Camões escolhidos por mim”. Estes 50 poemas de Luís de Camões, selecionados e apresentados por Eugénio de Andrade, “participam da respiração do mundo e da pulsação das estrelas” e servem “para espelho da nossa aflição, ou consolo dessa errância sem destino, em busca de algum paraíso que só tem forma e figura na nossa imaginação”. A presente obra, objeto de reedição, vinte anos volvidos sobre a impressão original, celebra um grande poeta “do nosso tempo e para o nosso tempo”.

Assírio & Alvim

James Baldwin

O Quarto de Giovanni

James Baldwin (1924-1987) nasceu no Harlem, onde cresceu e estudou. Em 1948, partiu para França, fugindo ao racismo e homofobia dos EUA: “Acabei nas ruas de Paris, com quarenta dólares no bolso, mas com a convicção de que nada de pior me podia acontecer do que já me tinha acontecido no meu país”. Romancista, ensaísta, poeta e ativista dos direitos civis, foi, com Gore Vidal, um dos mais lúcidos espíritos críticos que a América produziu no século XX e um dos seus maiores intérpretes. O Quarto de Giovanni, obra intimista de profundo recorte clássico, estruturada numa longa analepse, é, à semelhança de Se Esta Rua Falasse, uma dilacerante história de amor. Neste caso, porém, os amantes são vítimas de uma discriminação que não lhes é apenas exterior. David um jovem americano em Paris, longe da noiva, envolve-se passionalmente com Giovanni, um italiano. Incapaz de afrontar a moral vigente e a normalidade de uma vida segura, finge que a ligação nunca existiu enquanto Giovanni se afunda na tragédia. Tragédia que se abate também, inexorável, sobre aquele “que mentiu, viveu a mentira e acreditou nela”.

Alfaguara

Silvia Federici

Calibã e a Bruxa

“É o processo extraordinário / da Feiticeira Cotovia / Que diz que que as roseiras ao contrário / É que dão rosas e é que há poesia.” Natália Correia, num admirável poema, celebra o poder transgressor da Feiticeira Cotovia, condenada á fogueira num auto da inquisição. Também o presente ensaio de Silvia Federici se concentra no poder subversivo da bruxa, desafiador das estruturas de poder. A obra reconstitui as lutas anti-feudais da Idade Média e as lutas mediante as quais o proletariado resistiu ao surgimento do capitalismo. O estudo centra-se nas figuras de Calibã (“uma besta que tinha que ser mantida sob controlo”) símbolo do proletariado, e da bruxa, considerando a caça às bruxas uma campanha de terror contra as mulheres determinante na construção de uma nova ordem patriarcal em que os seus corpos, a sua mão-de-obra e as suas capacidades sexuais e reprodutoras foram postas sob o controlo do Estado e transformados em recursos económicos. Um texto marcante dedicado aos protagonistas de uma luta ainda em curso: mulheres, sujeitos coloniais, descendentes de escravos africanos, imigrantes deslocados pela globalização.

Orfeu Negro

T.E. Lawrence

Os Sete Pilares da Sabedoria

Lawrence da Arábia, filme de David Lean, é por muitos considerado um dos modelos da superprodução cinematográfica. Não será, porém, exagerado salientar que quase quatro horas de imagens sumptuosas compostas por pores-do-sol, dunas do deserto e camelos, muito pouco ou quase nada é revelado sobre o caráter, as motivações ou a psicologia do seu protagonista: T. E. Lawrence. A leitura de Os Sete Pilares da Sabedoria constitui o meio ideal para descobrir a personalidade rica e complexa desta figura lendária. O livro descreve os dois anos que o autor dedicou à revolta árabe enquanto membro das forças rebeldes, durante a Grande Guerra contra os turcos, aliados dos alemães. Nesta obra monumental – autobiografia romanceada, livro de aventuras (“aventura sublime”, chamou-lhe Robert Graves), texto literário, estudo notável sobre a descoberta do outro e da diferença, diário pessoal e militar sobre a guerra e livro extraordinário sobre a vontade de autodeterminação de um povo – transmite a sua visão etno-antropológica sobre o mundo árabe que sempre o fascinou. Este livro inclassificável é uma das obras literárias mais singulares do seculo XX.

E-Primatur

Miguel Szymansky

O Grande Pagode

O escritor luso-alemão Miguel Szymansky publicou o primeiro romance da série Marcelo Silva, Ouro Prata e Silva, em 2019. A obra mereceu a seguinte apreciação do escritor e crítico literário Miguel Real, no Jornal de Letras: “(…) finalmente após o escândalo financeiro nos jornais, temos um romance sobre a falência do BES. (…) Assumindo todas as características de um romance policial, é, porém, mais do que um mero policial de entretenimento”. A segunda investigação do jornalista Marcelo Silva acontece no momento em que Portugal está prestes a assinar com a China um acordo que ameaça tudo e todos: do meio ambiente à liberdade, dos habitantes dos bairros clandestinos na margem sul aos políticos que se opõem à hegemonia de Pequim. Ancorado no rio Tejo, entre a Trafaria e Belém, o iate de um bilionário chinês é o principal tema de conversa na cidade. Fragilizado por meses de solidão e uma crise emocional, Marcelo Silva só pensa em refazer a sua vida. Mas, sem perceber como, acaba, por se ver envolvido numa série de acontecimentos: um livro desaparece de circulação, uma ministra torna-se vítima de chantagem, um homem aparece morto numa praia de Sintra.

Suma de Letras

António Correia & Ernesto Matos

Lisboa Lux Candens

A mítica luz de Lisboa transformou-se num ícone imaterial da cidade, exercendo uma profunda sedução e inspirando manifestações artísticas e culturais, ao longo dos tempos. Lisboa Lux Candens é um álbum que reúne fotografias de Ernesto Matos (fotógrafo e autor com um amplo trabalho desenvolvido em torno da calçada portuguesa, justamente, um dos múltiplos factores que influi na luz de Lisboa, formada por materiais que ajudam na sua reflexão) à poesia de António Correia, poeta contista e romancista. Às fotografias de Matos, sobrepõem-se os apontamentos poéticos de António Correia. Edição trilingue, português/mandarim/ inglês, assume-se como uma viagem à iluminada cidade de Lisboa, das nuances de ouro e de prata, das viagens etéreas e transcendentais. “Um livro de bolso para viajar no interior de nós mesmos, para nos perdermos e reencontrarmos com a cidade de Ulisses, esta mesma que o Sol abençoou nestas 176 páginas”.

