O seu trabalho está muito ligado ao mundo académico?
Também sou um arquitecto no sentido tradicional do termo, tenho um ateliê em Paris, onde sou professor, bem como em Lausanne (Suiça) e em Harvard (EUA). Cerca de metade do meu tempo é dedicado ao ensino e o restante ao meu ateliê. Para além disso, escrevo livros e artigos sobre temas contemporâneos da arquitetura.
Esta edição da Trienal tem como tema central A Poética da Razão. Foi o Eric Lapierre e a sua equipa que o escolheram?
É um trabalho que tenho desenvolvido com uma equipa de professores com os quais colaboro na escola de arquitectura (École d’Architecture de la Ville et des Territoires à Paris-Est). Estavamos a trabalhar o tema há já cerca de um ano, no campo académico. A Poética da Razão é uma pesquisa que procura definir as especificidades da racionalidade da arquitetura. O convite foi oficializado há cerca de três anos, no final da Trienal anterior (2016). Isto permitiu que tivéssemos todo esse tempo para trabalhar o tema, um prazo que permite fazer uma pesquisa mais profunda, ao invés de outras bienais onde, por exemplo, se tem apenas seis meses de preparação.
De que maneira caracteriza essa racionalidade?
Para a nossa equipa é importante dizer claramente que a criação é parte da intuição, mas também está baseada na racionalidade. A arquitetura é uma arte pública, as suas obras não estão fechadas em museus ou colecções privadas. Pertencem a todos, não apenas ao arquitecto ou aos seus clientes, fazem parte do espaço público e da cidade. Assim, é importante afirmarmos que a arquitectura tem de ser racional, inteligível e compreendida por todos, e que para atingir esse propósito tem de se basear em premissas racionais. Note que quando me refiro à racionalidade, não é que esta seja mais aborrecida ou chata do que algo mais subjetivo. A arquitectura tem sempre algo de subjectivo, mas esta parte não tem de ser a mais relevante. É importante pensar que a razão é glamorosa. E que envolve muita imaginação.
Não são conceitos que se costumam classificar como antagónicos?
Não há oposição entre racionalidade e sensibilidade ou sensualidade e imaginação. Uma das nossas exposições, Espaço Interior, curada por Fosco Lucarelli e Mariabruna Fabrizzi, é sobre a imaginação na arquitetura. Mostra que um arquiteto deve começar por criar o seu próprio imaginário, como corolário de um processo racional. Deve ir para além do gosto: os arquitetos precisam de razões mais sólidas para agir e para julgar as coisas. Para o público, a apreciação tem a ver com o gosto de cada um, o que é natural. Para um arquiteto, tal como um artista, há um processo racional no imaginário, que vem da memória, das classificações, da escolha do campo ou da tradição em que gostaria de inscrever o seu trabalho. Estes aspectos pertencem a um processo de racionalidade que não é seco nem aborrecido, nem menos interessante do que a criatividade. Há uma ponte entre racionalidade e criatividade que é impossível de destruir. Racionalidade é um modo de inscrever as nossas obsessões ou desígnios no campo da cultura comum. É o mediador entre essas obsessões íntimas e a cultura comum.
É uma ferramenta?
Sim, uma ferramenta, uma rede de interpretação e de leitura. Algo que abre a imaginação.
Como é que isso se relaciona com a individualidade? Por exemplo, com os arquitetos de grande nomeada que têm um estilo muito reconhecível?
Está a falar dos starchitects [“estrelas da arquitetura”]. Aqui em Portugal têm alguns, tal como o Siza Vieira. São pessoas que desenvolveram uma visão pessoal da arquitectura, ao longo de um percurso. Estes arquitectos estão profundamente conscientes do peso da sua cultura e que por essa razão, as suas obras são facilmente apropriadas pelo público. Para mim, a questão da disciplina da arquitectura é também enfatizar que ser arquitecto é estar envolvido nesta cultura. É o facto de inscrever o seu trabalho conscientemente no fluxo da cultura arquitectónica que permite que se façam coisas colectivas. É algo muito maior que um indivíduo. Fazer arquitetura é fazer algo colectivo, ainda que se faça uma casa privada: é sempre colectiva porque pertence à cultura comum da arquitectura.
Os nomes das exposições da Trienal sugerem que Beleza Natural e Espaço Interior são de um universo mais interior e que Economia de Meios e Arquitetura e Agricultura: Do lado do Campo são de um universo mais racional.
Não diria isso, porque tentamos definir as especificidades da racionalidade da arquitectura e toda esta racionalidade está essencialmente baseada na Economia de Meios. As outras exposições abordam aspectos específicos da racionalidade da arquitectura. Beleza Natural é sobre o facto de precisarmos de uma estrutura para que um edifício se mantenha em pé. É sobre as escolhas que se podem fazer para conceber uma estrutura.
Pode especificar?
Considere, por exemplo, um ramo de uma árvore. Tem a forma e a quantidade de matéria exactamente suficiente para se equilibrar. Pode replicar-se esta qualidade nas estruturas dos edifícios, por exemplo de maneira a cobrir a maior extensão possível de espaço com o mínimo de material. Economia de meios é um modo de pensar intimamente ligado aos processos naturais. Espaço Interior lida com o cérebro do arquitecto e sobre o modo como o arquitecto usa processos racionais para construir o seu imaginário. Recorre a maquetas, desenhos, realidade virtual e uma série de objectos que são uma espécie de cabinets de curiosités. Agricultura e Arquitetura debruça-se sobre o ambiente e os problemas que estamos actualmente a sofrer como o aquecimento global. A exposição evoca a história do ambiente e propõe quatro cenários para o futuro próximo. É um modo de alertar o público que temos de mudar drasticamente e em breve. E que para isso precisamos da arquitectura. A arquitetura sempre respondeu às questões sociais contemporâneas. Quando atravessamos uma crise pode ser muito fácil dizer que não precisamos de arquitectura, mas se amanhã o ambiente é mau, feio e as pessoas estão deprimidas, temos de ter soluções.
Acredito que consiga mobilizar os seus alunos com estas questões, mas como podemos consciencializar os poderes públicos, os nossos líderes ?
Certamente os nossos líderes não estão ainda prontos, mas tem havido uma evolução. Há dez anos, apenas os partidos ecológicos falavam nestes assuntos. Atualmente, excetuando algumas figuras mais extremistas, como Trump ou Bolsonaro, qualquer líder político razoável aborda estas questões. Não penso que consigam já tomar as decisões certas porque as medidas necessárias seriam difíceis de explicar às populações. No futuro próximo, essa vai ser uma das questões centrais: como vamos conseguir impor as mudanças necessárias a quem se habituou a viver esbanjando energia e recursos.
Pensa que há uma responsabilidade dos arquitectos em fazer passar esta mensagem, por exemplo aos seus clientes?
Em parte sim. Quando se tem um contrato com um cliente não é fácil convencê-los, porque pode implicar um aumento dos custos ou mudar de tal maneiro o projeto que eles ficam receosos. Eventos como a Trienal são ideais neste aspeto, porque não sofrem a pressão do mercado, são livres em todos os sentidos do termo. Se dedico o meu tempo a um evento como este é para tentar educar a sociedade de um modo que não consigo nas escolas, por exemplo. Penso que temos o dever de o fazer.
O DESCOLA junta equipas de mais de duas dezenas de serviços e equipamentos municipais. É um programa de aprendizagens criativas que tem como missão desenvolver o potencial transformador das Artes e da Cultura junto do público escolar. O programa, que teve a sua primeira edição no ano letivo de 2018/2019, foi construído e preparado em estreita colaboração entre mediadores, artistas e docentes. Numa primeira fase, esse trabalho colaborativo foi vertido numa brochura que ofereceu às escolas mais de uma centena de projectos, alguns dos quais deram origem a trabalhos finais.
