Michel Houellebecq

Serotonina

Habituámo-nos a procurar nos romances de Houellebecq sinais premonitórios ou sintomas de algo que se poderá manifestar através de um acontecimento traumático, e relativamente a Serotonina não tardou a aproximação justificada ao movimento dos coletes amarelos em França. No entanto, o aspeto mais radical do livro é outro e anuncia-se na página 48: “Os números eram impressionantes: por ano, mais de doze mil pessoas em França escolhem desaparecer, abandonar a família e refazer as suas vidas, às vezes do outro lado do mundo, às vezes sem mudarem de cidade.” É o que fará o protagonista deste livro: abandonar tudo, o trabalho, o apartamento, a atual companheira, e viver uma outra vida, não deixando nunca de ser quem é. Florent-Claude Labrouste deambulará pela França e pelas memórias das mulheres da sua vida, numa sucessão de encontros onde impera a frustração e o desespero. É uma personagem que busca uma réstia de humanidade e que testa a cada momento a sua capacidade de se desumanizar. A marca do pessimismo houellebecquiano volta a ser muito forte, mas perante tudo o que testemunham as suas personagens, podemo-nos perguntar se não será ele o último dos humanistas. Alfaguara

Maxime Rodinson

Maomé

Fundamentado a oportunidade de mais uma biografia de Maomé, o profeta do Islão, o autor esclarece que não apresenta nenhum facto novo. Procura, com base nos factos já conhecidos, refletir sobre as constantes das ideologias e dos movimentos de base ideológica e na forma com se manifestam nos acontecimentos que relata. Seguindo atentamente as controvérsias atuais sobre a explicação de uma vida pela história pessoal do herói na sua juventude e pelo seu micromeio, reconcilia-as com o ponto de vista marxista sobre a causalidade social das biografias individuais. E conclui: “Em suma, procurei ser ao mesmo tempo narrativo e explicativo”. A edição desta obra de referência permite ao leitor português, herdeiro de um forte contributo árabe na sua história, conhecer melhor esta civilização que volta a marcar os destinos do mundo, ultrapassando as crescentes perplexidades que ela desperta, alimentada de ideias simplistas ou demasiado genéricas. O rigor e a erudição do historiador aliam-se à formação do sociólogo e do orientalista, num texto que “narra e explica” exemplarmente. Caminho

 

  

Herman Hesse

As mais Belas Histórias

Hermann Hesse (1877/1962), prosador e poeta alemão, um dos mais importantes do século XX, cedo revelou a vocação literária que o faria abandonar os estudos de teologia e a carreira religiosa. Laureado com o Prémio Nobel de Literatura em 1946, deixou uma obra em que, sob influência da psicanálise e das religiões orientais, procura uma solução espiritual para os problemas e contradições da natureza e da cultura humanas. O Lobo das Estepes, Narciso e Goldmundo, O Jogo das Contas de Vidro, Peter Camenzind ou Sidarta são títulos de alguns dos seus principais e mais famosos romances. Certos críticos consideram, no entanto, que os seus contos atingem uma beleza e uma perfeição raramente igualada nas suas obras de maior fôlego. A presente seleção apresenta treze contos de diferentes temáticas, mas todos reportados a experiências pessoais vividas por protagonistas de quem nos sentimos próximos por nada possuírem de heróico, revelando um amplo espectro dos paradigmas do comportamento humano. Dom Quixote

 

 

Natália Correia

Antologia de Poesia Erótica e Satírica

De Martim Soares (1241?) a Dórdio Guimarães (1938- 1997), esta célebre antologia, com selecção, prefácio e notas de Natália Correia, reúne oito séculos de poesia portuguesa erótica e satírica. Depois vários livros seus terem sido apreendidos pela Censura do Estado Novo, a autora aceitou o convite do visionário editor da Afrodite, Fernando Ribeiro de Mello, para organizar esta Antologia. Publicada em dezembro de 1965, prometia “a poesia maldita dos nossos poetas”, “as cantigas medievais em linguagem actualizada”, “dezenas de inéditos” e “a revelação do erotismo de Fernando Pessoa”. O escândalo foi enorme e a obra apreendida pela PIDE, com vários dos intervenientes julgados e condenados em Tribunal Plenário, num processo que se arrastou durante anos. Republicada pela primeira vez com as ilustrações originais de Cruzeiro Seixas, incluindo novos textos introdutórios e reproduções de documentos que contextualizam este marco histórico na edição em Portugal, fundamental para todos os que acreditam no poder transgressor e subversivo da poesia. Ponto de Fuga

 

 

Agustina Bessa-Luís

As Pessoas Felizes

Nascida em 1922, desde cedo ficou patente a vocação literária de Agustina. A “Sibila”, de 1954, constitui um enorme sucesso e revela a sua mestria na arte do romance através da criação de “atmosferas onde se vão tecendo e emaranhando redes de factos semiperturbados por memórias ou pressentimentos que se adensam em personagens quase sempre estranhas, seja por antigos vícios de temperamento, seja por um irracionalismo quase predestinado das atitudes”. Recebeu em 2004 o Prémio Camões pelo conjunto da sua obra. Este romance tem por tema a família Torri, do Douro, que à semelhança de outras famílias burguesas do Porto, se sentia feliz nos anos cinquenta, mas que começa a perceber a ruina do seu país na década que precede a revolução do 25 de Abril. “É um romance que quase não tem enredo. Nem aquilo que se chama plot. Tem ambiente e tem história recordada. Não tem factos e até os sítios são poucos. Os locais de Agustina são as memórias, os sentimentos ou as consequências do real”, escreve António Barreto no prefácio à presente edição. Relógio D´Água

 

 