Mytus de Er

No Bicentenário da Revolução Liberal

Da Revolução à Constituição, 1820-1822

Este livro é expressamente dedicado a Manuel Fernandes Tomás e a José Ferreira Borges, o primeiro como estratega e doutrinador, o segundo como comandante operacional da Revolução Liberal em Portugal, porque “como muitas outras vezes no passado, o engenho e acção dos líderes são essenciais nas grandes façanhas da história”. O primeiro de uma série de três obras evocativas do bicentenário da Revolução Liberal, investiga um movimento político que antes de mais, pôs fim ao despotismo da Monarquia absoluta, limitou o poder do Estado e instaurou as liberdades individuais. Seguidamente, institucionalizou constitucionalmente um novo regime político, baseado na soberania da Nação, no poder político representativo, através de um parlamento eleito, na separação de poderes e na subordinação do Governo à lei. Com a nova era constitucional, os portugueses deixaram de ser súbditos de um poder alheio, sem direitos, para passarem a ser cidadãos de pleno direito, titulares de direitos políticos, nomeadamente o de elegerem a representação nacional. Duzentos anos depois, somos ainda beneficiários da liberdade política e da cidadania que a Revolução Liberal nos legou.

Porto Editora

Carminho & Tiago Albuquerque

Amália, Já Sei Quem És

Amália, Já sei quem, biografia escrita pela fadista Carminho em homenagem a Amália Rodrigues, por ocasião do 100.º aniversário de nascimento da grande diva do fado, é um livro destinado aos mais pequenos. A obra escrita em sextilhas – uma das formas poéticas próprias daquele estilo musical tradicional – conta uma história de vida fascinante e está repleto de pequenos tesouros e pormenores pouco conhecidos do grande público. Com esta biografia infantil, publicada em parceria com o Museu do Fado/EGEAC, Carminho espera despertar nas crianças a admiração que ela própria sente por aquela que acabou aclamada como “a voz de Portugal”. As ilustrações de Tiago Albuquerque prometem levar os pequenos leitores aos principais lugares que marcaram a vida de Amália, que começou a cantar quando era pequena e ainda hoje, passados quase 21 anos da sua morte, continua a inspirar muitos cantores pelo mundo fora. (texto de Ana Rita Vaz)

Nuvem de Letras

Quando é que, com a Companhia de Teatro de Almada (CTA), tomaste a decisão de fazer o Festival?

Março e abril foram, como se sabe, meses muito difíceis. Durante esse período fomos sendo informados pelas companhias estrangeiras que iriam estar presentes nesta edição que seria impossível virem. Impedidas de fazer teatro nos seus países, logo nos informaram não ser possível realizar digressões nos meses mais próximos. Apesar disso, continuámos a preparar o Festival, adaptando a programação, os planos de produção, os orçamentos, etc. Ao mesmo tempo, decidimos contactar os nossos espectadores [o Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada, dispõe de um Clube de Amigos que promove a ligação intensa da atividade da CTA à comunidade] no sentido de saber da disponibilidade de virem ao Festival, caso acontecesse, e se tencionavam adquirir a assinatura [o Festival de Almada dispõe de uma “assinatura” que permite ao espectador o acesso a todos os espetáculos do evento]…

E as respostas foram animadoras.

De forma surpreendente para mim, mais de metade das pessoas responderam-nos inequivocamente que sim. Estamos a falar do mês de abril, quando nem sequer se podia passar de um concelho para o outro e, para além de estarmos todos em casa, confinados, severmente abalados com uma situação pela qual nenhum de nós tinha passado. Ora, isto deu-nos um enorme alento para continuar a preparar o Festival.

Entretanto, chega a notícia da reabertura dos teatros.

Quando o Governo português tomou a decisão da reabertura dos teatros no início de junho, percebemos plenamente que o Festival iria acontecer. Aliás, a decisão do Governo foi pioneira e original, uma vez que a generalidade dos países europeus assumiu que só se abririam teatros em setembro. Por isso, este verão, na Europa, só em Portugal e Espanha é que se vão realizar festivais de teatro.

Não é uma decisão em contraciclo, tendo em conta, por exemplo, que nem sequer o Festival de Avignon se realiza?

Avignon chegou a apresentar programação, mas cancelou por decisão das autoridades francesas. Se por cá se percebeu que não poderiam haver festivais de música, mas que o teatro poderia voltar a fazer-se, penso que tomámos a decisão natural. Embora, sabendo de antemão que teríamos de assegurar todas as medidas de segurança sanitárias aplicadas à generalidade das atividades durante a realização do Festival.

Future Lovers da companhia madrilena La Tristura, é um dos três espetáculos internacionais presentes no Festival ©Mario Zamora

 

No teu texto de apresentação desta edição, constante nos programas, colocas um especial enfoque nessa vontade do público de que já falámos. Não fazer o Festival seria atraiçoar o público?

Dependendo de nós, nunca o atraiçoaríamos. O público e o seu direito de ver teatro foi a nossa preocupação fundamental. Nós fazemos o Festival para estar com os espectadores, não para responder a brilharetes de programação ou para ter aqui este ou aquele nome mais sonante.

A presença internacional é este ano, naturalmente, reduzida. Foi frustrante perder a oportunidade de ter alguns dos espetáculos que deveriam apresentar-se nesta edição?

A boa notícia é parte desses espetáculos poderem vir a ser apresentados para o ano. Pelo menos, essa é a vontade da maioria das companhias estrangeiras que estavam contratadas. Agora, há sempre alguma frustração, mas ela desaparece quando procuramos soluções e vamos compondo a programação com boas alternativas. Não sendo possível ter aqui a Schaubühne ou o Berliner Ensemble, há companhias portuguesas que podem cumprir o papel. O que é importante é o Festival acontecer, mantendo os valores artísticos e humanos que fazem dele um evento único de cultura, de diálogo, de abertura e de excelência.  

Em termos orçamentais, esta é uma edição ainda mais complicada do que as anteriores, também elas marcadas por dificuldades?

Há uma quebra de receitas próprias na ordem dos 25% que se prendem com a venda de bilhetes, decorrente de termos apenas 17 espetáculos, ao contrário de edições anteriores que andam na ordem dos 25. Depois, temos salas com lotações reduzidas a metade; e não podemos contar com as receitas de bar e do restaurante que montamos na esplanada da Escola D. António da Costa, onde se realizam os espetáculos ao ar livre. Para além disso, como as companhias estrangeiras não vêm, perdemos também o apoio dos institutos estrangeiros. Apesar de tudo, o Festival vai ser uma espécie de “tudo de ensaio” para os que vão acontecer em Espanha…

De que modo?

Como o Festival de Almada acontece primeiro que o de Merida e o de Almagro, vamos ser uma experiência controlada neste tipo de eventos, quer do ponto de vista da segurança sanitária quer do ponto de vista financeiro. Vamos, com certeza, chegar à conclusão de que a quebra de receitas próprias, comuns a todas as estruturas, vai necessitar de uma resposta substancial da parte dos governos.