Estes trabalhos finais, apresentados em sessões públicas, resultaram de muitos meses de empenho das partes envolvidas. Sempre liderados por um artista, estes projectos tiveram como objectivo a aproximação entre as escolas e os equipamentos culturais e a motivação dos alunos, dando-lhes voz, levando-os a participar e a envolverem-se. Assim, durante esse período de trabalho, os alunos foram conduzidos na discussão e na troca de ideias, no sentido de perceberem a sua pertinência e a pertinência das suas opiniões, levando-os a serem mais interventivos. Na base de todos os projetos estão temas como a cidadania e a sustentabilidade, que para além de fazerem parte dos currículos escolares, são prementes na atualidade.
O primeiro projeto foi liderado pelo artista plástico Vasco Araújo, em colaboração com a Galeria Quadrum e a Escola Rainha Dona Leonor. Contribuir para o desenvolvimento de uma consciência cívica ditou o tema do trabalho: Acessibilidade ou não acessibilidade, eis a questão. Vasco Araújo trabalhou com um grupo de alunos dos 10.º e 11.º anos desta escola e preparou uma manifestação de rua, onde os jovens empunhavam cartazes ou outros suportes gráficos com slogans vários, todos de sua autoria.
Sofia Cabrita, por seu turno, trabalhou com os alunos do 8.º Ano do Centro de Educação e Desenvolvimento D. Nuno Álvares Pereira, da Casa Pia de Lisboa, em parceria com o Padrão dos Descobrimento, onde apresentou Viagens Exploratórias. Este projeto, que teve como objetivo levar os alunos a conhecer e respeitar as diferenças de cada um para chegar à cidadania e à participação cívica, desafiou os jovens a definir, de diversas formas, o que é isto de viajar e explora o mundo e a perceber o valor dessa experiência.
Escola Nómada ou a (des)construção das evidências, projeto levado a cabo pelos artistas Hugo Barata e Jefferson de Sá, abordou a problemática do racismo na sociedade atual, tendo por base a herança histórica. Em colaboração com o Gabinete de Estudos Olisiponenses e a Escola Pintor Almada Negreiros, este trabalho, que incluiu debates, visitas orientadas, exercícios de pesquisa e oficinas várias, resultou numa performance de expressão corporal.
Murro no Estômago, uma exposição interativa, juntou a bailarina Mariana Lemos ao Museu da Marioneta e a 45 alunos do 11º ano da Escola Artística António Arroio. O projeto artístico, que pretendia tecer novos caminhos entre a escola e o Museu, centrou-se nas marionetas de São Lourenço e o Diabo, abordando as suas respetivas técnicas de manipulação e métodos de encenação e teatralização. A ideia era desafiar os jovens artistas e professores a contruírem sons, imagens, adereços e marionetas que refletissem um olhar contemporâneo sobre temas centrais de Os Maias, de Eça de Queirós.
A brochura do DESCOLA para o presente ano letivo (2019/2020) já se encontra disponível e volta a reunir mais de vinte agentes culturais municipais – museus, teatros, arquivos e bibliotecas – que acreditam na força educativa das artes e da cultura e querem participar, com professores e alunos, na construção de escolas que se afirmem como comunidades de aprendizagem, abertas e interventivas.
Djaimilia Pereira de Almeida
Luanda, Lisboa, Paraíso
Publicado no final de 2018, o segundo romance de Djaimilia Pereira de Almeida venceu entretanto os prémios literários Fundação Inês de Castro e Fundação Eça de Queiroz. Nele se conta a história de dois angolanos, Cartola e Aquiles, pai e filho, que se deslocam a Lisboa para que o rapaz seja operado a uma deformação de nascença. A estada de ambos vai-se prolongando, o dinheiro acaba-se e eles caem na marginalidade, não no sentido criminal do termo, mas da invisibilidade que a palavra acarreta. É um livro duro mas muito bem escrito. A certa altura, a autora que mede bem o sentido das frases que usa, diz que Cartola e Aquiles se encontram unidos pela fome. Fome aqui adquire também mais de um sentido. Eles estão unidos pelo infortúnio, por uma perda de raízes e referências que traz um sentimento de alienação, transmitido às cartas e aos telefonemas de Cartola para a mulher, e desta para ele – no caso de Glória marcados ainda por uma ingenuidade que comove, pois ao contrário dela temos clara noção das dificuldades que o marido e o filho enfrentam em Lisboa. RG
Companhia das Letras
Charles Baudelaire
Os Paraísos Artificiais e Outros Textos
O poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867), autor das célebres As Flores do Mal, reunia-se com os amigos no Hotel Pimodan, desfrutando do haxixe, do ópio e do vinho. Em Paraísos Artificiais, o poeta relata a sua aventura numa série de escritos “não de pura fisiologia, mas sobretudo de moral. Quero provar que os descobridores de paraísos fazem o seu inferno, preparam-no, cavam-no com um sucesso cuja previsão talvez os atemorizasse”. Distingue o consumo do haxixe e do vinho, afirmando: o menor dos inconvenientes do haxixe “é ser antissocial, enquanto o vinho é profundamente humano”, louvando a sua ingestão moderada: “Quem quer que tenha tido um remorso a mitigar, uma recordação a evocar, uma dor a afogar, um castelo em Espanha a edificar, todos, enfim, vos invocaram, deus misterioso escondido nas fibras da videira.” Os efeitos do ópio são apresentados tendo como plano de fundo a análise do livro de Thomas De Quincey, Confissões de um Comedor de Ópio. A presente edição inclui O Cachimbo do Ópio e O Haxixe e o Clube dos Comedores de Haxixe de Théophile Gautier.
Relógio D’Água
H.G. Wells
Ficção Curta Completa Volume II
H.G. Wells, “um Jules Verne científico”, como lhe chamou Oscar Wilde, foi um dos fundadores da moderna ficção científica. Se os enredos das suas novelas podiam parecer implausíveis à época, cem anos depois a tecnologia encarregou-se de estreitar a diferença entre a sua ficção e a realidade. O autor antecipou a bomba atómica, a engenharia genética, a robótica, as viagens espaciais. Porém não tinha o objetivo de inventar tecnologias futuras, mas de conceber modelos sociais melhores apoiados pela ciência ao serviço da inteligência humana. Wells servia-se da forma curta, publicada em centenas de revistas e jornais durante a sua vida, para difundir ideias e muitas delas formam hoje conceitos universais no campo das ciências, da ética ou da política. No segundo de dois volumes que compilam toda a ficção curta do escritor, boa parte dos contos e novelas incluídos nesta edição estava ainda inédita em língua portuguesa.
E-Primatur
Fátima Mariano
Grandes Mistérios da História de Portugal
A História de Portugal não se construiu apenas em torno dos grandes momentos políticos, sociais, económicos, culturais e religiosos, mas que também é composta por acontecimentos breves e remotos. «Este não é um livro de História, mas de estórias», revela a autora na introdução deste livro. A jornalista e historiadora Fátima Mariano mergulhou nos episódios esquecidos, ocultos ou desconhecidos da nação portuguesa e regressou com um punhado de histórias surpreendentes e fascinantes. Quantos de nós sabem que existiu, até ao seculo XIX, um microestado entre a Galiza e Trás-os-Montes, equiparável a Andorra? E que o rei D. Manuel I recebeu uma fera nunca vista, uma ganda, que juntou em duelo com um dos seus elefantes? Ou que houve um marinheiro valente, soldado destemido e cavaleiro terrível que afinal era mulher? Grandes Mistérios da História de Portugal expõe as diversas teses sobre os mistérios com que Fátima Mariano se deparou durante a sua investigação, apresentando os factos históricos numa linguagem apelativa e esclarecedora, impelindo o leitor a descobrir o que está para lá dos manuais de história.