Ivo Meco

Jardins de Lisboa

O livro Jardins de Lisboa é mais do que um guia, é um conjunto de histórias de espaços, plantas e pessoas. É um convite a explorar o espaço e a vegetação de seis dos emblemáticos jardins de Lisboa: o Jardim Botânico da Ajuda, o Parque Botânico do Monteiro-Mor, o jardim da Estrela (Jardim Guerra Junqueiro), o Jardim Botânico de Lisboa, O jardim Botânico Tropical e a Estufa Fria. Um percurso pelos seus caminhos numa narrativa pessoal entrelaçada com a história do espaço e a identidade das plantas que neles existem. Paralelamente, pode ser usado como um pequeno manual de botânica geral, explicando de forma simples a diversidade de estruturas e pequenas curiosidades que as plantas encerram, desafiando a explorações para descobrir as espécies e os exemplares descritos, com a ajuda de fotografias. Ao passear pelos Jardins de Lisboa, autênticos tesouros de botânica e história, pode observar a mais velha Araucaria heterophylla de Portugal, sentir o toque aveludado das folhas da Kalanchoe beharensis enquanto olha o Tejo ou conhecer o brilho metálico das folhas do Strobilanthes dyerianus escondidas no coração da cidade. Arte Plural

 

Catarina Sobral

Greve

Um dia os pontos decidem fazer greve e o caos instala-se. Deixa de haver pontos finais, desaparecem os pontos de encontro, os pontos de vista e os pontos cirúrgicos. Ninguém se entende e torna-se impossível fazer o ponto da situação. A nova edição em formato pequeno do extraordinário livro de estreia da escritora e ilustradora Catarina Sobral, Prémio Internacional de Ilustração da Feira do Livro de Bolonha 2014, Prémio Ilustrarte 2016, Prémio SPA autores 2013, faculta o acesso dos jovens leitores e das suas famílias a uma obra de absoluta referência no universo da literatura infanto-juvenil. Trata-se de uma obra que funciona exemplarmente em dois níveis distintos: é divertida e estimulante para os leitores acima dos oito anos e exigente do ponto de vista conceptual e gráfico para os leitores adultos. Aborda os temas da linguagem e da comunicação com pleno dom da ironia: numa época em que abundam as mais sofisticadas tecnologias de comunicação tudo colapsa por causa de um simples sinal de pontuação. O texto, brilhante, com amplo recurso ao subtexto (e ao metatexto,) surge acompanhando de ilustrações à base de inspiradas colagens que remetem para as técnicas do cubismo ou de certa estética pop de Richard Hamilton, entre outras. Catarina sobral revela-se, com esta obra magnífica, uma autora completa. É um ponto de honra recomendá-la. Orfeu Mini

Entre 1975 e 2016, ano em que cessou atividade, foi a casa do Teatro da Cornucópia, uma das mais relevantes companhias de teatro independente do país. Fechado desde então, 2019 promete assinalar uma nova vida para o Teatro do Bairro Alto (TBA), não propriamente situada no animado bairro que lhe dá nome, mas ali a dois passos, numa rua paralela à da Escola Politécnica.

Sob direção do antigo programador de artes performativas da Culturgest, Francisco Frazão, a sala da Rua Tenente Cascais pretende afirmar-se como espaço dedicado à reflexão, criação e apresentação de projetos artísticos experimentais. Enquanto não abre portas ao público, o “novo” teatro municipal espalha-se pela zona envolvente, entre o Centro Jean Monnet e o Teatro da Politécnica, passando pela Reitoria da Universidade Aberta e pelo vizinho CAB, com Quase.

Este programa especial, compreendido entre 14 de junho e 7 de julho, é uma quase antecipação daquilo que será o renovado TBA: “nada será propriamente teatro, mas formas íntimas e invulgares que pensam e transformam o que as rodeia.”

 

Herman Melville apaixonado pelas histórias de marinheiros e do mar, às quais acrescenta uma dimensão metafísica e alegórica, fascinado pelo tema do mal e pelos aspectos mais sombrios da natureza humana. Jorge Luís Borges comparou as suas duas obras mais famosas, o monumental romance Moby Dick e o conto Bartleby, o Escrivão, encontrando “semelhanças na loucura dos dois protagonistas e na incrível circunstância de uma tal loucura contagiar todos os que os rodeiam”.

O poeta visionário Walt Whitman, através do seu idealismo democrático e do seu forte individualismo, ajudou a cunhar a identidade moderna dos Estados Unidos da América (EUA). A sua obra-prima em verso livre, Folhas de Erva, foi publicada em 1855 e continuamente ampliada até 1891. Pouco apreciado pelos seus contemporâneos, que consideravam as suas alusões ao corpo masculino e a dimensão sensual da sua poesia inapropriada, veio a exercer grande influencia nas novas gerações de poetas. Escreveu nas Folhas de Erva: “Na cabine dos navios em pleno mar” (…) “entre marinheiros jovens e velhos serei eu, uma reminiscência da terra, lido, /em plena harmonia, afinal”.

Uma série de eventos promovidos pelo Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa celebram o bicentenário do nascimento dos dois vultos maiores da Literatura dos EUA. Uma exposição na Biblioteca Nacional (31 de maio a 30 de agosto), contará na abertura com uma tertúlia com académicos, poetas e público em geral, assim como um concerto de canções spoken word com projecção de vídeo no âmbito de uma colaboração entre Bernardo Palmeirim, membro da banda NOZ, e jovens músicos ligados à Faculdade de Letras da ULisboa.

Um congresso internacional na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (3 a 5 de julho) explorará a estética associada aos oceanos assim como as dinâmicas literárias transnacionais que Melville, Whitman e vários escritores de ambos os lados do Atlântico forjaram, reunindo especialistas de todo o mundo, nomeadamente Dana Luciano (Rutgers University) e Mary Bercaw Edwards (University of Connecticut).

Por fim, o ciclo de cinema intitulado Melville and Whitman on the Screen decorrerá na Cinemateca Portuguesa de 1 a 15 julho. Recorde-se que entre as adaptações à sétima arte de obras de Melville se contam Moby Dick (1956), de John Huston, com Gregory Peck e Orson Welles, Billy Bud (1962), de e com Peter Ustinov, e As Ilhas Encantadas (1965), de Carlos Villardebó, que deu a Amália Rodrigues o seu mais intenso papel dramático no cinema.

Com as celebrações, pretende-se dar visibilidade à obra dos dois autores, colocar em destaque a relação atlântica EUA-Europa, bem como explorar o tema do mar nos estudos intercultuais e nas humanidades ambientais.