O Festival começa dia 3, com a estreia absoluta de Bruscamente no Verão Passado de Tennessee Williams, pelo Teatro Experimental de Cascais ©Ricardo Rodrigues

 

Esta edição, sobretudo por ser quase exclusivamente portuguesa, é importante para todo o setor teatral que se encontra tão fustigado pelos efeitos da pandemia?

Não tenho a ilusão de achar que as companhias portuguesas aqui virem apresentar um espetáculo as vai salvar. Nestes últimos meses, aliás, falou-se muito da comunidade artística e não se ouviu falar do papel dos espectadores. Ora, sem espectadores não há artistas, e é esse compromisso com o público que queremos assumir e exaltar com a realização do Festival. Até porque, sem sequer termos anunciado qualquer espetáculo, à data da apresentação da programação já estavam vendidas metade das “assinaturas”, demonstrando que há vontade da parte dos espetadores de voltar ao teatro.

Para além de programador,  és também autor e encenador. Achas que o teatro já mudou com a pandemia, como se parece anunciar?

As duas grandes guerras, a gripe espanhola… A humanidade já passou por coisas muito piores que isto. É grave, mas não é o fim do mundo. E o teatro vai perdurar tal como é. Durante o período de confinamento, à semelhança de tantas companhias, colocámos uma série de espetáculos online, e foi um tremendo fracasso. Mas eu fiquei contentíssimo com o resultado porque a experiência demonstrou aquilo que sempre pensei: o teatro é muito forte e nada substitui o espetáculo ao vivo, até porque há coisas que não são passiveis de ser substituídas. Aliás, surpreendeu-me a proliferação de criadores que decidiram fazer coisas nas plataformas digitais. Acho que, enquanto profissionais do teatro, não é isso que nos move. Até porque aquilo é outra coisa; não é teatro.

Conheça as 16 Companhias e Teatros que vamos receber no 37.° Festival de Almada..O programa integral do Festival está disponível em www.ctalmada.pt.#festivaldealmada #companhiadeteatrodealmada @cmalmada #almada #teatro #theatre #theater #portugal #cultura #culture

Publicado por Festival de Almada em Quarta-feira, 24 de junho de 2020

A colaboração derivou da situação provocada pela pandemia e consiste na partilha de eventos online entre a capital argentina e a portuguesa. A iniciativa partiu do Município de Buenos Aires que, através do seu site oficial, vai criar uma rede internacional de partilha de conteúdos destinada à secção Cultura em Casa.

Por cá, o site da Agenda Cultural de Lisboa assume esta colaboração entre os municípios das duas cidades, iniciando, a partir de junho, a divulgação de conteúdos disponíveis em rede, promovidos pela cidade de Buenos Aires.

As artes plásticas, a dança e a música, com especial destaque para a sedução do tango, e outras atividades culturais provenientes da capital do país das Pampas, estão agora à distância de um clique.

 

No maravilhoso All About Eve, filme de Joseph L.Mankiewicz, um encenador explica a uma ambiciosa atriz que o teatro acontece desde que haja “magia, fingimento e público”. Audience, no original, o público, ingrediente determinante para que o teatro aconteça. E ele, o teatro, está mesmo a acontecer desde o início deste mês, em Lisboa, com A Barraca a evocar Federico Garcia Lorca, no recital Espanha no Coração, ou o Teatro Armando Cortez a repor os populares Monólogos da Vagina, de Eve Esler.

Esta noite (e amanhã, também) o teatro regressa ao D. Maria II, a mais nobre casa de teatro de Lisboa, com Tiago Rodrigues a levar a cena uma das suas mais aclamadas criações: By Heart. Curiosamente, e por ser um espetáculo que exige sempre alguma interação com o público, nada mais apropriado (tomadas e asseguradas todas as precauções) do que ver espectadores subirem ao palco para, também eles, serem parte do espetáculo.

‘Febres de Lisboa’ de João Garcia Miguel

Já na próxima semana, há mais um teatro da capital a abrir portas, e logo com uma estreia absoluta. No Teatro Ibérico, João Garcia Miguel apresenta a sua visão das Prosas Bárbaras, de Eça de Queiroz, num espetáculo marcado pela atualidade da pandemia que mudou o mundo. Febres de Lisboa reúne um elenco de jovens atores que participaram num workshop realizado pelo autor e encenador durante a fase de confinamento e é uma homenagem à “força de transformação coletiva e social para enfrentar a separação e o isolamento.”

A 1 de julho, as gargalhadas vão voltar a fazer-se ouvir no Auditório dos Oceanos. Depois da estreia em fevereiro passado, a comédia A Peça Que Dá para o Torto regressa ao Casino de Lisboa para uma nova temporada. Escrita por Henry Lewis, Jonathan Sayer e Henry Shields, esta frenética “peça dentro de peça” é um dos maiores sucessos internacionais da última década, sendo que a versão portuguesa, com tradução e adaptação de Nuno Markl, replica a encenação do espetáculo original estreado em Londres, em 2013.

‘O Mundo é redondo’ de Gertrud Stein, encenado por António Pires

Companhias de Lisboa com forte presença no Festival de Almada

Depois de muitas dúvidas, e com o forte impulso da vontade do público, como garante o seu diretor artístico Rodrigo Francisco, o Festival de Almada vai mesmo acontecer e arranca a 3 de julho. Adaptado à situação que vivemos, a mais importante mostra de teatro do país, alarga o calendário (decorre até 26 de julho) de modo a garantir o maior número de sessões para cada espetáculo, uma vez que as lotações das salas serão reduzidas a metade.

Embora mantenha a sua vocação internacional, com a apresentação de dois espetáculos vindos de Espanha (Rebota, rebota y en tu cara explota, da dupla catalã Agnès Mateus e Quim Tarrida, e Future Lovers, da companhia La Tristura) e um de Itália (Johan Padan à descoberta das Américas, de Dario Fo e Franca Rame, com encenação do próprio Fo e interpretado por Mario Pirovano), esta é, sobretudo, uma edição para “tomar o pulso ao teatro português.”

Em quatro semanas, seis palcos de Almada (este ano não há espetáculos ao ar livre) e apenas um em Lisboa acolhem 14 produções portuguesas, com especial destaque para a presença de várias companhias da capital, como a Comuna (em estreia As Artimanhas de Scapin, de Moliére, com encenação de João Mota), a Culturproject (A criada Zerlina, de Hermann Broch, com encenação de João Botelho),  os Artistas Unidos (Uma solidão demasiado ruidosa, de Bohumil Hrabal, encenado e interpretado por António Simão), a Ar de Filmes/Teatro do Bairro (O Mundo é Redondo, de Gertrud Stein, com encenação de António Pires), a Barba Azul (Turma de 95, de e com Raquel Castro), o Teatro Nacional D. Maria II (By heart, de e com Tiago Rodrigues) e a Um Marido Ideal (O Criado, de Robin Maugham, com adaptação, encenação e interpretação de André Murraças).