Contraponto
Kazuo Ishiguro
As Pálidas Colinas de Nagasáqui
Nascido em Nagasaki, em 1954, Kazuo Ishiguro foi viver com os pais para Inglaterra aos 5 anos de idade. Aí se tornou num dos mais notáveis escritores de língua inglesa, Prémio Nobel de Literatura 2017. As Pálidas Colinas de Nagasáqui, seu primeiro romance, fixa os seus temas recorrentes: a memória, a perda e a noção de mortalidade. Após o suicídio da filha, Etsuko, uma japonesa a viver sozinha em Inglaterra, recorda a sua gravidez num verão quente em Nagasáqui, e a relação com uma vizinha abastada reduzida pela guerra à indigência, com quem estabelece uma profunda identificação. Na cidade devastada pelos bombardeamentos atómicos da II Guerra Mundial, homens e mulheres, que perderam familiares e haveres, tentam reconstituir as suas vidas numa sociedade em mutação radical. Aos costumes tradicionais da cultura japonesa impõem-se os hábitos dos ocupantes americanos (“Perdemos a guerra, mas isso não é razão para imitarmos os costumes do inimigo”). Nesta obra nostálgica e inquietante, os acontecimentos do passado adquirem, através do exercício da memória, ressonâncias trágicas e premonitórias.
Gradiva
António Lobo Antunes
A Outra Margem do Mar
António Lobo Antunes, Prémio Camões (2007), assinala, em 2019, 40 anos de actividade literária desde a publicação dos seus dois primeiros romances: Os Cus de Judas e Memória de Elefante Estes primeiros livros transformaram-no imediatamente num dos autores de língua portuguesa contemporâneos mais lidos, traduzidos e discutidos no âmbito nacional e internacional. A experiência em Angola na Guerra Colonial como tenente e médico do exército português, entre 1971 e 1973, marcou fortemente os seus primeiros romances. Realidade a que o autor regressa na sua mais recente obra de Ficção, o romance A Outra Margem do Mar que recupera o início da sublevação na Baixa do Cassanje, em Angola. O romance recai, assim, nos incidentes ocorridos antes da guerra colonial, quando grandes plantações de algodão começaram a ser incendiadas, acontecimentos que foram fulcrais para o desenrolar do conflito.
Dom Quixote
Rosário Alçada Araújo
O País das Laranjas
O romance de Rosário Alçada Araújo inspira-se num facto histórico: a vinda de 5500 crianças austríacas para Portugal após a Segunda Guerra Mundial, ao abrigo de um programa da Cáritas. Martha, a heroína desta história, com apenas 10 anos, parte para Portugal com o irmão Peter. Estamos em 1949 e a fome e o frio fazem parte do seu quotidiano, pois a Áustria, a sua terra-natal, é ainda um país destruído pela Guerra. Chegados a Lisboa, são inesperadamente separados e Martha vai viver para a Covilhã, no seio de uma família abastada que a recebe com um amor e conforto que nunca antes experimentou. Martha irá viver dias inesquecíveis, mas não consegue separar estes tempos de felicidade das recordações da guerra que traz consigo, das saudades do irmão e da mãe, da tristeza por não se lembrar das feições do pai. Quando o regresso à Áustria se aproxima, Martha vê-se obrigada a pensar em quem é realmente e a que lugar quer pertencer, numa inspiradora história de vida unida por duas pontas: Linz e a Covilhã.
Asa
Depois do fim da Cornucópia e da decisão tomada pela Câmara de Lisboa de interromper o projeto artístico prosseguido pelo Teatro Municipal Maria Matos após a saída de Mark Deputter, este novo TBA pretende ser uma conciliação dos dois legados?
O projeto do TBA é novo, com um foco específico na experimentação e no emergente, mas não quer dissociar-se desse lastro, seja pela relação com o espaço em que a Cornucópia trabalhou durante décadas, seja porque cerca de metade da equipa é proveniente do Maria Matos. Ou seja, as paredes são aquelas e as pessoas são estas. A maneira como a Cornucópia usou o Teatro é inspiradora, sobretudo pela versatilidade e flexibilidade do espaço, características benéficas para a experimentação. Quanto ao que herdámos do Maria Matos foi um grupo de pessoas que trazem o saber e a experiência para dentro de uma equipa nova. Mas, apesar de tudo isto, não somos, de todo, nem herdeiros nem continuadores desses dois projetos.
Como é que o TBA se vai tornar um espaço de diferenciação no panorama cultural da cidade, tendo em conta que há vários projetos de experimentação artística muito ativos, como a Rua das Gaivotas, o Ibérico ou até mesmo o TNDM II, o São Luiz e, claro, a Culturgest?
Reconheço que possam existir interseções, aproximações, sobreposições ou até colaborações com outros teatros. O que me parece ser distintivo neste projeto é o foco. Ao contrário daqueles que também programam “experimental”, o foco do TBA é, exclusivamente, esse. Depois, existe um espaço diferenciador à partida. Dos institucionais este é o único que não é um teatro à italiana, portanto, o que aqui temos é um grande hangar que pode ser usado de múltiplas maneiras: ser compartimentado e reduzido até uma escala muito intima; ou ser utilizado em toda a sua extensão, que ronda os 30 metros. Podemos ser uma black box para 50 espectadores ou para 170, o que significa podermos oferecer aos artistas a possibilidade de testar ideias no espaço. Outra característica distintiva é a regularidade da programação internacional.
Podes ser mais concreto?
Acho que, com o encerramento do Maria Matos e a saída da equipa do Miguel Lobo Antunes da Culturgest, houve aqui mais ou menos um ano em que projetos internacionais de pequena escala deixaram de ser vistos em Lisboa com tanta frequência. Os nossos primeiros meses de programação têm precisamente a ver com isso, num esforço para recuperar aquilo que possa ter sido um tempo perdido.
Não temes que esse hiato, e até pela atomização dos públicos tão característica dos nossos tempos, tenha provocado um efeito de desmobilização?
É possível. Nós não damos nenhum público como adquirido. Um dos objetivos nestes dois primeiros anos é o de criar um público habitual, e não é só aquele que ia ao Maria Matos ou à Culturgest. Temos que chegar a um público novo, desafiado por coisas que não conhece ou conhece mal. Sobretudo, queremos ter um público aventuroso que venha e queira voltar.
E haverá várias formas de chegar ao público para além das artes performativas, com as conversas, os debates, o pensamento…
Sim, há toda uma programação a que chamamos “de discurso” e, também, formas de chegar às pessoas que não passam necessariamente por tê-las no Teatro. Temos uma programação on line com podcasts de autor, faremos transmissões em streaming e programámos vários eventos fora do TBA, como aliás já fizemos no Quase, o programa que serviu de cartão de visita ao nosso projeto. Aliás, vamos ter, a 19 de outubro, um percurso performativo da Joana Braga em Marvila, na antiga Zona J.
Quanto ao edifício, houve alguma alteração substancial?
O processo de reabilitação do espaço começou antes da minha nomeação. Foi um processo longo que contou com a ajuda de pessoas, que não do ponto de vista do espectador, conheciam bem o Teatro. Diria que, apesar de não terem sido feitas obras profundas, as intervenções são complicadas, sobretudo devido à dimensão do edifício. Depois há os vetores da acessibilidade, da segurança e da renovação técnica que eram essenciais. Na questão da acessibilidade, por exemplo, iremos abrir ainda sem tudo concluído, nomeadamente o elevador. Quanto ao espaço, o bar ainda não vai estar em funcionamento no dia 11, mas espero que o foyer tenha já pronta uma cenografia surpresa.