Algumas publicações

A Relógio D’Água editou, em 2005, Moby Dick com tradução de Alfredo Margarido e Daniel Gonçalves. O capitão Ahab impõe à sua tripulação a concretização do seu maior desejo: destruir a grande baleia branca. Para Ahab, o monstro que destruiu o seu corpo não é uma criatura, mas sim o símbolo de algo desconhecido que precisa dominar.

A E-Primatur editou, este ano, a ficção curta completa de Herman Melville. Numa tradução de Virgílio Tenreiro Viseu, o volume inclui contos tão famosos como Billy Budd, Marinheiro, Benito Cereno ou As Encantadas ou Ilhas Encantadas.

Com chancela da Relógio D’Água, Folhas de Erva foi publicada numa tradução de Maria de Lourdes Guimarães distinguida com o Grande Prémio Internacioanl de Tradução Literária 2002. Whitman reescreveu incessantemente a sua obra-prima, assumindo sempre que “os cantos mais belos e profundos ainda estão à espera de ser cantados.”

A editora Guerra & Paz publicou em 2017 Canto de Mim Mesmo conjuntamente com Saudação a Walt Whitman de Fernando Pessoa, poeta que, segundo Harold Bloom , era o maior herdeiro português de Whitman. A edição inclui uma apresentação de Jerónimo Pizarro.

Dos subterrâneos às movimentadas ruas de um qualquer bairro da cidade, lisboetas de hoje, residentes ou em trânsito, turistas de trolley ou ocasionais visitantes, todos vivem um dia buliçoso nesta nossa Lisboa. E nada, nem ninguém falta à chamada no novo espetáculo do Teatro Meridional.

Ainda o dia não raiou e já as senhoras da limpeza chegam à cidade, vindas dos bairros periféricos; um grupo de jovens amarga a ressaca de uma noite de copos; uma ou outra pessoa surge em passo acelerado para chegar ao emprego; um homem passeia o cão e uma jovem faz jogging para manter a silhueta escultural…

Chega um turista, e depois outro… e outros, muitos outros. Encantam-se e tudo fotografam, e partilham nas redes sociais. Lisboa está mesmo na moda, e até as tascas deixaram de ser tascas para se transformarem em restaurantes gourmet com assinatura de chef

Que entrem os turistas, que a cidade mudou de vez. Que o diga a senhora que mora só, ou aquela que espera infinitamente pelo autocarro. E lá vêm as trotinetes, e até políticos a prometerem quimeras enquanto os vizinhos do lado deixam a casa onde viviam porque esta Lisboa é cada vez menos para quem cá mora…

Sucedem-se os personagens: o polícia e um vendedor ambulante; um fiscal de estacionamento; um ambicioso vendedor de imóveis que, se puder, até vende o miradouro de onde os apaixonados contemplam o Tejo. E lá está o investidor chinês a trazer capital estrangeiro à capital que outrora foi do império. Menos glamorosos, o pedinte e a romena com um filho ao colo; ou o artista de rua que tenta seduzir turistas na esplanada; ou o cantoneiro que faz os possíveis para manter a rua limpa, muito embora sem sucesso; ou as pessoas comuns dos bairros, últimos resistentes (até quando?) do fenómeno de gentrificação…

Todos são protagonistas nestas Histórias de Lx que desfilam aos nossos olhos como tiras de banda desenhada, sucedendo-se a um ritmo frenético. Personagens que contam as suas pequenas histórias quotidianas através de movimentos coreográficos que dispensam, quase sempre, as palavras.

Quase todas mostram como é fácil amar Lisboa, com aqueles seus contrastes entre o tradicional e o moderno, com a sua diversidade pincelando as ruas de cores e de cheiros de cá e de todo o mundo. Mas, estas Histórias de Lx comportam também o drama daqueles que sentem o seu amor não correspondido. São muitos a experenciar uma cidade que não os quer por cá. Nem nos restaurantes, nem nos miradouros e nas ruas estreitas dos bairros típicos, nem mesmo nas casas onde nasceram, cresceram, viveram e, num mundo mais justo, teriam o direito de morrer.

O aparente olhar festivo, que o desfile incessante de personagens parece evidenciar, vai sendo imbuído de melancolia e inquietação. Sem comprometer o tom poético que é timbre das criações do Meridional, as mensagens ganham formas mais explícitas. Por isso, perguntámos à encenadora Natália Luiza se este é um espetáculo político. “É um espetáculo onde assumimos um posicionamento, um comprometimento com a cidade através do teatro”. Nada mais premente, ainda mais, no mês em que Lisboa se festeja nas ruas.

Inserido no programa de comemorações dos 125 anos do Teatro Municipal São Luiz, Histórias de Lx está em cena de 5 a 16 de junho, na Sala Luís Miguel Cintra.

A história d’O Convidador de Pirilampos “começou por ser contada pela mãe Renata [ex-companheira de Ondjaki] ao filho Lino, depois passou pelas mãos de um escritor e de um desenhador, transformando-se num livro. Passou então para palco pela mão de dois desenhadores [para além de António Jorge Gonçalves, Paula Delecave], uma atriz e um músico, e vai ser também um audiolivro”. Quando recebeu o manuscrito de Ondjaki, Gonçalves não soube bem o que fazer, porque “as boas ideias às vezes são assim, não sabemos o que fazer com elas. Levou um bocadinho de tempo, mas um ano e meio depois o livro avançou e aí percebi que a história tinha pernas para andar”.

Desde o início, percebeu que o som tinha um peso importante: “há uma música no mundo, nas coisas, em nós. Sabia que ia querer trabalhar esta filigrana de voz com um instrumentista. Quando encontrei o clarinete do Zé e a voz da Cláudia percebi que tinha encontrado o par perfeito”. José Conde assume um papel fulcral com o seu clarinete, cujas notas soam sempre nas alturas certas, a dar o mote à narradora de serviço: Cláudia Semedo. A atriz, para quem o universo de Ondjaki não é novo (já tinha participado na peça A Bicicleta tinha Bigodes), supera todas as expectativas, dando ênfase às personagens sem as encarnar totalmente e sem perder a dimensão da história. Esse foi, para Cláudia, o grande desafio, “encontrar o rumo certo entre o storytelling e a representação”.