A passagem do Festival por Lisboa acontece no Centro Cultural de Belém que recebe uma das mais recentes produções da Companhia de Teatro de Almada, Viagem de Inverno. A peça de Elfriede Jelinek, encenada por Nuno Carinhas, “transporta uma memória significativamente histórica (na qual se destaca a sobrevivência da mentalidade fascista), mas também autobiográfica”. As interpretações estão a cargo de três grandes atrizes do teatro português: Teresa Gafeira, Ana Cris e Flávia Gusmão.

Sem esquecer a máscara e respeitando as normas de etiqueta respiratória, seja bem-vindo, de novo, aos teatros. O espetáculo nunca é o mesmo sem o seu aplauso.

Alguns profissionais reinventaram-se criando coisas novas no âmbito do seu ofício e da sua formação. Isto gerou atividades pagas ou gratuitas “em rede” que valorizaram a vida de muita gente, até fora do país (e do continente).

Filipe Homem Fonseca

argumentista

Mantém os dias de trabalho com sempre fez, a escrever em casa, mas o período de confinamento acrescentou pelo menos um projeto que se tornou num caso de televisão. O Mundo Não Acaba Assim, exibido semanalmente, começou por ter o nome Chamadas Para a Quarentena, quando existia nas redes sociais. A ideia surgiu de um grupo de amigos, todos argumentistas – Artur Ribeiro, Filipe Homem Fonseca, Luís Filipe Borges, Nuno Duarte e Tiago R. Santos – impossibilitados de se encontrarem para jantar fora, como era hábito, e conversar sobre formas possíveis de lidar com o confinamento. Contar histórias pareceu-lhes o modo mais natural. Fazer pequenas ficções e chamar atores que uma vez ligados a uma personagem, não mais deixariam essa identidade em qualquer das histórias em que pudessem entrar. Um projecto de amigos, que contou com a participação de actores, também amigos, numa colaboração feita voluntariamente, chegou depois à RTP, onde se vai manter pelo menos até ao início de junho. Prometendo propostas cada vez mais elaboradas e surpreendentes até ao episódio final.

Ana Margarida de Carvalho

escritora

De convite em convite, sendo cada escritor convidado livre de convidar outros, chegou-se ao número das 46 participações, tantos escritores quantos os anos da Revolução de Abril. Estava constituído o grupo que se propôs publicar diariamente um novo capítulo do Bode Inspiratório que, ao fim de alguns dias de existência nas redes sociais, recebeu um convite para alojar as leituras filmadas no site da RTP Play. Ana Margarida de Carvalho começou com este projeto onde ficou desde logo estabelecido que o primeiro texto do folhetim pertenceria a Mário de Carvalho e o último a Luísa Costa Gomes. Entretanto o Bode Inspiratório foi crescendo, já existem traduções em várias línguas e até se fizeram leituras filmadas em inglês. Tornou-se uma iniciativa a nível europeu que, caso venha a existir segunda vaga da pandemia promete renovar a sua proposta. E virão mais textos (um novo folhetim?) e novas obras dos artistas plásticos coordenados por Cristina Terra da Motta, usadas como capa que faz corpo com o texto.

Mário Delgado

músico

As aulas particulares de guitarra à distância que Mário Delgado iniciou no período de confinamento, vêm no prolongamento de uma agenda já preenchida com os seus alunos da Escola Superior de Música. Foi com estes que primeiro testou um formato que o músico acredita se irá manter no futuro. Até porque assim é possível aprender com qualquer pessoa, independentemente da cidade ou do país em que vivemos, e dá como exemplos um aluno seu que reside na Madeira, e um pedido de aulas que recebeu da Índia. A própria tecnologia e a qualidade das boas ligações pela Internet possibilitam que o ensino à distância não padeça de quaisquer limitações. E até quando lhe perguntamos sobre a existência de condições para que os músicos possam ensaiar em conjunto embora longe uns dos outros, Mário Delgado conta que existem programas adequados à situação de várias pessoas fazerem um som que todos escutam em simultâneo, e então a música acontece.

Constança Cordeiro Ferreira

terapeuta de bebés

Começaram no primeiro dia de maio e na sexta-feira seguinte contavam já com 800 seguidores nas Baby Live Sessions. A ideia surgiu da admiração mútua entre Constança Ferreira e a escritora de canções e intérprete Rita Redshoes, que tinha sido mãe há pouco tempo e que usara os ensinamentos da terapeuta “devorando” os seus dois livros. Estas sessões acontecem sempre às sextas pelas 18 horas, nas páginas de Instagram de uma e de outra. O que se pode ali aprender e experimentar está relacionado com o que os terapeutas caracterizam por “choro inconsolável do bebé” e passa por exercícios de relaxamento sensorial com o apoio da música. Rita Redshoes desenvolve as suas composições e improvisos tomando por referências os mantras e as canções de embalar (“lullabies”), e encerra estas “live sessions” com um tema vocalizado. Cada sessão cobre um assunto diferente e dura entre meia hora e 40 minutos. O projecto das Baby Live Sessions é um preâmbulo do trabalho que a terapeuta de bebés e a cantora estão a desenvolver e que trará novidades ainda em 2020.

Inês Jacques

bailarina e coreógrafa

As indicações de confinamento chegaram à vida de Inês Jacques pouco depois de ter concluído as apresentações do espetáculo Truc, no São Luiz, em colaboração com Rita Calçada Bastos, e destinado aos mais novos. As suas aulas de Ballerina Body, no Chiado, seriam interrompidas, mas não por mais de uma semana. A solução foi transferi-las para o online, que já havia experimentado com alunas de muito longe. O método criado por Inês é um misto de aula de ballet e fitness, iniciado há cerca de 5 anos. Com a evolução das plataformas digitais, consegue agora acompanhar pela Internet até cerca de 18 alunos. Quase todos os inscritos no seu estúdio aceitaram esta solução. Mas a actividade artística de Inês Jacques foi interrompida. Tinha a mala feita para passar um período no Alentejo, em Santa Clara-a-Velha, onde faz espetáculos com o grupo sénior habitual, e decidiu não sujeitá-los a qualquer risco. A vida continua para todos, mas há coisas que exigem mesmo que estejamos juntos. Será em breve, é o que se deseja.