Concordas com a ideia de que uma sala como a do Maria Matos era sobredimensionada para as propostas que apresentava?
Nunca a consideraria sobredimensionada. Não tenho nenhum problema em programar contra o espaço, até porque acredito que não devemos ser escravos da arquitetura. Porém, acredito que há determinadas propostas que podemos trazer aqui que, eventualmente, não seriam muito viáveis no Maria Matos; e vice-versa. Sublinho mesmo que, para a experimentação, este é o espaço mais interessante em Lisboa devido às características de que falámos.
Está pensado ser estabelecido um diálogo programático com os outros teatros municipais, o São Luiz e o Lu.Ca, e com outras instituições?
Estamos em contacto. Sobretudo com o São Luiz, uma vez que há artistas que nos interessam. Com o Lu.Ca, há a ideia de encontrarmos colaborações específicas, com criadores que também têm propostas para públicos mais jovens. Onde penso que esse diálogo mais se notará é com os festivais da cidade: o Alkantara, o Temps d’Images ou o Cumplicidades. Aquilo que pretendemos é estabelecer um diálogo aberto com todas as programações. No entanto, e no imediato, as colaborações bilaterais não nos parecem muito produtivas, sobretudo porque precisamos de encontrar o nosso lugar.
Falando à margem do programador… Continuas a traduzir? Sentes saudades de escrever crítica?
Sim, continuo a traduzir apesar de agora ter muito menos tempo. Crítica, fiz pouca. É interessante como essas atividades, e também a de programador, têm relação entre elas: a programação, a tradução e o escrever sobre objetos artísticos. São todas elas atividades de mediação e é nelas que me tenho encontrado ao longo do tempo. Acredito que fazer crítica é uma maneira de traduzir; e programar é também uma maneira de fazer crítica.
Agora, vais dirigir um Teatro de que foste espectador. Guardas alguma memória especial do “velho” Teatro do Bairro Alto?
Tirando os espaços onde trabalhei, este Teatro foi, provavelmente, o que mais frequentei. Era um espectador da Cornucópia e lembro-me perfeitamente das primeiras vezes que cá vim. Devo aqui ter visto algumas dezenas de espetáculos e recordo muitos deles. Aliás, o título que dei ao meu projeto de candidatura à direção artística do TBA vem do nome de um espetáculo da Cornucópia: Sete Portas, de Botho Strauss [estreado em 1993, com encenação de Luís Miguel Cintra]. Mas há muitos que poderia referir, como Afabulação de Pasolini [1999] ou O Barba Azul de Jean-Claude Biete [1996].
Haverá algum dos textos que a Cornucópia trabalhou que gostarias de programar aqui?
Eventualmente. Há um texto que penso poder caber na programação deste nosso projeto e, por sinal, é o único que a Cornucópia encenou duas vezes…
E qual é?
Isso agora… [risos]. Mas é fácil descobrires! [Francisco Frazão não o disse, mas trata-se de A Missão, de Heiner Muller, que a Cornucópia encenou em 1983 e 1992, resultando em espetáculos diferentes]
Quando é que se prevê que isso possa acontecer?
Não será para já. Acho que chegará o tempo para estudar, pensar e refletir sobre a Cornucópia e, mesmo não nos querendo pôr no lugar daquela companhia, o TBA não poderá deixar de participar. Provavelmente, em 2023, ano em que comemoraria 50 anos, pode haver a hipótese de inscrever esse texto na nossa programação.
O TBA vai abrir com dois espetáculos de dança: Hidebehind, de Josefa Pereira, e CHROMA, de Alessandro Sciarroni. Porquê duas propostas para o mesmo fim de semana?
Eu, a Laura Lopes, a Ana Bigotte Vieira e a Diana Combo, equipa de programação, decidimos que não queríamos ter “o” espetáculo de abertura, a grande inauguração. Queríamos, isso sim, dar visões parciais daquilo que o TBA pode ser. Ou seja, ter várias declarações de intenções que se irão replicar ao longo da temporada. Estes espetáculos foram programados em conjunto porque são peças curtas, são dois solos e têm em comum a ideia do movimento circular. A eles, junta-se ainda uma conferência sobre a ideia de respiração e sufoco pelo italiano Franco Berardi que, como iremos ver, estabelece alguns contactos com os espetáculos.
Para os próximos meses, o que podes destacar na programação do TBA?
Há um espetáculo da Gob Squad, companhia que programei na Culturgest, e que virá ao TBA apresentar, em novembro, um clássico do teatro experimental intitulado Super Night Shot. No mesmo mês, teremos uma coprodução internacional que fizemos com o Tim Crouch, estreada em Edimburgo e que está agora em Londres, no Royal Court. Depois, destacaria também, em dezembro, um solo da Raquel Castro em estreia absoluta e um espetáculo do Alex Cassal, Morrer no Teatro, que é ainda uma produção do Maria Matos, e que estreou este ano no Funchal. Para o ano, temos já agendado um projeto grande da Sofia Dias e Vítor Roriz, uma peça a solo da Teresa Coutinho e uma criação, em coprodução, da iconoclasta artista inglesa Lucy McCormick.
Mais de uma década depois de Cabaret, Diogo Infante regressa ao teatro musical e, uma vez mais, ao universo de um dos grandes coreógrafos da Broadway, Bob Fosse. Chicago é, desde 1975, ano em que o musical inspirado na peça de Maurine Dallas Watkins estreou em Nova Iorque, com música de John Kander e libreto de Fosse e Fred Ebb, um dos maiores sucessos mundiais do género, tendo sido representado desde então em dezenas de países.
Embora exista um franchising do musical, Infante acabou por conseguir dissociar-se e obter aquilo que considera “uma licença para a criatividade”, sendo que a versão em cena no Teatro da Trindade “resulta do trabalho de uma equipa que, com muita ambição, colocou todo o seu talento em cena”. Assim, a exemplo, a coreografia é assinada por Rita Spider, os figurinos por José António Tenente e a encenação reflete “um olhar pessoal e muito atual sobre o musical, realçando a crítica a um sistema judicial ou a aura de estrela que os media conferem a alguns criminosos.”
Curiosamente, Infante conta que, quando o viu pela primeira vez há largos anos em Nova Iorque, não ficou particularmente entusiasmado e, talvez por isso mesmo, não lhe interessou trazer para palco o formato “oficial”. “Por exemplo, achei bem mais interessante o filme [dirigido por Rob Marshal em 2002 e vencedor do Oscar de Melhor Filme] que, tal como na nossa versão, dá particular atenção às partes não musicais, algo que por vezes se descura neste género de produções”, sublinha.
Por essa razão, o encenador foi particularmente criterioso na escolha do elenco. “Qualquer dos artistas em cena tinha que ser capaz de cantar, de dançar e de representar”, refere ao lembrar que o casting foi essencial para selecionar os melhores. “Quando decidi fazer o Chicago só tinha definidos três atores: a Gabriela Barros e a Catarina Guerreiro, que tinham estado nas audições de Cabaret e que com muita pena minha não chegaram a entrar no espetáculo, e o José Raposo, que imediatamente vi no papel de Amos Hart, o marido traído de Roxy.”
Ambientado na Chicago da década de 20 do século passado, o musical conta a história de duas cantoras rivais de vaudeville, Roxy (Gabriela Barros) e Velma (Soraia Tavares), acusadas de homicídio – a primeira pelo assassinato a sangue-frio do amante; a segunda, pela morte do marido e da irmã. Presas, ambas vão recorrer aos serviços de um inescrupuloso advogado, Billy Flynn (Miguel Raposo), e aos esquemas obscuros da chefe das guardas prisionais, Mama Morton (Catarina Guerreiro), de modo a reconquistar a liberdade e atingir as luzes do estrelato.