Nesta conversa a quatro (em que o uso da palavra é quase um monólogo), todos têm a mesma importância, como explica Gonçalves: “o quarteto tem de estar engrenado, porque se um descarrilha os outros vão atrás. A forma como a peça foi montada é um bocadinho um trabalho de relojoeiro”. E como é trabalhar com o público infantil? O universo dos mais novos encanta Cláudia, a quem o lado de “improviso e de trabalhar a verdade e o genuíno” interessa muito. “Os miúdos não têm filtros, são um público extremamente reativo e eu gosto muito disso”, diz a atriz.

Outro lado cativante de trabalhar com os mais pequenos é, diz, “as ligações que fazem e que nós, adultos, já não nos permitimos fazer devido à lógica e à razão”. Opinião semelhante tem o desenhador: “o público adulto vem com uma expectativa, pagou bilhete, cobra desde o primeiro momento o que vai acontecer. As crianças não sabem ao que vêm, para elas não é significativo se as pessoas que estão no palco são ou não conhecidas. Estão muito abertas e são muito espontâneas no seu julgamento. Os momentos mais gratificantes são no final dos espetáculos quando conversamos com elas. Aí sinto que estou a fazer alguma coisa que efetivamente faz a diferença”.

O Convidador de Pirilampos é uma peça que começou na imaginação de uma mãe e que ganhou vida própria. Há muitas formas de contar histórias, mas “uma coisa é contarmos uma história aos nossos filhos, à noite, na cama, e outra é estar numa sala de teatro perante dezenas de crianças. Isso é algo que me fascina muito: encontrar formas diferentes de poder contar uma história”, remata António Jorge Gonçalves. A peça está em cena no São Luiz Teatro Municipal, de 4 a 9 de junho.

Miguel Real

As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia

O romance As Memórias Secretas da Rainha D. Amélia divide-se em duas partes inteiramente distintas. A primeira, num estilo próximo da sátira, na qual o próprio autor se ficciona, narra as circunstâncias do aparecimento do suposto manuscrito da última rainha de Portugal. A segunda parte, reproduz o texto integral das memórias. Com um engenho estrutural algo insólito, este romance histórico constitui um impressivo olhar sobre o Portugal finissecular de oitocentos até aos anos 50 do século XX, visto sob a perspetiva de Amélia de Orleães, a rainha que pisou o solo português “com o pé esquerdo”, “crente que podia mudar o destino deste povo atarracado, que desprezava a água pela manha, jogava o leite aos porcos e sorvia sopas -de-cavalo-cansado, fugia dos médicos e depunha a sua saúde nas mãos de bruxas velhas e endireitas, cumprindo infindáveis promessas a Nossa Senhora da Saúde”. Sob a pena de Miguel Real, D. Amélia revela-se uma fina observadora do Portugal que conheceu, severa para com as suas instituições e elites, mas sempre compassiva para com as agruras do seu povo.

Dom Quixote

 

Herman Melville

Ficção Curta Completa

Bartleby é um escrivão de Wall Street, ao serviço de um escritório de advogados, que se recusa a prestar qualquer tipo de trabalho com uma espécie de demente obstinação. O advogado e os outros escrivães aceitam com surpreendente passividade a decisão de Bartleby. Jorge Luís Borges compara o romance Moby Dick, também da autoria de Herman Melville, com este conto, encontrando “semelhanças na loucura dos dois protagonistas e na incrível circunstância de uma tal loucura contagiar todos os que os rodeiam”. Bartleby, o Escrivão é um dos 21 textos inseridos neste volume que reúne, pela primeira vez em língua portuguesa, a totalidade da ficção curta de Melville e inclui outras narrativas célebres como Billy Budd, Benito Cereno ou As Encantadas ou Ilhas Encantadas. Recolha essencial para ficar a conhecer melhor a obra do grande escritor apaixonado pelas histórias de marinheiros e do mar, às quais acrescenta uma dimensão metafísica e alegórica, fascinado pelo tema do mal e pelos aspectos mais sombrios da natureza humana.

E-Primatur

 

Kobayashi Issa

Os Animais

O haiku é formalmente, um poema japonês de três versos composto de um total de dezassete silabas (5-7-5). Este terceto é normalmente um veiculo poético transportador de duas imagens contrastantes entre si. Conciso e poderoso, evocativo e imagético, o haiku foca-se na natureza que serve de espelho ao mundo interior do poeta, estabelecendo um jogo de reflexos entre estados de alma e observações sensíveis. No Ocidente o haiku tem sido quase sempre entendido em função da sua espiritualidade ligada ao budismo zen. Roland Barthes considerou-o como o ramo literário da aventura espiritual do zen. Porém, o filósofo coreano Byung-Chul Han salienta que “o haiku é mais um jogo que diverte do que uma aventura espiritual ou linguística”. Estas duas vertentes estão bem patentes nos haikus de Kobayashi Issa (1763-1828), que compõem esta selecção inteiramente dedicada ao tema dos animais. Na realidade, no âmbito do motivo que unifica esta recolha, é possível encontrar poemas para cada momento da existência humana, da dor à alegria, da solidão à partilha, do nascimento ao momento da morte.

Assírio & Alvim

 

Gonçalo M. Tavares

Na América, Disse Jonathan

Escrito por Franz Kafka em 1910 e publicado em 1927, Amerika é um lugar encenado na literatura, uma recriação simbólica do mundo pela imaginação, um país ao mesmo tempo imaginário e real. Mais de um século depois, Gonçalo M. Tavares empreende o projecto Kafka, uma viagem à América acompanhado de uma fotografia do escritor. Poderá a presença fantasma de Kafka alterar a paisagem? Jonathan é o seu interlocutor e enigmático parceiro de viagem que leva o autor a questionar se ele “existe mesmo ou se simplesmente vim sozinho aos Estados Unidos com o retrato de Kafka”. O trajeto, de Venice Beach, ao Grand Canyon, do deserto do Arizona aos Everglades, das florestas do Moro Rock Trail ao Cape Canaveral, dá corpo a este diário-ficção. Mas a viagem insinua-se também pelo interior de um estilo de vida: o jogo em Las Vegas, o cinema, a publicidade, a propaganda, o consumo, a tecnologia, a religião e a ciência. E a imagem de Kafka feita presença, introdutora de estranheza e de questionamento. Porquê? “Uma pergunta que é de certa maneira uma acusação”.