Rui Zink

O avô tem uma borracha na cabeça

“Um dia descobri que o meu avô tinha uma borracha na cabeça. As borrachas apagam coisas. E a cabeça do meu avô apagava coisas.” Assim começa o mais recente livro de Rui Zink dedicado aos mais novos, que conta a história de amor e amizade entre um avô, que lentamente vai perdendo as memórias, e o seu neto inventor, que está determinado em descobrir uma cura. Porque a questão que se impõe é: o que fazer quando alguém de quem gostamos nos começa a esquecer? Através da sensibilidade de uma criança, chega-nos a lição mais importante de todas: o amor ultrapassa qualquer barreira e é muito mais forte que o esquecimento. O avô tem uma borracha na cabeça aborda a doença de Alzheimer de forma simples e original, explicando, de forma leve, uma condição tão pesada.

Porto Editora

Ondjaki

Uma Escuridão Bonita

Após Os Transparentes, Prémio Literário José Saramago 2013, Ondjaki regressa ao universo da infância. Uma Escuridão Bonita conta a estória de um (primeiro?) beijo e a espera ansiosa para que ele aconteça, numa das noites de Luanda em que falta a luz elétrica. A infância é cheia de carências, os divertimentos das crianças rudimentares, mas o profundo lirismo do autor concede-lhes uma aura mágica e encantatória. Tudo, neste livro tão bonito, é de louvar, das palavras de Ondjaki, verdadeira constelação de estrelas na escuridão da noite, às ilustrações de António Jorge Gonçalves que recusam o referente das palavras para irem além delas. O ilustrador podia repetir com a Avó Dezanove: “A poesia não é a chuva, é o barulho da
chuva.

Caminho

Valter Hugo Mãe

Serei sempre o teu abrigo

Delicado e ternurento, este conto fala-nos sobre a fragilidade dos avós vista pelos olhos atentos do neto. De uma sensibilidade notável, as palavras de Valter Hugo Mãe arrebatam o leitor e mostram opoder dos laços de família e do afeto. Porque há um certo heroísmo em ser-se velho, em ter passado por tanto e nunca desistir, em ter perdido tanto e continuar a ter capacidade para amar. “O avô, resumido nos sentimentos, sem talento nas aflições, mais maniento e cheio de medo, só dizia: sossega, menina, sossega. Mesmo velhinhos, ele tratava-a como da primeira vez. Era uma menina.” Porque acompanhar a força do amor dos avós um pelo outro e dos dois pelo neto não é um privilégio ao alcance de qualquer um, Valter Hugo Mãe tornou-o possível através desta obra profundamente comovente.

Porto Editora

Gonçalo M. Tavares

O dicionário do menino Andersen

Insatisfeito com as definições de palavras que lia no dicionário, o menino Andersen resolve inventar um dicionário novo, inesperado, capaz de divertir e fazer rir os seus amigos. O resultado é uma espécie de enciclopédia alternativa com 53 palavras, repleta de irreverência,
humor e criatividade, com uma pitada de nonsense. Certo é que, depois de a lermos, o nosso olhar sobre coisas aparentemente tão banais como uma escova de dentes, um caixote do lixo, uma mala ou um submarino mudará para sempre. Ao texto de Gonçalo M. Tavares, para quem as palavras são como brinquedos, juntam-se as ilustrações de Madalena Matoso, que transformou um dicionário ilustrado numa espécie de manual técnico, ao estilo dos livros de
instruções.

Planeta Tangerina

Luta Livre é um projeto que se define como música de intervenção com uma linguagem estética moderna. A cantiga continua a ser uma arma?

A cantiga pode sempre ser uma arma, e como dizia José Mário Branco “tudo depende da bala e da pontaria”. Usando esta terminologia mais bélica, parece-me que há muitos tipos de balas e muitos tipos de alvos. Tudo começa com a decisão do atirador, que escolhe a arma, a munição e o alvo. Depois, se quiser acertar, pode treinar a pontaria. Ou então atira para o ar. Quero eu dizer que a música sempre foi um meio de transmissão de mensagens por excelência, e onde as hipóteses são imensas. A intervenção pode acontecer de diversas formas, mesmo sem um discurso abertamente político. Por vezes, basta sabotar determinadas fórmulas ou falar de determinados assuntos para que se crie algum desconforto. O que interessa é pôr o ouvinte a pensar em coisas em que habitualmente não pensa. Ou a questionar coisas que habitualmente não questiona. É óbvio que a bala que faz mais estrago é aquela que vem carregada com política. E, hoje em dia, precisamos tanto de pôr as pessoas a participar na política…

A ideia nasceu do tempo em quarentena?

A ideia já estava a ser trabalhada antes da quarentena – aliás, a primeira música saiu no dia 1 de março. De há uns tempos para cá voltei a escrever com a perspetiva de fazer canções. Isto surgiu do meu hábito diário de consumo de notícias e informação. Enquanto tomo o pequeno almoço gosto de passar em revista a imprensa diária, nacional e internacional, para ficar a par do que se passa em Portugal e no mundo. Por vezes tiro algumas notas – uma frase, um pormenor da estória, os factos da notícia. A determinada altura comecei a desenvolver algumas dessas notas, e apercebi-me que podiam dar letras de canções. Não sendo um projeto planeado, nasceu até de forma bastante espontânea, tornando-se inevitável quando juntei os textos à música que andava a compor e as coisas, do ponto de vista mais musical, começaram a ganhar sentido.

Peste & Sida era rock puro e duro, A Naifa tinha uma sonoridade mais ligada ao fado, Luta Livre tem uma forte componente de jazz. A maturidade que a idade traz reflete-se na música que se faz?

Provavelmente sim. Mas a música que se faz tem sobretudo a ver com a música que se ouve. Confesso que comecei a ouvir jazz tardiamente, de há uns dez ou 12 anos para cá, e desde então tenho conhecido muitos músicos e comprado muitos discos, acho que posso dizer que já não sou um ignorante na matéria. Obviamente que o que estou a fazer não é jazz, não sou um músico de jazz, continuo a ser um músico de rock e as canções que faço têm o molde das canções de rock. Assim como as canções que fiz n’A Naifa, não eram fado.

Política, Ninguém quer saber e Iniquidade refletem uma preocupação genuína com questões políticas e da atualidade. Somos um povo desinformado?

Somos um povo e somos um mundo desinformado. De facto, com tanta informação disponível, como é que somos tão idiotas? Acho que tem a ver com a forma como fomos educados nas últimas décadas, talvez desde a Segunda Guerra Mundial. Embora no início deste período tenha havido um certo ambiente de renascença no ar, as sociedades encaminharam-se para um modelo superficial, baseado no consumo e no entretenimento básico, que levou à completa alienação de uma grande parte da população. Neste momento muita gente acha que a política é a raíz de todos males, não percebendo, nem querendo perceber, que o direito a fazer política é a única (e mais potente) arma que têm à mão para fazer valer os seus direitos. O velho conceito “dividir para reinar” está cada vez mais presente e, inacreditavelmente, continua a dar frutos.