CHICAGOEncenação Diogo InfanteÉ crime não ver este espetáculo!A partir de 11 SETBilheteira Online: bit.ly/TeatroTrindade_CHICAGO
Publicado por Teatro da Trindade em Domingo, 1 de setembro de 2019
Quando estreou em Espanha, em 2014, Emília foi um retumbante sucesso, mais um triunfo de Claudio Tolcachir, o autor argentino que anos antes se afirmara no panorama teatral internacional com A Omissão da Família Coleman. De algum modo, Jorge Silva Melo sublinha a influencia que a peça terá tido no cineasta Alfonso Cuaron que, algum tempo depois, dirigiria Roma. Tal como o consagrado filme, também Emília é a história de uma ama, tendo a peça nascido, segundo o próprio Tolcachir, do encontro casual que teve com a mulher que dele cuidou na infância.
Enquanto Roma mergulha no passado, Emília projeta-se no reencontro (casual) da velha ama (Isabel Muñoz Cardoso) com Walter (Américo Silva), o seu “menino”, agora já homem feito. Os fortes laços afetivos avivam-se e Walter leva Emília a sua casa para lhe apresentar a família – a família que ele “construiu”. Porém, tudo naquela casa, prestes a ser habitada (a família acaba de se mudar), é trespassado pela fragilidade, nomeadamente a dos laços familiares que não são bem o que aparentam.
Habitada por “personagens ricos e intensos”, a peça tem, como sublinha Silva Melo, “um erro de paralaxe”, ou seja, não é a genética que define o amor, pelo que “a ideia de família subjacente é a que se deseja”, não a que biologicamente foi determinada. E essa forma de consumar aquilo por que se anseia une, até tragicamente, Emília e Walter. Ela, desejando continuar a ser a que cuida e acarinha, a “mãe” (embora tenha tido um filho biológico com quem não mantém qualquer tipo de relação); ele, que desejou constituir família e acabou tomando uma de empréstimo, antevendo o quão devastador pode ser viver um amor assim.
Emília estreia a 11 de setembro, no Teatro da Politécnica, e permanece em cena até 19 de outubro.
Como é que a bateria surgiu na tua vida?
É difícil de explicar. Acho que se resume a uma atração, um feeling…
Alguma influência familiar?
Não tenho na família ninguém ligado à música. A minha avó tem um lado muito artístico, sempre puxou muito por mim. O meu pai não tem nada a ver com jazz, mas sempre ouviu muita música. Sempre tive muita música em casa.
Quando é que te começaste a interessar pelo jazz?
Quando andava no quinto ou sexto ano, tinha um amigo de escola cujo pai era um verdadeiro nerd, tinha todos os discos de jazz. Eu e os meus amigos juntávamo-nos a ouvir Chet Baker. Nessa altura um disco dava-me para vários meses…
Houve algum disco em particular que te tenha marcado?
Quando és novo e estás a descobrir coisas pela primeira vez, há discos que parecem magia, como o Love Supreme, do Coltrane. Quando o ouvi pela primeira vez pensei: “que loucura é esta?”. Foi uma cena brutal.
Continuas a ouvir esses primeiros discos?
Estou sempre a revisitá-los. Como é algo que faz parte da minha linguagem, há um lado de estudo. Há um lado de “curtição”, mas também esse lado de exploração. Às vezes tenho a neura de ter que ouvir o Elvin Jones para tentar perceber como é que ele fazia aquilo.
Que recordações guardas dos teus primeiros passos no jazz?
Estudei jazz no Hot Clube mas, a determinada altura, tive que sair. Havia coisas muito boas, mas as coisas menos boas estavam a fazer-me mal. Nessa altura o Alexandre Frazão ia começar a dar um novo curso na Academia de Amadores de Música de Jazz, uma coisa muito mais séria. Entretanto, na sede da Clean Feed Records comecei a apanhar o início da onda do free jazz. Foi aí que me eduquei (ou deseduquei) para coisas muito ‘fora do baralho’. Um dia fui ao Jazz em Agosto, vi a Globe Unity Orchestra (devia ter uns 18 anos) e fiquei completamente doido. Saí dali e comecei a tocar free jazz. Era tudo novo, foi um momento lindo. De tal forma que estava a estudar Design Gráfico e desisti. Percebi que trabalhar com computadores não era para mim. Ainda agora estive um ano e meio sem telemóvel, o meu pc mal funciona… É coisa de baterista. Gosto é de bater com paus em coisas.
Não te dás bem com a tecnologia, portanto?
É mais do que isso. Tenho aversão total. Às vezes vou almoçar com os meus pais e eles estão os dois agarrados ao telemóvel. Eu não.
Há alguns anos, tiveste a oportunidade de ter Evan Parker como mentor. Que ensinamentos retiraste desse convívio?
Tive muita sorte porque já estive várias vezes com ele: fiz dois workshops há algum tempo, depois fiz um mini-workshop há relativamente pouco tempo, e fez agora um ano que toquei com ele em dois concertos. Ele representa a verdadeira esperança daquelas pessoas que estão melhor agora do que antes. Nunca tocou tão bem como agora, aos 74 anos. Depois há as questões técnicas, relacionadas com a improvisação. Uma das frases que ele costuma dizer é “you have to make the others sound better”. Ele dizia-me que eu, enquanto baterista, tenho mais esse papel do que os outros. Claro que todos têm que ter a sua voz. Isto é uma discussão eterna nas bandas: saber qual é o papel de cada um. Num trio, por exemplo, cada um tem a sua função, mas isto não é só sobre nós, há algo superior, que é a música. Como dizia o Paul Lovens, que é um baterista incrível, nós somos editores. Fazemos corte e costura em tempo real.
Imaginas-te nesse papel de mentor?
Há pouco tempo estive com o Peter Evans a dar um workshop e gostei bastante da experiência, embora eu tente não dar aulas…
Não gostas desse lado pedagógico?
Não é por isso. Acho é que tem um lado perigoso. Muitos músicos acabam com a sua energia e investem muito tempo a dar aulas. Faz-se muito dinheiro e fica-se preso a isso. Sempre evitei. Já recebi convites e, na altura, pedi imenso dinheiro para garantir que a coisa não se concretizava. Uma coisa são aulas regulares, outra coisa é um workshop, em que, no final, cada um vai à sua vida.
A música está sempre presente na tua vida, ou consegues desligar-te dela em determinados momentos?
Tenho pesadelos com a bateria em que estou a tocar e os pratos começam a afastar-se… Acho que não dá para desligar, não dá para ser de outra maneira…
Volúpias é o teu primeiro disco em nome próprio, resultado de uma residência artística na ZDB. Fala-me sobre esse processo.
Conheço o Sérgio [Hydalgo, programador musical da ZDB] há muito tempo. Aliás, o primeiro concerto de Red Trio foi aqui. A certa altura sentia que estava a bater contra uma parede, num beco sem saída. Queria compor, fazer um disco. Percebi que precisava de palco e tempo para me organizar. Vim ter com o Sérgio e disse-lhe que a única maneira que tinha de escrever um disco era pondo temas em prática. Sugeri que fizéssemos um concerto de dois em dois meses durante um ano, onde eu escreveria música para cada um deles. Durante dois meses compunha, ensaiava com a banda e dávamos o concerto, sempre neste ritmo intenso. O ano passou mas fiquei com a sensação de que, apesar da experiência ter sido super enriquecedora, a música não dava para fazer o disco. Pensámos sobre o assunto e decidimos ir para estúdio e fazer um best-of das melhores músicas que tinham resultado da residência. Estávamos com uma boa energia no final da residência e revisitámos os melhores temas. O disco é isso, e eu estou feliz com ele.