Relógio D’Água

 

Robert Butler e Andy Mumford

Além Lisboa

A história geológica de Lisboa é talvez o seu segredo melhor guardado. Algumas das maravilhas naturais desvendadas neste livro, de cascatas a grutas, de picos a pegadas de dinossauro, são quase desconhecidas e consequentemente, muito pouco frequentadas. A cerca de uma hora de automóvel da capital os percursos sugeridos proporcionam uma oportunidade de escapar ao bulício da cidade numa jornada de aventura para todos os amentes da natureza. Além Lisboa apresenta 19 percursos pedestres, acessíveis até para caminhantes pouco experientes, nas áreas a Oeste e a Sul de Lisboa. Com mapas detalhados (e disponíveis para download) e indicações práticas sobre como chegar e locais de interesse próximos a visitar em cada local, cada passeio indica ainda pontos de interesse histórico e geológico na belíssima paisagem acessível a quem quiser, neste verão, caminhar um pouco mais para além de Lisboa.

Arte Plural

 

Lídia Jorge

Livro das Tréguas

Ficcionista com uma carreira invulgar, reconhecida em Portugal e no estrangeiro, Lídia Jorge tem vindo a escrever poesia desde há muito tempo, porém não tinha publicado qualquer livro até ao presente. Desse vasto conjunto, a escritora seleccionou 50 poemas, os quais agrupou nas cinco partes em que se divide este O Livro das Tréguas: Com a Origem, Com os Preceitos, Com os Factos, Com as Fábulas, Com o Tempo. Escritos em datas diferentes, e em resultado de diferentes estados de espírito, foram aqui reunidos com uma unidade cronológica que corresponde, no dizer da própria Lídia Jorge, a uma espécie de autobiografia consentida. Do universo puro da infância ( “Veneno não havia. O grande perigo passava voando / por cima das nossas cabeças e nós não o pressentíamos. / Nunca, no nosso paraíso, encontrámos Adão ou Eva.”) à tomada de consciência da condição humana (“Mas a fome chega pela manhã / e de novo vamos à caça”), da guerra e da finitude (“Quando eu decido, ninguém morre”).

Dom Quixote

 

Maurice Sandoz

Recordações Fantásticas e Três Histórias Singulares

Cientista, compositor e nome cimeiro da literatura fantástica suíça, Maurice Sandoz foi uma das mais fascinantes figuras dos meios culturais europeus de meados do século XX. A sua escrita navega os territórios sombrios da alma humana, sempre na vertigem entre a demência e a ciência. A recreação do universo imagético destas suas histórias, uma colecção de contos fantásticos com uma leve aura de surreal, ficou a cargo de Salvador Dali, que desenhou as ilustrações especificamente para esta obra. Este é o volume escolhido para iniciar a segunda “encarnação” da Colecção Livro B precisamente para trazer novamente aos leitores de língua portuguesa o cunho do surrealismo europeu que a marcou transversalmente. A pintora Leonora Carrington acusou a recepção deste livro, ao autor, da seguinte forma: “Meu amigo, recebi a sua nova colecção de pesadelos que teve a amabilidade de enviar. Habitualmente não durmo bem, mas agora não durmo porque não quero.”

Livro B

 

João Pedro Mésseder

O Aquário

Num grande aquário, pousado numa mesa comprida ao canto de uma sala, vivem cinco peixes. Mas, tal como no mundo dos humanos, também naquele mundo subaquático há problemas. Ali, as diferenças de cor, tamanho e idade geram preconceitos e ideias falsas, que levam a situações tristes e desconfortáveis. Com ilustrações de Célia Fernandes, esta história de peixes promete mostrar que, apesar de diferentes, somos todos iguais. João Pedro Mésseder tem publicado poesia e obras para crianças, algumas delas premiadas. Um dos seus livros infantis foi nomeado, em 1999, para a Lista de Honra do IBBY de 2000.

Caminho

Estão juntos há cerca de dois anos. Como começou este projeto?

Já era amigo de quase todos os elementos da banda, temos um passado comum no sentido de termos estudado jazz. Eu e a Joana Espadinha conhecíamo-nos do Conservatório de Amesterdão. Foi um processo natural, orgânico e espontâneo. Tinha acabado de lançar o meu segundo disco de jazz, já tinha algumas coisas na gaveta para um terceiro e estava numa fase em que trabalhava com vários cantautores, e sentia-me muito entusiasmado a trabalhar canções. Percebi que estava a despertar em mim uma vontade de trabalhar as minhas próprias canções. Quando a ideia começou a despontar foi muito óbvio quem eram as pessoas que queria chamar. A Joana já conhecia; o António Quintino conhecia-o por ele trabalhar com O Martim; a Margarida por fazer parte da banda da Joana; e o João Pinheiro veio através do David Pires, que foi o nosso primeiro baterista.

Todos os membros trabalham com outras bandas ou artistas. Como conciliam os vários projetos musicais?

Com muita organização e antecedência. Embora seja um mercado pequeno, até há pouco tempo era possível encontrar pessoas que só tinham uma banda. Hoje em dia é muito pouco provável encontrar isso. A realidade do indie rock português é a de que toda a gente toca com toda a gente. É muito cansativo, é óbvio, a logística é complicada, não é fácil gerir agendas ou marcar sessões de fotos, mas não deixa de ser inspirador! Aprendemos muito mais por estarmos a tocar com outras bandas, trazem-se outras referências… É também mais inseguro, porque prova que as bandas não conseguem, sozinhas, sustentar os músicos. É um caminho que se vai fazendo. Há essas dificuldades, é preciso muita organização e capacidade para antever os problemas. Os Cassete Pirata são a minha primeira preocupação, mas se algum deles tiver de estar ausente por causa de outros projetos, vamos cedendo. Na verdade, é só preciso clarificar as coisas de princípio, para que não haja stress nem amuos. Se isto estiver claro, há uma saúde emocional que permite uma sustentabilidade que às vezes falta, e que faz com que as bandas acabem. É tentar que seja uma coisa boa, confortável, de família, de nos divertirmos, em vez de ser uma coisa impositiva. Embora a ideia da banda tenha sido minha, isto é um projeto inclusivo e há abertura para os outros membros trazerem ideias. Até agora a chave tem sido a boa onda e a liberdade.