De onde vem esta apatia tão portuguesa?

Os portugueses não são um povo assim tão apático. Na nossa história houve várias revoluções, algumas até bastante violentas, que fizeram cair governos e sistemas políticos. Acho que neste momento sofremos de um mal global. Nunca houve, na história da humanidade, uma globalização/normalização/uniformização tão clara do pensamento e dos comportamentos, e Portugal não está fora do sistema nem imune a esta tendência. Ainda assim, temos alguma massa crítica, resultado, sobretudo, da melhoria do sistema de educação pós-25 de Abril. Nunca é demais lembrar que antes da revolução mais de 50% da população portuguesa era analfabeta.

“O que interessa é pôr o ouvinte a pensar em coisas que habitualmente não pensa, ou a questionar coisas que habitualmente não questiona”

 

A leitura dos jornais e as redes sociais são um campo fértil de inspiração para as suas letras. Sente-se desiludido com o estado atual da sociedade?

Não me sinto desiludido, nada está fechado ou acabado, as coisas estão em permanente mudança e o futuro somos nós que o escrevemos. Sinto-me motivado. Se me sentisse desiludido não estaria a escrever estas canções.

Edgar Caramelo, Ricardo Toscano e o Coro Gospel Collective participam nestes primeiros temas. Foi um desafio gravarem à distância?

O Ricardo e o Edgar vieram ao meu estúdio antes da quarentena. O coro Gospel Collective foi gravado noutro estúdio, mais espaçoso, mas também antes do confinamento. Com a Kika Santos foi diferente, enviei-lhe a letra e ela gravou. Depois misturei a voz dela com o instrumental. Neste caso foi simples porque a Kika também tem um pequeno estúdio onde pode fazer as gravações. A digitalização da música, a partir dos anos 90, trouxe-nos coisas más e coisas boas. A pirataria e consequente usurpação de direitos foram as coisas más. As coisas boas foram, felizmente, mais que as más, e dessas destaco a democratização do acesso a meios de produção e gravação – hoje em dia qualquer aspirante a músico consegue, com um pequeno investimento, ter um sistema competente de gravação. Neste momento, com a tecnologia acessível disponível só não faz quem não quer.

Para já, foram lançadas três canções de Luta Livre. O plano é lançar um álbum?

O plano continua a ser o inicial, que consiste em ir mostrando as canções que vou conseguindo acabar. Confesso que, nesta altura, e olhando para o trabalho que tenho em andamento, já me passa pela cabeça poder vir a juntar todas as canções num disco, vamos ver…

Estes são tempos muito difíceis para quem vive da Cultura, o que obrigou muitos artistas a reinventarem-se. Como vive um músico nos dias que correm?

Nestes dias a principal preocupação é saber quando poderemos voltar aos palcos. Há muita ansiedade, sobretudo porque não existe um horizonte temporal, neste momento ninguém sabe quanto tempo isto vai durar (os espetáculos com as regras de distanciamento social não são solução). Tenho contornado essa ansiedade produzindo música. Para mim a quarentena, em certa medida, até está a ser benéfica, porque estou a conseguir produzir muito mais do que em situação de normalidade. Mas não podemos ficar assim muito mais tempo. Espero que se encontre a vacina ou a cura rapidamente.

O que tem ouvido nesta quarentena?

Mais tempo em casa também resultou em mais tempo para ouvir música. Tenho dado a volta aos meus discos antigos e voltei a ouvir coisas que já não ouvia há algum tempo. Mas vai dependendo da disposição e da meteorologia. Quando está calor gosto de ouvir reggae, rumbas… Quando chove é mais Massive Attack, Tricky… Por vezes de manhã, para começar com energia, ponho a tocar os clássicos dos oitentas: Dexys, Talking Heads, Devo… À noite é mais Jazz.

Com o desconfinamento em marcha, as salas de cinema podem abrir a partir de 1 de junho. Duas salas, onde o cinema de autor é protagonista, são as primeiras a exibir filmes em Lisboa: o Cinema Ideal e o Cinema Nimas. Retomar a normalidade é a palavra de ordem, embora o acesso ao cinema implique novas normas e condições de segurança asseguradas pelos dois espaços. O programa apresentado é variado e de assegurada qualidade.

A 1 de junho o Cinema Ideal apresenta Retrato da Rapariga em Chamas, de Céline Sciamma, que esteve em sala poucos dias e que é um dos mais premiados filmes do ano. São também exibidos dois documentários, com estreia programada  para maio, que assinalam os 75 anos do fim da Segunda Guerra: Quem Escreverá a Nossa História e Uma Vida Alemã. Seguem-se as estreia de Matthias & Maxime, de Xavier Dolan (18 junho), o filme brasileiro Benzinho, de Gustavo Pizzi (25 junho), It Must Be Heaven, de Elia Suleiman (2 julho) e por fim O Que Arde, de Olivier Laxe (16 julho).

Entre 11 e 17 de junho, o Cinema Bold está em destaque com seis obras que tiveram estreia em streaming e que chegam agora à sala. Também o ciclo 7.doc, que estava a decorrer em parceria com o DocLisboa, regressa, entre 25 de junho e 1 de julho, com obras que estiveram presentes no DocLisboa, em 2019.

Julho marca o regresso do cinema português com um programa de três curtas de jovens realizadoras portuguesas: Cães Que Ladram aos Pássaros, de Leonor Teles; Ruby, de Mariana Gaivão e Dia de Festa, de Sofia Bost.

No dia 10 de junho é a vez do Cinema Nimas iniciar atividade com dois clássicos de volta ao grande ecrã: 2001 – Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick e Non, ou a Vã Glória de Mandar, de Manoel de Oliveira. A 13 de junho é exibido A Cidade Branca, de Alain Tanner. De 11 de junho a 1 de julho é apresentada a segunda fase do ciclo 25x Buñuel, com especial incidência nos filmes que marcam o regresso à Europa do grande cineasta espanhol.

Entre 18 de junho e 22 de julho o destaque vai para o ciclo dedicado à cinematografia japonesa conhecida por roman porn (obras com conteúdo sexual ou nudez) da Nikkatsu, empresa de entretenimento de produção televisa e cinema. Este programa inclui 10 filmes inéditos, clássicos dos grandes mestres do género e cinco homenagens feitas por cinco dos cineastas japoneses, mais importantes de hoje.