O jazz não é um estilo de música de massas. Achas que é preciso educar o ouvido para desfrutar do jazz?
É como tudo na vida, ninguém gostou da primeira cerveja que bebeu. Isso depende muito da pessoa. Eu, por exemplo, faço sempre as escolhas mais inusitadas. Escolho sempre o queijo mais mal-cheiroso ou o bagaço mais estranho…
Que outro tipo de música ouves?
Quando era mais novo ouvia de tudo e não quer dizer que agora não o faça, em modo de pesquisa. Estou sempre à procura de coisas novas. Não ouço, por exemplo, música comercial, embora existam coisas antigas e comerciais com boa onda. A televisão também já teve mais qualidade do que tem hoje. O mundo pop era diferente no passado. Hoje, metade do que é comercial é lixo. Antigamente o pop pretendia ser uma coisa popular, não era necessariamente sinónimo de lixo.
O teu concerto abre a nova temporada da Culturgest. É uma sala que te traz boas recordações?
É a primeira vez que vou tocar no Grande Auditório. Tenho dado concertos sempre no Pequeno Auditório. A minha preocupação é que corra bem, é o meu projeto, são os meus temas, há um convidado especial…
Ainda ficas nervoso ao entrar num palco?
Um dia o Riley Walker chegou até mim e disse que precisava de um baterista. Fui ter com ele ao Porto e fizemos um ensaio em que tocámos uma vez cada música. No dia a seguir atuámos no palco principal de Paredes de Coura e no dia a seguir a esse toquei com ele no maior palco onde já toquei na minha vida, num festival no País de Gales. Perante aquele mar de gente fiquei logo vacinado. Depois disso acho que consigo tocar em qualquer lado… [risos]
A 17 de setembro apresentas o teu disco em formato quarteto e terás como convidado o pianista de jazz alemão Alexander von Schlippenbach. Como surgiu a oportunidade de tocares com ele ao vivo?
Ele é um grande músico e está muito velhinho, tem 82 anos, creio. Toquei com ele na Rússia há uns meses. Ele era membro dos Globe Unity Orchestra, a tal banda que mudou a minha vida. É um dos culpados disto tudo [risos]. Basicamente adoro o trabalho dele. Ele tem um trio, os Schlippenbach Trio, uma das minhas bandas favoritas de sempre de pessoas vivas. É um super músico, no mesmo patamar que o Evan Parker. Também tem um free spirit no que diz respeito à improvisação. A improvisação tem muito a ver com técnica, mas no fundo é como uma porta que abres e onde está tudo escuro, mas no final sabes que vai ser maravilhoso.
Portugal não é demasiado pequeno para ti?
Nasci nos Estados Unidos, a minha mãe é brasileira e o meu pai moçambicano. Vim para Portugal com dez anos… Até acho que vim parar à música por causa disso, por ser algo universal e não ter língua. O jazz é um tipo de música que foi buscar referências a outros géneros, um bocado como eu, que tenho uma ascendência variada. Felizmente passo a vida lá fora a fazer concertos não só porque adoro estar na estrada, mas também pela questão económica. Mais de metade do dinheiro que ganho vem dos concertos que dou no estrangeiro. A Europa tem imensa atividade no que ao jazz diz respeito. Mesmo os músicos americanos passam muito tempo na Europa a tocar, porque há mais dinheiro para a cultura.
Já estás a escrever material para outro disco?
Tenho estado a trabalhar num solo, estou a acabar de o misturar e de construir o disco. É um apanhado de quatro concertos e é um disco impossível, uma espécie de desafio. Achamos sempre que os discos têm de ser o mais próximo possível do real, da pureza total. Enjoei-me um bocado disso. Este disco a solo está a ficar um monstrinho muito esquisito, mas tem sido um trabalho muito bom.
O presente itinerário permite-nos revistar, através de alguns locais de Lisboa, duas obras que representam, na perfeição, as duas principais vertentes da produção camiliana: a novela satírica de costumes e a novela passional. “Chorar ou rir, é onde bate o ponto”, escreveu Camilo. “Quem não conseguir uma das cousas não nos importune.”
A Queda dum Anjo
Ao mudar-se para Lisboa, para ocupar as suas novas funções de deputado, Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, morgado da Agra de Freimas, termo de Miranda, escolhe alojar-se em Alfama “por lhe terem dito que, naquela porção da Lisboa antiga, a cada esquina havia um monumento à espera de arqueólogo competente”. As suas motivações eruditas não foram porém suficientes para o manter na dita morada, já que “ao cabo de três dias, mudou-se para rua mais limpa, supondo que os lamaçais de Alfama haviam tragado os monumentos, lamaçais em que ele desastradamente escorregara, e donde saira mal limpo, e assobiado por marujos e colarejas, seus vizinhos mais chegados”.
Recorrendo aos seus amados e reverenciados autores de eras passadas para obviar o problema das águas de Lisboa, que considerava pesadas e salobras, “leu que o Chafariz de El Rei, dava uma linfa gostosa e de suave quentura, a qual limpava a garganta de toda a rouquidão e afinava as vozes, e assim, dizia o clássico, não errará quem disser que ela é a causa das boas vozes que em Lisboa docemente ouvimos cantar; e também dos bons carões que conservam as mulheres”. Mandando que lhe trouxessem um barril, “bebeu à tripa-forra o deputado, e teve uma dor de barriga precursora de febres quartãs”.
Ao Convento de Santa Joana, situado em Santa Marta, junto ao antigo Chafariz do Andaluz, rumou Calisto Elói para se deleitar com as cantorias religiosas interpretadas pelas ditas vozes afinadas pelas propriedades das águas. No entanto, não foi cantoria o que ouviu: eram três narizes roufinhando destoantes (…) Chamou a madre-porteira, e disse-lhe, com a sua candura de bom homem, que recomendasse às senhoras cantoras a água do Chafariz de El Rei”.
A estreia parlamentar de Calisto Elói deixou marcas: tendo lido o Regimento da Câmara dos Deputados, o homem de carácter impoluto e nada disposto a transigir das suas convicções, “logo embicou na forma do juramento e disse que não jurava sem aspar as palavras que o obrigavam a ser inviolavelmente fiel à carta constitucional”. Pedindo a palavra e violando os regulamentos com o beneplácito do curioso presidente, referiu: “Senhor Presidente! Nos primórdios da Humanidade, a boa fé dispensava os juramentos: hoje em dia para tudo se faz mister jurar porque a boa fé desapareceu velut umbra da face da terra”.
Perante a desilusão de ver repudiado e incompreendido o seu primeiro assombro nas vertigens da paixão (adúltera) pela doce Adelaide, ocorrem a Calisto pensamentos sombrios. Neste contexto, Camilo elabora sobre o ato de dar temo à própria vida (que ele mesmo viria a fazer, anos mais tarde) e de um sítio para essa trágica decisão: “Calisto, digamo-lo sem refolhos, caiu. Atascou-se. Foi de cabeça ao fundo do pego em que deram a ossada o último rei dos Godos, e Marco António, e o rei enfeitiçado pela comborça Leonor Teles, e Simplício da Paixão, e várias pessoas minhas conhecidas, que experimentaram todos os sistemas de desfazer a vida, desde o muro de São Pedro de Alcântara até às cabeças dos palitos fosfóricos”.
Romance dum Homem Rico
O narrador apanha o comboio em Santa Apolónia em direcção a Santarém e conhece outro passageiro, o padre Álvaro Teixeira de Macedo, protagonista do romance. Já depois da morte deste, através de uma analepse, dá-nos a conhecer as vicissitudes da sua vida. Natural de Lisboa, possuidor de uma educação esmerada e de bens avultados, está desde a mais tenra idade prometido em casamento a sua prima Leonor por quem sente um amor profundo e sem limites.