É preciso coragem para começar uma banda em Portugal nos dias que correm?

Com a experiência que fui tendo com os outros cantautores com quem trabalhei percebi que, por muito boas que fossem as canções, se não houvesse uma estrutura forte por trás, com uma boa promoção e assessoria de imprensa, as canções não pegavam. Ficava sempre a sensação de que eram músicas mandadas para o lixo. Quando avancei com a ideia da banda percebi que isto ia ser difícil, competitivo, por isso fazia sentido dar um ano zero à banda, em que íamos tocar nos bares mais pequenos e insólitos, para nos darmos a conhecer.

O vosso álbum de estreia, A Montra, conta com produção de Luís Nunes (Benjamim). A “mão” dele tem sido fundamental no vosso som?

Quando o Luís entrou na equipa para produzir disse-nos para lançarmos um EP com quatro músicas que definissem o nosso som. Foi por aí que começámos. O processo do disco foi natural e saboroso, é sempre bom trabalhar com o Luís. Ele tem uma grande capacidade, enquanto produtor, de se moldar. Tem a sua trademark, mas vê-se na quantidade de artistas que tem produzido, como a Márcia, Tape Junk, Joana Espadinha, ou mesmo os Cassete Pirata, que são todos artistas muito diferentes, mas onde se nota o cunho do Luís. Gostava que pudéssemos voltar a trabalhar com ele no próximo disco, mas sabendo que ele está a ficar muito famoso [risos] vai ser preciso muita antecedência.

Impuseram-se algum tipo de prazos ou lançaram o disco na altura que consideraram certa?

Sim, impusemos. Na verdade, temos sempre esses timings bem definidos, embora às vezes não os consigamos cumprir. O facto de não estarmos associados a uma grande editora faz com que, quando as coisas não correm bem, não fique mau ambiente, o que é uma vantagem. Faço sempre o exercício de tentar perceber o que é que correu menos bem (e às vezes não é nada que possamos evitar, são mesmo as circunstâncias). Às vezes as coisas descambam e ainda bem, porque por causa disso teve de se tomar outra decisão que era melhor.

©Rita Carmo

Como descreves o processo de composição?

Sou muito viciado, para mim é um processo terapêutico. Não componho porque tem de ser, ou porque tenho de ganhar dinheiro. Como sou professor, as minhas contas são pagas com as aulas que dou e a música é quase um hobbie pago. Era um sonho poder viver só de fazer canções, porque esse processo de composição é natural e terapêutico. Se estiver muito tempo sem compor começo a ficar com mau feitio. Também nunca fui pressionado para compor, e se isso acontecer se calhar vai ser um pesadelo. Sempre compus muito, mas letras é relativamente recente. Nunca tinha escrito nada, nem um diário [risos]. Não estou tão treinado a escrever letras, é um processo de muita luta mas também prazeroso. Quando se consegue colocar o ponto final na frase e a letra ficou fechada, é uma sensação muito boa.

As letras expõem demasiado os artistas?

Acho que sim. O truque que eu uso é tentar camuflar a mensagem, até porque gosto que haja sempre uma porta aberta para uma segunda interpretação. Acontece-me com artistas que gosto também. Às vezes explicam-me o verdadeiro significado de uma canção e percebo que a minha interpretação faz todo o sentido, embora seja completamente diferente do que o autor quis dizer. Há uma forma de camuflar as coisas, de colocar palavras em código. Lembro-me de, no início, tentar escrever sobre amor e ter imensa dificuldade, porque há coisas que para mim são difíceis de dizer. Há coisas sobre as quais escrevo e penso “não vou conseguir cantar isto”. Há um constrangimento pessoal, mesmo que os outros digam que está muito bem.

Dia 1 de junho regressam ao Musicbox. É um palco especial?

Sim, temos o repertório deste disco, que inclui algumas destas músicas que nos têm acompanhado e vamos também fazer uma versão de um cantautor. Quando nos imagino em palco penso sempre no Musicbox. É uma sala muito feliz. Penso que está para o indie rock português como o Hot Club está para o jazz. Tivemos uma noite super mágica da primeira vez que atuamos lá. Quem for assistir vai, de certeza, divertir-se muito. Desta vez não quisemos centrar o concerto tanto nos convidados, e assumir que isto é uma noite de Cassete.

Qual o futuro próximo para Cassete Pirata?

É tocar. É isso que melhora as bandas; é o mais duro, mas é o mais sustentável; é o que nos leva a conquistar público. Somos muito felizes na estrada, gostamos muito de tocar ao vivo. Já tocamos estas músicas há um ano, estamos mais seguros, vamos fazer uma festa com as pessoas, mas claro que tem havido desafios. Este fim-de-semana demos um concerto em Belmonte num evento de aldeia, ambiente de bailarico. De repente aparece ali uma banda de indie rock e torna-se um desafio conquistar as pessoas. O ambiente é menos hostil do que à partida parece, mas é um desafio e as pessoas acabam por aderir. Essa estrada é que tem de se fazer. O objetivo próximo é descansar desta jornada de lançar o disco e poder finalmente entrar numa fase de marcar datas, relaxar e estarmos juntos. Quero organizar-me para, eventualmente, no próximo ano, ter músicas prontas para começar a ir com a banda para estúdio. Gostava que conseguíssemos fazer uns três ou quatro discos seguidos. Esse é o plano, até para aproveitar esta fase boa e inspirada que estamos a passar.

Como se iniciou no design?

A minha origem no trabalho gráfico deu-se aos 15 anos quando fui litógrafo de indústria. Cursei a Escola de Artes Decorativas António Arroio e dediquei-me profissionalmente à criatividade no que se refere à profissão geral de utilidades domesticas e técnicas de uso geral. Fui entrando nessa prática gráfica e as primeiras coisas que fiz, ainda em Portugal, foram logotipos de comunicação visual que identificavam empresas.

É esse material que podemos ver na exposição Fernando Lemos Designer?