Maria Filomena Mónica

O Olhar do Outro

Uma citação para abrir o apetite: «Os portugueses precisam de estômagos de avestruz para digerirem as toneladas de gordurosas vitualhas com que se abarrotam. (…) Tudo é guisado em banha de porco e de tal modo carregado de pimenta e especiarias que uma só colher de ervilhas e um quarto de cebola nos deixariam a boca a arder. Com tal alimentação e um tal permanente ingerir de doçaria, não é para admirar que esta gente esteja sempre a queixar-se de dores de cabeça e de gases intestinais.» O autor destas linhas é William Beckford (1760-1844), um dos ilustres viajantes que escreveu sobre Portugal. O Olhar do Outro tem por subtítulo Estrangeiros em Portugal: do Século XVIII ao Século XX, e Maria Filomena Mónica partilha as páginas do livro com umas dezenas de nomes, entre os quais Lord Byron, Hans Christian Andersen, Mark Twain, Miguel de Unamuno, Saint-Exupéry, Mircia Eliade e Jean-Paul Sartre. A autora abre cada capítulo com elementos biográficos e as circunstâncias que levaram à vinda destes estrangeiros, e escolhe depois as passagens mais suculentas e cáusticas das suas impressões. RG

Relógio D’Água

Arte de furtar/ Furto na Arte

A obra A Arte de Furtar, hoje dominantemente atribuída ao jesuíta Padre Manuel da Costa (1601-1667), é um monumento da prosa barroca, o ponto mais alto da literatura portuguesa de costumes dos séculos XVI a XVIII. A acompanhar a reedição do texto, este livro reúne ensaios e contributos artísticos de duas dezenas de autores de renome no panorama nacional, dedicados ao roubo, cópia e apropriação. Apresenta um conjunto de reflexões sobre a ideia de apropriação e cópia, com ensaios da autoria de José Bragança de Miranda, Pedro Cabral Santo (com Nuno Esteves da Silva) e de Luís Alegre. Exibe trabalhos de artistas plásticos portugueses (António Olaio, João Louro, José Luís Neto, Miguel Palma, a dupla Sara & André ou a cineasta documentarista Susana Sousa Dias) concebidos acerca da temática do apropriacionismo e plagiarismo na arte, que vão desde a influência mais direta, ou material de outros artistas e obras, até ao uso de imagens de arquivo e vernaculares, passando pelos históricos readymades. Um magnífico e luxuoso álbum que convém guardar num sítio seguro.

Stolen Books/ N Books

Paco Bou

Alicia Alonso – Prima Ballerina Assoluta

“Os mais cruéis labirintos retrocedem diante do seu passo de dança” Desta forma, o poeta José Lezama Lima prestou tributo à arte incomparável de Alicia Alonso, uma das maiores bailarias do século XX, considerada “a primeira na via láctea das grandes Giselle”. Dotada de um domínio técnico preciso e virtuoso, de uma profunda musicalidade, de uma linha de dança puríssima e perfeita, aliava uma qualidade de movimentos grácil e fluída a uma singular intensidade emocional. O seu estilo era elegíaco, frágil e etéreo. Parecia literalmente flutuar no palco, levando um crítico norte-americano a escrever, em 1967, após assistir a uma representação de Giselle: “quando o seu partenaire levantava Alicia Alonso, sentíamos uma impressão única: que não a elevava, mas que a agarrava para a impedir de voar”. O presente Álbum de Homenagem aos 100 anos do nascimento da bailarina cubana, vista pelo fotógrafo Paco Bou, inclui dois poemas com o título Dança, o primeiro, de Pablo Neruda, o segundo dedicado a Alicia Alonso, da autoria da poetisa portuguesa Joana Lapa. Uma belíssima edição que celebra o talento da bailarina que, segundo o romancista e musicólogo Alejo Carpentier, tinha “o poder de transcender o gesto, elevando-o ao plano da emoção pura”.

Centro Português de Serigrafia

Sadeq Hedayat

O Mocho Cego

Um mito paira sobre este estranho livro, o de que é portador de uma maldição: quem o ler suicida-se. O seu autor, Sadeq Hedayat, suicidou-se e o mocho Cego foi acusado de ser a causa de inúmeros suicídios de pessoas que o leram. O escritor, pai da moderna literatura persa, viveu em constante conflito entre o anseio por uma modernidade europeia (era leitor de Maupassant, Chekov, Rilke e Kafka) e as raízes tradicionalistas da sua família e do seu país. Obra de culto, O Mocho Cego é um romance obsessivo, surrealizante e existencial, sobre a imersão de um ser humano na loucura. Certo dia, um jovem, rejeitado pela mulher, vê uma rapariga com uns assustadores olhos negros e deixa-se afundar na profundeza desse olhar, dominado pela sombra e pela escuridão. Empreende, então, uma descida ímpar a um “abismo interminável numa noite eterna”. Mergulhado em visões e pesadelos, num sonho de morte, o jovem sente uma necessidade compulsiva de escrever como forma de “arrastar para fora” o “inimigo que lhe tortura a alma”. E transmite-o ao leitor.

E-Primatur

Ismail Kadaré

O General do Exército Morto

O poeta e romancista Ismail Kadaré constrói um relato que é a própria voz da Albânia milenar, simultaneamente o país da lenda e da verdade. 20 após a derrota da Itália na Segunda Guerra Mundial, um general italiano é enviado à Albânia para recuperar os corpos dos soldados italianos aí abandonados. Cruza-se com um general alemão incumbido de tarefa semelhante. Esta “tarefa odiosa” dos generais dos exércitos mortos é “uma espécie de um duplicado da guerra”. “Talvez seja mesmo pior do que o original”. Começando e acabando sob o signo da chuva e da neve, esta é uma obra irónica e feroz sobre as consequências da guerra que lhe sobrevivem durante anos. Os testemunhos orais de habitantes locais e os diários de soldados encontrados pelos oficiais, reconstituem a “época em que éramos obrigados a viver nas trevas, em que éramos forçados a esconder-nos de nós próprios”. Romance comovente que revela personalidade singular da Albânia, país “onde a bandeira simboliza apenas o sangue e o luto”.

Sextante

Fernando Sobral

A Grande Dama do Chá

Em dezembro de 1937, em Macau, ninguém ousava falar na guerra, mas ela “já germinava nas sombras, à espera da luz do dia”. Com o rápido avanço do exército japonês em território chinês, a guerra chega silenciosamente à cidade. Muitos refugiados vêm de Xangai. Entre eles está Jin Shixin, que abre a mais famosa casa de chá de Macau e que passa a ser conhecida como A Grande Dama do Chá. Mas a sua verdadeira missão é outra. Ela faz parte da tríade Bando Verde, de Du Yuesheng, outrora o mais poderoso homem de Xangai. Em Macau também encontra refúgio Cândido Vilaça, saxofonista da Benny Spade Orchestra. Entre espiões japoneses, riquezas escondidas, o ópio, o jogo e os sonhos de alguns portugueses, os caminhos de Cândido e Jin cruzam-se. Dividido entre a música e a sobrevivência, o amor e a guerra, a liberdade e o compromisso, Cândido confronta-se com escolhas quase impossíveis. O jornalista e escritor Fernando Sobral relata uma brilhante aventura em Macau, cidade que uma personagem define como “bela e sem saída”, ideal “para jogar, para fugir do passado, para encontrar o futuro.”