Leonor enamora-se de um poeta de Vila do Conde, Miguel Sotto-Mayor. O pai, o morgado dos Olivais, encerra-a no Convento das Comendadeiras, ao Largo de Santos-o-Novo, para a forçar a casar com o primo. “Leonor ostentou brava reacção, mas cedeu, por fim, à força, dizendo que o tempo era a arma e a vitória dos fracos”. Desobedecendo, a jovem casar com Miguel. O poeta, ao saber que o sogro está arruinado, entrega-se amores adulterinos. É baleado e morto num dos seus encontros nocturnos.
Viúva, Leonor transfere-se para um palacete em Buenos Aires, procurando “a vida luxuosa de Lisboa” e entregando-se a uma existência dissoluta. Abre os seus salões “a uma partida semanal de parentes e amigos íntimos. Estes chamados ‘amigos íntimos’ são às vezes os inimigos de fora”. Leonor vive da beneficência de seu primo Alvaro e de sua tia Maria da Glória. Entretanto, torna-se cortejada por um moço sem “nascimento nem posição”. O jovem arrivista abandona-a quando toma conhecimento de que ela está arruinada. Humilhada, Leonor tenta suicidar-se.
“A vida voltou lentamente a Leonor, mas jamais a saúde”. Em consequência da tentativa de suicídio “seguiu-se a paralisia, e a inteira inactividade”. Álvaro abraça a carreira sacerdotal e Leonor recolhe ao convento de Santa Marta (atual Hospital de Santa Marta) onde vem a morrer. O seu primo e eterno noivo revela-se de uma dedicação invulgar e sem limites visitando-a “duas vezes em cada dia”.
O pai de Leonor, o Morgado dos Olivais, Sebastião de Brito, possuía no local “um palácio em ruinas desabitado desde o terramoto”, “o palacete onde nasceu Leonor” e “duas quintas que se espreguiçam na margem do aurífero Tejo”. Será nesse palácio em ruínas, na Quinta do Canavial, que passará os seus últimos dias Álvaro Teixeira de Macedo. Vive “na porção mais reparada e habitável do palacete (…) uma sala e dois quartos contíguos. Num destes estava a cama e a livraria do padre, o outro era devoluto para hospedes”. O “homem rico” deste romance, que fez do dinheiro meio de felicidade alheia, após a morte de Leonor, sua amada da juventude, extingue-se também, pois dá por terminada a missão que tinha na vida.
2019 é um ano especial para o São Luiz, pelos 125 anos. Esta programação celebrativa pode ser entendida como a afirmação plena de uma direção artística?
Enquanto diretora artística, tem sido essencial aquilo que defino como uma espécie de “dramaturgia”, ensaiada ao longo dos últimos quatro anos, que passa pela fixação da memória. A memória entendida como processo de aprendizagem e de reflexão. Assinalar os 125 anos é celebrar a história rica que este teatro tem, encaixando a programação no olhar que diferentes criadores têm perante aquela que é uma história comum. Por exemplo, o espetáculo do Teatro Praga [Xtròrdinário] foi paradigmático desse olhar, uma vez que descobriu outras histórias dentro da história do teatro. Do mesmo modo, o da Joana Craveiro [Ocupação] estabeleceu a relação dessa mesma história com a da resistência antifascista. Pelo que até aqui se passou, e também pelo que reservamos para os próximos meses, poderei garantir que esta programação, por toda a liberdade que tive em prepará-la, é a afirmação de uma identidade…
Essa identidade pode ser definida para além desta linha programática da celebração dos 125 anos?
Com certeza. A identidade atual do São Luiz passa pela relação com a sua história, com a cidade e com os artistas. Aliás, se há algo que tenho privilegiado é o acompanhamento e a relação sólida com os artistas. Se olharmos para estes últimos quatro anos, verificamos que alguns deles estão presentes a cada temporada. Isso permite que cresçam e que tenham o espaço e os meios para darem continuidade ao desenvolvimento do seu talento.
Falemos dos grandes momentos que encerram esta celebração. O corolário será o livro que a jornalista Vanessa Rato coordenou e que reúne textos de várias personalidades…
Quisemos contar a história do São Luiz, mas não só. O livro reúne, sobretudo, uma série de textos da autoria de pessoas muito diferentes que refletem sobre a importância deste teatro hoje, não só na cidade, até porque tem a particularidade de ser um teatro municipal, mas na contemporaneidade e nas artes de palco. Como não havia ainda nenhum livro sobre o Teatro São Luiz, fico feliz por deixar uma marca não efémera desta celebração.
A temporada 2019/2020 arranca com a continuação desta celebração, ou seja, com o regresso a palco de A Dama das Camélias, peça de Alexandre Dumas (filho) que Eleonora Duce interpretou aqui no final do século XIX.
Por sinal, não foi uma encomenda, mas um encontro de vontades. Há anos que gostaria de ter em cena esta peça e, um dia, a Carla Maciel [atriz que vai protagonizar o espetáculo dirigido por Miguel Loureiro, em estreia a 6 de setembro] vem ter comigo a propô-la. Aceitei, mas desde que fosse feita no âmbito dos 125 anos do São Luiz, precisamente por ser um texto inscrito na história deste teatro devido à passagem por Lisboa dessa grande atriz.
Em novembro, há outro momento importante com o regresso do cinema à sala principal do São Luiz…
Com Metropolis, o filme de Fritz Lang que aqui estreou em 1928. Tal como nesse ano, o filme será acompanhado com música ao vivo, numa nova partitura de Filipe Raposo, que conduzirá o mesmo número de instrumentistas que à data da estreia do filme.
Do que passou nesta celebração, há algum momento que a tenha tocado particularmente?
A ópera do Offenbach, A Filha do Tambor-Mor, foi um momento muito especial por ter sido um projeto ambicioso e inteiramente nosso. E o que mais me agradou foi ter aqui em palco dezenas de alunos do ensino artístico de todo o país e apostar, de um modo tão evidente, na relação com as escolas. Aliás, confesso que gostaria de investir muito mais nesta relação que considero de vital importância para o futuro.
Atualmente, os três teatros municipais de Lisboa são dirigidos por não-artistas (a Aida aqui, a Susana Menezes no Teatro Luís de Camões e o Francisco Frazão no Teatro do Bairro Alto). Acredita que a exigência é maior por não serem artistas?
Talvez. Durante muito tempo, um programador a ocupar a direção artística de um teatro levantava muitas dúvidas. Hoje, acho que já não é bem assim, até porque é comum ouvir críticas a programadores-artistas acerca das opções estéticas que assumiam. Pessoalmente, também tenho as minhas, mas, e talvez porque não sou artista, consigo estabelecer o distanciamento que me pode permitir programar um espetáculo do qual posso não gostar particularmente, mas que é fundamental num determinado contexto. Diria que tenho a vantagem de não ter prisões do ponto de vista estético e, enquanto programadora, procuro estar sempre muito consciente e atenta ao sítio onde estou e ao que me rodeia.
Caso estivesse noutro teatro, seria uma programadora diferente?
Certamente. Programar um teatro municipal é desenvolver serviço público. Se estivesse no CCB ou na Culturgest seria diferente com toda a certeza.
Já referiu a relação com os artistas como fundamental na sua direção, mas há mais marcas identitárias…
A minha direção teve algumas preocupações. Em relação às mulheres, por exemplo, elas representam este ano mais de 50% dos criadores que vão passar pelo São Luiz. E estão aqui pela sua qualidade, não por serem mulheres. Orgulho-me deste ser o teatro que tem mais mulheres a trabalhar. Depois, há também a internacionalização, uma aposta inédita no São Luiz, e que tem permitido a inúmeros artistas circularem com os seus trabalhos por Paris, Istambul ou Brasil.