Sim. Tudo isso é a pauta temática desta exposição. Esta é a primeira mostra dedicada especificamente ao meu trabalho como artista gráfico ou designer. A ideia partiu do MUDE, e eu estou muito feliz que vá acontecer em Lisboa. Estamos trabalhando nesta exposição desde 2017, ano em que a diretora do MUDE, Bárbara Coutinho, me fez o convite. O catálogo, que é na verdade um livro, é coeditado pelo MUDE e pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda. O museu apoiou também um documentário sobre o meu trabalho que está a ser feito por Miguel Gonçalves Mendes e Victor Rocha.

Para além da exposição há mais iniciativas em torno da sua obra?

A Galeria Ratton e a Galeria 111 decidiram associar-se a esta iniciativa e organizar duas outras mostras. A Ratton vai expor o meu trabalho em azulejo, para a qual fiz novos desenhos. A Galeria 111 mostra os últimos desenhos e aguarelas e as minhas fotografias da época surrealista. A Imprensa Nacional – Casa da Moeda vai também lançar um livro de fotografias minhas, que inclui algumas inéditas.

É inevitável fazer uma pergunta sobre a exposição Azevedo-Lemos-Vespeira que em 1952 provocou grande polémica e escândalo, arrastando multidões ao Chiado. Pode recordar como era a Lisboa dessa época?

A nossa Lisboa tinha várias caras mas, de certa maneira, nós considerávamos que a única autêntica era a dos Armazéns do Chiado. Era uma Lisboa provinciana, e assim permaneceu durante muito tempo. A nossa exposição rompeu, de certa maneira, esse provincianismo lisboeta, meio snob ao mesmo tempo, tendo como imagem o padrão meio classe-média pobre dos Armazéns do Chiado, onde nos inspirámos nos próprios manequins e dos quais fizemos emblemas. Mas, essa Lisboa era para nós um lugar difícil porque a censura era maior do que tudo isso. A arte era a do SNI (Secretariado Nacional de Informação) onde não tínhamos participação. Foi por isso que eu considerei a Lisboa desse tempo como a cidade onde os portugueses vão embora. Uma cidade só com automóveis e escritórios. Uma cidade que o 25 de Abril veio mudar. Vai ser muito bom voltar outra vez a Lisboa tantos anos depois e senti-la muito diferente de outrora.

Essa realidade levou-o a definir-se como “mais um português à procura de coisa melhor”?

Justamente. Eu saí de Portugal nos anos 50 para não ser mais uma vítima da ditadura fascista. Saí porque estava a ser perseguido. A frase que citou refere-se a essa época e a essa realidade.

Nessa exposição no Chiado apresentou um conjunto de fotografias, hoje famosas, que através da técnica da sobreposição produziam recomposições formais próprias do surrealismo. Como surgiram?

No grupo surrealista ninguém estava muito interessado em usar a fotografia. Eu procurava captar, através de um meio oculto como é a fotografia, o rosto dos portugueses porque achava que não havia nada que nos desse a cara da nossa gente. As primeiras fotografias focaram-se no rosto dos meus amigos do grupo.

A esta distância, qual lhe parece ter sido o legado mais importante do movimento surrealista?

O surrealismo trouxe no pós-guerra um momento de alegria e teve a vantagem de ser o único território onde os sonhos falavam a verdade. Veio para promover a desocultação da realidade. A realidade para nós não existe, existe aquilo que, de novo, todos os dias colocamos nela. Foi uma corrente nova que trouxe essa desocultação da ocultação que é a vida e que nalguns lugares é uma forma política de organização para tomar o poder. O surrealismo parece mentira e é, como toda a arte é uma mentira.

Em 1952 resolve partir para o Brasil.

Eu não vim para o Brasil para ficar. Fiquei porque gostei e me adaptei. Primeiro estive no Rio de Janeiro e depois fixei-me em São Paulo. Em Portugal, a liberdade era a coisa mais difícil de obter num país autoritário, onde me sentia enclausurado desde a infância. Aqui passei a ser livre. E foi aqui que desenvolvi o meu trabalho enquanto artista e designer. Fiz um pouco de tudo no que respeita ao design gráfico: fiz marcas, capas de revistas, cartazes, ilustração; enfim, tudo o que estivesse relacionado com a comunicação visual. Tive em São Paulo um escritório de design industrial onde lancei uma editora de literatura infantil, colagem de figuras para vídeos em 35 mm para marketing e comunicação empresarial, capas de livros e cartazes (como já disse), filmes, estamparia para tecido e azulejo, painéis para o metro, para exposições e espaços comerciais, tapumes institucionais para construções de edifícios, murais, desenhei exposições, fiz muitas ilustrações para poesias e ações de publicidade de vários órgãos públicos, tapeçarias… Colaborei também na fundação da ABDI – a primeira Associação Brasileira de Desenho Industrial, e fui professor e gestor cultural. Mas sabe, fui também trabalhando pontualmente em Portugal. Por exemplo, fui muitos anos colaborador de meu grande amigo José-Augusto França na revista Colóquio Artes e Colóquio Letras, fazendo ilustrações e dando noticias da cultura e das artes no Brasil. Lembro que foi para a Colóquio que escrevi uma matéria sobre Joaquim Tenreiro. É tudo isso que estive vendo sair de caixas e caixotes em minha casa durante os últimos dois anos, e que vai ser exposto em Lisboa nesta exposição, segundo o olhar curatorial de Chico Homem de Melo e o desenho expositivo de Nuno Gusmão, dois designers gráficos de formação. Um brasileiro, outro português…

Que mais mudou com a sua ida para o Brasil?

Houve uma mudança muito grande na medida em que passei a ser livre, passei a ser outra pessoa. O Brasil é um país de criatividade. A própria maneira de falar é criativa. Essa insistência de dizer que é a mesma língua não é verdade. No Brasil não existe uma língua, existe sim uma linguagem. Foi no Brasil que aprendi a distinguir a cara dos portugueses e dos brasileiros, e isso influiu na minha maneira de criar. A criação não acontece por acaso, acontece em função da cultura que vivemos e aqui muita gente me ajudou a fazer a cabeça que ainda não estava pronta.

Afirma que, em tudo que faz, é sempre designer. Quer explicitar?