Arranha-céus

Eduarda Lima

O protesto

O silêncio tem um efeito apaziguador quando é falta de ruído. Mas o que acontece quando o silêncio anula os sons da presença humana e da natureza? Não será mais opressivo do que certos ruídos incómodos? O álbum de estreia de Eduarda Lima, é exactamente isso: um grito silencioso! Os pássaros deixam de cantar. Os gatos já não miam. Os insectos não emitem os seus zumbidos. As crianças param de brincar. Da floresta virgem ao rio da nossa cidade, o silêncio ecoa por todo o lado. O Protesto, com texto e ilustrações de Eduarda Lima, é uma história sobre o impacto da acção humana no ambiente e um apelo para nos unirmos hoje, em nome da biodiversidade e de um planeta mais sustentável. Neste belíssimo livro os animais e as crianças, procurando salvar a Terra, parecem ter feito um pacto de silêncio. Será que os homens conseguem entender o sentido desse sossego perturbador?

Orfeu Negro

 

Estes e outros livros estão presentes no novo podcast da Agenda Cultural de Lisboa, Livros em Agenda aqui

“Os mais cruéis labirintos retrocedem diante do seu passo de dança” Desta forma, o poeta José Lezama Lima prestou tributo à arte incomparável de Alicia Alonso (1920-2019), uma das maiores bailarias do século XX, considerada “a primeira na via láctea das grandes Giselle”. Dotada de um domínio técnico preciso e virtuoso, de uma profunda musicalidade, de uma linha de dança puríssima e perfeita, aliava uma qualidade de movimentos grácil e fluída a uma singular intensidade emocional.

“Se algum dia, Alicia Alonso se decidisse a mostrar a história dos seus gestos, dos seus movimentos, que deliciosa novela proustiana teríamos”, escreveu Lezama Lima.

O seu estilo era elegíaco, frágil e etéreo. Parecia, literalmente, flutuar no palco, levando um crítico norte-americano a escrever, em 1967, após assistir a uma representação de Giselle: “sempre que o seu partenaire levantava Alicia Alonso, provocava uma sensação única: que não a elevava, mas que a agarrava para a impedir de voar”.

Se hoje, a figura da Alicia Alonso nos surge como lendária e quase sobrenatural, um ser de uma outra era, a verdade é que a grande bailarina sempre causou essa impressão. Já em 1943, no início da sua carreira, um crítico nova-iorquino afirmava: “Alonso pertence a esse período longínquo quando uma bailarina dançava em pontas para demonstrar ao público que não era uma simples mortal, que era um ser superior, cujo único contacto com o nosso mundo pecador é o espaço reduzido em que pisa o solo”.

Alicia foi a intérprete suprema das grandes obras do repertório clássico e romântico, porém admitiu que Giselle era uma obra muito especial na sua carreira, declarando: “Entre todas as obras do ballet tradicional, Giselle é a mais completa dramaticamente e oferece à bailarina amplas possibilidades para elaborar uma personagem. O contraste entre o primeiro ato – uma ingénua camponesa apaixonada – e o segundo – um ser imaterial, espectral que, não obstante, ama para além da sua própria natureza – constitui um verdadeiro repto interpretativo para uma bailarina.”

O poder de transcender o gesto

Alicia Alonso criou a sua própria versão coreográfica de Giselle, interpretada pelo Ballet Nacional de Cuba, e que montou para a Ópera de Paris, a Ópera de Viena, o Teatro Colón de Buenos Aires, a Companhia Nacional de Dança do México e o Teatro San Carlo de Nápoles.

Alicia dançou no Ballet Theatre de Nova Iorque, nos Ballet Russes de Monte Carlo, nos teatros  Bolshoi e Kirov. Após a revolução cubana de 1959, regressou a casa e formou o Ballet Nacional de Cuba, colocando o seu país no altar da melhor da dança mundial e formando várias gerações de bailarinos. A formação da escola do Ballet Nacional de Cuba mereceu o seguinte comentário de José Lezama Lima: “Alicia Alonso já ensinava, dançando”.

A artista exerceu igualmente um relevante papel de activismo cívico em Cuba. O famoso corégrafo Maurice Béjart exalta este aspecto da sua personalidade: “A bailarina é extraordinária, o personagem não o é menos. Esta noite Giselle, amanhã Carmen, depois de amanhã com botas e uniforme de combate bailando a Revolução Cubana, nas cidades de Oriente ou nas praças de Havana.”

A bailarina ficou quase cega aos 20 anos de idade, depois de sofrer um duplo descolamento de retina. Com uma coragem e tenacidade excepcionais, compensava a falta de visão periférica treinando os seus parceiros para se colocarem sempre no lugar exacto que ela fixava e usando luzes de diferentes cores no palco como guias de orientação. “Quase cega, mas clarividente”, escreveu Maurice Béjart.

Alicia Alonso dançou ininterruptamente até aos anos 80, sem qualquer vestígio de diminuição de faculdades técnicas ou artísticas. Em 1981, o crítico do Ballet News, comentava a sua apresentação aos 61 anos de idade: “Alonso no apogeu da sua forma, deslizou, incrível e facilmente através das exigências técnicas de Giselle.”

Citamos, uma vez mais, José Lezama Lima que, evocando o encontro da arte de Alonso com a sua poesia, escreveu: “ Uma bailarina como Alicia Alonso comprova que existem entre nós miríades de iridescências, de metáforas, de reflexos, de ideias, de nascimentos e presságios que podem ter momentaneamente uma evidência, alcançando forma e esplendor ao serem dançados.”

Homenageando os 100 anos do nascimento da grande bailarina cubana, o Centro Português de Serigrafia edita Alicia Alonso – Prima Ballerina Assoluta, um álbum de Paco Bou que exerceu, durante mais de 30 anos, a função de fotógrafo pessoal de Alica Alonso. Publicação que inclui dois poemas com o título Dança, o primeiro, de Pablo Neruda, o segundo dedicado a Alicia Alonso, da autoria da poetisa portuguesa Joana Lapa.

Uma belíssima edição que celebra o talento da bailarina que, segundo o romancista e musicólogo Alejo Carpentier, tinha “o poder de transcender o gesto, elevando-o ao plano da emoção pura.”

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