Concluímos com alguns destaques desta temporada?
Porque não? Teremos o regresso da Christiane Jatahy com o segundo capítulo de Nossa Odisseia; uma retrospetiva dos solos de Mónica Calle intitulada Este é o meu corpo; ou uma nova parceria de Ricardo Neves-Neves com Filipe Raposo, depois do grande sucesso de Banda Sonora, chamada A reconquista de Olivenza.
Em que fase de desenvolvimento se encontrava este projeto quando se deu a sua entrada?
Quando o Paulo Branco me propôs o filme já existia um primeiro guião do Rui Cardoso Martins. Quando aceitei, disse ao Paulo que gostava muito do tema, do assunto, mas que queria mexer no guião. Trabalhei sozinho em cima da versão do Rui, e depois entrou também o Gilles Taurand para trabalhar uma parte, tendo eu procedido à colagem final.
A escolha do ator Albano Jerónimo para o papel principal é decisiva no impacto do filme. Foi evidente para si que o João Fernandes tinha de ser ele?
Foi claríssimo. Lembro-me das conversas prévias que tive com o Paulo Branco e, mesmo antes da reescrita que permitiu que me apoderasse de parte da história para a tornar minha, o Albano era a única pessoa que via com o perfil certo para uma personagem desta dimensão. Não só pelas características físicas, mas também porque ele tem capacidade para aceder a uma loucura que não se percebe bem. Essa zona de ambiguidade tinha de existir no João Fernandes.
A contribuição de Paulo Branco em A Herdade vai muito para além do papel de produtor. Em que áreas se reflectiu o seu contributo?
A vontade de fazer um filme sobre este assunto nasce dele. Quando entro com o desejo de me apropriar emocionalmente do assunto, para não ficar limitado a executar o papel de realizador, o Paulo esteve sempre muito comigo. Não só do ponto de vista técnico, mas tínhamos boas discussões sobre filmes, sobre emoções e sobre cenas que deveriam entrar ou sair.
O filme só tem música na abertura e no fecho. O que justifica no seu entender esta opção?
Não foi algo de que tivesse consciência desde o início. Durante a montagem, com o Roberto Perpignani, comecei a sentir que o filme precisava de espaço e de tempo e de som. Som ambiente, dos ventos, do silêncio. E o processo apanha-me numa fase em que nos meus trabalhos no teatro não queria sublinhar emoções. O papel da música no cinema é o de encaminhar, de direccionar, de dar um determinado ambiente ao espectador. O próprio filme começou a rejeitar algumas experiências que fomos fazendo. A música ficou apenas nos momentos em que surgem os títulos.
A Herdade não mostra sexo ou violência, embora as consequências destes elementos sejam bem visíveis. Isto resulta de uma tentativa de fugir à gratificação mais óbvia do cinema? Ou há outra explicação?
Vou deixar para já de lado a parte sexual e falar das ações propriamente ditas. Gosto muito dos espaços que ficam “entre”. Entre os eventos. O filme tem bastantes eventos, mas consegui encaminhar de tal forma a narrativa para poder viver só com as consequências dos eventos. Uma zona de ambiguidade emocional de que gosto muito. Daquilo que as personagens estão a sentir. De onde tiramos sempre coisas diferentes da pessoa sentada ao nosso lado. Relativamente à questão sexual, como é um assunto tão fundamental naquela história, não quis mostrar o que não precisava de ser mostrado.
O filme dura duas horas e 45 minutos. Trata-se da primeira e definitiva versão de montagem ou existiram outras com diferentes durações?
No primeiro corte tínhamos três horas. Mas existia uma consciência muito clara de que havia várias cenas para resolver. Coisas que não estavam a funcionar. Falei com o Paulo Branco para saber se a duração poderia ser um problema. Respondeu que seria a que o filme pedisse. Então eu e o Roberto Perpignani estivemos muito à vontade no deixar o filme correr para o sentimento que pretendiamos.
O cinema português não costuma apresentar guiões com tanta qualidade de escrita e fôlego romanesco. As fontes de inspiração do filme são predominantemente de ordem literária ou cinematográfica?
Uma das minhas grandes vontades foi a de trazer para o filme o prazer que retiro da leitura. Gosto muito dessa zona que a leitura permite, de liberdade interpretativa, e quis que o interior das personagens e o que se passa dentro delas fosse entregue dessa forma. Quanto às referências que tínhamos, eram de filmes clássicos do cinema americano e italiano. Posso falar do Leone (Aconteceu no Oeste, de 1968), do Minnelli (A Herança da Carne, 1960); enquanto preparávamos o filme, andámos a rever filmes de que gostávamos desde a infância e conhecer outros novos. Do ponto de vista da literatura não consigo destacar uma referência. O que gosto é dessa regra fundamental que permite seres tu a construir o teu filme.
A Herdade exigiu um aturado trabalho de reconstituição? Que relação estabelece entre as limitações da produção e as soluções encontradas?
Muitas coisas estão preservadas. Aquele terreiro está muito assim, mas obviamente tivemos que apagar alguns sinais de modernidade, embora isso hoje seja relativamente simples. O terreiro foi uma das razões pelas quais escolhi aquele espaço. O terreiro com o pilarete no meio, e aquela dimensão foi o que me fez querer muito filmar aquela casa. Mas, parte dos interiores, não foram filmados no mesmo sítio.
Homens, cavalos e grandes espaços são elementos que associamos ao género do western. Podemos fazer esta leitura, a de A Herdade poder ser visto como um western lusitano?
Sim, e até era mais do que acabou por ficar. Filmámos bastantes cenas deles a cavalo, coisas mais típicas do western, mas acabaram por sair. Houve uma necessidade na montagem de tornar este João Fernandes heróico e humano. Ou seja, não querer transformá-lo num boneco em que não se acredita, e precisávamos de ter muitas zonas cinzentas nele. Acabou por ficar só a parte final, em que ele monta a cavalo noite fora, e adquire outra força.
No seu entendimento da personagem principal (João Fernandes), trata-se de alguém forte com uma capacidade invulgar de enfrentar as adversidades, ou será antes um homem fraturado por dentro, obrigado a crescer depressa de mais e a abdicar da sua inocência?
Ele parece um valente, mas depois há momentos em que não consegue assumir-se perante certas coisas. Eu adoro essa contradição na personagem, acho que a torna muito humana. Esse lado de cobardia, de dificuldade nos afectos, são zonas muito queridas para mim quando estou a trabalhar personagens. A dificuldade na comunicação, a incomunicabilidade que existe uns com os outros. Gosto disso. E gostei muito de trabalhar um homem valente que resolve vários assuntos, mas que nalguns momentos-chave não consegue.
O olhar do filme sobre aquela herdade e o seu mundo tem, a seu ver, alguma nostalgia ou procurou antes filmar uma realidade histórica que os novos tempos vieram substituir?
Nostalgia não tenho. Agradou-me muito no argumento original e na ideia base do Paulo Branco ver a história do nosso país de um ponto de vista que normalmente não é retratada. Para mim é claríssimo que ela tinha que mudar. Que aqueles tempos iam acabar e que aquela forma de viver ia terminar. Isso é claro nas condições de vida dos trabalhadores, na obrigatoriedade do ordenado mínimo. Tudo isso tem como consequência o fim dessa maneira de estar.
Demarcando-nos por último deste seu filme em particular, diga-nos de que cineastas se sente mais devedor? Portugueses ou estrangeiros.
São muitos e muito diferentes. Acho que tem a ver com certas fases. Os meus incontornáveis são pouco originais. Vou-lhe falar do Kubrick. Vou-lhe falar do Scorsese. Quanto a portugueses, não tenho ninguém de quem me sinta devedor, no sentido de lá ir beber.
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