Afirmo isso porque sou muito gráfico. Faço tudo com uma visão gráfica. Entendo o design como o estudo psicanalítico dos sonhos. O design é o que acontece, e não apenas aquilo que é pensado. Design não é sinónimo de desenho, é uma ideia que ganha forma especifica de conteúdo. É o desígnio de uma ideia.

No final desta descida aos infernos da condição humana proposta pelo dramaturgo britânico Dennis Kelly, poder-se-á pensar na velha máxima de Rousseau que todo o homem nasce bom e a sociedade é que o corrompe. Decerto, Gorge Mastromas, de quem, em retrospetiva, vamos conhecer o percurso de vida, desde a infância comum até à chegada à idade adulta, se enquadra nesse princípio. Porque, na essência, o jovem Gorge optou sempre pelo bem, mas um conjunto de vicissitudes mais ou menos corriqueiras foi tornando irresistível ao adulto a tentação do mal.

À semelhança de Fausto, Gorge acaba como que por vender a alma ao diabo e perante os dilemas morais que lhe surgem, o caminho escolhido torna-se o mais perverso. Assim, o homem banal, nem mais nem menos inteligente do que os outros, alcança a riqueza e o poder e uma tenaz capacidade de indiferença à mentira. Ou melhor, Gorge torna-se num homem de sucesso abraçando mentiras sucessivas de que o próprio se convence serem verdades. A sua, e só sua, verdade.

Como aponta o encenador Tiago Guedes, o mais fascinante neste texto é “a forma que o autor encontrou para confrontar o espetador, reservando-lhe, através do coro que enquadra a ação, o julgamento da personagem”. “Diria que Gorge Mastromas é o reflexo daquilo em que nos podemos tornar nesta sociedade”, e que perturbador pode ser pensar que “agir pelo bem não nos leva a lado nenhum.”

Guedes vai mesmo mais longe, e partilha a sua inquietação pessoal, enquanto pai: “pretendo sempre transmitir aos meus filhos os valores certos, mas que assustador pode ser perceber que esses valores não se coadunam com o mundo em que vivemos”. Por isso, “prefiro imiscuir-me de julgar o Gorge, não pensar se ele é vítima ou culpado.”

Desde que leu A Matança Ritual de Gorge Mastromas, Guedes pensou em Bruno Nogueira como o ator ideal para o papel. “Senti que o Bruno tinha a escala adequada para o interpretar e, tendo em conta todo o reconhecimento, e também o poder que tem, vi poder emprestar ao personagem a dimensão dramática necessária.”

Para Bruno Nogueira, que aqui abraça um registo completamente diferente daquele que lhe granjeou notoriedade, ser Gorge Mastromas “não é mais nem menos difícil do que fazer comédia. É diferente, porque o drama é também muito exigente”.

Sobre o personagem, o ator sublinha “a grande dificuldade de reconhecer naquilo em que ele se torna pontos de identificação”. Mas, acrescenta, “acho que todos nós encontramos nele muitas semelhanças com alguns tipos que conhecemos. E o que mais me aborrece é acreditar que, a cada noite, quando se deitam na cama, dormem perfeitamente. Pelo menos até serem apanhados”. E, tristemente, conclui: “são poucos aqueles a quem as coisas correm mal.”

A 1 de junho, pelas 19h30, abrem oficialmente as Festas de Lisboa. Na Alameda D. Afonso Henriques, rumo à Fonte Luminosa, Tatiana-Mosio Bongonga, uma das maiores artistas de funambulismo da atualidade, irá percorrer 300 metros numa corda bamba a 33 metros de altitude. Em Linhas Voadoras, a equilibrista cofundadora da Companhia Basinga (França) e seus pares estarão prestes a desafiar a gravidade, acompanhados de música ao vivo pela Banda da Armada.

Como as Festas começam no Dia Mundial da Criança, duas sugestões para os mais jovens: no Jardim da Quinta das Conchas, Guardar Segredo convida os mais novos a entrarem em dois guarda-fatos e descobrir o mais secreto dos “segredos”, num espetáculo encenado por Caroline Bergeron integrado na programação comemorativa dos 125 anos do Teatro São Luiz; e, noutro local da cidade, mais precisamente na Calçada da Ajuda, o LU.CA – Teatro Luís de Camões celebra o seu primeiro aniversário com vários espetáculos, performances na rua, oficinas de expressão artística, leituras e outras surpresas.

Como não podia deixar de ser, as marchas populares, os arraiais, os tronos e os casamentos de Santo António regressam às ruas. Na noite mais longa do mês (12 de junho), 16 pares recém-casados, 23 marchas e uma convidada – Marcha Popular de Ribeira de Frades – irão descer a Avenida da Liberdade sob a égide do Santo Popular.

Por falar em casamentos, o já habitual programa Fado no Castelo propõe dois, improváveis q.b: as fadistas Ana Moura e Raquel Tavares vão “casar” o fado com outras músicas. A 14 de junho, Ana Moura encontra a música tradicional a capella do grupo Sopa de Pedra; e, na noite seguinte, Raquel Tavares a música de raiz negra dos Gospel Collective.

De entre dezenas e dezenas de propostas, as Festas destacam mais uma edição do festival Com’Paço, que volta a espalhar bandas filarmónicas oriundas de todo o país em dois jardins da cidade e, pela primeira vez, na Alameda D. Afonso Henriques, que será palco do concerto de encerramento com a banda de jovens músicos Com’Paço’19 e a convidada Anabela (22 de junho); o intercultural Lisboa Mistura, que este ano se muda para a Quinta das Conchas (8 a 10 de junho); ou a Festa da Diversidade na Ribeira das Naus (dias 29 e 30).

Para concluir, a 29 de junho, no Jardim da Torre de Belém, o encerramento é marcado por um concerto único, construído propositadamente para a ocasião, dedicado a António Variações que faria, neste 2019, 75 anos. Sobre o palco, as suas músicas serão recriadas por Ana Bacalhau, Conan Osiris, Lena D’Água, Manuela Azevedo, Paulo Bragança e Selma Uamusse, com a Orquestra Metropolitana de Lisboa e arranjos sinfónicos a cargo de Filipe Melo, Filipe Raposo e Pedro Moreira.

O programa integral das Festas de Lisboa pode ser consultado aqui.

paginations here